2 • Nunca aconteceu, até aquele dia...
Sete da manhã, pensar em dormir era até ridículo, então saí para correr, com meus fones de ouvido sintonizados na melhor música, na minha humilde opinião.
I Wanna Be Yours do Arctic Monkeys, minha música favorita desde o lançamento, qualquer outra poderia ser apresentada e jamais mudaria de ideia.
Me acalmava e me fazia pensar em outras coisas.
Não era só um medo bobo do sonho, era assustador de verdade, era quase real, como se eu pudesse sentir o calor das chamas, mas chegava uma hora que virava rotina, já que o sonho era sempre o mesmo.
Sempre me machucava quando acordava, a ponta dos meus dedos roxos não era atoa, era como se eu perdesse a sensibilidade durante o sonho. O real medo era de machucar a Bella.
Era a última coisa que eu queria, e por sorte, nunca gritava durante o sonho, ou falava qualquer coisa, era só o barulho de algo quebrando, como o meu vaso de flor antigo da sala.
Ela me perguntou o que tinha acontecido, e para a minha sorte, era inocente o suficiente para acreditar que um gato selvagem conseguiu entrar e fazer um estrago, perguntou se podíamos ficar acordadas durante a noite e tentar ajudar o gatinho.
Não dava para assustar ela, e nem pensar em machucá-la, o problema, era que se aquilo começasse a piorar, o meu direito sobre ela provavelmente iria embora, se eu enlouquessesse de vez, jamais me perdoaria.
Respirei fundo quando parei na frente de casa, retirei os fones de ouvido e comecei a caminhar pela minha entrada definitivamente bonita e bem cuidada, não que eu fizesse algo, nem tinha tempo, mas o jardineiro era de confiança e aparecia uma vez por mês, limpava toda a neve que caia na varanda da frente.
- Então é aí que você mora.
Parei no meio do caminho, fechei meus olhos fortemente e os abri de novo.
- Droga, vou planejar minha mudança agora mesmo. - Fiz menção de continuar andando.
- Que maldade. - Escutei a voz dele mais perto, então virei rápido.
- Quem te convidou para entrar? - Franzi o cenho.
- Teoricamente isso aqui é a calçada. - Sorriu, debochado.
- Não quando você passou daquela calçada. - Apontei para a rua. - Pode dar meia volta, e sair.
- Não vai me convidar para um café?
Sorri, obviamente não de alegria, apoiei minhas mãos na altura do peitoral, por cima do casaco grosso, ele sorriu, mas logo parou quando percebeu que estava o conduzindo para fora.
Empurrando o corpo dele, para ser mais simples.
- Você está me agredindo. - Último empurrão, e então ele estava fora da calçada da minha casa. - Não pode fazer isso, vou te denunciar.
- Experimenta, e no momento que disser meu nome, eles vão dizer um belo "vai se foder". - Ri. - Deve ser divertido, na verdade, liga, eu quero escutar.
Ele riu, só riu e continuou me olhando.
Era para ele ter me achado a pessoa mais grosseira do mundo, ter dado meia volta e saído dali, mas não.
Só esperava que não fosse o tipo de pessoa que gosta de ser maltratado.
- A quanto tempo mora aqui? - O encarei, respirando fundo.
- O que você quer? Tipo, exatamente. - Sorriu, me olhando de cima a baixo.
- Olha, se eu for sincero, você vai se sentir ofendida, e não quero isso. - Levou a mão ao peito, e depois a colocou no bolso, como a outra.
- Você é doente. - Constatei, e fiz menção de sair.
- Por que é tão difícil falar com você? - Olhei por cima do ombro.
- Não é uma tarefa fácil para qualquer um.
Apenas meus passos foram escutados, leves, e mesmo que não estivesse escutando os dele indo para longe, não olhei para trás.
Subi os três degraus, tirei as chaves do bolso da jaqueta, e de repente escutei a voz bem próxima.
- Eu...não conheço ninguém aqui.
- Mas que porra? Quer parar de invadir o meu terreno?
Riu mais uma vez, debochando, ou mais provavelmente rindo do meu jeito, deu meia volta, correu até a calçada da rua e virou de frente para a casa.
- Eu não conheço ninguém aqui. - A fala alta, pela distância.
Naquele momento tinha duas escolhas, a primeira era só entrar em casa, mas desconfiei que não fosse adiantar muita coisa, já que ele parecia ser do tipo perseguidor.
Não ia desistir, continuaria me procurando, e visto que descobriu que eu morava bem atrás da casa da cunhada dele, iria ser uma tarefa árdua evitá-lo.
E a segunda escolha, era só ir até lá e escutar, com paciência, e então, só talvez ele largaria do meu pé.
Escolhi da segunda opção. Cruzei os braços e fiquei parada na frente dele, esperando que continuasse.
- Não tenho amigos aqui, é novo para mim, e a Michelle disse que você podia me ajudar nesse fim de semana. - Deu de ombros.
- Ajudar com o que?
- Sei lá, talvez me mostrar as coisas. - Cerrei os olhos. - Eu sei que parece uma atitude desesperada de tentar sair com você, e talvez eu esteja mesmo aproveitando, mas isso não vem ao caso agora. - Se aproximou. - Nunca fico aqui, ir para Los Angeles faz parte da viagem anual do meu irmão, e eu tinha uns dezesseis na última vez que vi aquela casa, isso faz...mais de dez anos, não sei. A questão é que preciso tentar me adaptar, para pelo menos sair de casa.
Fiquei pensando no que disse, seria muita ingratidão se eu não o ajudasse, a família dele foi a única que me ajudou quando cheguei na cidade, naquele lado do bairro, grávida, sem conhecer ninguém.
Fizemos a mudança porque o Justin tinha se mudado depois do nosso término, e fizemos um acordo para ficar perto, e como ele já tinha uma faculdade e emprego fixo, e eu não, resolvi mudar.
- Vem.
Foi só o que eu disse, e ele começou a me seguir, sem dizer nada.
Não era exatamente ignorância minha, eu só tinha medo de me relacionar com pessoas novas, por muitos motivos, fosse romântimente ou não.
Quando alguém novo chegava, eu queria correr para longe, fazer de tudo para me odiar e nunca mais querer conversar comigo, o meu mecanismo de defesa era fingir que nunca ligava, mas me importava, todas as vezes que mandei alguém embora.
Todas as vezes foram ruins.
Comecemos pelo primeiro, então. A Bella tinha feito um ano, e resolvi começar a sair com um cara, durou uns três encontros até ele descobrir que eu era mãe de uma criança realmente pequena.
Depois da terceira vez sendo recebida com as mesmas reações, do tipo "não posso fazer isso", ou, "vou ser sincero, não sabia que tinha uma filha, não é nada contra crianças...", ou até "Legal, eu...não sabia", e depois todos eles iam embora para nunca mais voltar.
Péssima ideia ter seguido o conselho do Justin e da minha terapeuta, sobre conhecer pessoas novas. Desde então, comecei a chutar todos, antes que me chutassem.
Entrei na minha padaria favorita, sempre ia lá quando podia, sentei no primeiro lugar vazio que vi, e ele me acompanhou.
Encarei os cardápios, a funcionária nem estava tão perto, mas decidi ser rápida.
- Dois cappuccinos de chocolate, por favor. - Ela sorriu.
- Mais alguma coisa?
- Não, obrigada.
O encarei profundamente, pensando o que eu poderia dizer que fosse suficiente para ele beber o café, levantar, ir embora e nunca mais me atormentar.
- Esse lugar é bem...
- Eu tenho uma filha, sabia? - Sorri com os lábios. - De verdade, ela é minha, biológica, e ela mora comigo, sempre, toda noite, sem exceção, ela dorme comigo.
Falei rápido, e ele me observou atento, provavelmente se perguntando o motivo de eu ter dado aquela informação do nada. Se fosse para se livrar rápido, que fosse espantando ele do jeito que acontecia sempre que me relacionava com alguém.
Pensei mesmo que funcionaria.
Ela não dormia comigo, era mentira, tinha o quarto dela, a ensinei desde pequena a dormir sozinha.
Queria que ele permanecesse sério, calado, mas não, ele precisava sorrir, e sorrir de verdade, não era um sorriso falso.
- Ela deve ter medo do escuro. - Sorriu. - Que idade ela tem?
Me joguei na cadeira, meu sorriso sumiu, dando lugar a um semblante de espanto. Nunca, em um ano e meio, no total de três encontros, um homem quis saber algo a mais além da informação que eu era mãe.
E nenhum deles nunca sorriu de verdade diante da informação, nunca, eu lembraria se sorrissem, nunca aconteceu.
Até aquele dia.
- O quê? - Perguntei sem entender, atordoada.
- Bom, o escuro, deve ser isso. - Continuei boquiaberta, e ele pareceu perceber minha reação. - Ah...quando...sabe? Não tem luz, as crianças ficam com medo. - Engoliu em seco, franzindo o cenho. - Você está bem?
- Não! - O olhei de cima a baixo. - Que tipo de problema você tem?
- O quê? - Riu. - Desculpa, é um costume então? Julguei mal a parte do escuro? - Esqueci até como se falava. - Sabe, quando eu era pequeno, minha mãe colocava uma luz noturna na tomada, brilhava e fazia um reflexo no quarto, talvez se comprar uma para ela...
- Para, por favor. - Pedi, praticamente sussurrando.
- Tá bom, me...desculpe? - Tentou. - Você...tem problemas com ela? Não sei, talvez...
- Não, não há problemas com ela, estamos perfeitamente bem, e ela mora comigo. - Balancei a cabeça levemente, percebendo que já havia dado a última informação. - E... - Respirei fundo, o encarando. - Ela tem dois anos.
- Ela é um bebê. - Sorriu largo. Sorriu de verdade, de verdade mesmo. - Qual o nome dela?
- É Isabella. - Minha voz saiu baixa de novo.
- Claro, a Bella. - Disse como se já soubesse. - O meu sobrinho fala muito nela, eles são super amigos, não é? - Assenti levemente. - Legal, eu gosto de crianças, sabe? Elas são seres de luz, não mentem sobre o que estão sentindo, acho legal você ter a sua própria. - Riu baixo, provavelmente tentando me fazer rir.
Soltei uma risada nasal, olhei para a janela um pouco longe, sem reação nenhuma, e nem era um encontro de verdade, teoricamente era para ele ir embora, aceitar a minha ajuda para conhecer a cidade, no mínimo, e só.
- Você não é normal. - O encarei. - Tipo, nem um pouquinho. - Fiz um gesto com o polegar e o indicador.
- E por que não? - Franziu levemente o cenho, mas sorriu.
- Sabe quantos caras se interessam em conversar com mulheres que são mães jovens? - Inclinou o rosto, esperando por uma resposta. - Nenhum, tá bom? Eu sei disso porque já tentei, não importa se é amizade, ou...sei lá, para sair que seja, a droga que for, às pessoas não curtem mães solteiras.
Ele sorriu com os lábios, me encarando com aqueles olhos verdes que pareciam assustadores. A garçonete chegou com nossos pedidos, e mesmo assim ele permaneceu me encarando, deixou ela sair, e o silêncio já estava ficando constrangedor.
O vi encarar o copo de café, depois me encarar, apoiar os braços na mesa e se inclinar.
- Não sei com que tipo de pessoas você costuma se relacionar, mas tenho certeza que não são homens. - A fala calma até me assustou.
Foi como se dizer o óbvio fosse algo muito engraçado para ele, porque riu, deu de ombros, como se fosse um favor jogar aquilo na minha cara.
- Olha, Kayra, não quero que se sinta ofendida. - Pronto. Pensei. É a hora de ele dar um passo para trás. - Mas...se importa se eu trocar o pedido? Não gosto muito desse, e...pareceu errado te cortar quando falou com a moça. - Apontou para trás como se alguém estivesse ali.
Não tinha como ficar mais em choque, ele queria trocar o pedido, tomar o café, ficar ali comigo, e ainda continuar falando.
Surreal.
- Pode trocar, não tem problema.
Ele sorriu, e chamou alguém, entregou o copo e voltou a me encarar.
- Desculpe, não sabia que não gostava de cappuccino.
- Tudo bem. - Olhou ao redor. - Gostei desse lugar, vem sempre aqui?
- É o meu lugar favorito. - Sorri leve. - Gosto bastante.
- Que bom. - Sorriu. - Se eu te perguntar sobre a sua filha, vai surtar de novo?
- Provavelmente. - Ri, e ele me acompanhou.
- Tudo bem. - Riu. - Você é canadense?
- Sim. - Assenti. - E você?
- Nasci na Inglaterra, mas me mudei quando tinha uns seis anos, então me considero americano. - Assenti. - Olha, se preferir que eu fale francês, tudo bem.
- Oh, meu Deus, está debochando do meu sotaque?
- Não, de forma alguma. - Se defendeu, entre risos. - Mas inglês não é tão predominante aqui, e eu também queria te impressionar com a informação de que falo as duas línguas.
- Você é bem sincero, não é?
- Na maioria das vezes.
Se fosse para ser bem sincera comigo mesma, nada naquele dia me surpreenderia mais.
Tive vontade de chorar por um momento, por pensar que era tão incomum um homem não se importar com a parte da criança pequena, era tão surreal a maneira como as pessoas evitam outras só por serem pais solteiros.
Passamos um bom tempo lá, era um lugar quentinho. Já havíamos passado do mês mais tenebroso em questão de neve, que era fevereiro, em março, já começava a diminuir, e a neve ia embora pela metade do mês de abril.
Um frio horrível, e nunca tinha saído do Canadá, mas sabia que a Califórnia era quente, nem imaginava o quão difícil estava sendo para ele.
O frio foi o motivo da nossa caminhada não durar muito tempo, se começasse a nevar e estivéssemos na rua, algo ruim poderia acontecer.
Em questão de minutos estávamos de volta a faixada da minha casa, sem uma invasão a domicílio daquela vez.
- Obrigado. - Sorriu, levando as mãos ao bolso. - Foi legal, te vejo por aí?
- Com certeza me vê por aí, sou sua vizinha.- Rimos, olhando para baixo por um momento, ambos sem jeito, nitidamente. - Até mais.
Tive a sensação de esquecer de como caminhava, porque talvez ele estivesse olhando, ou não, eu não sabia, então só abri a porta e fechei rápido.
Tirei o casaco, a casa era quente pelos aquecedores, subi as escadas, nem olhei direito para o quarto, só entrei no banheiro e liguei o chuveiro.
Tomei um banho rápido, teoricamente eu precisava fazer meu almoço, mas provavelmente iria me limitar a uma lasanha semi pronta.
Enrolei meu cabelo e meu corpo em toalhas, sentei na cama e abri a gaveta da mesinha de cabeceira, encarei o aparelho preto lá dentro e o peguei.
Foi uma coisa que minha terapeuta disse, sobre fazer um diário, do jeito que eu quisesse, o que eu não levei muito a sério, durou umas três gravações, parei de gravar depois do meu último encontro estúpido a pouco mais de um ano atrás.
Respirei fundo, e apertei o botão para ligar.
- Ah...meu nome é Kayra Chambers, e...eu meio que...decidi voltar com essa coisa idiota de gravar. - Franzi o cenho, olhando para o aparelho. - Acho que o motivo de eu decidir voltar é que...conheci um cara, não românticamente, ele só precisava de ajuda para conhecer melhor a cidade, mas a coisa toda foi que...ele não achou estranho eu ter uma filha, ou ele estava fingindo, eu não sei, mas não tenho ninguém para contar, então talvez gravar seja legal...
Não era exatamente ninguém para contar, e era ao mesmo tempo.
Eu não ia ligar para a minha mãe e dizer aquilo, ela provavelmente iria surtar e pensar que eu estava levando qualquer um para dentro de casa com uma criança pequena. Nem vou comentar sobre o meu pai.
O Justin não precisava exatamente saber, ia se animar demais, querer conhecer ele e praticamente dizer a ele que eu era a melhor pessoa do mundo e estava feliz por um "nós" que jamais existiria, e também, ele sempre foi um pouquinho emocionado.
E a Michelle, bom, ela era a cunhada dele, não era exatamente a pessoa certa para desabafar sobre aquilo.
* * *
Segunda-feira, noite, preparei lasanha, não as semi prontas, eu mesma montei, e fiz suco natural porque pelo menos uma vez alguém precisava ser a prova viva de que eu nem sempre vivia de comida pronta.
Justin batia na porta, mas não esperava, só entrava como se a casa fosse dele, mesmo eu argumentando sobre aquilo ser invasão.
- Mãe!
- Oi, linda! - A peguei no mesmo momento.
- Eu sinto saudade. - Ri baixo, a troca de palavras era até engraçada.
- Sentiu saudade? - Assentiu, animada. - Eu também, muito, muito, muito!
Jus só sorria, nos encarando. Era quase sempre a mesma coisa, eu guardava as coisas dela, colocava o jantar na mesa e os dois me acompanhavam.
Ele me contava sobre o fim de semana, se teve alguma dificuldade, se pediu algo ou disse algo diferente, e nunca mudava, ele esperava ela ir para o sofá assistir televisão para me contar sobre ela não conseguir chamar ele de pai.
- Olha, eu não quero forçar a me chamar de pai, não preciso disso, ela é criança e...na inocência dela, só posso ser o pai se morar com você.
- Ela disse isso? - Sussurrei.
- Disse, me contou que os pais moram juntos, e que na casa dela, são só ela e a mamãe. - Suspirou. - Eu só quero que ela entenda que sou o pai, entende? Não precisa me chamar de pai, só...quero que ela entenda que vou ajudar ela sempre, que pais fazem isso, que nunca vou embora, que entramos em um acordo para criar ela...
- Vou falar com ela. - Assenti. - E com a terapeuta, pode ser que seja melhor.
Ele sempre concordava e sorria, mas sabia que ficava chateado, o mínimo que queria era provavelmente ser chamado de pai, não que fosse uma obrigação dela, mas eu podia imaginar o quanto era doloroso.
Ele foi para casa depois, e eu fiquei na cozinha, arrumando tudo e de olho na sala ao mesmo tempo, olhando na direção dela.
Não gostava de deixar ela pensar que podia ficar sempre acordada até tarde, então tinha um horário máximo que eu deixava para o sono dela ser regulado.
Desliguei a televisão, e ela protestou como sempre, me pedindo por favor, mas o desenho podia esperar.
Um pijama quentinho e cobertores quentinhos, mesmo com todo o aquecedor ainda dava para sentir a temperatura negativa, mas nem se comparava com o lado de fora.
- Filha, a mamãe precisa te explicar uma coisa, tá bom? - Assentiu. - O Justin, ele é seu pai, sabia?
- Eu sabia. - Sorriu com os lábios, assentindo.
- Você sabia?
- Sabia, ele me disse, e a tia Jana também. - A terapeuta, ótimo.
- Tá bom. - Sorri, fazendo um carinho no cabelo dela. - E você gosta de chamar ele de J?
- Gosto. - O sorriso genuíno sempre entregava a verdade. - É o apelido dele.
- E você nunca quis chamar ele de pai? - Negou com a cabeça. - É estranho para você? - Assentiu. - Por que?
- Porque, ele não mora com a gente. - Assenti. - E os pais do Joe ficam lá com ele...
- Oh, entendo. - Sorri, a tranquilizando, para saber que nada estava errado. - O seu pai vai sempre te ajudar, tá bom? Ele gosta muito da gente.
- Precisa chamar o J de pai? - Respirei fundo, olhando nos olhos dela.
- Só quando você quiser. - Beijei a testa dela. - Tudo pronto para dormir?
- Não. - Franzi o cenho. - Falta o Abu!
- É claro. - Ri baixo, me esticando para pegar o coelho dela. - O seu senhor coelho.
- É o coelhão. - Riu, de alguma forma soava engraçado para ela.
- Vou deixar a porta encostada, tá bom? Se quiser ir ao banheiro, me chame.
- Tá bom
- Boa noitinha. - Beijei o rosto dela repetidas vezes.
- Noitinha! - Ri baixo, sentindo o beijo no meu rosto.
Antes de sair, coloquei a luz de borboleta na tomada, e pensei que eu poderia ter dito ao Harry que tinha uma daquelas luzes na minha casa.
Porta encostada e eu deixava a do meu quarto encostada também, caso ela precisasse.
Respirei fundo e fechei os olhos, torcendo para que aquela fosse uma das noites onde eu dormiria até o amanhecer.
* * *
O meu dia começava comigo bocejando, fazendo um café que era basicamente torradinhas, achocolatado e ovos mechidos.
As semanas eram sempre cansativas, acordava e já queria ir dormir de novo.
Eu me arrumava antes de preparar o café, só para ser mais rápido. E a Bella era manhosa demais, não acordava, ficava de olhos fechados mesmo que eu a pegasse no colo, lavava o rosto dela e só parava de ficar brava quando sentava diante da mesa.
Ela ria na maioria das vezes, me mostrando a carinha de geleia que fazia nas torradas.
- Você quer esse, ou esse? - Mostrei os dois sucos, uva e laranja.
Sempre gostei de deixar ela escolher, caso não se agradasse de algo, a culpa não era minha, e também, para ela saber que tinha escolha.
Ela apontou para o suco de uva enquanto comia, depois escolheu morangos, pãozinhos com geleia de morango também e biscoitos de chocolate, e daquela maneira, a lancheira dela ficou pronta.
Depois eu arrumava ela com uma roupa quente, sempre ficava preocupada se ela estava com frio ou não. Minhas coisas geralmente ficavam organizadas no carro, e era só prender ela na cadeirinha, e levá-la até a escolinha.
Se tinha uma coisa que ela gostava, era de ir para a creche, gostava principalmente da professora e tinha uma melhor amiga chamada Kety, porque ela nunca parava de falar nela.
- Quais são as regras?
- Não saia com estranhos, a mamãe vem te buscar às três. - Repetiu as minhas palavras e eu ri.
- É isso aí. - A peguei no colo, depois a mochila. - Se divirta hoje, tá bom? Eu te amo.
- Te amo. - Ela sempre me abraçava, mesmo no meu colo, até chegar na porta.
Ela sempre acenava com uma das mãos, junto da professora, e eu verificava se estava realmente entrando no prédio.
Depois eu ia até o carro e meu trabalho começava de novo.
Ser parte do conselho tutelar da cidade não era aquele drama todo que as pessoas viram na televisão, claro que haviam as queixas, mas com uma boa conversa, a maior parte sempre respeitava.
Não eram todos que tinham acesso às ligações de ajuda, era um grupo específico que passava as informações para nós e então, fazíamos uma visita, ou, em alguns dias, eram como eu sentada na cadeira do próprio escritório, telefonando para os casos de sua responsabilidade para saber se tudo estava certo, ou se tinha alguma reclamação.
Depois de cada ligação, um protocolo era feito, com a data da ligação e descrição da vítima sobre as situações atuais.
Também tinha a pausa para o café, conversas, e mais trabalho, recebíamos algumas visitas da polícia para saber algumas coisas sobre casos suspeitos, mas eram nossos amigos, nada de errado acontecia, estava acostumada demais a ver policiais.
E tinha outra tarefa também, mas aquela era minha em particular.
Fugir da Alice.
Sabia que estava prestes a me convidar para a festa dela, que se intitulou como "o bar da Al", não curti o nome, mas ela parecia tão feliz que soube que seria bem errado dizer.
O problema foi que ela me achou.
- Oi, Kay. - Eu estava prestes a abrir a porta do carro. - Tudo bem?
- Sim, e com você? - Sorri, fechando a porta do carona.
- Tudo bem. - Sorriu. - Sabe que na próxima semana é o meu aniversário, não é? Vai ser na minha casa, estou convidando todo o pessoal.
- Ah, sim, alguém já tinha comentado.
- Imagino, mas nunca te encontrei para convidar pessoalmente. - Riu, sem jeito. - Vai ser no sábado a noite, te vejo lá.
E ela só saiu, sem me dar tempo para qualquer justificativa esfarrapada.
Fiquei parada por uns dez segundos constrangedores e entrei no carro, em direção a outro escritório no centro, mas daquela vez, não para trabalhar.
- É uma evolução?
- Não. - Falei como se fosse óbvio. - Não é evolução, foi horrível.
- Conhecer alguém novo não precisa ser horrível.
Eu me perguntava o motivo de todo terapeuta ser calmo e pleno.
Os verdadeiros fatos escondidos eram que o tal Harry me seguiu nas redes sociais e já era a quarta mensagem dele que eu ignorava, na verdade, nem visualizei.
- E se acontecer de novo?
- O que vai acontecer de novo?
Ela poderia ter o poder de ler mentes, para eu não precisar falar.
- O Justin foi um erro, quer dizer, não um erro, ele é um ótimo amigo, sempre foi, e um ótimo pai também, só que...foi ridículo pensar que eu tinha interesse no meu melhor amigo, olhando para trás, eu consigo ver que nunca foi um amor romântico, e ele também sempre soube que não, e...não é mais como era, entende? Nós estragamos tudo entre nós só por pensar besteira.
Aquela era a verdade, por mais que doesse, na época, eu aceitei porque gostava dele e pensava que poderia passar a gostar mais, e talvez ele pensasse o mesmo, e tudo aconteceu.
- E aí tem a Isabella, ela não foi um erro, eu amo a minha filha, mas sei que ela sofre por ter pais separados e tudo isso foi culpa minha. - Dei de ombros. - E se esse cara também for uma coisa precipitada?
- Por que não está dizendo o nome dele? - Respirei fundo, e olhei para a janela. - Podemos chamar ele pelo nome?
- Tanto faz. - Olhei para ela, percebendo que estava sendo grosseira. - E se o Harry for uma coisa precipitada?
- Não vai saber se não tentar.
- Ser rejeitada dói, sabia?
- É, eu sei. - Assentiu. - Passei por muita coisa antes de conhecer meu marido, pode acreditar...
- Nesse nível?
Ela me analisou, provavelmente pensando em dizer que a paciente era eu e não ela.
- Pior. - Me surpreendi com a resposta. - Saia para jantar com ele.
- Por que?
- Porque nunca vai saber se não sair da sua zona de conforto, Kay, já está na hora, não é por que alguns homens não gostaram da ideia de você ser mãe, que todos vão odiar. - A fala óbvia me irritava de certa forma. - Ninguém nasceu para ser sozinho, se você se encontrar com alguém que esteja disposto a dividir seus sentimentos, pode dar certo.
- Mas e se não der?
- Então não deu. - Disse simples. - Siga em frente, você não é a vítima da história toda, você é uma mulher que trabalha, cria uma criança, e merece amor, como todos os outros seres humanos no mundo.
Olhei para a janela, a neve caindo aos poucos, não o bastante para encher as ruas, mas o suficiente para eu ver.
A encarei de novo, depois o relógio, sabia que a sessão estava acabando.
- Eu posso tentar. - Ela sorriu grande.
- Ótimo, mesma hora na semana que vem. - Pegou o copo de água.
Saí de lá o mais rápido possível, e aquelas cenas dos filmes onde as pessoas entram nos carros e ficam apenas em silêncio, com as mãos no volante e olhos fechados, era real.
Era exatamente como eu estava naquele momento.
- Porra! - Sussurrei, quase gritando.
Percebi que precisava dar o braço a torcer pelo menos uma vez, e talvez, talvez, e somente talvez, me relacionar com alguém poderia mesmo ser considerado "um tempo para mim", onde a minha ansiedade poderia sumir por momentos.
Abri meu celular e em seguida as mensagens da minha rede social, observando a última mensagem do @harrystyles.
Harry: Oi
Harry: Talvez, quando você resolver me seguir de volta, possamos conversar por aqui...
Harry: Ainda não conheço a cidade direito, quando tiver um tempo, podemos conversar de novo?
Aquelas mensagens já tinham um total de três dias, ignoradas, porque nunca as abri de verdade, só as percebi pela barra de notificação.
Seja simpática, Kay. SIMPÁTICA.
Kay: Oi
Que ridículo, que coisa medíocre e ridícula, quem diz "oi" depois de ignorar alguém por três dias?
Fechei meus olhos fortemente, tentando mandar os pensamentos negativos embora, e infelizmente, precisei pensar em uma boa mentira.
Kay: Não entro muito nessa rede, por isso só vi sua mensagem agora, desculpe por isso.
Kay: Ainda quer conhecer a cidade?
Soltei o celular e o deixei no banco ao lado, meu coração começou a acelerar.
É claro que ele não vai responder agora.
O meu único medo era a rejeição, de novo, de novo, e de novo, mas não seria culpa dele se encontrasse alguém melhor para mostrar a cidade, afinal, eu escolhi ignorar.
Liguei o carro, e o meu celular brilhou, seguido da vibração de alguma notificação. Desliguei o carro e olhei assustada para o aparelho.
O peguei rápido e desbloqueei, fosse o que fosse, era só visualizar rápido e desligar novamente.
Harry: Sim, com certeza.
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