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Síntese da obra "Programa del curso de Derecho Criminal (vol. 1)", de Francesco Carrara
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Síntese da obra "Programa del curso de Derecho Criminal (vol. 1)", de Francesco Carrara
Escola clássica
Relativo à imputação, ao delito como "ente jurídico", às "forças do delito" e algumas outras ideias da escola clássica de direito penal, na teoria de Francesco Carrara.
1. A necessidade da tutela jurídica
Francesco Carrara é categórico ao fundamentar a necessidade da tutela jurídica como uma função social derivada da Lei Natural, seguindo veemente a posição de John Locke (leia aqui o ensaio sobre "Two treatises of Government", de Locke). A razão de ser da sociedade civil é a manutenção dos direitos naturais do homem, e por isso mesmo a lei penal deve ter como finalidade a proteção contra o arbítrio.
La asociación (que ha sido impuesta al hombre por la ley eterna, como medio de conservación, de progreso intelectual, de perfeccionamiento moral y de protección del derecho) no subsistiría, ni respondería á sus fines si cada uno de sus miembros fuese libre de cumplir sus deseos, aun cuando éstos fuesen injustos y dañosos á otro. De allí nace la necesidad de prohibir ciertos actos que turbarian el orden externo y de declarar que, si se cometen, se considerarán como delitos. Esta necesidad recibe el nombre de necessidad social. La necesidad social es la fórmula que expresa la relación de la ley criminal con la sociedad ya existente. Pero la necesidad social, considerada en su causa primera, no es otra cosa que una necesidad de la naturaleza humana. Si de otro modo fuera, la necesidad social seria una fórmula empirica impotente para de mostrar la legitimidad de la prohibición. [p.41] 
Para satisfazer essa necessidade, existe o direito penal. Seu objeto de estudo é precisamente o delito, a pena e o juízo.
2. Princípio da imputação
A escola clássica não tratava, como é atualmente, do conceito de conduta ou ação. Para essa escola, o mais importante a se estudar consistia na imputação, fundamentada pela própria lei (mais precisamente na contradição entre fato e lei).
Imputar significa atribuir alguna cosa á una pessoa... La imputabilidad es el juicio que hacemos sobre un hecho futuro, que preveemos únicamente como posible. La imputación es el juicio sobre un hecho realizado. — La primera es la contemplación de una idea: la segunda es el examen de un hecho concreto. Allí consideramos una pura abstracción: aquí una realidad. [p. 27]
Carrara expõe mais de uma espécie de imputação, como: a imputação moral (ou voluntariedade), a física (ou causalidade), a social (ou criminalização legal) e a civil (ou sentença judicial).
3. O delito
O delito é um ente jurídico (ou ser jurídico) que nasce da contradição entre um fato material e uma proibição legal. Seu objeto não é o homem, mas o direito violado que a lei protege através de uma proibição.
Debemos notar que no se define el delito una acción, sino una infracción. La noción del delito no se deriva, pues, del hecho material, ni de la prohibición de la ley, considerados aisladamente, sino del conflicto entre uno y otra. [p. 41]
A ação (ou comissão) tem seu papel no fato material e se desenvolve em diversos momentos, cada um composto de uma objetividade diversa. Já a inação (ou omissão) pode ser considerada também delito na circunstância em que alguém tenha de agir e se omite. É o caso em que uma outra pessoa tem o direito de exigir a ação omitida.
4. Forças do delito
O delito, que é a relação de conflito entre um fato e a lei que o proíbe, constitui "a criminalidade da ação". Esse conflito é composto de alguns elementos, os quais são denominados por forças (vis) do delito.
La teoría de las fuerzas es fundamental en nues escuela: sirve para distinguir los hechos que pueden ser declarados delitos de los que no pueden serlo sin tiranía: es la luz que guía, sin engañar jamás, en la justa distribución y exacta medida de la imputación de los hechos particulares. [p. 50]
São forças do delito:
a) Força moral subjetiva
É a vontade inteligente do agente, que constitui o caráter moral da ação. São imprescindíveis as seguintes etapas para que o agente proceda ao agir externo:
1º el conocimiento de la ley; 2º la previsión de los efectos; 3º la libertad de elegir; 4 la voluntad de obrar. [p. 52]
As duas primeiras condições podem ser só potenciais, as últimas devem ser atuais. As primeiras são resumidas na fórmula do concurso de inteligência, as últimas, no concurso de vontade. Inteligência mais vontade se denomina por intenção.
A intenção, num delito, pode ser perfeita ou imperfeita. É perfeita quando a inteligência e a vontade estão em plenitude atual. É imperfeita quando uma causa qualquer a diminui. Em consequência, há diminuição de imputabilidade.
São espécies de intenção: 1) direta - agente prevê e quer o resultado. 2) indireta - efeito possível, não previsto ou previsto e não aceito pelo agente.  2.1) indireta positiva - prevê-se o resultado sem querer que sobrevenha, mas se quis os meios. A vontade é indiferente, mas deve haver inteligência positiva; 2.2) indireta negativa - resultado não previsto e não querido. Inteligência e vontade negativas.
Se o agente prevê e quer o resultado, usando de meios apenas "possíveis", mas sobrevém o resultado querido, se trata de uma intenção direta ainda que os meios sejam indiretos (porque apenas "possíveis"), pois, reitera-se, trata-se de uma intenção direta.
A intenção direta (1) e a intenção direta positiva (2.1) são espécies de dolo. A intenção direta negativa (2.2) pode ser culpa ou caso fortuito.
b) Força física subjetiva
Movimento do corpo através do qual o agente realiza o fato material. O corpo obedece às ordens da vontade.
c) Força moral objetiva
Seu resultado é o dano moral social do delito, o mal exemplo e o temor. A força moral objetiva é a combinação da força física do delito mais sua força moral subjetiva. A moralidade do ato é sempre externa e não se toma em consideração o dolo (interno) sem que esse influencie na moralidade externa do ato. A moralidade externa de um ato se modifica conforme o fato criminoso haja conturbado mais ou menos o sentimento de segurança (dos cidadãos). São causas (dados positivos) que aumentam a gravidade relativa do delito: 1) a violação de vários direitos produzida pelo ato criminal apesar da identidade do resultado material; 2) diminuição da eficácia de defesa privada. Na parte especial considera-se também as diferentes causas impulsivas para cometer delitos e os diferentes meios empreendidos para sua consumação. Surge a teoria das circunstâncias agravantes qualificadoras.
d) Força física objetiva
Seu resultado é a violação do direito atacado.
Note que as duas primeiras (a, b) se consideram em suas causas e as últimas, por sua vez, em seus resultados.
5. Dolo e culpa
Assim se define o dolo:
...la intención más o menos perfecta de ejecutar un acto que sabemos es contrario á la ley. [p. 55]
Carmignani (também autor da escola clássica) conceituava o dolo diferentemente: tinha como condição a ação externa. Para Carrara, Carmignani errou. O dolo, diz Carrara, consiste na intenção de violar a lei. Por outro lado, a culpa é
...la omisión voluntaria de diligencia, por el autor de un hecho, en el cálculo de sus consecuencias posibles y que él podía prever. [p. 62]
A essência da culpa está na capacidade de prever. Não prever diferencia a culpa do dolo. Não poder prever diferencia o caso fortuito da culpa. Se admite a gradação da culpa e do dolo do menos ao mais grave.
A culpa é defeito de vontade. O homem negligente, ainda que não queira o resultado, quis o ato no qual deveria reconhecer a possibilidade ou probabilidade da lesão.
El fundamento de la imputabilidad social de los actos culpables es absolutamente análogo al de los actos dolosos: consiste en el concurso del daño mediato y el daño inmediato. Los actos imprudentes disminuyen en el buen ciudadano el sentimiento de su seguridad y dan mal ejemplo al que es inclinado á ser imprudente. Los hechos culpables, en tanto que consisten en un defecto de voluntad, son moralmente imputables, porque es un acto voluntario el tener inactivas las facultades intelectuales. El hombre negligente, aunque no haya querido la violación del derecho, ha querido el acto en el cual hubiera debido reconocer la posibilidad o la probabilidad de esa lesión. Por consiguiente, si los hechos imprudentes llegan á producir un mal social, deben ser también, en la medida y proporción convenientes, imputables socialmente, puesto que ellos también producen el resultado social de que la ofensa, materialmente particular, cause una perturbación moral universal, además, el ciudadano tiene derecho de ser defendido, no solamente contra los facinerosos, sino también contra los negligentes. [p. 84]
A possibilidade de prever não é o mesmo que a previsão. Carrara explica que há como não prever absolutamente a situação que sobrevém em seguida (incapacidade ou impossibilidade de previsão); se pode também prevê-la como possível, esperando evitá-la, ainda que o resultado sobrevenha. No primeiro caso: um caçador dispara um tiro contra um animal selvagem e acerta o homem que há por detrás dele: se havia como prever, é culpável, mas se não o previu absolutamente, não há culpa. No segundo, quero atirar no animal que está perto de um homem. Em meus cálculos, a bala não pode alcançar o último. Se prevejo que não o alcançaria, mas o alcanço, se trata de culpa. Prever que o resultado não acontecerá é o mesmo que não prevê-lo. Se atiro em um homem, sem a intenção de matá-lo, em um cenário em que ele encontra-se bastante distante, e não acredito que a bala o alcancará (prevejo que não irá alcançá-lo), mas o alcança, é dolo indeterminado porque houve intenção de ferir (ainda que não de matar). Se sobrevém o resultado mais grave (v.g.,a morte) porque o risco foi aceito, ainda que não querido, é caso de preterintenção.
Dolo indeterminado: em que se supõe o resultado mais grave, se prevê, mas não o quer. Preterdolo: se quer ferir, com dolo e previsão, mas não se prevê nem se quer o resultado mais grave.
O autor não aceita a hipótese da culpa com previsão. No caso de dúvida em relação à ocasião em que há capacidade de prever, mas não se faz absolutamente, e a ação é irreflexiva mas com vontade (ex., jogar irreflexivamente um cigarro perto da palha, não prevendo que pode causar um incêndio) pode tratar-se de dolo indeterminado.
No que diz respeito à omissão, o autor expõe o seguinte:
...la omisión voluntaria, porque si bien los hechos culpables encierran un defecto de inteligencia, que consiste en no haber previsto las consecuencias dañosas de un hecho, sin embargo, por su origen este defecto de inteligencia se remonta á la voluntad del agente; es, por tanto, por un defecto de voluntad por lo que él no ha hecho uso de la reflexión, por medio de la cual podía haber percibido sus consecuencias desgraciadas. — Si la culpa fuera simplemente un defecto de inteligencia, no sería, por la fuerza de la lógica, ni moral ni socialmente imputable. [p. 62]
O parágrafo acima pode ser complementado por essa explicação:
Las facultades psicológicas del hombre son tres: — la sensibilidad — la inteligencia — la actividad. — 1º De la sensibilidad nacen los sentimientos de placer ó de dolor, y de aquí los apetitos que, cuando ejercen una fuerte presión en el alma, se convierten en pasiones. La sensibilidad es el agente que provoca nuestras acciones y nuestras acciones: se traduce en estos tres leno menos: sensación, sentimiento y pasión. Mas la sensibilidad, como no es ni iluminada (illuminata), ni libre, no puede colocarse entre los elementos de la imputabilidad. 2º La inteligencia se traduce en tres fenómenos: la percepción, la memoria y el juicio, el cual es un acto puramente racional. Mas tampoco aquí puede encontrar base la imputabilidad, porque el hecho de no percibir, de olvidar, de engañarse en el razonamiento, no es siempre imputable al hombre. 3º La actividad es la facultad de determinarse á una acción ó á una inacción: tiene por condición esencial la libertad. La voluntad, como poder de querer, es idéntica á la libertad. La libertad, como resultado de haber querido (fatto di aver voluto), no es un poder, sino el ejercicio del poder. [p. 56]
Portanto, a incapacidade de inteligência não pode ser imputável, nem com culpa. A capacidade de determinação, que é uma faculdade da atividade e, em última instância, diretamente ligada à vontade e liberdade do querer, será tratada em pormenores logo mais.
Carrara rejeita a fórmula da imputação por "suspeita de dolo", imaginada por Carmignani, além da concepção de culpa de Mori, de que "os fatos culpáveis se imputam por exceção" e de Ludwig Harscher von Almendingen, "a culpa como defeito de inteligência sob o qual a sociedade tem direito de incriminar para corrigi-los". A culpa é defeito de vontade, e a sociedade não tem direito de "corrigir" nada.
6. Perigo e dano
Não pode haver imputação sem dano ou, pelo menos, sem perigo atual. Há várias formas de dano (material, potencial, mediato, imediato, público e privado) e duas de perigo (temido e atual). O dano potencial é diferente de perigo.
No perigo não há violação, mas ameaça. Pode ser a) temido: qualidades ou outras inclinações de um homem que nunca se apresentam em um estado de fato. Não dá lugar à incriminação, só entra no nº das medidas de buen gobierno/jurisdição de polícia; b) atual: estado de fato que se torna iminente a violação, é a base da imputação da tentativa.
Já o dano potencial pode fazer nascer o delito consumado, que é sempre um delito formal: basta a ação do delinquente para formar a violação atual do direito, ainda que não se efetive o resultado buscado. É exemplo a injúria, que se efetiva mesmo que o dano material (vítima se sinta injuriada) não sobrevenha. Há dano efetivo no direito abstrato (objetividade ideal) e potencial ao direito concreto.
O autor reitera que a moral não pode ser critério da medida dos delitos. Há também outras qualificações de dano, o dano público e o privado, que podem ser tanto imediatos quanto mediatos (ou reflexos).
...el daño inmediato es universal ó público, cuando el delito ataca una cosa en la cual todos los ciudadanos tienen un interés común, y por tanto un derecho á que ella sea respetada, como la religión, la autoridad, la tranquilidad pública, la propiedad pública, la justicia, etc. El daño inmediato es, al contrario, particular ó privado, cuando el delito ataca una cosa en la cual tiene interca sólo los individuos que han sido pa cientes del delito. De estas nociones resulta que el daño potencial privado basta para constituir el delito perfecto, cuando concurre con un daño efectivo publico. Esta fórmula resume toda la teoría y aclara la doctrina de la tentativa, como en su lugar veremos. [p. 79]
O autor discorda da posição de dano universal da escola política (que é aceita por Carmignani). Para ele, o dano universal é público e imediato, os pacientes são os homens reais e não a personificação ideal do Estado.
7. O delito
Carrara faz parte da escola clássica que adota a teoria da escola jurídica para o delito (podemos também nos referir à vertente de Carrara como ontológica).
La escuela juridica considera el delito como una negación del derecho, que impone al delincuente la obligación de confirmarlo, sufriendo una pena. El moderador supremo de la vida social no es ni la utilidad ni el bien suprasensible, sino únicamente el derecho. [p. 175]
São outras escolas a ascética e a política.
La escuela política considera el delito como un mal social que la autoridad debe impedir, y ve en la necessidad de impedir este mal una razón suficiente de la legitimidad de castigar. Toda la justicia reside en la necessidad de la prevención. [p. 175]
Para la escuela ascética, la razón de castigar se encuentra por com pleto en el mundo suprasensible. Si el delito debe atraer una pena, es porque constituye la violación de un deber ó, en otros términos, porque es un hecho intrínsecamente malo. [p. 175]
Sobre a ideia de "escola ontológica", logo retomar-se-á.
A teoria do delito de Francesco Carrara estabelece três critérios para a valoração do delito. São eles a qualidade, a quantidade e o grau.
...los delitos debem imputarse em proporción exacta de su calidad, de su cantidad y de su grado. [p. 85]
7.1 A qualidade no delito
Qualidade é o que faz a coisa ser como é, faz com que um fato criminoso constitua melhor um delito em detrimento do outro: é o que distingue o título de um delito de outro. A qualidade serve para classificar os delitos. O critério para definir a qualidade dos delitos e classificá-los são deduzidos da diversidade de direitos lesionados.
O objeto do delito se reconhece na violação da lei, deduzida do fim do agente. Daí nascem diferentes categorias de delitos. Quando dois atos delituosos são empreendidos, mas um deles é meio para o outro e ambos concorrem para um só fim, não altera-se a classe, mas constitui uma qualidade agravante. O fim modifica a imputação do meio. Quando o delito que serviu como meio é mais grave que aquele que o agente se propunha como fim (e.g.,  homicidio para roubar), o fato sai da classe do último (roubo) e possa à infração que serviu de meio (homicídio). Pode então mudar o nome, como em um latrocinio, ou não, como no caso do incêndo com fim de de roubar.
Os delitos possuem uma atribuição política diferente e, portanto, devem ter cada um uma medida de imputação. Existem 3 sistemas principais para definir o critério de diferenciação dos delitos. a) de Beccaria, desenvolvido por Carmignani, que deduz a quantidade do dano social; b) de Romagnosi, que crê encontrá-la na impulsão criminosa (spinta criminosa). c) de Rossi, encontrando-a na importância do dever violado. Carrara segue o primeiro (a).
A (b) pune tanto que o mal maior acaba por ser a defesa e não a ofensa, porque se baseia em uma teoria com critérios mal fundados. A (c) toma o direito penal como purificador de almas quando eleva a moral para ser critério diferenciador de gravidade dos delitos, uma teoria demasiadamente autoritária.
Seguindo em Carrara, temos que o dano imediato ou a força física e dano mediato ou força moral são critérios objetivos que rechaçam a arbitrariedade. A gravidade do dano imediato se calcula (segundo Carmignani) por meio de três dados positivos: 1) maior ou menor importância do bem afetado pelo delito; 2) maior ou menor reparabilidade do mal; 3) maior ou menor facilidade de difusão desse mal. Este último une a consideração à potencialidade e a efetividade do dano.
As agravantes não pertencem à teoria da gradação dos delitos senão à quantidade e qualidade. Muda a espécie do delito, o ente jurídico, variando seu nome ordinário ou adicionando-lhe qualificação desfavorável. A modificação da gradação do delito pode se estender ao ponto de fazer cessar a imputabilidade. Nascem então as circunstâncias justificantes ou exculpantes (o que, para o autor, é uma má escolha de palavras, já que quando não há delito algum, desaparece a necessidade de exculpar). Ainda que tratada no grau, a exculpante na verdade destrói o delito, não transforma seu grau.
7.2 A quantidade no delito
A quantidade faz com que, em diversas espécies comparadas entre si, exista uma relação de mais ou de menos. Seu cálculo varia segundo o elemento que se tome como critério para medi-la.
A quantidade relativa de diferentes delitos deve medir-se segundo o dano imediato (força física objetiva) de cada delito. Quando o dano imediato é igual, a quantidade relativa dos delitos se modificou segundo o dano imediato (a força moral objetiva). Lembre: a força moral objetiva é a combinação da força física do delito mais sua força moral subjetiva.
[Princípio da proporcionalidade das penas em relação aos delitos:]..la energia de la represión ó, en otras palabras,  de la defensa, debe estar em relación con los males causados por las ofensas... [p.112]
7.3 O grau nos delitos
As forças que constituem o delito nem sempre se desenvolvem em um só momento. Esses momentos de cada uma das forças formam a gradação do delito. Por isso se diz que o delito está 'degradado', diminuído ou atenuado quando falta um momento dessas forças. O grau muda a imputação, não a espécie do delito.
Nesse momento se analisa o critério da força moral considerado em seu elemento subjetivo. Na "qualidade" se investiga os delitos considerados abstratamente. No grau se examina a situação concreta. Estuda-se, portanto, as causas exculpantes e de inimputabilidade, pois se fundam em princíoios identicos ou análogos que simplificam seu estudo.
Os graus no delito se concentram em duas espécies, quais sejam em sua força moral e em sua força física. A degradação do delito em sua força moral requer a falta de inteligência do agente ou que ela seja menos ativa. Também pode haver quando sua vontade seja deficiente ou menos espontânea. Para que haja força moral subjetiva o agente deve gozar de sua inteligência nos momentos de percepção e juízo, e de liberdade nos momentos de desejo e determinação.
São causas de diminuição ou anulação da inteligência: causas físicas (ou fisiológicas), a idade, o sexo o "sonho" (o sonambulismo, no qual os atos do agente só podem a ele ser imputados se sabia dessa condição e não fez as diligências para evitar o dano durante esse estado), a surdomudez (aquele que não recebe as instruções devidas, em razão da dificuldade social de passar-lhe informações, só pode ser imputável na medida de seu discernimento) e a loucura.
A degradação da força física no delito acontece quando faltam momentos físicos para a ação, ou tais eram impotentes para chegar ao efeito desejado ou, ainda, se não se pode atribuir a um só indivíduo. Essas considerações nos remontam diretamente à questão da imputação e da responsabilidade.
8. Responsabilidade e imputação
La responsabilidad no procede de la instrucción recibida, sino de la adquisición de luces que resulta de ella. [p. 142]
Em razão disso, a imputação (vista no início) e a responsabilidade residem no discernimento.
La fórmula del discernimiento es, pues, muy buena y muy exacta: es la única que responde al principio de que no se admite condenación por presunción. Es absolutamente necesario dejar á la conciencia del magistrado la investigación del discernimiento to, porque ella depende exclusivamente del examen especial de las condiciones del individuo autor del delito, condiciones que es imposible determinar a priori. [p. 143]
Nesse sentido, resta elucidar o seguinte: o velho é imputável pois a idade e si mesma não é causa para excusa. A demência, no entanto, é. O autor rejeita a diminuição de imputação ao sexo feminino simplesmente pela condição de ser mulher. Essa condição pode somente modificar a pena por respeito à culpável e à decência pública. A inteligência da mulher não é inferior. Rejeita-se também a correção como fim da pena (e a sua consequência lógica, qual seja a abolição da pena de morte). Se está falando de uma época em que haviam várias espécies de penas, como castigos corporais — e o autor não pretendeu estabelecer limites ao Legislativo nesse sentido.
É importante ter em mente que diminuição de imputação é diversa de diminuição de pena. É inimputável aquele que não tem consciência de seus atos (no código, há de haver tal passagem, se não o juiz suprirá).
...todas las investigaciones de hecho relativas á las condicines de la locura deben ser dejadas al juicio del magistrado y que no pueden ser definidas a priori por la ley. [p. 146]
8.1 Causas que modificam a imputação
São causas de diminuição ou coação de vontade que modificam a imputação: 1) a coação propriamente dita, ou coação moral externa; 2) o impulso das paixões (psicologicamente consideradas); e 3) a embriaguez.
Consideremos as espécies de embriaguez: a) acidental: quando a pessoa se encontra embriagada sem sequer ter bebido demais, seja por uma causa fisiológica ou adulteração maliciosa do licor. b) culposa: quando o agente bebe demais sem prever que chegaria ao estado de embriaguez. c) voluntária: quando alguém bebe demais, prevê ficar embriagado, mas não prevê que cometeria um delito. d) embriaguez rebuscada ou premeditada: quando o agente bebe para desenvolver mais coragem para realizar o ato ilegal, ou para afogar as dúvidas de consciência, ou para criar a situação de exculpante.
A embriaguez voluntária e a culposa podem ser imputáveis com culpa. A embriaguez acidental não é imputável, a não ser que encontre-se no estado incompleto, em que o agente tem inteligência atual. Cabe, neste caso, dolo e no máximo atenunante da embriaguez culpável ou voluntária.
É causa de diminuição de imputação a legítima defesa. É claro que o direito não pode esperar que alguém, em um estado de perigo atual a sua própria vida, por exemplo, deixe que outrem a ceife. A lei natural estabelece que é lícito que aquele que tenha um direito ameaçado possa se defender. Mas, para ser justa e inimputável, a legítima defesa precisa cumprir certas características.
São causas necessárias para o exercício da legítima defesa: 1) a injustiça (o agente se encontrar em situação de injustiça); 2) a gravidade (a gravidade do mal, na opinião do agente, a que lhe foi injustamente endereçado); e 3) a inevitabilidade (do perigo a que o agente é impulsionado a cometer ou a reagir, sem que tenha se colocado naquela situação).
La legitimidad de la defensa debe siempre medirse según la opinión racional de aquel que se ve ame nazado de muerte, y no según lo que un frío cálculo y un maduro examen han hecho conocer al juez. [p. 168]
Quando não há gravidade nem inevitabilidade, se imputa o excesso de legítima defesa. Nunca por dolo, sempre por culpa.
9. Erro de fato e erro de direito
Um erro consiste em uma falsa noção em relação a um objeto. O erro pode ser de fato ou de direito, a depender do que se refere. Este último diz respeito à relação do agente com a lei (desconhecimento, por exemplo), enquanto o erro de fato consiste na situação em que se conhece a lei mas há equívoco nas condições particulares do fato.
El error de hecho exime de toda imputación cuando ha sido esencial é invencible. No hay nada que reprochar al que no creía hacer mal, cuando no le cra posible conocer la criminalidad de su acción. [p. 151]
O erro de fato é invencível quando não se pode evitar, ainda que todas as diligências sejam tomadas. Hoje o erro de fato se chama erro de tipo, e um exemplo é a gestante que ingere uma medicação que não poderia saber que é abortiva — ainda que lesse a bula, tomando as diligências possíveis, não descobriria tal informação.
O erro de fato, ainda que invencível, não exime de responsabilidade se é acidental ou concomitante. Se atiro em Caio pensando ser Pedro, posso ter errado meu alvo, mas cometi um homicídio. O erro de fato essencial, exime da imputação por dolo, mas subsiste a culpa. Entre erro superável (ou evitável) e a culpa, há a seguinte diferença: na culpa por negligência não há previsão de um resultado danoso. Falta, portanto, a direção de vontade destinada a causar o prejuízo, enquanto no erro superável por negligência há previsão de resultado, e além disso ele é querido, mas não são previstas as suas consequências jurídicas. Pode caber apenas atenuante no erro evitável.
Por outro lado, o erro de direito consiste na ignorância da lei.
El error de derecho no es nunca una excusa. [p. 149]
Ainda que não seja uma exculpante, pode ser todavia uma atenuante. Esta regra tem uma limitação quando se trata de estrangeiro, de maneira que o ato só será culpável se a lei do estrangeiro prescrever punição ao mesmo crime consumado no território do país pelo agente estrangeiro.
10. Escola ontológica
Carrara considera, além do título de escola clássica, a escola "ontológica" para classificar sua teoria. A ontologia ["onto", do grego, significa "ser" e "logoi", ciência] é a ciência do ser, ou seja, o seu estudo. Faz total sentido que Carrara assim denomine, pois ele fundamenta sua teoria a partir da perspectiva de que o delito é um ser jurídico. Em consequência, o estudo do delito seria também um estudo ontológico.
Así, pues, las condiciones ontológicas de delito comprenden: 1º El derecho atacado, que constituye su objetividad; 2º El acto material agresivo, que constituye su subjetividad fisica; 3º El con curso de lo moral del agente (es decir la voluntad inteligente), que constitu ye la subjetividad moral. He aquí las condiciones ontológicas del delito. Si falta el derecho atacado, el sér jurídico desaparece, porque carece de objeto; es por esto por lo que el pecado no es un delito. Si falta absolutamente el acto material, el sér jurídico desaparece del mismo modo, porque que da privado del elemento fisico; por esto no son delitos las intenciones malvadas. Si falta absolutamente el elemento moral de la acción, el sér juridico tambien desaparece, porque el acto material no puede atentar al derecho sino proviene de una voluntad inteligente; por esta razón el daño causado por los animales ó por el azar no constituye delito. Si no hay falta absoluta de estas condiciones, sino únicamente disminución de algunas de ellas, el delito subsiste, pero proporcionado á esta disminución. [p. 176]
11. Tentativa, delito frustrado e defeituoso
A tentativa é um ato externo realizado pelo agente que deve voltar-se para a realização de um delito, necessariamente deve consistir em início de execução.
[A tentativa é]...todo acto externo conducente univocamente por su naturalesa y dirigido por la voluntad explicita del agente hacia un resultado criminal, pero no seguido de este resultado ni de la lesión de un derecho superior ó equivalente al que se quería violar. [p. 198]
Para ser início de execução e considerado tentativa, um ato externo precisa conduzir unicamente ao delito. Quando a ação pode ser considerada inocente, então se trata de um ato preparatório. O ato preparatório não é punível porque falta-lhe o perigo atual.
É indispensável que os meios utilizados para a consumação do delito sejam aptos a produzir o resultado a que se empenha. Não há imputação na ausência de aptidão e não há tentativa culposa. Por outro lado,
El delito frustrado:-la ejecución de todos los actos necesarios para la consumación de un delito, hecha con intención explicitamente dirigida hacia ese delito; pero no seguida del efecto querido, por razones independientes de la voluntad y de la manera de obrar del culpable. [p. 223]
Para preencher o requisito de um delito frustrado, é preciso que todos os atos necessários para a consumação do delito sejam executados e só venham a ser interrompidos por um ato de vontade alheio ao agente. Quando o resultado não sobrevém devido aos meios que o culpável empenha para realizá-lo, não há que se falar em delito frustrado, mas defeituoso. No último caso, não há perigo, por ex., naquele que utiliza uma colher para "esfaquear" alguém, e portanto não há delito frustrado: há delito defeituoso. Também não cabe tentativa.
12. Da cumplicidade
A cumplicidade é a participação concorrente de agentes em um delito. No entanto, não é possível afimar se tratar de qualquer forma de participação. O concurso material (o ato físico de um delito), por exemplo, ainda que eficaz, não produz a participação em um delito noutro, se não houve intenção formal.
...el hecho material puede comunicarse entre varios participantes, la intención no es jamás comunicable de individuo á individuo. [p. 241]
Portanto, o cerne da cumplicidade é não só o agir físico ou material, mas precisamente a intenção. Quando alguém dá causa moral ao delito, sem que se impenhe nos atos físicos, ainda assim pode haver cumplicidade. É o exemplo do mandante de um crime: quando esse utiliza de uma coação para que o autor físico do delito o realize, é possível que toda a causa do delito recaia sobre o autor moral. Pode haver cúmplice na tentativa, mas não tentativa de cumplicidade.
Saber que um crime vai acontecer, e não evitar, não é cumplicidade. A cumplicidade requer o concurso de ação e de vontade. É diferente do favorecimento, porque há participação nos atos posteriores à consumação, como a proteção do culpável contra a justiça. Até agora, não se falou em cumplicidade necessária, que é uma outra modalidade, sendo a referida acima apenas facultativa.
Há algumas classificações especiais para designar a cumplicidade. São:
Coautor - aquele que participa ativamente no último ato de consumação do delito. Corréu - corresponsável pelo delito. Ambos são igualmente imputáveis, mas sua distinção pode apresentar interesse na questão relativa à comunicabilidade das circunstâncias agravantes.
Auxiliador - participação dolosa na ação anterior aos atos de consumação. Recebe menor imputação que o autor principal.
A imputação na cumplicidade não se comunica aos demais participantes quando um deles realiza um MEIO diverso daquele pretendido por todos para chegar a um RESULTADO mais grave, agindo com dolo. Se o MEIO foi aceito por todos, e por culpa um dos participantes causa um RESULTADO mais grave, há comunicação de imputação a todos. Pode não se ter desejado o resultado mais grave, mas os meios foram queridos com dolo.
As agravantes e atenuantes não se comunicam pessoalmente, mas em relação ao fato. Por exemplo, se três pessoas cometem um delito de homicídio, e uma delas tem a atenuante de idade (menor de 21, na data do fato, consoante o art. 65, I, do Código Penal), a atenuante não se aplicará aos outros dois, a não ser que se encaixem na regra do referido artigo. Porém, se o homicídio for empenhado de maneira a dificultar a defesa do ofendido (agravante do art. 61, II, c, do Código Penal), a agravante pode alcançar a todos, porque diz respeito ao fato.
A cumplicidade necessária é a que existe nos delitos de bigamia, por exemplo, porque sem um dos participantes o crime não aconteceria.
13. Delito continuado
Francesco Carrara define o delito continuado por
... la repetición de varias acciones, de las quales cada una representa la perfecta violación de una ley. [p. 281]
Se exclui a pluralidade de delitos atentando para o fato de que se trata de vários atos com violação à mesma e única lei (identidade da ofensa, unidade da lei violada). Ainda que sejam diversos fatos materiais, o elemento moral permance o mesmo (uno), e não se pode punir duas vezes pela mesma coisa (nesse caso, corre-se o risco de punir duas vezes um mesmo elemento moral). Essa é a unidade de determinação do delito continuado.
15. Últimas considerações
Francesco Carrara viveu entre os anos de 1805-1888, na Itália. O jurista fez parte da escola clássica de direito penal e, nessa breve síntese de seu primeiro volume do "Programa del curso de Derecho Criminal desarollado em la Universidad de Pisa", foram expostos os principais aspectos de sua teoria, principalmente sua embrionária análise do delito. Embrionária, com efeito, diz-se em retrospecto, uma vez que, felizmente, temos contato com uma teoria do delito muito mais científica, em constante desenvolvimento.
A partir das ideias do jurista, busque fazer comparações, análises e suas próprias considerações sobre aspectos que você não considera válidos cientificamente, arbitrários, et cetera. Continue acompanhando os ensaios sobre a evolução do direito penal aqui no Revistando Direito e compare as suas críticas com a dos autores tratados [em breve]. O próximo ensaio será sobre os sistemas causais, na teoria de von Liszt.
Para compreender melhor a Teoria do Delito em seu mais atual estado, leia as obras de Juarez Tavares "Teorias do Delito" (ed. Revista dos Tribunais) e "Fundamentos da Teoria do Delito" (ed. Tirant lo Blanch). Se sentir-se a vontade, deixe sua contribuição, análise ou dúvidas nos comentários.
Consulte a edição utilizada: https://iij.ucr.ac.cr/wp-content/uploads/bsk-pdf-manager/2017/06/francesco_carrara-tomo_1.pdf
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Um ensaio sobre "Two treatises of Government", de John Locke
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Um ensaio sobre "Two treatises of Government", de John Locke
filosofia liberal
Relativo às ideias fundamentais da obra do filósofo e “pai do liberalismo” como Lei Natural, propriedade, consenso e algumas coisas mais.
1. O estado de Natureza
Os seres humanos nascem livres, iguais e independentes. No estado de Natureza, estão sujeitos à Lei Natural, qual seja a razão, que pode ser consultada por todos os seres racionais. Todo ser humano em uma certa idade conquista tamanha racionalidade para escolher por si mesmo, prescindindo dos cuidados de seus pais.
Cada ser possui em si sua própria pessoa. Disto decorre que o próprio pai, ou mãe, mantenedores de suas crianças, não detêm a vida daqueles que colocou no mundo, mas apenas têm o dever de nutrir-lhes até que possam subsistir de seu próprio trabalho.
No entanto, quando uma pessoa é ameaçada em sua propriedade, porque não há juízo exterior e superior a ninguém, cabe a cada um a jurisdição para enforçar sobre o ofensor a Lei Natural. Aquele que ofende a propriedade de outro ofende diretamente a Lei da Natureza e, por ignorar a razão, está vivendo em um estado que permite que o ameaçado tire-lhe a vida, se preciso for.
Com efeito, uma lei deve ser capaz de coagir aqueles a quem a ela estão sujeitos. Uma lei que não é capaz de ser executada não tem qualquer razão de existir. Por essa mesma qualidade, de ser intrínseca a todo ser racional, é que a Lei Natural deve ser exercitada por todos, e quando um homem atentar contra a propriedade de seu vizinho, toda a comunidade tem o direito de puni-lo.
2. Propriedade no estado de Natureza
A maior propriedade que os homens possuem é a sua liberdade. De acordo com Locke, a humanidade não pode fazer de escrava a própria espécie, tampouco pode um homem voluntariamente escravizar-se. A liberdade é um bem tão intrínseco ao homem que ele não tem poder para aliená-la de si mesmo.
…man (by being master of himself, and proprietor of his own person, and the actions or labour of it) had still in himself the great foundation of property. [p.123]
O homem, proprietário de si mesmo, tem em suas mãos o fruto de seu trabalho, que é também sua propriedade. Tudo aquilo que a natureza fornece e que o homem transforma ou faz uso em suas obras passa a ser seu. Nenhuma pessoa pode tomar parte naquilo que é obra de outro homem, portanto, esse direito de propriedade afirma também o direito de vinculação que garante a posse de um bem ao seu legítimo proprietário. A Lei da Natureza, que prevê a liberdade do homem, o direito de propriedade e de sua vinculação, estabelece que só é possível ter algo enquanto todos os outros possam fazer uso do mesmo recurso. Segundo a Lei Natural, não é certo que alguém possua mais do que pode usufruir, de maneira que isso é o mesmo que privar os outros de seu direito comum, que é fazer uso das coisas que da natureza provém.
A Lei da Natureza, que prevê a liberdade do homem, o direito de propriedade e de sua vinculação, estabelece que só é possível ter algo enquanto todos os outros possam fazer uso do mesmo recurso. Segundo a Lei Natural, não é certo que alguém possua mais do que pode usufruir, de maneira que isso é o mesmo que privar os outros de seu direito comum, que é fazer uso das coisas que da natureza provém.
As much as any one can make use of to any advantage of life before it spoils, so much he may by his labour fix a property in. Whatever is beyond this is more than his share, and belongs to others. [p.117] [Lei da propriedade:] …that every man should have as much as he could make use of, would hold still in the world, without straitening anybody, since there is land enough in the world to suffice double the inhabitants [p.120]
Uma das questões mais contraditórias da teoria de Locke reside na propriedade da vida. O autor afirma que o homem não tem o direito de matar a si mesmo, ainda que possa matar outro homem quando ele atenta contra a razão (portanto, no estado de guerra), por essa mesma lei da razão lhe é vedado o suicídio. Em verdade, toda a humanidade pertence ao Criador, e a ele pertence a propriedade da vida.
But though this be a state of liberty, yet it is not a state of licence; though man in that state have an uncontrollable liberty to dispose of his person or possessions, yet he has not liberty to destroy himself, or so much as any creature in his possession, but where some nobler use than its bare preservation calls for it. The state of Nature has a law of Nature to govern it, which obliges every one, and reason, which is that law, teaches all mankind who will but consult it, that being all equal and independent, no one ought to harm another in his life, health, liberty or possessions; for men being all the workmanship of one omnipotent and infinitely wise Maker; all the servants of one sovereign Master, sent into the world by His order and about His business; they are His property, whose workmanship they are made to last during His, not one another’s pleasure. [p. 107]
3. A igualdade no estado de Natureza
Todos os homens são iguais por natureza, o que não corresponde a afirmar que inexistem diferenças entre os homens, que podem decorrer de nascimento, que subjuga alguns, as alianças, que beneficiam outros ou, até mesmo, de mérito, idade e virtudes. Nada disso invalida a igualdade que diz respeito à liberdade e domínio de cada homem unicamente sobre si mesmo.
…equality which all men are in respect of jurisdiction or dominion one over another, which was the equality I there spoke of as proper to the business in hand, being that equal right that every man hath to his natural freedom, without being subjected to the will or authority of any other man. [p. 127]
4. Liberdade
A liberdade, ao contrário do que muitos acreditam, não é a faculdade de fazer tudo aquilo que quiser. O autor questiona: como pode haver liberdade enquanto qualquer outro homem pode exercer o domínio, conforme bem entender, sobre aquilo que não lhe pertence?
Liberdade é poder dispor de sua propriedade, suas ações e sua pessoa segundo o que prescrevem as leis as quais se está sujeito. A lei é o que impede o arbítrio, é o que preserva e prolonga a liberdade.
5. Sociedade política
A sociedade tem ínicio na união entre um homem, sua esposa e seus filhos. A familía é uma espécie de “pequena” sociedade, mas ainda não pode constituir nada parecido como uma sociedade política. A sociedade política é caracterizada pela união de pessoas em um corpo social destinado a um interesse em comum: estabelecer uma única jurisdição (em contraposição às várias jurisdições que cada um possui e pode exercer por si no estado de Natureza) e leis que prescrevam a autoridade para decidir as controvérsias que nascem entre os seres humanos, além de punir aqueles que violam a propriedade de outros.
A sociedade política faz surgir o estado civil, momento em que as pessoas saem do estado de Natureza consensualmente e, portanto, abdicam de sua jurisdição particular. Há alguns motivos para que os seres humanos deixem o estado de Natureza: as desigualdades de força impõem a lei do mais forte em detrimento da lei da razão; a vítima de uma injusta agressão normalmente não age com justiça, mas com vingança; e as inconveniências do estado de Natureza tornam-se maiores que os benefícios, como na constante das invasões externas.
Tal sociedade política se compõe do consenso de cada um dos indivíduos, e é governada dentro das leis feitas pelo Legislativo, escolhido por essa mesma sociedade, que se guia de acordo com a vontade da maioria (o autor não necessariamente se refere a uma democracia).
And thus, that which begins and actually constitutes any political society is nothing but the consent of any number of freemen capable of majority, to unite and incorporate into such a society. [p.147]
6. Consenso
O consenso, se não o mais relevante aspecto da teoria de Locke, um dos mais problematizados, é em verdade um ponto bastante claro em sua obra. Se referindo ao consenso, por vezes “tácito”, próprio” ou “da maioria”, poderia até mesmo encobrir seu real significado no ponto de vista do autor.
For that which acts any community, being only the consent of the individuals of it, and it being one body, must move one way, it is necessary the body should move that way whither the greater force carries it, which is the consent of the majority, or else it is impossible it should act or continue one body, one community, which the consent of every individual that united into it agreed that it should; and so every one is bound by that consent to be concluded by the majority. [p. 146]
Thirdly, the supreme power cannot take from any man any part of his property without his own consent. [p. 165]
No parágrafo 140, Locke explicita o que entende por consenso: não é o mesmo que pedir permissão a cada cidadão, porque quando se trata de um governo representativo, o consenso de cada cidadão repousa em seus representantes e, em última instância, na maioria.
But still it must be with his own consent — i.e., the consent of the majority, giving it either by themselves or their representatives chosen by them; for if any one shall claim a power to lay and levy taxes on the people by his own authority, and without such consent of the people, he thereby invades the fundamental law of property, and subverts the end of government.[p. 166]
7. Estado de guerra
Quando um agressor atenta contra a razão e viola a propriedade de outro, ele se coloca em um estado de guerra. O estado de guerra é aquele em que um homem se rende à destruição, coloca tudo que possui em perigo e, portanto, a si. Aqui, o homem não conhece leis que não os próprios interesses. Não se equipara, todavia, à situação de um soldado no campo de batalha. O soldado atua dentro das leis ou ordens determinadas por generais que o comandam.
8. Governo
O autor refere-se ao governo em geral geral descrevendo as características mais intrínsecas de seu exercício, sem se referir imediatamente a uma forma peculiar. Portanto, a ideia é que o poder político reveste os governantes para que o exerçam a fim de assegurar a propriedade dos cidadãos, unicamente para beneficiá-los. O uso do poder político para razões privadas é tratado sob o signo de um exercício despótico ou transgressivo, que já não é mais um governo.
O governo situa-se dentro dos limites legais estabelecidos pelo corpo político através do Legislativo. Ao transpassar esses limites, a sociedade política tem o direito de resistir aos atos ilegais e arbitrários. O autor critica fortemente a arbitrariedade, e sustenta que o governo só pode existir enquanto permanecer dentro da lei.
Who shall be judge whether the prince or legislative act contrary to their trust? This, perhaps, ill-affected and factious men may spread amongst the people, when the prince only makes use of his due prerogative. To this I reply, The people shall be judge; [p.212]
Ainda que os indivíduos, uma vez entrando consensualmente na sociedade política, tenham abdicado de sua jurisdição privada, a comunidade permanece com o poder de julgar seus governantes. O poder de governo é somente um poder delegado, e esse poder é sempre diretamente exercido pela sociedade política. O poder de resistência é, aparentemente, deixado em aberto pelo autor, visto que ele afirma não poder explicar de que maneira é possível resistir a um governo ilegal — afirma, no entanto, que é uma situação evidente para o povo, e portanto fácil de evitar.
But if either these illegal acts have extended to the majority of the people, or if the mischief and oppression has light only on some few, but in such cases as the precedent and consequences seem to threaten all, and they are persuaded in their consciences that their laws, and with them, their estates, liberties, and lives are in danger, and perhaps their religion too, how they will be hindered from resisting illegal force used against them I cannot tell. This is an inconvenience, I confess, that attends all governments whatsoever, when the governors have brought it to this pass, to be generally suspected of their people, the most dangerous state they can possibly put themselves in; wherein they are the less to be pitied, because it is so easy to be avoided. It being as impossible for a governor, if he really means the good of his people, and the preservation of them and their laws together, not to make them see and feel it, as it is for the father of a family not to let his children see he loves and takes care of them. [p. 196–197]
Um adendo nesse sentido é que o autor explica que onde termina a lei começa a tirania. O tirano não possui autoridade e comanda com a força. A força, por sua vez, é instrumento de legítima defesa da comunidade no estado de guerra (que é o estado em que encontra-se o tirano), e deve ser usada contra a força ilegítima.
That force is to be opposed to nothing but to unjust and unlawful force. [p. 194]
9. Arbitrariedade
A arbitrariedade não pode ser confundida com o poder absoluto. É possível existir um poder absoluto que não se utiliza do uso arbitrário do poder. Para elucidar tal diferença, Locke utiliza o exemplo de um general e seu soldado: o general pode ordenar ao soldado que se coloque em frente a um canhão, mas não pode roubar-lhe um tostão.
…yet can never have a power to take to themselves the whole, or any part of the subjects’ property, without their own consent; for this would be in effect to leave them no property at all… Because such a blind obedience is necessary to that end for which the commander has his power — viz., the preservation of the rest, but the disposing of his goods has nothing to do with it. [p. 166]
Disto se pode resumir que o autor contrapõe a lei e o arbítrio.
10. Últimas considerações
Ainda que muitos dos conceitos de John Locke façam sentido dentro de sua teoria, é possível questionar o seu núcleo. Indo além, é interessante contemplar o alcance substancial dessas questões que, por mais perenes que possam parecer, são as grandes dúvidas da filosofia.
Edição consultada: https://www.yorku.ca/comninel/courses/3025pdf/Locke.pdf
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Caso Moro x Bolsonaro: como funciona a abertura de inquérito para investigar o Presidente da República?
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artigo 85
Caso Moro x Bolsonaro: como funciona a abertura de inquérito para investigar o Presidente da República?
Entre os alegados crimes, é preciso diferenciar os comuns e de responsabilidade de Presidente da República.
Na última sexta-feira (24/04/2020), o então Ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro declarou, em entrevista coletiva, que o Presidente da República Jair Bolsonaro cometeu fatos alegadamente criminosos. A fim de apurar as acusações, o Procurador Geral da República requereu abertura de inquérito no Supremo Tribunal Federal, pedido aceito pelo Ministro Celso de Mello no dia 27/04. E agora?
Das alegações
No dia 24/04/2020, Sérgio Moro, ora Ministro da Justiça e Segurança Pública, explicitou uma série de atos criminosos supostamente praticados por Jair Bolsonaro, Presidente da República¹. Entre os fatos alegados podem figurar as práticas de crimes de responsabilidade contra a probidade na administração, falsidade ideológica, obstrução de investigação e coação no curso do processo. Abordaremos separadamente os crimes de responsabilidade do Presidente da República e também comuns declarados por Moro.
a) Crimes de responsabilidade contra a probidade na administração: O Presidente pode ter praticado crimes elencados no art. 9º da Lei 1.079/1950 (“Dos crimes de responsabilidade”), sendo: “4 - expedir ordens ou fazer requisição de forma contrária às disposições expressas da Constituição; 5 - infringir no provimento dos cargos públicos, as normas legais; 6 - Usar de violência ou ameaça contra funcionário público para coagí-lo a proceder ilegalmente, bem como utilizar-se de suborno ou de qualquer outra forma de corrupção para o mesmo fim; 7 - proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decôro do cargo.”
Tais crimes se diferem de crimes comuns por constituírem “infração político-administrativas praticáveis por pessoas investidas em certas funções, cuja sanção é a perda do cargo e inabilitação para o exercício de função pública”². Consta no art. 85, V, da Constituição Federal, o seguinte: “São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: [...] V - a probidade na administração”.
O art. 37 da Constituição Federal determina que “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência [...].”. Caso comprovado que o Presidente tentou, através da exoneração do ex-diretor da Polícia Federal (PF), evitar que se investigasse alguém próximo, o ato constitui quebra de decoro em razão de descumprimento do princípio da impessoalidade na administração pública. É crime de responsabilidade atentatório à Constituição Federal (CF) o uso de cargo público para praticar atos ilegais na intenção de favorecer interesses pessoais.
b) Crimes comuns A assinatura de Moro, constante no documento autorizado e publicado por Bolsonaro, que o primeiro desconhecia, pode constituir o crime de falsidade ideológica. O Código Penal (CP) define a falsidade ideológica no art. 299: “Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante”. O mesmo ocorre se não houve realmente pedido de exoneração por parte do ex-diretor da PF. 
Já o crime de advocacia administrativa consiste em “Patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração pública, valendo-se da qualidade de funcionário:” (art. 321, Código Penal), e restaria caracterizado caso comprovada a tentativa de acesso do Presidente aos relatórios sigilosos de inteligência da Polícia Federal, a fim de advogar em causa de outrem (nesse caso, o filho investigado).
No que diz respeito ao crime de obstrução de investigação, dispõe a Lei 12.850/2013 (“das organizações criminosas”), em seu art. 2º, que “Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa: [...] § 1º Nas mesmas penas incorre quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa.”. Se Bolsonaro intentou em exonerar e indicar um novo diretor para a PF a fim de acobertar as práticas criminosas ligadas ao filho investigado, concorreu para o crime descrito. Também cabe o crime de coação no curso do processo, do art. 344 do Código Penal: “Usar de violência ou grave ameaça, com o fim de favorecer interesse próprio ou alheio, contra autoridade, parte, ou qualquer outra pessoa que funciona ou é chamada a intervir em processo judicial, policial ou administrativo, ou em juízo arbitral”. Elucidados os dispositivos legais ligados aos atos alegados por Moro, devemos descobrir como funciona o procedimento de inquérito contra o Presidente da República e, uma vez instaurado, quais são suas consequências.
Do inquérito
Urge elucidar que o inquérito requerido pelo Procurador Geral da República (PGR), no tocante a Jair Bolsonaro, objetiva apurar o cometimento dos crimes de falsidade ideológica, coação no curso do processo, advocacia administrativa e obstrução de justiça alegados por Moro³. A competência para processar e julgar o Presidente da República, em crimes comuns, é do Supremo Tribunal Federal (CF, art. 102, I, alínea b), todavia, o processo só pode iniciar com a aprovação de 2/3 da Câmara dos Deputados, consoante a CF: “art. 51. Compete privativamente à Câmara dos Deputados: I - autorizar, por dois terços de seus membros, a instauração de processo contra o Presidente [...];” e “Art. 86. Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade.”.
No caso dos crimes de responsabilidade, o Senado é competente para o julgamento do Presidente, conforme o art. 52, I, da CF: “Compete privativamente ao Senado Federal: I - processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade [...]”. É preciso lembrar que o que está em curso é a investigação e apuração atos alegados por Moro, devido ao deferimento do Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello⁴. Até então, Bolsonaro e Moro não enfrentam nenhum processo.
Em termos práticos, o PGR solicitou ao STF a abertura de inquérito para investigar os atos declarados pelo ex-Ministro Sérgio Moro, que foi aceito. Apenas após a apuração dos fatos é que pode sobrevir o oferecimento da denúncia, que depende do cometimento dos crimes alegados e, não obstante, da inexistência de propositura de acordo de não persecução penal por parte do Ministério Público Federal (art. 28-A da Lei [Anticrime] 13.964/2019). Caso sobrevenha a denúncia, o processo só inicia após aceitação de 2/3 da Câmara dos Deputados.
Oferecida a denúncia, o Presidente da Câmara pode “deferir ou indeferir o recebimento, dispensada a apresentação de defesa prévia. No caso de indeferimento, cabe recurso ao Plenário” ⁵. Os crimes de responsabilidade passam pelo julgamento político do Senado Federal “pautando-se pelo juízo de conveniência e oportunidade a ser feito exclusivamente pelo órgão parlamentar. O Supremo não pode reexaminar o mérito da responsabilização, embora cabível mandado de segurança para impugnar possíveis irregularidades no procedimento.” ⁶, enquanto os crimes comuns serão julgados pelo STF (também mediante autorização do Poder Legislativo). A suspensão imediata do Presidente da República acontece na instauração do processo no Senado (por 180 dias), e a condenação (dos crimes de responsabilidade) deve proceder à votação de 2/3 dos Senadores.
Se condenado por crimes de responsabilidade, há a perda do cargo e inabilitação, por 8 anos, para o exercício de função pública. No caso de condenação por crimes comuns, o Presidente pode perder o cargo, além de sofrer as medidas penais cabíveis. O Presidente da República não pode ser preso cautelarmente e só pode ser responsabilizado por crimes cometidos no exercício da função ou em razão delas (CF, art. 86, § 4.º), mas pode ser afastado do cargo (por 180 dias) tão logo o Supremo receba a denúncia (não confundir com inquérito de investigação).
O que pode acontecer
Trabalha-se também com a hipótese de que as denúncias de Sérgio Moro são infundadas. O ex-Ministro já está sendo investigado no mesmo inquérito aberto pelo PGR sob as acusações de possível crime contra a honra do Presidente da República (arts. 138 a 140 do CP), denunciação caluniosa (art. 339 do CP, ambos crimes condicionados à falsidade das alegações), prevaricação (art. 319 do CP) e corrupção passiva privilegiada (art. 317, § 2º, do CP). A prevaricação se dá em razão da inércia de Moro em reportar a suposta prática de crime do Presidente quando da interferência na PF, enquanto o crime de corrupção passiva privilegiada decorre da suposta transação entre Moro e Bolsonaro no oferecimento do cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal a ser concedido ao ex-Ministro da Justiça. A “pensão” citada por Moro não é, necessariamente, prática criminosa⁷.
Caso as investigações concluam a veracidade das acusações contra Bolsonaro, e o PGR ofereça a denúncia, reitera-se, cabe ao Congresso Nacional a aceitação da mesma (tanto para os crimes de responsabilidade quanto para os de natureza comum) a fim de dar início ao procedimento penal, no STF, e ao impeachment, no Senado. No caso de Sérgio Moro, não há nenhuma prerrogativa que impeça o início do procedimento penal em primeiro grau, se falsas as alegações. No entanto, em razão de ser matéria de interesse da União, caso venha a ser acusado de crime contra a honra do Presidente da República, será julgado pela Justiça Federal de primeiro grau, em Brasília (CF, 109, IV.
Em se tratando da hipótese de Sérgio Moro se propor a “demonstrar a veracidade de suas alegações” e, assim, afastar a incidência do crime contra a honra do Presidente, Moro faz a exceção da verdade, situação em que “a qualidade funcional da vítima acaba conduzindo a uma modificação da competência” ⁸. A inversão fará com que a vítima venha a ser julgada (no caso, Jair Bolsonaro) no Supremo Tribunal Federal (prerrogativa de função da vítima em razão do cargo) a fim de esclarecer se houve, de fato, crime cometido pelo ex-Ministro (Código de Processo Penal, art. 85). Se a exceção da verdade for rejeitada, o caso volta para o primeiro grau, se acolhida, instaura-se procedimento para investigar os crimes cometidos pelo Presidente.
Imperioso elucidar ser possível que a Câmara não autorize a abertura do processo contra o Presidente da República, que ficará suspenso no STF. A denúncia pode ficar pronta e, se (ou quando) deixar de ser Presidente, Bolsonaro será processado em primeiro grau (situação de Michel Temer, por exemplo). Particularmente, espero que, se aprovada a denúncia, Bolsonaro tenha seus direitos e garantias individuais preservados, sempre com o devido respeito ao contraditório e à ampla defesa, pois de processo penal do espetáculo o país já está inundado.
Post scriptum: o delito de advocacia administrativa estava, erroneamente, contido nos crimes de responsabilidade. Apesar de ser um crime próprio em que o sujeito ativo é funcionário público, trata-se de crime comum. Corrigido às 18:10 do dia 03 de maio de 2020. Nas palavras de Fernando Galvão, “A advocacia administrativa é crime de mera conduta e se consuma no momento em que a conduta do sujeito realiza uma intervenção completa em favor do interesse patrocinado. Por exemplo, o patrocínio pode se expressar por meio de uma solicitação oral em favor do interessado. Nesse caso, devese reconhecer a consumação do crime quando o sujeito completa a mensagem oral que expressa a solicitação.” ⁹.
Referências
¹ https://www.migalhas.com.br/quentes/325430/moro-faz-graves-acusacoes-a-bolsonaro-ao-anunciar-saida-do-governo-assista
² NOVELINO, Marcelo. Curso de Direito Constitucional. 11ª ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016. p. 651.
³ Requerimento de abertura de inquérito disponível em: http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/Inq4829.pdf. A informação encontra-se na página 11.
⁴ Confira a decisão do Min. Celso de Mello, do dia 17 de abril de 2020: https://www.conjur.com.br/dl/celso-mello-inquerito-moro-bolsonaro.pdf
⁵ NOVELINO. Loc. cit.
⁶ Ibidem. p. 653.
⁷ Sobre o tema, confira a breve exposição do processualista penal Gustavo Badaró [em meios informais]: https://www.facebook.com/gustavo.badaro.1/posts/2776067505839628.
⁸ LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 165.
⁹ GALVÃO, Fernando. Direito penal – crimes contra a administração pública, p. 222
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O que foi o Ato Institucional nº 5 (AI-5)?
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era a "dura"
O que foi o Ato Institucional nº 5 (AI-5)?
Outorgado em plena ditadura militar (1968), o Ato Institucional nº 5 rasgou o pouco que sobrou da Constituição de 1967.
No dia 19 de abril, manifestantes se reuniram nas principais capitais do Brasil reivindicando, entre outras coisas, o fim do isolamento horizontal e a adesão de outras estratégias para o combate ao coronavírus. Alguns participantes do protesto seguravam faixas pedindo um novo Ato Institucional nº 5 (AI-5) e a volta da intervenção militar. Mas, afinal o que AI-5, outorgado em plena ditadura militar (1968), tem a ver com isso?  
Buscar entender uma manifestação pública na análise da parte pelo todo pode, certamente, conduzir a alguns equívocos. A sociedade não se reveste de uma massa uniforme de pensamento, contudo, é possível entender os objetivos gerais de uma manifestação e, assim, deduzir que as reinvindicações que ficam à margem destes objetivos são meios que – conforme a crença – promovem a meta geral. A manifestação do dia 19 levou, em muitas faixas, o clamor pela volta do AI-5 e da intervenção militar, sendo oportuno questionar: de que maneira esses atos comportam-se como uma medida de combate ao coronavírus?
Reconduzimo-nos, por força do raciocínio lógico, ao próprio AI-5 (1968) e à intervenção militar de 1964-1987 a fim de responder ao questionamento. De início, é mister diagnosticar o período histórico que tornou possível a criação do ato e da intervenção: portanto, estamos em 1954, último ano do governo de Getúlio Vargas, dessa vez eleito por sufrágio direto sob a vigência da Constituição de 1946. O governo democrático de Vargas, não diferente dos outros, se apoiou no populismo para garantir sua permanência no poder, como assinala Bonavides:
“A maioria das lideranças políticas, ao invés de trilharem o duro caminho do esclarecimento e da penetração dos mecanismos de decisão democrática pelo tecido social, preferiram o caminho fácil do populismo, estilo inaugurado por Vargas [ainda no Estado Novo].”¹
O Brasil vivia uma crise econômica, social, política e partidária, em que mesmo sob governos democráticos, mandatos foram cassados, partidos de extrema-esquerda considerados ilegais e seus simpatizantes detidos. A classe militar, assim como a civil, encontrava-se extremamente dividida entre lados antagônicos do espectro político. A política populista do getulismo só acirrou essas divergências, e, por mais paradoxal que fosse, o próprio ex-ditador do Estado Novo, que assentou seu poderio na farsa de um iminente golpe comunista em 1937, outorgando uma Constituição parafascista, sofreu com a estigmatização das políticas sociais que desenvolvia o seu Ministro do Trabalho, João Goulart (como o aumento de 100% no salário mínimo, por exemplo).
Não se deve esquecer que o preâmbulo da Carta de 1937 traz o seguinte:
“ATENDENDO às legitimas aspirações do povo brasileiro à paz política e social, profundamente perturbada por conhecidos fatores de desordem, resultantes da crescente agravação dos dissídios partidários, que, uma, notória propaganda demagógica procura desnaturar em luta de classes, e da extremação, de conflitos ideológicos, tendentes, pelo seu desenvolvimento natural, resolver-se em termos de violência, colocando a Nação sob a funesta iminência da guerra civil; ATENDENDO ao estado de apreensão criado no País pela infiltração comunista, que se torna dia a dia mais extensa e mais profunda, exigindo remédios, de caráter radical e permanente;”²
Mais adiante será possível perceber que a intervenção militar se aproveitou dos mesmos sintomas que Getúlio para garantir a própria permanência no poder. Com efeito, as medidas populistas do Governo de Vargas em nada agradaram boa parte das Forças Armadas, o que restou evidente no Manifesto dos Coronéis, em 1954³.
O Manifesto era uma conclamação para a “[...] restauração dos elevados padrões de eficiência, de moralidade, de ardor profissional e dedicação patriótica que, em todos os tempos, asseguraram o respeito e prestígio na comunidade nacional” (p. 1). O aumento do salário mínimo representava, para os militares, não só o aumento da inflação, mas "uma aberrante subversão de todos os valores profissionais" (p. 6), vez que sua equiparação ao salário de um oficial graduado estancaria "qualquer possibilidade de recrutamento, para o Exército, de seus quadros inferiores" (p. 6). Por fim, se acreditava que o baixo prestígio da classe militar seria um fator que alimentaria as forças comunistas.
Entre outubro de 55 e janeiro de 56, sob o Governo de Juscelino Kubitschek, cerca de 3 golpes militares foram empreendidos, além do último em 1959⁴. Já em 1960, a vitória e renúncia de Jânio Quadros significavam a posse de João Goulart, o mesmo estigmatizado por suas obras sociais (como um “comunista”) durante o Governo Vargas, inclusive deposto do cargo de Ministro em razão do Manifesto dos Coronéis. Em 1963 ocorre a Revolta dos Sargentos, uma reinvindicação de alguns militares pelo fim da inelegibilidade da classe e, em 1964, a Revolta dos Marinheiros, que consolidou a polarização do apoio ao Governo de João Goulart⁵ .
Era um momento de ebulição política, como aquele vivido em 1930. De todos os lados, forças revolucionárias reivindicavam reformas que privilegiavam seu lado do espectro, em detrimento do aperfeiçoamento da democracia e da cidadania. Era 1937 se repetindo: aproveitou-se do quadro de instabilidade democrática, adversidades partidárias e dissonância entre representatividade popular e disputas de interesses, manipulação da opinião pública, censura à liberdade de imprensa e, sobretudo, a (farsa da) necessidade de contenção da revolução vermelha, que “ameaçava” a democracia.
Como no Estado Novo, eles sabiam o que era melhor para o povo: a Constituição não resolvia os problemas pátrios, mas o poder revolucionário, esse sim. É nesse contexto que se inserem os Atos Institucionais, frutos de um governo revolucionário autoritário que usurpou para si todos os poderes estatais. Não será tarefa exaustiva examinar cada um dos Atos, contudo, é mister pontuar suas principais disposições e consequências, começando.... do começo.
O Ato Institucional (nº 1) não revogou a Constituição de 1946, mas se impôs sobre ela pelas vias de coerção física. O Golpe se consolida com esse e outros Atos, que buscavam a imediata institucionalização do plano revolucionário e, sobretudo, a aparência democrática e legítima perante a população e as nações que se relacionavam com o Brasil. O AI-1 é taxativo em seu preâmbulo ao citar a ameaça comunista e, principalmente, quando diz que a revolução se identifica com “a nação”, e não com o “interesse ou a vontade de um grupo”.
No entanto, a Junta Militar que editou o Ato institui o seguinte: “Para demonstrar que não pretendemos radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a Constituição de 1946, limitando-nos a modificá-la, apenas, na parte relativa aos poderes do Presidente da República [...]. Para reduzir ainda mais os plenos poderes de que se acha investida a revolução vitoriosa, resolvemos, igualmente, manter o Congresso Nacional, com as reservas relativas aos seus poderes, constantes do presente Ato Institucional. Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação.”⁶. A verdade é que o Congresso Nacional foi mutilado e fechado pouco tempo depois, e os Atos funcionaram como uma espécie de Constituição de emergência.
Porque “A revolução vitoriosa necessita de se institucionalizar e se apressa pela sua institucionalização a limitar os plenos poderes de que efetivamente dispõe.”, o AI-1 instituiu a eleição indireta, a acontecer no Congresso Nacional. O art. 7º do AI-1 suspendeu as garantias constitucionais de vitaliciedade e estabilidade  dos servidores públicos (inicialmente por seis meses) e o art. 10 concedeu a faculdade ao Presidente de “suspender os direitos políticos pelo prazo de dez (10) anos e cassar mandatos legislativos federais, estaduais e municipais, excluída a apreciação judicial desses atos.”
Portanto, a Junta Militar varreu do Congresso todos aqueles que discordavam do Governo, cassou o mandato dos congressistas da oposição e elegeu o sucessor que queria: Castello Branco. Em todos os cinco Atos Institucionais, o Governo redigia um preâmbulo para justificar o injustificável: agora, no AI-2 (1965), era necessário deixar claro que “a revolução está viva e não retrocede” e utilizar expressões (vagas) como “democracia” e “vocação política da nação” para legitimar a) a extinção de partidos políticos (art. 18); b) a faculdade do Presidente da República para publicar decretos-leis sobre matéria de segurança nacional (o que poderia significar quase qualquer coisa, art. 30); c) a decretação do recesso do Congresso Nacional, além de todas as outras casas legislativas do país, em estado de sítio ou fora dele (art. 31); e d) autorização ao Presidente para legislar em qualquer matéria durante recesso do Congresso Nacional (art. 31, parágrafo único)⁷. Não obstante, ainda estava para surgir o AI-3.
O AI-3 consolidava o processo de eleição indireta para todos os poderes executivo e legislativo do país, inclusive via nomeações no caso dos prefeitos das capitais (art. 1º, 2º e 4º)⁸. Já com o AI-4, Castello Branco transforma o Congresso Nacional em Assembleia Constituinte, contrariando tudo o que preconiza a teoria da constituição⁹. Uma Constituinte deve ser votada pelo povo para que seu texto seja um reflexo da vontade popular, o contrário do que ali havia, isto é, um Congresso Nacional mutilado, subserviente ao Poder Executivo e, sobretudo, não eleito pelo povo para redigir uma Constituição.
 Ainda assim, a Constituinte era a esperança da limitação aos poderes da ditadura, uma vez que os congressistas ainda eram aqueles escolhidos pela população – mesmo que para outra função. Era então a mutação do “Poder Constituinte Congressual”, que deveria redigir a Constituição debaixo dos Atos Institucionais, permanentemente vigiado pelo Poder Executivo ilimitado. Nada menos que 24 congressistas tiveram o mandato cassado de 64 a 66¹⁰. 
Quando o Governo decidiu cassar os mandatos dos congressistas, houve uma resistência por parte daqueles que não eram aliados ao Presidente. Os deputados permaneceram no edifício legislativo por uma semana, sem sair, a fim de permanecer em seus cargos e demonstrar que não cediam ao arbítrio do Governo. Sobre essa ocasião, Paulo Bonavides elucida que “O Governo mandou estabelecer ao Presidente da Câmara garantias físicas aos deputados cassados, que poderiam retirar-se sem ser molestados. Parecia o Executivo ignorar que aquele último alento de integridade cívica de um poder ferido de morte se preocupava menos com as garantias físicas do que com as jurídicas e morais que não pertenciam aos seus membros, mas à própria instituição e ao povo que as constituíra. O desfecho não poderia ser outro, numa luta entre os que só dispõem de força moral contra os que só detém a força bruta. E, assim, na madrugada do dia 21 de outubro, os deputados concentrados na Câmara puderam ver, ainda, sob a luz duvidosa da manhã, a parafernália bélica que avançava com morteiros e carros de assalto, pelas pistas alcantiladas que rodeiam o palácio dos Três Poderes, numa expedição de guerra de objetivo inequívoco: armava-se uma expedição militar contra a Câmara.”¹¹. 
Assim, para instituir a Constituição, o Governo estabeleceu uma Comissão de Juristas que primeiro redigiria um anteprojeto a ser facilmente aprovado naquele Congresso amedrontado. A comissão mesma havia ficado desfalcada quando um dos juristas nomeados se afastou em razão de suas divergências com as expectativas centralizadoras e autoritárias com que o Governo queria delinear o Executivo. Ainda, esse jurista alegava que o Congresso não tinha legitimidade para votar uma Constituinte¹².
Em agosto de 66 o anteprojeto foi encaminhado ao Governo, que considerou o texto inaceitável: ficara “excessivamente liberal”. Em razão disso, o Ministério da Justiça fez um novo projeto, esse sim encaminhado para a votação na Assembleia. A votação foi na verdade uma “farsa constitucional”, porque o Governo delimitou um escasso período para a discussão do texto, impossibilitando os debates, assim, veio a ser “aprovado e promulgado” em 24 de janeiro de 1967.
A Constituição de 67 dava a competência exclusiva ao Congresso Nacional para suspender o estado de sítio ou a intervenção federal decretada pelo Presidente da República (art. 47, IV), além de restabelecer as garantias fundamentais dos cidadãos perante o arbítrio estatal. Todavia, um ano depois, o Governo baixa o AI-5, em total desacordo com a Constituição que ele mesmo estabelecera: o Ato englobava todos os itens constantes nos Atos anteriores, além disso, como dispunha a sua ementa, “São mantidas a Constituição de 24 de janeiro de 1967 e as Constituições Estaduais; O Presidente da República poderá decretar a intervenção nos estados e municípios, sem as limitações previstas na Constituição, suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais, e dá outras providências.”¹³. O ato foi decretado no dia 13 de dezembro de 1968, e na mesma noite o Congresso foi fechado.
Dezessete dias depois, o Governo cassou 11 deputados federais. Vinte dias depois, mais 35, além de 2 senadores, 3 ministros do Supremo Tribunal Federal e 1 do Superior Tribunal Militar. Ao todo, em 1969, 333 políticos tiveram seus direitos políticos suspensos (eram 78 deputados federais, 5 senadores, 151 deputados estaduais, 22 prefeitos e 23 vereadores). O Congresso seria reaberto ao final do ano para eleger Médici, outro militar que representava a sucessão da ditadura¹⁴.
Com efeito, juridicamente, o AI-5 censurou qualquer perspectiva de observância da ordem constitucional e democrática. Diziam seus dois últimos artigos que 
“Art. 10 - Fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular. Art. 11 - Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos.”.
Significavam novamente o enfraquecimento do Poder Judiciário e a falência do Estado de Direito.
As palavras “democracia” e “liberdade” não eram vetores de nenhum valor, não havia nenhuma garantia. Se sabe hoje que, durante a ditadura militar, pessoas foram mortas, torturadas, exiladas e detidas sem qualquer devido processo legal. Com efeito, é comum achar que os torturados, exilados, detidos e mortos serão sempre aqueles que não compactuam com o regime.
Mas todos devem ter o direito de não concordar com alguma coisa. É comum que em uma ditadura a imprensa seja censurada ou atacada por aqueles que detém as chaves do poder, e que o Congresso Nacional seja um inimigo da “reforma que a nação precisa”. A democracia é o palco dos conflitos, enquanto a ditadura é, por natureza, a vontade de poucos sobre todos.
Retoma-se o questionamento: de que maneira o AI-5 se comporta como uma medida de combate ao coronavírus? Viu-se que o Ato significa a concentração de poder em um só órgão do Estado, que faz e desfaz segundo seu arbítrio. Se coerente com isso, o protesto do dia 19 de abril simboliza a vontade de alguns para o estabelecimento da concentração de todo o poder estatal nas mãos do Presidente da República, sobretudo porque (supõe-se que) as medidas do Presidente estão de acordo com as necessidades desse grupo, principalmente no que se refere à implantação de outras medidas para o combate ao coronavírus que não o isolamento horizontal.
Com efeito, esses acontecimentos evidenciam a necessidade de uma consciência democrática, não em razão da manifestação em si, mas de seus pressupostos. Isto é, ela reitera a ideia de que uma figura só sabe o que é melhor para a nação, e em seu nome representa as vontades de um povo. Como visto, essa imagem do Presidente da República tem seu germe desde Vargas, que desqualificava o Congresso Nacional e os meios de comunicação em nome de um projeto nacional a ser empenhado pela e para a população.
Para o poder autoritário, esses projetos devem ser empenhados sem a participação efetiva da população, que a exerce justamente através do Poder Legislativo. Isso acontece porque parece não se entender que o Poder Executivo, mais propriamente o Presidente da República, representa apenas a vontade da maioria. A democracia acontece no Congresso Nacional que, efetivamente, traduz as vontades de todos via representação direta.
Se existe, no imaginário coletivo, a ideia de que o Congresso Nacional muitas vezes não condiz com os interesses do país, é necessário indagar então “quais são os interesses do país?”. Um só grupo jamais saberá. Assim como a sociedade não se manifesta publicamente de forma uniforme, a vontade geral expressa pelo Congresso Nacional será um misto de diferentes vontades particulares.
É comum aos governos autoritários desmerecer o Congresso, manipular a opinião pública e atacar a imprensa, porque àqueles que estão no poder é necessário mantê-lo¹⁵. Por isso é mister compreender que o AI-5 só significou a continuidade da noção de indivíduos como meros súditos do Estado, que usurpa para si o poder porque “sabe o que a nação precisa”. Nas palavras do constitucionalista Paulo Bonavides, “O poder soberano do povo, em estado puro, ditando a vontade suprema da Nação, só tem aparecido em ocasiões raras, de sorte que seu exercício político imediato fica frequentemente coartado pela intermediação e infidelidade de governantes habituados ao poder sem freio e sem limitações.”¹⁶.
Conquanto, o problema nunca será a manifestação, mas o que ela representa. A crise social, econômica e política que atravessamos não pode ser solucionada por mais um golpe populista, senão através da consciência democrática e constitucional, do contrário, repetir-se-ão os erros passados, o que acontece “aos povos que ignoram sua própria história ou que dela não se valem por instrumento com que prevenir a reprodução de erros amargos e fatalidades políticas.”¹⁷. É sempre oportuno lembrar que “a garantia constitucional das liberdades não pode ficar suspensa, ao sabor do arbítrio e do humor de quem tem uma cabeça coroada.”¹⁸, comumente sob a égide da “vontade da nação”, que não é outra coisa senão o poder arbitrário fugindo ao debate público.
Referências
¹ BONAVIDES, Paulo. História Constitucional do Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 1991. p. 410.
² Grifos meus. Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de novembro de 1937. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao37.htm
³ Manifesto dos Coronéis, fevereiro de 1954. Disponível em: https://drive.google.com/open?id=1wXGu-Ci9EUtoFGo1CzLlNVQKGmdX3gej
⁴ Revoltas de Jacareacanga e Aragarças contra JK ameaçaram a democracia. Disponível em: https://acervo.oglobo.globo.com/fatos-historicos/revoltas-de-jacareacanga-aragarcas-contra-jk-ameacaram-democracia-18621865
⁵ Sobre as revoltas, ver: http://www.sdmil.com/manifestos_1.html
⁶ Ato Institucional nº 1, de 9 de abril de 1964. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-01-64.htm
⁷ Ato Institucional nº 2, de 27 de outubro de 1965. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-02-65.htm 
⁸ Ato Institucional nº 3, de 5 de fevereiro de 1966. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-03-66.htm
⁹ Para tanto confira os Anais da Constituinte de 1967, p. 367. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/pdf-digitalizado/Anais_Republica/1967/1967%20Livro%206.pdf. E Ato Institucional nº 4, de 7 de dezembro de 1966. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-04-66.htm
¹⁰  BONAVIDES, Paulo. História Constitucional do Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 1991. p. 435.
¹¹ Ibidem [na mesma obra]. p. 440.
¹² Ibidem. p. 435.
¹³ Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-05-68.htm.
¹⁴ Sobre as cassações e a reabertura do Congresso, consulte: https://www1.folha.uol.com.br/folha/treinamento/hotsites/ai5/ai5/index.html
¹⁵ “ Noam Chomsky - The 5 Filters of the Mass Media Machine”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=34LGPIXvU5M&feature=youtu.be&list=PLzGHKb8i9vTzC9K1FM7wdyXFZATWrSs-8.
¹⁶  BONAVIDES, Paulo. História Constitucional do Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 1991. p. 5.
¹⁷  Ibidem. p. 11.
¹⁸ Ibidem. p. 166
Imagem ao centro : https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2018/12/12/interna_politica,1012696/ha-20-anos-jair-bolsonaro-defendia-reedicao-do-ai-5.shtml
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Direitos fundamentais durante a pandemia do coronavírus
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Direitos fundamentais durante a pandemia do coronavírus
Males extremos requerem remédios extremos. Mas quais são os limites da medicação?
Extremis malis extrema remedia, isto é, males extremos requerem remédios extremos: eis a situação mundial frente à pandemia do coronavírus. Mas quais são os limites da medicação? Afinal, há limites para a o enfrentamento da doença?
É de conhecimento geral o enfrentamento mundial da pandemia causada pelo coronavírus, doença responsável por ceifar mais de cem mil vidas até o dia 15 de abril de 2020. Além de não estarmos preparados para lidar com o vírus no que se refere à saúde e ciência, as dimensões sem precedentes causadas pela consequência da pandemia colocam em xeque as liberdades fundamentais dos indivíduos através das medidas estatais para o combate ao vírus. Existem limites para o controle estatal diante da crise atual?
Medidas de controle estatal para evitar a disseminação do vírus
São Paulo
Um caso recente nesse sentido é o sistema de monitoramento de aglomerações por celulares, instituído pelo Governo de São Paulo em parceria com operadoras de telefonia. O sistema funciona da seguinte maneira: das 22h até as 2h as operadoras verificam onde cada aparelho estava, a fim de saber onde os indivíduos dormiram. Assim, durante o dia, deslocamento superior a 200 metros do ponto fixado é considerado descumprimento do isolamento social. Apenas valores percentuais são informados pelas operadoras ao Governo, que não tem acesso aos dados privados do usuário.
Os dados coletados são sempre do dia anterior, impossibilitando que o Governo monitore ao vivo as aglomerações e possa interferir de qualquer maneira. Apesar disso, algumas pessoas registraram que recebem mensagens do Governo em seus celulares. Isso ocorre porque o Governo pode selecionar a região com percentuais elevados de aglomeração social para endereçar alertas de prevenção, assim as mensagens chegam aos indivíduos de tais regiões através do cruzamento de informações entre as operadoras e o sistema.
Por meio desse sistema não é determinável ao Governo quem está na aglomeração, isto é, nenhum dado privado é compartilhado. Tudo que o Governo recebe são números percentuais relativos a aglomerações ou descumprimento do isolamento social transformados em "manchas de calor" no mapa do sistema. Ainda assim, o sistema foi alvo de críticas (inclusive via ação popular) devido ao entendimento de que mero monitoramento de dados telefônicos configura quebra de sigilo e, portanto, do direito à privacidade¹.
É sempre oportuno questionar os limites da intromissão estatal nas liberdades fundamentais. Urge, antes disso, elucidar se há violação de sigilo nesse caso. Se a resposta for positiva, deve-se questionar: há limites para a restrição do direito à privacidade a fim de proteger o direito à saúde? Investigaremos após a abordagem de outras duas decisões de restrições recentes.
Maranhão
No final do mês de março, quando os Governadores já decretavam medidas de isolamento e proibição de aglomerações, uma manifestação foi convocada por redes sociais contra as imposições das medidas de isolamento das autoridades locais em São Luís, no Maranhão. Em razão disso, o Ministério Público estadual, a Defensoria Pública do Maranhão e a seccional da Ordem dos Advogados do Brasil ajuizaram uma ação cautelar para proibir a manifestação diante da contraindicação de aglomerações por parte de agentes sanitários. O protesto, marcado para o dia 30/03, foi proibido pela decisão da Vara de interesses difusos e coletivos de São Luís no dia 27/03².
Além de São Luís, por toda a parte autoridades estatais estão decretando medidas de proibição de aglomerações que restringem ou até mesmo proíbem o direito à manifestação em vias públicas. Pode o Estado vedar a livre manifestação pública em favor do direito à saúde ou há limites? Essa pergunta será enfrentada logo após a última exposição de restrição de garantias.
Rio de Janeiro
No dia 20/03 o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro proibiu cultos da Assembleia de Deus em todo o Estado devido ao risco de contágio do coronavírus³. A decisão do desembargador se baseou no Decreto 46.973/20 do Governador do Estado, que em seu art. 4º define a suspensão de aglomerações por 15 dias. Com efeito, não trata-se de um ato isolado, mas de uma medida adotada por vários governadores e prefeitos em razão do enfrentamento da pandemia.
A suspensão de cultos é inconstitucional? Se não, até quando pode o Estado restringir liberdades fundamentais pela preponderância do direito à saúde? É o momento de enfrentar essas e as outras questões supracitadas com base na natureza dos direitos fundamentais, que nos revelam um norte para a resolução da problemática mediante a perpetuação do estado constitucional das coisas.
Da natureza dos direitos fundamentais
Independentemente da garantia fundamental entre as citadas (direito à privacidade, à liberdade de expressão e à liberdade religiosa) a ser investigada, há algo de prévio e comum que as determina: a sua natureza. Os direitos fundamentais estabelecidos no art. 5º da Constituição Federal de 1988 são princípios juridicamente vinculantes e constituem a base das normas de todo ordenamento. Em outras palavras, princípios são mandados de otimização compatíveis com vários graus de concretização, determinados pela situação fática⁴ , e além de possuírem caráter de fechamento interpretativo⁵, constituem o fundamento das normas de todo o sistema jurídico.
Diferentemente das regras ou normas jurídicas, que em um confronto entre sua aplicação apenas uma delas pode valer, a natureza principiológica baseia-se na proporcionalidade e na otimização. Deve-se proceder dessa maneira para que as liberdades constitucionais tenham sempre sua efetividade máxima dentro do possível a ser realizado nas circunstâncias fáticas. Nas palavras do constitucionalista alemão Konrad Hesse,
"[...] os bens jurídicos constitucionalmente protegidos devem ser coordenados de tal modo que, na solução do problema, todos eles tenham preservada a sua identidade. Onde ocorram colisões não se deve, através de uma precipitada 'ponderação de bens' ou, inclusive, de uma abstrata 'ponderação de valores', realizar um dos bens com o sacrifício do outro"⁶.
Com efeito, as características observadas não nasceram espontaneamente, tampouco referem-se a uma criação arbitrária. A natureza dos direitos fundamentais, conceituada nos princípios, é fruto do desenvolvimento histórico-epistemológico da normatividade da constituição, que evoluiu de mero documento formal para uma verdadeira manifestação de liberdade e limitação do poder do Estado. Nesse sentido, "os princípios consubstanciam a institucionalização do mundo prático do Direito"⁷ na medida em que são efetivamente observados.
Com base nessas ideias, avançamos a investigação para as situações concretas: 1) o sistema de monitoramento de celulares para o enfrentamento da pandemia em São Paulo fere o direito à privacidade? 2) a proibição de manifestações pelas cidades fere a liberdade de expressão? e 3) a suspensão de cultos religiosos fere o livre exercício de cultos?
Monitoramento de celulares: direito à privacidade e direito à saúde
A Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu art. 5º, o sigilo de dados telefônicos como um direito individual fundamental. Diz o inciso XII desse artigo que "é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal." (grifo meu). A questão é, portanto, se o Estado está tendo acesso aos dados das pessoas no sistema de monitoramento de celulares em São Paulo.
Da maneira que o sistema é descrito, nenhum dado é enviado ao Governo. Isso porque todos os dados de localização são de conhecimento restrito às telefonias e convertidos em informação geográfica que não apresenta informações pessoais. No caso em tela, portanto, não há nenhuma violação de direito fundamental, tampouco é necessário ponderar o direito à privacidade com o direito à saúde, pois não se está diante de nenhuma restrição.
Manifestações pacíficas: direito de reunião, à liberdade de expressão e direito à saúde
O caso retratado pela decisão da Justiça do Maranhão é um pouco mais complexo porque se está, de fato, restringindo um direito. A Constituição Federal prescreve, no art. 5º, IV,  que "é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato" e no inciso XVI, que "todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente"(grifos meus). Primeiro, é necessário determinar se há restrição de ambos direitos, de reunião e de expressão.
Seria simplista determinar que não há restrição da liberdade de manifestação quando se proíbe uma carreata, e é lúcido afimar que a proibição de aglomerações restringe também o direito de reunião. As ruas são, ainda na era virtual, o principal canal de comunicação do povo para esbravejar seu descontentamento com o Estado. Por essa razão, é simplista a afirmação de que não há restrição da manifestação do pensamento na presente situação principalmente porque o protesto nas ruas é essencial para a existência desse direito, e estabelecer que o povo pode simplesmente se expressar em outro lugar — que não nas ruas — incorre em restringir-lhe a liberdade por coibir a efetividade do ato.
Portanto, estamos diante de restrição de ambos os direitos de reunião e de expressão. Resta saber como alcançar a efetividade máxima desses direitos diante da proteção do direito à saúde pois, como observamos, é preciso preservar a integridade de todas as garantias fundamentais, não sacrificar uma por outra. Será necessário investigar a situação atual de nosso sistema de saúde e avaliar as condições para a realização de manifestações públicas, se for possível.
Em se tratando de manifestações públicas que reinvindicam a reabertura do comércio e das demais atividades econômicas, é oportuno dizer que não julgar-se-á o mérito de seus argumentos. Sobretudo, reiteramos e entendemos por defeso o direito de expressão do livre pensar. Sobre a propagação de notícias falsas ou manifestações que carreguem essas notícias não se abordará aqui, pois trata-se de objeto indiferente à consecução de nossos objetivos com o artigo.
Retomando a atenção para a investigação do nosso sistema de saúde, focaremos justamente no caso de São Luís, no Maranhão. Até o dia 15/04, a cidade contava com 695 casos confirmados para coronavírus e 37 óbitos devido à doença. O estado inteiro dispõe de apenas 132 leitos de Unidade de Terapia Intensiva mais e 120 de enfermaria, exclusivos para pacientes com covid-19.
Levando esses dados em consideração, é preciso estabelecer de que maneira os direitos de reunião, liberdade de manifestação e direito à saúde têm, em sua aplicação conjunta, máxima efetividade. Um modo de atender aos direitos sem sacrificar nenhum é estabelecendo datas para manifestação em que a polícia (civil ou militar) esteja presente com agentes sanitaristas, a fim de verificar se as normas de distanciamento físico estão sendo seguidas. No entanto, é possível que os municípios não tenham uma quantidade significativa de agentes, pois muitos já estão trabalhando em seus postos incansavelmente.
Outra alternativa é a reunião online de indivíduos e a livre manifestação desses nas redes sociais. Para isso, é necessário que a população tenha acesso à internet, que não é uma realidade assim tão próxima da brasileira. Não obstante essa dificuldade de acesso, não é possível comparar o efeito das postagens em rede social com a visibilidade das ruas.
Por essa razão, é preciso contar com uma versão aprimorada da primeira solução. Se existe baixa quantidade de vigilantes públicos, o Estado pode determinar um calendário e número máximo de manifestantes a fim de ordenar e fiscalizar os protestos. As carreatas podem ser uma oportunidade para que a população entenda a necessidade do isolamento social mediante a exposição de dados atualizados da rede municipal sobre os casos e situação dos hospitais, além de medidas de prevenção, explanação de riscos, etc.
Dada a situação que vivemos, é preciso contar com a participação de todos e zelar pela constitucionalidade, visto que em momentos de sensibilidade social o Estado tende a aumentar seus poderes. Se o estabelecimento de manifestações e controle fiscalizatório-preventivo mostrar-se inalcançável, é necessário que se pense em outra forma de fazer valer esses direitos ora sacrificados pelo direito à saúde. Por ora, acreditamos que a resposta não é simples, mas apostamos na boa vontade dos brasileiros em encontrar um meio-termo para avançarmos esse momento delicado.
Funcionamento de casas religiosas: liberdade de culto e direito à saúde
O último caso a ser tratado refere-se ao direito à liberdade de culto e à saúde. Como já referido em uma ação sobre a probição das atividades religiosas questionada no Tribunal Constitucional Alemão, a comunhão de pessoas é um elemento central da fé, que não pode ser substituída por meios alternativos, como as transmissões virtuais dos cultos. Devido à densidade de igrejas constituídas no Brasil, a proporcionalidade entre liberdade de culto e direito à saúde não pode ser alcançada do mesmo modo que da liberdade de manifestação abordada acima.
Seria inviável que os cultos continuassem acontecendo meio à pandemia porque o contágio do coronavírus não alcança apenas os frequentadores das casas religiosas. Impensável também é imaginar que teríamos agentes sanitaristas suficientes para fiscalizar cada casa religiosa. A solução, portanto,é substancialmente diferente da encontrada para as outras questões.
Infelizmente, a comunhão de pessoas não é possível dentro da realidade brasileira, onde há poucos agentes sanitaristas e muitas congregações religiosas. Nesse sentido, ainda que a comunhão não possa ser substituída, o Estado deve prover os insumos para que as pessoas possam, de alguma forma, manter contato com a congregação que frequentam. A utilização de plataformas virtuais é a maneira mais lógica, portanto, pois não estar próximo fisicamente não quer dizer que não se possa estar emocionalmente em comunhão.
O grande problema das plataformas virtuais, reitera-se, é que nem todo mundo possui acesso à internet. Talvez por isso mesmo tenha passado a hora de pensarmos que a conexão à rede mundial de computadores é um direito humano básico, sobretudo no meio da crise que não nos permite sair de nossas casas. Esse direito é consubstanciado na Declaração Universal de Direitos Humanos em seu art. XXVII, que dispõe o seguinte:
Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir das artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios.⁹
Algumas considerações
É possível que não concordemos nas soluções mencionadas voltadas para a efetivação máxima dos princípios constitucionais ora restringidos. No entanto, devemos concordar que o sacrifício total de um direito nunca será o caminho, mesmo diante de uma situação exepcional, vez que isso abre a possibilidade de que outros direitos também sejam sacrificados, até que não nos reste nenhum. Não será tarefa fácil, portanto faz-se urgente estabelecer um canal de diálogo para ouvir o máximo de opiniões dissonantes possíveis para criarmos soluções que englobem a todos.
Por último, é mister citar a importância do isolamento horizontal, desde que não estabelecido à força. Acredita-se, indubitavelmente, que a livre troca de ideias permite o fortalecimento dos laços de solidariedade e a melhor compreensão do outro, da convivência que reitera a própria existência. É através do diálogo e da informação que a população torna-se consciente para a necessidade de prevenção e toma por si as medidas de enfrentamento ao coronavírus, não de imposições de cima para baixo, muitas vezes elitistas e que só aumentam o poderio estatal.
Referências
¹ "O simples monitoramento de seus dados telefônicos, cujo sigilo é garantido pela CF/88 é ato ilegal, portanto, inequívoco que a autoridade coatora, ora impetrada está em agindo em excesso, ferindo de morte os princípios constitucionais e as cláusulas pétreas, ainda mais se utilizando de recursos públicos". Confira: https://www.conjur.com.br/2020-abr-14/doria-questionado-justica-monitoramento-celulares. ² Justiça do Maranhão proíbe atos contra o isolamento no estado: https://www.conjur.com.br/2020-mar-28/justica-proibe-manifestacoes-isolamento-sao-luis. ³ Justiça do Rio proíbe cultos de Silas Malafaia por risco de contágio: https://www.conjur.com.br/2020-mar-22/justica-rio-proibe-cultos-silas-malafaia-coronavirus. ⁴ CANOTILHO, J. J. Direito constitucional e teoria da constituição. 6ª ed. Coimbra: Livraria Almedina: 1993. p. 190 ⁵ STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: quarenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento, 2017. p. 152. ⁶ HESSE, Konrad. Temas fundamentais do direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 113. ⁷ Consulte o conteúdo da decisão, disponível apenas em alemão: https://www.bundesverfassungsgericht.de/SharedDocs/Downloads/DE/2020/04/qk20200410_1bvq002820.pdf;jsessionid=C0D38362CAFB2F89B048CCDBE29297F8.2_cid361?__blob=publicationFile&v=1. ⁸ Como grupos religiosos estão se adaptando durante a pandemia do coronavírus. Confira: https://www.weforum.org/agenda/2020/03/amid-coronavirus-online-services-religion-faith-covid19/. ⁹ Acesse a Declaração Universal de Direitos Humanos: https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf.
Imagem de fundo: https://exitoina.uol.com.br/noticias/viral/estatua-do-tom-jobim-no-rio-ganha-mascara-contra-o-coronavirus.phtml
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revistandodireito · 5 years
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A ação afirmativa viola o direito à igualdade?
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Artigo 5º
A ação afirmativa viola o direito à igualdade?
As políticas de ação afirmativa violam o direito à igualdade referido no art. 5º da Constituição Federal?
É possível que as cotas raciais em Universidades públicas ou a escolha de empresas privadas em contratar maior número de candidatos advindos de minorias viole a igualdade de todos perante a lei, resguardada pelo art. 5º da Constituição Federal?
Introdução
A questão, com efeito, não é nada recente e tampouco incontroversa. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 e a Lei 7.716/1989 (Define os crimes resultantes de preconceito de raça e de cor) determinam, respectivamente, que
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]. (CF/88, grifo meu).
Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. [...]Art. 4º Negar ou obstar emprego em empresa privada. Pena: reclusão de dois a cinco anos.(Lei 7.716)
Por essa razão, questiona-se: pode uma Universidade pública ou empresa privada estabelecer ações afirmativas para minorias étnicas sem incorrer na violação do direito à igualdade? Podem, ainda, estabelecer ações afirmativas baseadas em qualquer critério? Deve-se, desde já, deixar claro que o presente artigo busca uma reflexão sobre o assunto, apresentando uma teoria filosófica pela qual poder-se-ia defender ou não as ações afirmativas. Para tanto, é mister desenvolver uma forte teoria da igualdade, isso porque é precisamente nesse conceito que reside a controvérsia apresentada. Não obstante, antes disso, para exemplificar a questão levantada, utilizou-se de um caso real, de 2012, sobre a legitimidade do sistema de ações afirmativas no processo seletivo do vestibular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), contestada no Supremo Tribunal Federal (STF) por um participante do vestibular do curso de Administração, realizado em 2008 - o primeiro ano em vigor das cotas na referida Universidade. Por fim, refletiu-se a respeito de uma empresa privada optar pela contratação de minorias sociais.
Ações afirmativas na UFRGS: um “pacto de mediocridade”?
Como dito, em 2010 o STF foi requisitado a responder se o sistema de ações afirmativas na UFRGS é constitucional, segundo o princípio da igualdade de todos perante à lei. Para o paciente, a distinção de tratamento com base em critério étnico é crime de racismo, não obstante, sua defesa chamou o sistema de cotas de “pacto de mediocridade” (para ler a notícia, clique aqui ou aqui). 
O caso em questão apresenta uma sólida estrutura para o presente debate, porque o estudante figurou na posição 132º, de 160 vagas, sendo rejeitado no processo seletivo devido às vagas reservadas (30% do total) aos candidatos provenientes de escolas públicas independente de cor, negros provenientes de escola pública e, por fim, indígenas. De fato, Fialho (estudante e proponente da ação) tinha uma boa argumentação: caso fosse negro, ou tivesse estudado em escola pública (podendo ser os dois) ou indígena, seria aceito pela Universidade. Em semelhantes casos, pode-se afirmar que o direito à igualdade do paciente não está sendo respeitado por causa de sua raça/cor. 
Para saber se isso é verdadeiro, é preciso entender o que “direito à igualdade” significa, a fim de saber se esse é violado quando alguém é rejeitado por um processo seletivo que decide reservar vagas para grupos minoritários. Isso quer dizer que é mister desenvolver uma teoria da igualdade de tratamento que seja capaz de sanar a controvérsia. Não obstante, deve ser uma teoria do direito à igualdade que, quando enfrentada no mundo prático, não demonstre-se falaciosa. É o que buscou-se, como segue.
Uma (possível) teoria da igualdade*
A partir de uma linha de exercícios, testar-se-á a fundamentação de uma possível teoria da igualdade que, obrigatoriamente, seguirá os dispositivos constitucionais. O art. 5º faz duas asserções a respeito da igualdade. Primeiro, dispõe que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, não obstante determina a inviolabilidade do direito à igualdade. Por sua vez, no art. 3º da CF/88, que dispõe o que constituem os objetivos fundamentais do Brasil, tem-se:
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
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A grande importancia de uma teoria da igualdade é conseguir demonstrar, portanto, no que consiste a discriminação ou a distinção, ambas vedadas constitucionalmente. Para tanto, pode-se tomar o caso acima para enfrentar essa questão. A garantia de que todos são iguais perante a lei reafirma a premissa de que ninguém será privado de seus direitos com base na raça, cor, etnia, sexo, etc. Com efeito, o motivo pelo qual é vedada a discriminação deve ser porque ninguém pode ser privado de algo por uma característica sobre a qual não exerce controle. 
Pode-se argumentar, agora, que Fialho foi discriminado por sua raça, e isso é vedado porque tal coisa é algo sobre a qual ele não exerce controle. No entanto, deve-se pensar o seguinte: um processo seletivo de 160 vagas vai, de certa forma, realizar uma “seleção” (a frase é, com certeza, tautológica) com base em algo que a Universidade considera uma característica necessária para determinar quem ocupará as vagas, porque é inconcebível que aceite todos os candidatos. Assim, a Universidade escolhe por méritos de “inteligência”. A inteligência não é uma característica sobre a qual alguém pode exercer controle. Todavia, não é comum pensar em uma violação do direito à igualdade quando se é rejeitado no vestibular por obter uma nota baixa.
Isso porque todos concordam que a Universidade pública deve ter alguns requisitos para que se conquiste uma vaga. Ainda assim, é com base numa certa “distinção” entre aqueles com maior capacidade intelectual (ou que gozam de maior tempo para estudar, de posição social, etc.), o que não corresponde à violação de qualquer direito. Dessa investigação pode-se concluir que o que proíbe a Constituição é, na verdade, que a discriminação se dê por desprezo à certas características pessoais. Há, efetivamente, milhas de distância entre segregar um grupo ou classe de pessoas por características que estão além do seu controle, que são vítimas de preconceito e desprezo social tão somente por essa razão determinante, e defender o uso de testes padronizados de aptidão (seja qual for o mérito de tal teste). 
É por essa razão que não há como defender a hipótese de que Fialho teve seu direito de igualdade violado. Com efeito, a razão pela qual Fialho não conseguiu a vaga na Universidade pretendida não reside na discriminação racial de que ele é, por ser branco, inferior ou desprezível. De fato, ele seria aceito se fosse negro, da mesma maneira que seria aceito se obtivesse uma pontuação maior no vestibular. 
Em uma sociedade historicamente preconceituosa, as leis devem funcionar no sentido de corrigir as consequências que isso traz. É o que diz o art. 3º, IV. Por isso, ainda, é que a cor da pele, ou o simples fato de alguém ter cursado o ensino médio em uma escola pública, ou pertencer a um grupo economicamente marginalizado, é razão para constituir uma característica desejável para definir quem deve constituir o corpo discente de uma Universidade. 
Essa decisão administrativa é uma conveniência da Universidade, e se o objetivo da República é promover o bem de todos sem qualquer forma de discriminação, a Universidade pode tentar atingir esse objetivo resguardando o direito à educação dessas pessoas hoje marginalizadas, e na medida em que acredita alcançar esse objetivo, as ações afirmativas não precisarão existir. A Universidade pode justificar suas cotas porque entende ser uma questão de garantir a igualdade, uma vez que a sociedade trata desigualmente certas minorias. 
Levar a raça em consideração em algumas questões não é o mesmo que praticar racismo. Por exemplo, a segregação aos negros durante o regime do apartheid não eram violadoras dos direitos dos negros porque levavam a raça em consideração. Em verdade, violavam os direitos dos negros porque os desprezava com base em sua cor, e objetivavam colocar essas pessoas em situação de desvantagem.
Considere a seguinte objeção a essa teoria da igualdade: ainda estar-se-ia violando os direitos de Fialho, porque ele não é alguém que discrimina outrem com base em raça, etnia ou cor, tampouco tem o dever de ser sacrificado pela esperança futura de igualdade. De fato, Fialho não é culpado por nenhuma injustiça (até onde se sabe), e é compreensível que tenha se sentido lesado em seus direitos. Mas ele não tem nenhum direito de impedir que as Universidades trabalhem em direção a sanar a desigualdade social por meio das ações afirmativas.
Uma empresa privada pode levar a raça em consideração sem violar a igualdade?
Reitera-se, aqui, o art. 4º da Lei 7.716, que veda ao empregador negar/obstar emprego baseado em discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, etc. (consoante art. 1º da mesma lei). Para melhor ilustrar a problemática, toma-se o caso do diretor Jordan Peele (por desconhecimento de um caso mais próximo de nossa realidade), que afirmou não “se ver elencando um branco para protagonista em seus filmes”. Com base na teoria da igualdade desenvolvida até então, até que ponto isso se justifica? 
Com efeito, se um caso como esse chegasse na justiça brasileira, dever-se-ia precisar o que o empregador busca com essa classificação. É sempre útil tomar em consideração as estatísticas de desemprego, por exemplo, porque não é pela classificação em si mesma que surge a exclusão, mas o objetivo dessa. Tornou-se evidente que levar em consideração a raça porque pretende-se marginalizá-la ou dar continuidade à marginalização, em razão de desprezo social, é diferente de entendê-la como um fator determinante pelo qual muitas pessoas não estão em condição de igualdade com outras e, por isso, pretende-se conferir-lhes uma classificação específica para corrigir essa desigualdade.
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Conclusão
Se, um dia, as pessoas brancas estiverem em uma relação de desigualdade na qual é oportuno que processos seletivos tenham quotas afirmativas para corrigir essa desigualdade, seria perfeitamente incontestável que mesmo uma empresa privada visasse contratar mais empregados brancos porque percebe que seu número de colaboradores é demasiado desigual para a região na qual é sediada. A questão não é estabelecer privilégios para uma certa cor ou raça, mas corrigir desigualdades que, infelizmente, a sociedade sozinha ou o Estado não consegue sanar por si. No caso das Universidades, portanto, prossegue-se da mesma maneira.
“A diferença entre uma classificação racial geral que causa desvantagem adicional aos que sofreram por preconceito, e uma classificação desenvolvida para ajudá-los é moralmente significativa [...]. [...] [Nesse tipo de hipótese, como a demonstrada] nosso senso de justiça insistirá numa distinção.” Ronald Dworkin, p. 468.
*Todo ensaio foi baseado na parte cinco da obra “Uma Questão de Princípio”, de Ronald Dworkin. A teoria da igualdade é aplicada de acordo com as particularidades da CF/88, porém segue inteiramente os moldes daquela defendida por Dworkin.
Todas as ilustrações são da artista sketchify, no Canva.
Bibliografia
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 437-471.
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revistandodireito · 5 years
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Erro de tipo e erro de proibição
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Teoria do delito
Erro de tipo e erro de proibição
O erro de tipo incorre na ausência de dolo, sendo um problema de tipicidade, enquanto o erro de proibição é um elemento da culpabilidade. Mas o que isso quer dizer?
Teoria do Delito
Dentro do direito penal há uma área de desenvolvimento doutrinário chamada Teoria do Delito. A Teoria do Delito ocupa-se de construir uma sólida estruturação para explicar o Código Penal, visto que o equivocado entendimento desse pode gerar enorme insegurança jurídica. Portanto, a Teoria do Delito, pode-se assim dizer, estratifica um modelo segundo o qual o delito é a “ordem” que abarca duas “famílias”: a do caráter genérico e dos caracteres específicos. O caráter genérico é a conduta. Os caracteres específicos, os “gêneros”, que constituem o delito, são: a tipicidade, antijuricidade e culpabilidade.
Com isso, é o mesmo que dizer que o delito é uma conduta típica, antijurídica e culpável. Em razão de o erro de tipo ser um problema de tipicidade, e o erro de proibição situar-se na culpabilidade, a antijuricidade não será propriamente objeto deste texto - no entanto, é interessante saber do que se trata antes de continuar a leitura -, e o motivo pelo qual cada um é de um respectivo “gênero”, você logo entenderá.
Conduta, tipicidade, antijuricidade e culpabilidade
Em verdade, não se “escolhe” em qual área situa-se cada erro, por exemplo, mas se conhece. Isso quer dizer que não é uma atitude arbitrária, mas um processo de conhecimento lógico pelo qual os teóricos se empenham e, por isso, acabam estruturando e situando cada “espécie” em seu “gênero”. No entanto, antes de conhecermos o erro de tipo e de proibição, precisamos saber o que é o delito. Quando se quer saber se algo é delito, deve-se começar questionando: é uma conduta (humana)? Se não, não é delito. 
Se sim, questiona-se: é típica? A conduta só pode ser típica se algum tipo penal a individualiza e proíbe. Por exemplo: “Art. 121 - Matar alguém”; ou “Art. 157 - Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência.”. A conduta deve ser previamente tipificada a fim de cumprir o requisito “tipicidade” do delito, atendendo ao princípio da legalidade (Art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal). Se não cumprir a tipicidade, não há motivo para continuar questionando se certa conduta é ou não delito. 
Cumprindo o requisito da conduta típica, questiona-se: é antijurídica? A antijuricidade é a característica de uma conduta típica de ser contrária à ordem jurídica. O Código Penal elenca algumas possibilidades na qual a conduta é típica, mas não antijurídica, ou seja, quando há justificação para realizar tal conduta. São chamadas também de causas de excludente de ilicitude. Exemplo é o Art. 23 do Código Penal: “Não há crime quando o agente pratica o fato:  I - em estado de necessidade; II - em legítima defesa; III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.” 
Se a conduta típica se enquadrar numa excludente de ilicitude, não há delito. Caso não se enquadre, é conduta típica e antijurídica, mas ainda não constitui delito. Deve também ser culpável. Para que a conduta seja culpável, ela deve ser reprovável ou, o que é o mesmo, que o autor não tenha tido a possibilidade de agir de outro modo. Isso quer dizer, por exemplo, que aquele que é “louco” e cometeu uma conduta típica e antijurídica, pode não ter tido a possibilidade de agir de outra forma porque o agente é acometido por uma condição mental. Portanto, não culpável, não reprovável. Nesse caso, também não há delito.
Erro de tipo
Findo o “quadro geral” dos requisitos de conduta, tipicidade, antijuricidade e culpabilidade, tão necessário para entender do que se trata o erro de tipo e erro de proibição, vamos ao primeiro desses. Eis que o erro de tipo é tratado na parte geral do Código Penal: 
Art. 20 - O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei.
Isso quer dizer que o erro de tipo exclui o dolo. A circunstância em que cabe o erro de tipo é aquela em que falta o reconhecimento do que requer o tipo objetivo, por exemplo: quem acredita estar atirando contra um urso, e em verdade está atingindo o companheiro de caça, porque sua conduta dirigiu-se para “caçar o urso” e não para “matar alguém”, não pode responder por homicídio doloso. Há, portanto, erro de tipo, que exclui o dolo, constituindo uma conduta atípica (nesse caso, não há delito para a hipótese de homicídio doloso). 
Quando não há finalidade típica, mas o incidente acontece (o agente matou alguém), diz-se que houve tipicidade objetiva, mas não subjetiva. Dessa maneira:
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No erro de tipo, o agente não sabe que pratica um fato típico. No caso do caçador, ele não sabe que "mata alguém". Portanto, o erro de tipo afeta o dolo, afastando a tipicidade dolosa.
Ainda, o erro de tipo pode ser vencível ou invencível (ou evitável e inevitável). O erro vencível ou evitável é aquele que poderia não incorrer em um injusto caso as diligências cabíveis fossem tomadas. É evitável matar o companheiro pensando se tratar de um urso, por exemplo, caso o caçador tivesse averiguado primeiro. No erro evitável, apesar de afastar a tipicidade dolosa, pode caber a tipicidade culposa (condicionada à recepção da modalidade culposa para o tipo penal, consoante o art. 20). No entanto, no erro inevitável, toda forma de tipicidade é descartada. É o exemplo da mulher grávida que toma o remédio prescrito pelo médico e sofre um aborto porque o mesmo contém propriedades abortivas, pois ainda que tomasse as medidas necessárias (como ler a bula), devido ao rótulo não fornecer nenhum aviso a respeito disso, não pôde evitar o erro. Dessa maneira, termina a análise do erro de tipo.
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Erro de proibição
O erro de proibição situa-se na culpabilidade. A culpabilidade, como se disse, é a qualidade reprovável da conduta típica e antijurídica, o último requisito para saber se uma conduta é delito. O que se reprova, no entanto, é o injusto praticado por alguém que devia ter se motivado pela norma, mas agiu contrário a ela. Entende-se, a partir disso, que a norma exige uma atitude específica (ou uma não atitude específica) do sujeito, que, quando poderia ter agido de tal maneira, agiu contrariamente. Grosso modo, o Código Penal versa sobre o erro de proibição como “erro sobre a ilicitude do fato”:
Art. 21 - O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço
É possível notar uma diferença, por exemplo, na reação que temos ao depararmo-nos com duas situações: 1) um sujeito bem instruído, com grande poder aquisitivo, furta uma roupa em uma loja, sem que seja ameaçado; e 2) Um sujeito sem muita instrução e com nenhum poder aquisitivo furta pães em uma mercearia, a fim de que consiga alimentar sua família (desconsidere o furto famélico como causa de excludente de ilicitude, caso seja necessário, para entendê-lo como um problema de culpabilidade. Para esse caso, ainda há discussão doutrinária). Mesmo que ambas situações enquadrem-se no mesmo fato típico (art. 155 “Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel”), entendemos que o primeiro caso é, com efeito, reprovável, enquanto o segundo, não (ou apenas menos reprovável).
Diferente da antijuricidade, na inculpabilidade o direito não “justifica” a conduta, tampouco a permite, tão somente entende não poder exigir do sujeito que tivesse agido de modo diverso. Ainda, na antijuricidade, como existe uma justificativa para a conduta, seu autor não responde juridicamente em nenhuma esfera. Já na culpabilidade, apenas os efeitos jurídico-penais são afastados. “A viúva daquele que agrediu antijuridicamente, e morreu em consequência de uma ação em legítima defesa, não pode reclamar ao autor indenização alguma, mas a viúva daquele que foi morto por um louco tem direito a fazê-lo, porque neste caso há um injusto. [inculpabilidade]”. (ZAFFARONI; PIERANGELI, p. 522)*.
Isto posto, entende-se que o erro de proibição diz respeito à compreensão da antijuricidade da conduta. O erro de proibição afasta a culpabilidade quando, mesmo tomando todas as diligências possíveis, o sujeito não pode compreender a antijuricidade de sua conduta, sendo esse o erro de proibição inevitável. O erro de proibição evitável não afasta a tipicidade dolosa ou culposa quando já afirmada no requisito tipicidade.
O erro invencível/inevitável sempre impede o entendimento da antijuricidade. O faz, no entanto, por diferentes maneiras: a) afeta a possibilidade de conhecimento da antijuricidade; ou b) apesar do conhecimento da antijuricidade, não se pode exigir sua compreensão ou entendimento. Nesse caso:
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Em conclusão, segue o quadro comparativo entre o erro de tipo e erro de proibição:
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* Todos os exemplos foram retirados do livro Manual de Direito Penal Brasileiro, de Zaffaroni e Pierangeli. O livro pode ser encontrado nas mais diversas livrarias, por exemplo, na Amazon. A bibliografia consultada limita-se à mesma obra. As tabelas são as mesmas utilizadas pelos autores, a última apenas encontra-se resumida.
As ilustrações pertencem à sketchify, no Canva. 
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