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ccbrandao · 2 years ago
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O jornal (em papel nunca) vai acabar
“O jornal em papel nunca vai acabar”. Lembro-me da primeira vez que ouvi esta frase. Foi no primeiro ano da faculdade, do curso de jornalismo, há uns precisos 20 anos. Naquela altura, o digital ainda dava os primeiros passos por entre algumas experiências jornalísticas, não se sabiam bem o que aí vinha, mas o papel ia ser sempre o papel, diziam os professores.
Lembro-me de ler o Jornal de Notícias aos domingos, em casa do meu avô, e de sentir que aquelas páginas eram imensas, continham informação sobre tantos assuntos diferentes. Desde as coisas importantes da política lá na capital, às histórias dos pastores no interior. E todas tinham a mesma importância, todas as pessoas tinham um espaço para a sua própria voz. Até as coisas aqui da terrinha, volta  e meia, apareciam nas páginas daquele jornal grande. Ainda faltavam uns anos para decidir ir para jornalismo, mas as minhas mãos já sentiam o peso da instituição que era o Jornal de Notícias.
Já no curso, quando comecei a conhecer pelo nome os jornalistas que escreviam as grandes histórias, não deixava de encher o peito saber que eram do Norte, que, afinal, muito do importante papel do jornalismo no país era feito a partir daqui. Era feito no Jornal de Notícias, no Porto.
Quando tive um contacto mais próximo com o Jornal de Notícias, aí já formada em jornalismo, lia cada notícia com outros olhos. Admirava o rigor, o cuidado em contar as histórias, a forma como chegavam a cada pessoa, como não se ficavam por um lado da história. Como inovavam na forma de contar e, acima de tudo, como conseguiam que tantas situações se resolvessem graças à sua denúncia. Era o jornalismo com que sonha quem entra na faculdade, acho eu. Era o meu jornalismo e não era feito lá longe.
E tudo aquilo era feito por pessoas que eu admirava, que iam à procura, que não se deixavam ficar pelo óbvio, pelo mais fácil, pelo que lhe queriam fazer passar. Ainda acreditavam que, se fizessem um bom trabalho, o jornal haveria de continuar a ser feito ali, no Porto, com as histórias da região, com as histórias das pessoas anónimas. No Jornal de Notícias, foram sempre acreditando que o que faziam era relevante, vital. E que teriam que continuar a fazer isso, bem feito, para não serem outro Primeiro de Janeiro, outro Comércio do Porto. Mesmo assistindo a cortes ali tão perto: na equipa de fotografia, nos colegas do Diário de Notícias, nos da TSF. Os mais de cem anos do Jornal de Notícias davam-lhes força e o jornal manteve-se, continuando a atrair jovens jornalistas, mantendo fieis milhares de leitores diários. E, imagine-se!, com resultados positivos.
A Global Media, o grupo que detém o Jornal de Notícias, quer despedir agora entre 150 a 200 pessoas, 40 delas jornalistas do Jornal de Notícias, cuja redação são, atualmente, nove dezenas. O despedimento coletivo inclui, ainda, mandar para a rua 30 pessoas da TSF e um número indeterminado d’O Jogo. Depois de terem tirado a redação do coração da Baixa do Porto, da “torre” como era carinhosamente apelidado, querem fazer crer que é possível manter a qualidade, a isenção, o rigor, procurar as notícias e o seu contraditório com uma redação esquartejada.
Não é e, por isso, os jornalistas fizeram uma greve de dois dias. Pela primeira vez, desde o dia em nasceu, há 135 anos, o Jornal de Notícias não saiu para as bancas durante dois dias seguidos, deixando um buraco vazio maior do que os olhos viram naquelas prateleiras.
Nestes dias, alguém escrevia nos comentários sobre a notícia do despedimento coletivo que o Jornal de Notícias há muito tinha perdido qualidade. Duvido que esse alguém se tenha dado ao trabalho de pensar porquê. Será porque a redação é cada vez mais curta e um jornalista não chega a todo o lado? Será porque quem o escreve trabalha em situação precária e não se lhe pode exigir que sinta a motivação daqueles que ganham balúrdios a explorar pessoas? Ou será que, mesmo motivado, mesmo ainda crente no sonho do jornalismo, no propósito do jornalismo enquanto quarto poder, enquanto denunciador, independente e justo, o jornalista, simplesmente, não lhe veja pagas deslocações ou outras despesas que um rigoroso trabalho de investigação exigiria? Ter-se-á, esse alguém, questionado sobre o monopólio dos grupos de media, sobre o fundo de investimento que agora entra na administração da Global Media, e os interesses que isso traz consigo?
Mas eles aí estão. E nós continuamos a não querer pagar para ler notícias. Queremos ler o jornal de forma gratuita nos cafés e sem conteúdos pagos nos sites. Queremos porque a internet nos habituou a ter tudo à mão, imediatamente, e de graça. Quanto muito a ter que levar com um anúncio até ao fim, mas quem está verdadeiramente atento ao seu conteúdo? Enquanto vivermos a acreditar que temos o direito de ler as notícias de graça, vamos, mesmo, assistir à morte dos jornais. Porque não haverá dinheiro para pagar aos jornalistas. Porque se os leitores não os valorizam, por os hão de valorizar os senhores dos fundos, os senhores do capital e do lucro cego?
E sem jornalistas não haverá ninguém para contar a história do dia em que, afinal, o digital acabou com os jornais em papel e passámos a ler notícias feitas pela inteligência artificial, a ferramenta perfeita para a propaganda. O dia do espezinhar da democracia, do pluralismo, da isenção, de uma imprensa livre e descentralizada. Depois escusamos de nos queixar. Ninguém estará lá para ouvir, contar, denunciar a nossa queixa. Escusam de pedir ajuda ao Chat GPT, ele vai estar ocupado a “escrever notícias”.
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ccbrandao · 2 years ago
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Mas isso vai mudar alguma coisa?
Um mês e tal depois e ainda cá estamos a tentar encontrar formas diferentes de explicar que bombardear crianças, jornalistas, hospitais, campos de refugiados, torres de água e civis que seguem as ordens de fuga é errado, não estamos?
Perguntam-me muitas vezes porque me dou ao trabalho de ir a manifestações, de assinar petições, de partilhar imagens, vídeos e apelos praticamente todos os dias nas redes sociais, de boicotar marcas. “Não vais mudar nada com isso”, “Eles querem lá saber se deixas de comprar”, “Os protestos não servem para nada, no fim eles fazem o que querem”, “São todos iguais”, “Não vou deixar de usar essa marca por causa disso”, “Eu até ia, mas o sofá, a chuva, o cão, o sono…”.
Podendo eu encontrar várias justificações que expliquem o que para mim é mais do que óbvio, escolhi para aqui, e porque o debate, o tentar convencer pessoas consegue tornar-se desgastante, alguns factos, alguma estatística. Coisas nas quais, à partida, é suposto confiarmos.
Erica Chenoweth, uma cientista política da Universidade de Harvard, confirmou que a desobediência civil é, de longe, a forma mais poderosa de moldar a política mundial. Analisando centenas de campanhas ao longo do último século, ela descobriu que as campanhas não violentas têm duas vezes mais probabilidades de atingir os objetivos do que as violentas, e que as mudanças foram, efetivamente, alcançadas em mais de metade dos casos. Ainda que muitos fatores possam ter influência, ao que parece é necessário que apenas cerca de 3,5% da população participe ativamente nos protestos para garantir mudanças políticas sérias. A investigação diz mesmo que nunca houve nenhuma campanha que tenha falhado depois de atingir 3,5% de participação.
Ora, isso em Portugal significaria que, para conseguirmos as tais condições para o SNS, para os professores, para muitos de nós em matéria de habitação, “só” precisávamos de ir umas cerca de 367 mil e 500 pessoas para a rua mandar vir de forma pacífica, sem confrontos, sem partir coisas. Utópico, eu sei. Mas pelo menos temos uma meta onde apontar. E , em teoria, vá, 50% de probabilidade de conseguir alguma coisa.
Isto porque, diz Erica Chenoweth, as campanhas não violentas têm a capacidade de “recrutar” mais participantes e provenientes de um grupo demográfico muito mais vasto, o que pode causar perturbações graves que paralisam a vida urbana normal e o funcionamento da sociedade. Ainda se lembram da paralisação dos transportes de mercadorias? Acho que a tática é chamar esses para qualquer causa.
Não é a quem faz a guerra que nos devemos opôr, a quem devemos chamar à razão e implorar seja o que for. Não são esses que vão destruir o mundo. Quem devemos combater são os neutros, os do “isso é demasiado complexo”, os que acrescentam um “mas” à retórica do “eu sou contra o que Israel está a fazer na Palestina”. São esses a quem devemos chamar à razão, a quem devemos tentar ir buscar para fazermos estes 3,5%. Aos que não mostram a sua oposição à guerra, à ocupação, aos quem ficam no sofá e não gritam, não se mostram contra porque “não adianta nada”. O perigo está nos indiferentes. Nos que mudam de canal, nos que avançam no scroll, nos da opinião formada e irredutível, nos que não se querem dar ao trabalho de ter opinião.
Nestes dias, deparei-me com uma história muito simples e que me deu mais alento. Contava que, todas as noites, durante a Guerra do Vietname, um senhor, de seu nome AJ Muste, conhecido como defensor dos direitos civis, colocava, em frente à Casa Branca, uma vela branca acesa. A dada altura, uma jornalista (em vez de lhe perguntar se ele condenava os Estados Unidos…) perguntou-lhe se ele acreditava, verdadeiramente, que ia conseguir mudar alguma coisa. E o senhor terá respondido algo do género: “não estou aqui para mudá-los. Venho aqui para que eles não me mudem a mim. Não permitirei que o ataque constante e enlouquecedor da insanidade diminua a minha humanidade. Continuarei a conhecer a verdade e a dizer a verdade. Farei a minha pequena parte - todos os dias - para permanecer humano, para permanecer desperto e terno, para que o mundo não desgaste a minha humanidade”.
Por isso vou, assino, partilho e boicoto, para que eles, os intervenientes, mas os indiferentes também, não me mudem a mim, para que eu não perca a minha humanidade no meio desta loucura. Se cada um de nós não permitir que nos mudem, que nos tornemos indiferentes, acho que seremos muitos. Mais que os 3,5%. Os necessários para não permitir estas atrocidades.
Eu não sei quanto aos outros, quanto a vocês, mas eu não gostava de viver com o peso de um genocídio nas costas. Porque é o que carregaremos se não nos opusermos. Um dia, quando o meu sobrinho vier das aulas de História e me perguntar onde é que eu estava durante o genocídio na Palestina, não sei quanto a vocês, talvez tenham fotos em memoriais, semelhantes aos do Holocausto, com as hashtags #neveragain ou #murronoestômago para mostrar, mas eu vou dizer-lhe que estive nas ruas a gritar contra, mesmo debaixo de chuva. Que assinei as petições a exigir o cessar fogo, o corte de relações, o fim da ocupação. Que boicotei as marcas que apoiaram aquilo. Que tentei usar o poder das redes sociais, correspondendo aos pedidos dos amigos que fiz na Palestina, para ser um bocadinho o eco das vozes e das imagens que nos chegavam e tantos preferiram ignorar ou duvidar, para expor as mentiras daquele a que chamam “a única democracia do Médio Oriente”, as narrativas falsas e cegamente propagadas pela comunicação social, nem que fosse para que uma única pessoa o considerasse e se juntasse. Provavelmente não mudei nada, meu querido, mas eu tentei. E vocês, onde escolheram estar durante o genocídio do povo palestiniano?
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ccbrandao · 2 years ago
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Crimes contra a nossa réstia de humanidade ou como a história não começa a 7 de outubro
Como parece que o mundo acordou para o que se passa - há várias décadas e todos os dias - na Palestina, vamos lá a esse tema. Espero que, quando esta crónica for publicada, ainda haja Palestina, na verdade.
Tem-nos entrado pela televisão adentro, diariamente, um certo jornalista português a relatar os “momentos de horror” que tem vivido naquele território que os israelitas dizem que lhes pertence por direito - há quem lhe chame Israel, mas, como, há tempos, alguém me respondeu (tão bem) quando eu me queixava de que Israel não deveria estar na Eurovisão porque não era Europa, “Israel não é sequer um país”.
Esse senhor jornalista, que parece gostar muito de ser o protagonista das histórias que conta (como reagir à “notícia” do senhor a receber um telefonema do papa Francisco? Sim, por favor, coloquemos os holofotes nele…), estava, logo nos primeiros dias após o ataque do Hamas aos israelitas, a dar a entender que tinha sido Israel a permitir o crescimento daquele grupo, uma vez que vem providenciando tudo a Gaza, desde alimentação a energia elétrica, e até - imagine-se! - permite a entrada de ajuda humanitária naquele território.
É por eu andar a estudar esta área ou é evidente para todos que: se não fosse Israel, Gaza teria alimentação e energia elétrica e não precisaria de qualquer ajuda humanitária? É que, pelo que vejo, isto é menos óbvio para o mundo do que eu julgava. Fomos tão rápidos no #PrayForIsrael que eu até achei que tinha perdido alguma coisa da história.
E agora aqui estamos, a pedir-lhes só mais um bocadinho a ver se conseguimos tirar milhares de pessoas de Gaza (para onde já agora?) para um dos exércitos mais poderosos do mundo destruir tudo o que ainda falta, depois de uma semana de bombardeamentos (ao mesmo tempo que bombardeiam a Síria, coitados, têm que se defender). Eu ia escrever “indiscriminados” a seguir, mas para quê? Com certeza, façam o favor de entrar e apagar a Palestina do planeta. Destruam hospitais, matem jornalistas e crianças e obriguem agentes humanitários a sair, inclusive ataquem os próprios civis quando estão, precisamente, a tentar sair de Gaza que nós vamos, por aqui, rezando por Israel. Não há regras. A humanidade, essa, foi destruída há muito. Quem fica surpreendido por aquele suposto país não ter subscrito o compromisso do Tribunal Penal Internacional?
Claro que, como em tudo, está mais do que provado, nós consumimos a informação que corrobora a nossa ideia pré-concebida, por vezes a que chega de forma mais simples. Dá trabalho estar bem informado. Por exemplo, se o senhor da televisão, que até já foi recebido pelo papa, diz que o Hamas decapitou crianças, é porque o fez.
Foi mais ou menos isso que disse o presidente dos Estados Unidos. Só que calha que não viu imagens disso porque essas fotos não existem (ou pelo menos ninguém as viu, sob a desculpa de que são demasiado violentas). Mas existem umas quantas, partilhadas, isso sim, indiscriminadamente, que terão sido geradas por…inteligência artificial (soldados com três braços a pegar em crianças? Quem dera a muitos pais…). Confrontar? Investigar? Ui para quê?
Se eu estou a tentar desculpabilizar o que quer que o Hamas tenha feito? Não estou. O movimento de resistência da Palestina responderia por várias atrocidades caso essas coisas dos crimes de guerra e do direito humanitário internacional fossem, efetivamente, postos em prática. O Hamas. Não os palestinianos. Nem aquele grupo nem o exército israelita podem sair incólumes. Não há nenhuma linha que justifique matar civis e, ainda assim, já morreram quase três mil palestinianos. E já foram ao dicionário procurar pelo significado de genocídio? Ou crime contra a Humanidade? Punição coletiva? Encaixa tão bem naqueles camuflados armados até aos dentes e de cruz de David ao peito que nos devia envergonhar andar a rezar por Israel (perdoem-me a generalização, há israelitas contra esta política terrorista, até, imagine-se, membros do exército que desertaram por causa disso e hoje estão a divulgar a narrativa. Onde podemos ir buscar fontes mais credíveis que estas, que nos afastem da propaganda de Netanyahu, que não tem pingo de receio em dizer que vai dizimar tudo? Que usa à descarada armas absolutamente proibidas pelo nível de destruição indiscriminada como o fósforo branco?).
O problema da narrativa é que, para o mundo, uns são terroristas e os outros estão no seu direito de se defender (ainda que nem isto justifique, perante o direito humanitário, o ataque indiscriminado de civis, mas ninguém ouve mais para a frente). Esquecemos e confundimos que falamos de três fações e não duas: o Estado (sublinhe-se a palavra) de Israel, o Hamas…e os palestinianos. Um militar disse na televisão que “esta guerra não é apenas contra o Hamas, mas contra os civis porque eles não nos veem como seres humanos, que nos querem matar”. Há décadas que os palestinianos foram retirados da terra onde viviam, humilhados, espancados, ficaram dependentes de água e eletricidade, são ameaçados (e gozados!) por colonos que lhes destroem as casas para erguer as suas. Todos os dias, isto não de agora. E estou a ser tão sucinta quanto este espaço me obriga.
E isto é assim desde aquele momento em que os alemães só queriam redimir-se pelo que fizeram aos judeus e lhes deram tudo o que eles queriam. Ora, eles queriam uma determinada terra que, dizem aqueles livros super factuais e que documentam provas irrefutáveis, lhes era prometida. E toda a gente sabe que fazer política com base em religião é uma regra básica de uma estratégia de sucesso. Perfeitamente justificável e justíssima.
Quando Gaza desaparecer, quando todos os palestinianos forem mortos, não terá sido o terrorismo que terá sido dizimado, mas toda a humanidade em nós.
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ccbrandao · 2 years ago
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Mulher terias de ser
Mulher terias de ser para saber que tens que aceitar um comentário “positivo” ao teu corpo, ao teu aspeto. Que é um elogio e não se diz dos elogios que não foram pedidos e devem ser recebidos de bom grado. De preferência com educação, com um “obrigada”.
Mulher terias de ser para perceber que as tuas conquistas desportivas, profissionais, pessoais (you name it…) não são absolutas. São “para uma mulher”, são “apesar de seres mulher”.
Mulher terias de ser para não rires quando alguém diz “bates como uma mulher”. Não é “só uma piada”, mas um estereótipo de mente limitada. São gerações perpetuadas de mentes limitadas.
Mulher terias de ser para teres a atitude automática de fechar mais um botão da camisa, puxar a saia mais para baixo, vestir sempre mais uma camisola. Pensar duas vezes no que vestir consoante o sítio para onde vais, a quantidade de homens que lá vão estar, se vens embora sozinha.
Mulher terias de ser para mudar de passeio para evitar cruzar com um grupo de homens ou com um solitário numa rua vazia. Seja noite, seja dia.
Mulher terias de ser para saber que um sorriso a um piropo, a um abuso, ao assédio é apenas medo. É ceder por medo, não é consentir.
Mulher terias de ser para reconhecer a existência de um machismo estrutural. Não importa o “há homens que não”, o “nem todos os homens são”, ou o mais delicioso “já há muitas mulheres que” ou “as mulheres também”. Mulher terias de ser para não perder a paciência e explicar pela milésima vez por que é que existe um Dia Internacional da Mulher e não do Homem.
Mulher terias de ser para ter preparada a resposta que vais dar quando, mãe, saíres à noite e lá vier o “que fizeste à criança?”. Mulher terias de ser para esperar o olhar de esguelha se essa resposta não for “ficou com os avós”, mas sim “ficou com o pai”.
Mulher terias de ser para saber, de antemão, que não importa a dimensão da tua vitória desportiva. No final, do que se falará, do que se falará sempre, é de um beijo. Daquele beijo que não quiseste, daquela atitude que voltaste a desvalorizar pelo hábito, pelo receio, pelo poder tóxico que te esmaga e não te olha ao mesmo nível.
Mulher terias de ser para não te passar pela cabeça aplaudir discursos para lá de machistas: insultuosos, prepotentes, vindos do alto da arrogância de quem acha “momentos de carinho” com jogadoras que estão sob sua direção normal e “consentidos”. Mulher terias de ser para perceber a diferença entre não sentir força para dizer que te sentiste abusada e acreditar que não há qualquer problema. Que já nem se sabe onde está a fronteira. Que, vai-se a ver, e foste tu que deste a entender que não havia barreira.
Mulher terias de ser para veres uma imagem de um homem - “patrão” - a agarrar a cara de uma mulher - “funcionária” - e espetar-lhe um beijo em público e entender, facilmente, o que há para lá dela. Para intuir a dimensão do icebergue.
Mulher terias de ser para perceber facilmente que, para ser considerado abuso, não é o abusador que temos de ouvir e dar palco, mas à vítima. Quando e nos termos que ela considerar oportunos.
Mulher terias de ser para entender por que o primeiro impulso é desdramatizar, mas não deixar de pensar no assunto, que não é correto, que não quiseste, que queres deixar claro que não volta a repetir-se.
Mulher terias de ser para não apresentar queixa por assédio porque te pressionam, te ameaçam, tão simplesmente te dizem, ao mais alto nível, com a força castradora de todos os dias, que não o faças. Mulher terias de ser para saber que nunca o farias sozinha, se não tivesses o apoio - de outras e outros - para o fazer, para te assegurarem que, se não foi consentido, não pode - mesmo - acontecer. 
Mulher terias de ser para perceber o ridículo de organizar comissões só de homens para discutir - e decidir - assuntos que afetam as mulheres. Aqui vale para beijos, interrupções da gravidez, quotas, ocupação de cargos de direção, baixas por mestruação e por aí fora. Ficávamos aqui o dia todo.
Mulher terias de ser para saber que, sim, tens que gritar, partir a louça, organizar manifestações para que eles (e mesmo elas) entendam que não, não é normal. Mulher terias de ser para nunca te cansares de explicar. De explicar que não pode ser normal como sempre te fizeram sentir, como te ensinaram, desde muito cedo, a proteger-te, como ouviste tantas vezes que “uma mulher não deve porque se não os homens”.
Mulher terias de ser para escolher não representar o teu país “só por causa de um beijo”. Mulher terias de ser para saber, tão bem, por tanto, que não se trata “só” de um beijo. Mas de uma vida de poder de um sobre o outro. Ou melhor: deles sobre elas. Nas mais variadas formas.
Mulher terias de ser para dizer: senhor Presidente, tal como 400 vítimas de abusos pela Igreja é um número particularmente elevado, não, esta não é “uma questão menor”.
Mulher terias de ser para saber, claro como água, que há ainda demasiadas vitórias a conquistar.
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ccbrandao · 2 years ago
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Morreram todos
Ainda só há dados relativos ao primeiro trimestre do ano, mas, até ao final de março, havia registo de 441 mortes de pessoas que faziam a travessia do Mar Mediterrâneo em direção à Europa. Aqui não entram as mais de seis centenas que, se calhar vou usar um termo mais correto, “desapareceram” quando o barco onde viajam com mais outras 100 afundou há umas semanas.
Digo “desapareceram” porque não há corpos para confirmar que tenham morrido. Não há corpos porque, obviamente, ninguém andou com grande navios, submarinos ou meras equipas de mergulho à procura de nenhuma delas.
E são 441 as que se sabem. Porque, ainda que essas informações não nos cheguem, há muito mais naufrágios no Mediterrâneo do que queremos imaginar. Experimentem seguir, nem que seja durante uma semana, uma conta no Twitter chamada Alarm Phone. É uma organização / serviço que recebe chamadas de pessoas em apuros no mar. Sim, o esquema é mesmo esse: os traficantes na Líbia dão um telefone satélite às pessoas que põem nos barcos rumo à Europa e dizem-lhes para, se a coisa correr mal, ligarem para a Alarm Phone que eles dão o alerta e alguém os irá ajudar. Verão a quantidade de vezes que a organização reporta o primeiro contacto com estes barcos, às vezes o segundo e terceiro, enquanto tentam que alguma organização - não governamental, claramente - lá consiga chegar a tempo. Podem até, muitas vezes, ouvir as gravações com os pedidos de socorro desesperados. E, demasiadas vezes, a Alarm Phone vai informar-nos do fim do contacto, do rastro perdido porque não havia barcos que pudessem fazer o resgate. “Não havia os recursos”. Porque, todos sabemos, não há mais de 5,9 milhões de euros para andar à procura de pessoas que desaparecem no mar. A menos que sejas multimilionário. E vás em aventura ver os destroços de um barco. Ninguém diz a àquelas pessoas que o recurso em falta é a vontade.
Se não nos devíamos esforçar para salvar a outras cinco vidas? Com certeza que devíamos. No entanto, e estou agora a estudar a área da Ação Humanitária, há uma espécie de “lei” que é colocada aos atores humanitários. Sendo os recursos finitos, para não dizer muito escassos (serão?), há que fazer escolhas e, sabe toda a gente que atua neste meio, a regra é usar os poucos recursos disponíveis no cuidado do maior número de pessoas, a salvar o maior número de vidas. Depois, então, entram questões de prioridade e, com elas, os dilemas éticos, mas o ponto central não tem grande discussão: não vamos gastar recursos para salvar meia dúzia de pessoas quando esses recursos podem estar a ser canalizados para salvar centenas.
Nem tudo é preto no branco. Já todos, em algum momento, fomos confrontados com o dilema do comboio sem travões, em que temos que escolher se ele segue o caminho desgovernado e atropela um grupo de pessoas ou se agimos para que mude o curso e passe por cima de apenas uma. E não há uma resposta certa para isto. Mas qualquer pessoa que trabalhe numa organização humanitária sabe que, no final, há relatórios a preencher, há contas a prestar.
Assim, vamos lá à matemática dos recursos, numas contas muito por alto. Gastar mais de 5,9 milhões de euros no resgate de cinco pessoas atribui a cada uma daquelas vidas quase o valor de 1,2 milhões. Vejamos o exemplo da Médicos Sem Fronteiras, que, em 2022, gastou 8,9 milhões de euros nas 59 operações de busca e salvamento de migrantes no Mediterrâneo. No total, salvou a vida de 3.858 pessoas. Diz a matemática que, só com o orçamento usado numa única operação de busca pelos cinco aventureiros do Titanic, a MSF poderia ter salvado mais de 2.550 vidas.
Portanto, dizem-nos que não existem recursos para missões de busca e salvamento no Mediterrâneo? A única parcela que não entra na equação é a da vontade de salvar 500 pessoas pobres, anónimas e das quais temos medo porque ah e tal nos vão gastar subsídios e roubar empregos, mais aquela coisa ridícula da aculturização. Todos vimos aquela catrefada de barcos no Atlântico, não vimos? Será sempre uma questão de escolha. E escolheu-se salvar cinco pessoas que se puseram naquela situação porque quiseram. Pessoas que podiam, perfeitamente, e mais do que todos nós, estar a fazer mil outras coisas. Sei lá, a não dar trabalho a ninguém ou a não gastar recursos desnecessários já ajudava.
Já agora, os senhores multimilionários, pelos vistos, morreram imediatamente após a tal “implosão catastrófica”. Já as pessoas que morrem afogadas no mar, normalmente, engolem muita água num pânico incontrolável para respirar, antes que o corpo desista de lutar. O corpo infla três vezes o seu tamanho e, muitas vezes, fica a flutuar virado para baixo, em posições curvadas, os dedos e os braços em posição de quem segurava uma criança. Quando as pessoas morrem afogadas são os olhos que os peixes comem primeiro. Impressionante o que 5,9 milhões de euros podem evitar.
Fizemos tudo o que pudemos para evitar tamanho sofrimento, desde o primeiro minuto. Ah afinal eram cinco multimilionários a brincar aos multimilionários aventureiros à procura de destroços de barcos? Se tínhamos que tentar salvar os cinco? Com certeza. Mas a desproporção de recursos é…é muito triste, mundo. Esqueçamos a matemática porque, noves fora nada, a única coisa que importa é que “morreram todos” aqueles 441.
(Mas primeiro, “boa tarde”, que o senhor pivot do Telejornal que abriu o noticiário com esta informação é bem educado e quer que tenhamos uma boa tarde porque, já que estivémos dias seguidos a seguir a operação de salvamento de cinco pessoas que desapareceram no mar porque quiseram ir ver os destroços do Titanic, nós merecemos)
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ccbrandao · 2 years ago
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Meter o nariz em morte alheia
O Presidente da República “promulgou o Decreto n.º 43/XV, da Assembleia da República, tal como está obrigado”. Ou seja, Marcelo Rebelo de Sousa tentou por todos os meios que a lei da eutanásia não avançasse, mas, felizmente, conseguiu-se que a religião do Presidente não metesse mais o bedelho na vida das pessoas. Neste caso, na morte. Se calhar, o que o senhor queria era ir aos hospitais dar abraços e beijinhos e dizer para as pessoas terem força e fé. Felizmente, demos um passo em frente na certeza de que o Presidente da República não é o país e de que não vamos permitir que a decisão última sobre direitos humanos seja baseada em devoções religiosas.
Acho muito importante que se tenha ido ao mais ínfimo pormenor na redação da lei para que não haja um única ponto, uma única ideia, uma só palavra dúbia. Nada contra o documento andar para trás e para a frente para se apresentar sem a mínima questão. Mas, senhor Presidente, senhores da Igreja Católica, senhores fervorosos da religião, este dia ia chegar. E fizemo-lo chegar com todo o rigor das palavras, mas, acima de tudo, com o simples respeito pelo outro. Houvesse um referendo - coisa que não vejo com bons olhos que isto de pôr a referendo matérias de direitos humanos (sim, está por lá qualquer coisa sobre a vida com dignidade) não me parece fazer o menor sentido - estaria lá o meu claro “sim”. Sim, não quero fazer parte de uma sociedade que obriga alguém a estar “amarrado” a uma cama de hospital, em sofrimento, certa de que não quer viver mais, só porque misturamos o Português e chamamos “matar” ao “permitir o direito de morrer”.
Calha que não há uma única linha na lei a obrigar-nos seja ao que for porque os outros têm a liberdade - e, agora, e com mais força, o direito - de escolher morrer como e quando querem. Porque querem. E, imagine-se, não somos obrigados a fazer uso da morte medicamente assistida caso nos vejamos exatamente na mesma situação que a pessoa que optou por ela. Diz lá algures que “a decisão do doente em qualquer fase do procedimento clínico de morte medicamente assistida é estritamente pessoal e indelegável”. Se a vossa religião não vos permite tal coisa, muito bem, todo o respeito do mundo, não a escolham. Acreditem que ninguém vos vai meter nada na veia se algum dia estiverem numa cama de hospital com uma doença sem cura.
E a lei é tão bem redigida e sensata que deixa, claramente, de fora os médicos que não queiram intervir no assunto. “Nenhum profissional de saúde pode ser obrigado a praticar ou ajudar ao ato de morte medicamente assistida de um doente se, por motivos clínicos, éticos ou de qualquer outra natureza, entender não o dever fazer, sendo assegurado o direito à objeção de consciência a todos os que o invoquem”. É que nem precisa de fundamentar. Não quer, não entra no processo.
Portanto, não voltemos a fazer da dignidade um crime. Não dói a ninguém, já viram? É basicamente como o casamento homossexual: permiti-lo a quem queira não vos obriga a casar com alguém do mesmo sexo que vocês. Só vos deixa de lado de uma decisão que não é vossa. Ás vezes tenho dificuldade em encontrar Português que explique o óbvio. Mas parece que, finalmente, o conseguimos pôr na legislação.
Na verdade, de forma muito simples, é apenas: deixem os outros viver ou morrer como querem e metam-se na vossa vida. E na vossa própria morte. Poder escolher como morrer, no limite, é a maior liberdade que podemos alcançar na vida. E há muito que lutámos por essa liberdade. A nossa e a dos outros. Que maravilha de lei, que nem sequer roça naquele argumento de que a minha liberdade acaba quando começa a do outro. A morte dos outros não tem nadinha a ver com vocês.
Lutámos muito - e durante demasiado tempo - por esta liberdade de morrer. Por causa de dois chumbos do Tribunal Constitucional e dois vetos políticos, não chegámos a tempo de permitir a dignidade a muitas pessoas que a desejavam. E isso devia entristecer-nos. Envergonhar-nos. Saber que não permitimos que se acabasse com o sofrimento de pessoas que o queriam, que o pediam, que no-lo imploraram porque só elas sabiam como se sentiam, só elas podiam saber se era ou não o momento. Porque, podendo, tê-lo-iam feito elas próprias. Citando a deputado socialista, Isabel Moreira, “o direito à vida não pode transfigurar-se num dever de viver em qualquer circunstância”.
Devíamos ficar felizes porque hoje sabemos que não vamos falhar a mais ninguém. E que sentimento bom este de tornar a vida de uma pessoa digna porque lhe permitimos - tão só - decidir morrer. Já imaginaram o que seria poderem escolher até o local onde a vossa morte vai acontecer? Não é bom poderem optar por morrer em casa, no vosso lugar de conforto, rodeados das vossas pessoas mais queridas? Um dia, se eu for essa pessoa, não me matem. Mas permitam-me que decida morrer.
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ccbrandao · 2 years ago
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Violência à porta fechada
A ver se eu percebi bem:
Em 2022, 28 pessoas morreram vítimas de violência doméstica em Portugal. 24 mulheres e quatro crianças. Repito: quatro crianças. Mortas vítimas de violência doméstica. Acho que nos lembramos todos, pelo menos, da imagem da pequena Valentina (este caso ainda de 2020) que, com nove anos, terá sido morta à pancada pelo pai, em Peniche. Como nos lembramos da jovem de 20 e poucos anos, Beatriz Lebre, espancada e atrirada ao rio por um suposto pretendete a  namorado.
No último trimestre do ano passado, estavam presas 955 pessoas pelo crime de violência doméstica e mais de 1.400 vítimas recebiam acolhimento pela Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica. Mais de 30 mil “ocorrências” chegaram à PSP ou à GNR. É o crime mais denunciado e o que mais mata em Portugal.
Em 106 dias de 2023, já morreram quatro mulheres dentro das portas da sua casa, agredidas pelos companheiros.
A Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais Contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa implica 98 padres nos 512 testemunhos que conseguiu validar. No mínimo, 4.815 crianças foram abusadas sexulamente dentro daquela instituição de tão boa reputação, lugar para nos penitenciarmos dos nossos pecados, seja em seminários, confessionários ou nas próprias igrejas. A Comissão acrescenta: 4.815 é o número "absolutamente mínimo", a que foi possível chegar. Os testemunhos são medonhos, mas será um número não “particularmente elevado”.
Este fim de semana, uma jovem de 19 anos morreu esfaqueada à porta de um bar em Albufeira. Outros três foram baleados por causa de uma discussão mais acesa no Monte da Caparica. Desde o início do ano, assim de cabeça, ainda me lembro de outro senhor esfaqueado no peito numa rua do Porto, assim como um jogador de futebol, e de outro jovem espancado à porta do Maus Hábitos. E, para sair do litoral, acho que ainda nos lembramos do Luís Giovani, o jovem cabo-verdiano que terá sido agredido por vários homens à saída de uma discoteca em Bragança.
A lista seria infindável, basta abrir o diário sensacionalista que anda aí nas bancas.
Evaristo Marinho, ex-militar da Guerra Colonial, matou Bruno Candé, com cinco tiros, em plena luz do dia, junto a uma esplanada cheia de gente, em Lisboa. Já tinha entrado em discussão com o ator, proferinfo insultos racistas e gritando a ameaça para quem quisesse ouvir: "tenho lá armas em casa do Ultramar e vou-te matar". Assim foi. Além das balas, o senhor de 76 anos, disparou impropérios de encher a boca: "Vai para a tua terra, preto! Tens toda a família na senzala e devias também lá estar!". Arrependimento durante o julgamento? Zero.
Cláudia Simões apareceu-nos pela comunicação social com o rosto completamente desfigurado, depois de ter sido agredida por, pelo menos, um agente da PSP, chamado por um motorista de autocarro por a filha da mulher viajar sem passe. Insultos racistas, claro, não terão faltado: “Grita agora, sua filha da p***, preta, macacos, vocês são lixo, uma merda”. Depois disso, terá sido deixada insconsciente à porta da esquadra. A polícia veio dizer que o estado de Cláudia se devia a uma queda, mas o agente acabaria acusado de crimes de ofensa à integridade física qualificada, sequestro agravado, abuso de poder e injúria agravada. 
E, por falar, em autoridade, há dois anos, Ihor Humenyuk foi agredido e morto no Aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, por três inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Ao fim de 48 horas à guarda do SEF, o cidadão ucraniano foi encontrado pelo INEM em paragem cardiorrespiratória com um hematoma na testa e o corpo com manchas azuis e esbranquiçadas. Terá tido os pés e as mãos atados com fita cola. Só não foi deportado porque, no preciso momento, estava, pasme-se, inconsciente, vindo a morrer no hospital.
Segundo a Procuradoria-Geral da República e a APAV, nos últimos quatro anos triplicou o número de crimes contra idosos. Só no ano passado o Ministério Público abriu mais de 1.800 inquéritos relacionados, maioritariamente, com maus tratos, violência doméstica, burla e abuso de confiança. Multiplicam-se as denúncias de maus tratos e condições miseráveis em lares da terceira idade em todo o país.
Mas desatamos aos berros para que se fechem as fronteiras, para que termine a política de asilo a pessoas refugiadas que só vêm para cá desestabilizar, acabar com este nosso país tranquilo à beira-mar plantado, porque uma pessoa, afegã, em Portugal ao abrigo de um acordo de receção de refugiados, matou outra pessoa, ao que sabemos por ter uma obsessão por ela. Tendo essa pessoa passado sabemos nós lá bem pelo quê e, à custa disso, ter desenvolvido problemas de saúde mental. Mas ah e tal fechem-se as fronteiras que não queremos cá essas pessoas que são todas super violentas e não partilham dos nossos brandos costumes.
É isso?
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ccbrandao · 3 years ago
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Esperávamos, desejávamos, conseguimos, pagamos que é pelos nossos pecados
O coordenador da Igreja para a Jornada Mundial da Juventude, que este ano se realiza em Lisboa nos primeiros dias de agosto, disse que a instituição que representa - vulgo Igreja Católica - não quer, e passo a citar, “passar uma imagem de riqueza, de ostentação, porque isto fere os portugueses e os jovens”.
Depois dos mais (e menos) recentes escândalos que afetam a Igreja, nomeadamente os “não muito elevados” - considera Marcelo Rebelo de Sousa - números de queixas de abusos sexuais contra padres e as várias (e, parece-me, bem sucedidas) manobras para os diluir e fazer esquecer, o Bispo D. Américo Aguiar está preocupado que os muitos milhões de euros que vão ser gastos na construção de dois palcos para receber o Papa na capital possam ferir os portugueses e os jovens (não deixa de ser irónico que esteja preocupado com o que pode ferir os jovens, não é?).
Só a descrição das estruturas megalómanas, mais os apoios e acrescentos, leva os caracteres quase todos que aqui me dão: um dos “altares-palco” ocupa uma área de 5.000 m2, tem uma altura de três andares e custa cerca de 4,2 milhões (sem IVA!), mais uns 1,06 milhões para fundações, mas, calma, vai poder, posteriormente, ser utilizado para outros eventos. Se me conseguirem dar um exemplo de um evento que o país possa receber que justifique um palco daquela dimensão, ficarei muito grata. O outro palco faz-se por mais uns dois milhões, mais coisa menos coisa. Tudo isto muito bem adjucadinho de forma direta, que é para andar mais rápido. E ainda há, por exemplo, mais 1,8 milhões de euros para lugar os sistemas de som e vídeo, que juntam à lista 15 ecrãs (LedWall): três com 12 por 6 metros e 12 a medir 6 por 3,5 metros. Não há-de haver um único lugar em Lisboa de onde não seja possível ver e ouvir o Papa. Nem adianta não querer.
São esperadas mais de um milhão de pessoas durante esses dias (nem vou entrar no preço dos quartos. Ali e a largos quilómetros do epicentro do acontecimento) e eu até acho que esse ponto tem relevância para a economia (local). Mas, convenhamos, quer o palco custe quase seis milhões ou meia dúzia de trocos, quer seja um ou dois palcos, tenha lá a dimensão que tiver, as pessoas vêm na mesma porque - dizem, eu não sei, não é o meu tipo de evento, nunca pagaria viagem para semelhante - é um dos acontecimentos mais importantes da Igreja Católica. Se eu fosse um desses jovens católicos fervorosos, eu queria lá saber dos elevadores e das luzes e sei lá mais que artefactos. E mais um milhão para sanitários? Depois das queimas e outros festivais, tudo isso é luxo que dispensamos para poder ver o cabeça de cartaz.
Eu sei que a avareza é pecado, senhores da Igreja, mas…160 milhões de euros para trazer a Jornada Mundial da Juventude para aqui? 160 milhões? Pelo que foi dito, os contribuintes de Lisboa pagam 35 milhões, os de Loures desembolsam uns dez milhões, a Igreja, essa instituição que segue a imagem de castidade e humildade do Papa Francisco, pega nas esmolas e entra com 80 milhões e o Estado (LAICO, sublinhe-se, mas, pronto, as pessoas que isto traz ao país, vá), ou seja, nós, os outros, que não temos nada a ver com o assunto, mas queremos redimirmos dos nossos pecados, contribuímos com uns modestos 36 milhões de euros (uma percentagem dos quais vai para a requalificação de um parque que, depois da Jornada, vai servir…Lisboa).
Os portugueses, sempre a dizer mal de tudo, ou é porque se faz, ou é porque não se faz, acharam que tantos milhões para uns palcos por causa da visita do Papa era capaz de ser a gozar com os pobres. Que, até calha, nesta altura, com a inflação nos níveis que anda, até são mais do que quando conseguimos (“vitória!” para Marcelo) que a Jornada viesse para cá.
Se eu vivesse em Lisboa e tivesse que pagar 900 euros para alugar um T1 sem qualquer ajuda na renda, talvez ficasse um bocado incomodada que haja tanto dinheiro para dar um palco ao Papa. Se eu fosse uma daquelas 22 pessoas que disputavam um colchão naquela cave que incendiou no fim-de-semana passado na Mouraria, era capaz de estar pouco interessada no suposto retorno que a Jornada Mundial da Juventude poderia trazer para a cidade.
Portanto, quando, perante a indignação que se levantou, o presidente da Câmara de Lisboa insta os portugueses a decidirem se afinal querem que o Papa cá venha ou não, somos muitos a dizer um claro “não”, sem ponta de hesitação. Se pudermos escolher, escolhemos aquela opção em que usam estes muitos milhões a cumprir o suposto propósito mais básico da Igreja Católica: ajudar os mais pobres. E depois, sim, senhor presidente, quando este for um país mais justo e igualitário, com menos diferenças socioeconómicas, aí juntamo-nos ao seu entusiasmo e também dizemos “esperávamos, desejávamos, conseguimos!”.
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ccbrandao · 3 years ago
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Foi no ritmo da tua mão
Que cosi um poema, palavra a palavra
Talvez nunca te dê esta canção
Que só à lua, em silêncio, cantava.
Pedi-lhe luz para o teu sorriso
Que seja doce cada um dos teus dias.
Nada mais - eu sinto - é preciso
Se acreditar que é paz o que sentias.
Deixei-te no parapeito da janela
Um pequeno amor de liberdade
Não sabe fazer contas, não faz de conta
A nossa imaginação diz-me como é de verdade.
Com o vento que faz girar
A fantasia do teu carrossel
Fecho os meus com os teus olhos
Para sentir-te suspirar em tons de mel.
Ao tocar dos primeiros raios de sol
Oiço já longe a melodia que queres dançar.
Não tropeces aqui, meu bem, não apanhes frio
Esta história, sem "era uma vez", vou deitá-la no mar.
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ccbrandao · 3 years ago
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Os direitos humanos e tal
“O Qatar não respeita os direitos humanos, a construção dos estádios, e tal…é muito discutível. Esqueçamos isto, mas não é discutível, é criticável. Concentremo-nos na equipa”. Assim, sem cortes, para não dizerem que tirei as palavras do Presidente da República do contexto. Todos nós dizemos coisas sem pensar bem quando estamos sob pressão, mas o Presidente da República não anda nisto há meia dúzia de dias. Não pode dizer para esquecermos os direitos humanos seja por que motivo for. Muito menos por causa de futebol.
Mas disse. Portanto, com tais palavras, nem temos imaginação para criticar a sua ida ao Qatar para assistir ao jogo da seleção. Até porque o primeiro ministro - que, claro, também lá estará a representar o Governo português, mais o presidente da Assembleia da República - veio deixar-nos mais esclarecidos ao garantir que "quando formos lá, não vamos seguramente apoiar o regime do Qatar, a violação dos direitos humanos e a discriminação das mulheres. Vamos apoiar a seleção nacional". Ah pronto. Então ide, sinto-me muito mais representada por as mais altas figuras da nação estarem a separar as águas. A seleção é a seleção, e os direitos humanos são outra história. Mania que temos de querer pôr os últimos à frente da “equipa de todos nós”.
Até porque, quem tem telhados de vidro, mais vale ficar calado. Que é como quem diz quem tem Odemira ou Beja ou…Também que é isso de uns milhares de pessoas a trabalhar em condições desumanas? Não são números particularmente elevados.
Aos que vêm com críticas de que devia ter sido feito barulho quando a organização do mundial foi atribuída ao Qatar: foi feito. Talvez não se lembrem, mas criticaram-se os interesses, o dinheiro a circular e a impôr-se ao jogo que devia ser só paixão, denunciou-se um regime opressivo, discriminatório, a corrupção que envolvia tantos outros. E, no fim, ganharam os mesmo de sempre. Mas a crítica não parou. Vocês é que veem uma bola à frente e ficam cegos.
O que vale é que o presidente da FIFA está do lado das vítimas do regime catari. Gianni Infantino sabe o que é ser discriminado, vítima de bullying num país estrangeiro, por ter o cabelo ruivo, sardas. Ele sente-se qatari, árabe, africano. Até gay ele se sente. Deficiente. Um trabalhador migrante, imagine-se. E, coitado, nem lê as notícias para não ficar deprimido. E nós a achar que a FIFA se move por dinheiro, com um presidente tão…sensível.
Agora parece que as parcas e muito tímidas críticas portuguesas ao regime do Qatar nos deram um honroso lugar na “lista negra” daquele país. Diz-se que haverá consequências políticas, económicas e ao nível da circulação de pessoas entre os dois países. Para mim, vale mais do que um golo do Éder na final de qualquer campeonato.
Claro que o Qatar não é o único país autocrático (e tal) a receber grandes competições desportivas. Claro que devemos criticar todos, aproveitar estes momentos para trazer à luz aquelas realidades. Este é o momento do Qatar. Dizem que daqui a uns anos estaremos a criticar a realização do campeonato do mundo na Coreia do Norte. Pois pode ser que dessa vez o consigamos impedir.
Pelo Qatar, uns tímidos protestos vão sendo feitos pelos jogadores de alguns países. Depois do joelho no chão pelos ingleses (que, à última da hora, tiveram medo de levar um cartão amarelo caso envergassem a braçadeira “One Love”), os alemães taparam a boca para a foto oficial, denunciando a opressão e a censura da FIFA e do governo do Qatar desde antes do início da competição.
Depois da derrota frente ao Japão, um jornalista mandou a mensagem: “foquem-se no futebol��. Quase parecia o Presidente da República português. O mundo era um paraíso se todos nos focássemos só no futebol. Se fosse possível e justo que a nossa maior preocupação fosse uma derrota da Alemanha frente ao Japão. Naquela partida, os melhores jogadores em campo foram os alemães. Se é que alguém pode, verdadeiramente, dizer que há vencedores neste campeonato da injustiça, da escravidão, da discriminação, do dinheiro acima de tudo.
Eden Hazard, da Bélgica, disse que estava ali para jogar futebol e não para mandar mensagens políticas, que outras pessoas o podiam fazer, não os jogadores. E disse mais. Disse que “não queria começar um jogo com um cartão amarelo, seria chato para o resto do torneio”. Chato? Chato é apanhar uma molha descomunal para ir ver o Espinho. Levar um cartão amarelo por levantar a voz por uma causa é o mínimo que atletas com a projeção dos escolhidos para representar um país num campeonato do mundo podem fazer. Já que ali estão. Já que não tiveram a coragem, a dignidade, a humanidade de dizer “não”. De não pôr os pés numa competição possível apenas graças a trabalho escravo, já que não têm o mínimo pudor em festejar um golo num estádio cuja construção levou à morte de demasiados. Enconder a palavra “amor” das camisolas porque “a FIFA não deixa” não é chato. É cobarde.
Porque os alemães, os belgas, os ingleses levariam um cartão amarelo se levantassem a voz, se usassem uma braçadeira, se mostrassem mensagens por baixo das camisolas. Mas sabem o que pode acontecer aos jogadores do Irão que se recusaram a cantar o hino? Temos sequer a lata de imaginar? Já que em coragem e dignidade estamos a levar abada. Fossemos todos assim: já que não deitámos este campeonato abaixo à nascença, que o usemos para o protesto. Os olhos do mundo estão todos ali. No vestido LGBTQIA+ da ex-primeira ministra da dinamarca. Na braçadeira “One Love” da ministra do Interior alemã. Nos pequenos gestos que todos podem assumir sem medo de sançõezinhas da treta. E nos grandes gestos como a lição dos iranianos que nos calam a todos, mais as nossas desculpas. Afinal, parece que isto do futebol são 11 contra 11 e, neste mundial da solidariedade, do protesto, do assumir de uma posição contra a tirania, no final, ganha o Irão.
Como reforçou o Rodrigo Guedes de Carvalho, “sem esta noção básica de tolerância o caminho para outros perigos à liberdade fica aberto e a história já nos deu muitas lições". Siga a bola.
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ccbrandao · 3 years ago
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A vida são dois dias. Mas o luto são três.
A vida são dois dias, o luto são três, e as transmissões televisivas com pivots e repórteres com voz embargada são intermináveis. O nosso Jorge Sampaio levou com um dia de luto e já foi com sorte. Assim como as vítimas da Covid-19, mas essas vamos esquecer facilmente.
Os britânicos estão de luto depois da morte da Rainha Isabel II. Quer dizer, nem todos os britânicos estão de luto pela morte da monarca que mais tempo esteve no “trono”. Como aliás  - viu quem quis - mostraram as várias imagens de malta que é absolutamente contra esta coisa arcaica (para não dizer ridícula) de ainda haver monarquia. Mas esses, os dos cartazes a dizer que ninguém elegeu aquela malta, foram detidos. Um perigo para a sociedade dos privilégios instalados. Não é que todos os britânicos idolatrem a coroa. É que, pelos vistos, os que pensam por si, não podem pensar de forma contrária à máquina real. Quem for contra a existência da coroa está a dividir o país. Porque aquilo é uma democracia, mas já se sabe quem manda.
Consideramo-nos evoluídos e olhamos para os dias de hoje e gostamos de engrandecer a ideia de que somos contemporâneos, que a sociedade vive hoje respeitadora da soberania dos Estados e porta-estandarte da democracia (quer dizer, menos os russos na Ucrânia e os americanos (mais os netos de sua majestade no meio das tropas) no Iraque e no Afeganistão, mas isso são outros temas). Mas continuamos a celebrar aqueles que representam o domínio imperial, a colonização, a escravatura. Nada como uma boa história de rainhas e princesas para fazermos de conta que isso não teve relevância, e muito menos consequências. Príncipes acusados de abusos sexuais? Quase soa a romance literário, na verdade. Onde é que já vimos todo este branquear de atrocidades, floreado com conceitos de conquistadores e difusores da civilização? Nos livros da nossa própria História, que mostram o Brasil, Angola, Moçambique como lugares onde fomos pregar os (nossos) bons costumes, e impor a nossa realidade e forma de vida.
Diz, quem não nega, que os atos de “ensinar boas maneiras” aos nativos, a exploração dos recursos de países como a Índia, os campos de trabalho escravo, as torturas perpetradas por militares, a repressão a homossexuais, a desculpabilização de criminosos são coisas do passado. Ou pior, inventadas.
E, claro, é pleno de sentido celebrar o “mais longo governo, reinado (o que lhe queiram chamar) da História”. Sim, daqueles conquistados por mérito, sufrágio e escrutínio contínuo. Ah não foi desses? É que a mim parece-me até de valor celebrar quem consiga a proeza de viver até aos 96 anos, claro que sim. Agora, ter estado no trono por 70 anos? Lá está, sem ir a eleições, a única proeza de Isabel II foi manter-se viva. Sem ir a votos pelo povo é fácil.
É claro que, dir-me-ão, mesmo que fosse a eleições, os britânicos têm uma adoração tal pela figura que lhe dariam uma esmagadora maioria absoluta. Sim, há muitos países assim, onde se vota com base em propaganda, em lavagens da imagem e camuflagem ou distorção de eventos. Ditadores desse tipo, com anos de governo também não faltam.
A rainha de Inglaterra, líder da Commonwealth, teria hoje poderes mais limitados. Terá mesmo? Na teoria, sim. No papel, com certeza. Mas e a influência, também é mito? Pode não governar, mas manda muito. A serventia que tem hoje não justifica o perdão pelo que fez. Vendeu o projeto colonial, o racismo justificado e há quem continue a apelidar isso de grande feito.
Espanta-me que os britânicos, que se pisgaram da União Europeia fartos de ver países menos ricos a beneficiar da pertença de um país rico como o Reino Unido, achem normal sustentar uma família real. Ver tanta riqueza, tanto privilégio, tanta mordomia, ouro, palácios, coches e sei lá mais o quê, numa relação com a balança pouco ou nada equilibrada.
A morte de Isabel II é o fim de uma era. Esperamos que seja o princípio do fim da monarquia, dos privilégios. Ainda temos uns aninhos do filho - aquele que a única coisa que fez a vida toda foi esperar até ao dia em que seria rei - e pode ser que esta fantochada se vá diluindo e perca o “glamour”, a devoção cega e assustadora.
Que os três dias de luto nacional tenham sido pelas vidas, e futuros ainda para lá da velhinha com ar simpático, sentido de humor e que gosta muito de cãezinhos (de raça, não há cá rafeiros) e de nós, que o regime imperial destruiu. Lamentamos sempre a morte, mas lamentamos todas por igual. Longa vida ao povo e a quem por ele luta.
Estes três dias de luto nacional mostram como ainda não estamos preparados para trazer à luz o nosso próprio papel como país colonizador, explorador, usurpador. Para admitir como isso não nos torna “heróis do mar”, nem uma “nação valente e imortal”. Para passar da narrativa do mundo desenvolvido a trabalhar para a prosperidade do mundo subdesenvolvido para a assunção de que fomos - e somos - um país que explora e tantos ainda são os explorados do nosso privilégio.
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ccbrandao · 3 years ago
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O discurso do ódio, o ódio pelo discurso e o discurso contra o ódio
Tenho tendência a acreditar na eficácia dos discursos, no poder da palavra. E, defeito de formação ou não, maravilho-me com a capacidade de alguns em coser tão bem as palavras umas às outras que fazem delas verdadeiras obras de arte. Ao mesmo tempo que me entristece como outras as usam ao desbarato, sem o mínimo cuidado com a força que têm.
Volto de quando em vez ao discurso de tomada de posse de Augusto Santos Silva na Assembleia da República. Consigo encontrar sempre mais, maravilhar-me com a mestria com que coseu as palavras e, com elas, as mensagens. Tão certeiras ambas. Um grande discurso contra o ódio deve ser assim: inteligente a ponto de deixar sem palavras as pessoas a quem se dirige.
Os mais marcantes discursos são aqueles que começam por nos baralhar, por nos fazer achar que o que está a ser dito não leva a lado nenhum…e terminam na genealidade. Porquê tantas voltas à volta da Língua Portuguesa? Porque “o patriotismo só medra no combate ao nacionalismo”. Cada um enfia a carapuça que lhe serve. E continua: “Basta pensar na incrível força desta Língua de tantas pátrias para entender da forma mais profunda que o bom requisito para ser patriota é não ter medo de abrir fronteiras, de integrar migrantes, de acolher refugiados”. De repente está lá tudo, como uma valente chapada.
Estou totalmente de acordo que “esta nossa Língua não é para vociferar fórmulas vazias (...) soam postiças as frases que atiram pedras em vez de argumentos e que cegam em vez de iluminar”. Mais: “as palavras não precisam de ser gritadas porque a qualidade não se mede em decibéis”. Santos Silva tem depois aquela tirada que devia ser emoldurada e pendurada acima da sua cadeira no Parlamento: “o único discurso sem lugar aqui há de ser o do ódio”. Ele ainda explica, mas nem precisava, ouviu-se com estrondo.
Tanto não terá lugar que, dias mais tarde, o mesmo Santos Silva haveria de calar novamente o ódio com palavras: “não há atribuições coletivas de culpa em Portugal. Continue”. Não é forte? Só podemos aplaudir.
Quando se confirmou que o presidente ucraniano Volodymyr Zelenskyy iria falar na Assembleia da República, o PCP opôs-se imediatamente. As palavras escolhidas? Disse a líder parlamentar que “a Assembleia da República não deve ter um papel para contribuir para a confrontação, para o conflito, para a corrida aos armamentos. O seu papel deve ser em defesa da paz". Depois do discurso do ucraniano, escolheu a palavra “insulto” para falar da referência de Zelenskyy ao 25 de abril. Insulto é, na minha opinião, uma palavra que traz consigo um mundo de péssimos sentidos. Há palavras assim e a sua escolha nunca deve ser leviana. Eu questiono se Paula Santos tem noção do significado das suas palavras. Zelenskyy falar ou não falar aos deputados portugueses, penso, não fará a maior das diferenças, a posição do Governo está tomada, mas…recusar-se a ouvir o homem? Ninguém lhe pede que aplauda, mas não estar presente, isso sim, vale mais do que todas as palavras que se utilizem para justificar. Ou a falta delas, porque Jerónimo de Sousa, há dias, teve uma enorme dificuldade para encontrar palavras para dizer que não havia uma invasão, mas uma guerra, consoante as imagens que recebia. Coisas assim tão “óbvias” deveriam ser mais fáceis de dizer, acho.
A dirigir-se aos deputados portugueses, Zelenskyy optou pelas palavras cruas. Sabe que falar ao Parlamento português não é apenas falar ao Parlamento português, mas mais uma oportunidade de informar o mundo sobre o que está a acontecer na Ucrânia. Decerto não está à espera que seja Portugal a liderar qualquer ajuda, em armamento ou sanções. Fez comparações com as dimensões das cidades do Porto e Lisboa, lembrou como estávamos a dias de celebrar o dia em que acabámos com a ditadura no nosso país (como eles querem evitar que ela se materialize no deles), porque sabe que a proximidade impele à ação, mas optou por ser cru e direto na intervenção, informou sobre os útlimos acontecimentos e pediu ações muito concretas, sem floreados, sentimentalismos ou idealismos. Se calhar era destes que estávamos à espera, mas o homem tem um invasor a entrar-lhe país adentro e milhares de pessoas a morrer. Não tem tempo.
Da minha admiração pela força das palavras, guardo o que ecoou deste lado (e gostaria que ecoasse mais longe): “Liberdade, direitos humanos, Estado de Direito, igualdade para todos os homens e mulheres, e a oportunidade de viver livremente e sem nenhuma ditadura para que todos tenham sempre tempo para a felicidade e a saudade”. Leiam novamente, com as imagens que chegam a toda a hora da Ucrânia: “tempo para a felicidade e a saudade”. Não são palavras vãs.
Como não são as palavras “dever moral e político de ajudar a Ucrânia”, escolhidas para a reposta de Santos Silva. Como gostava que não fosse vã a ideia de que “a chave da nossa política externa é o amor pela liberdade” e a promessa (as promessas ficam ótimas em palavras) de que Zelenskyy “conta com a nossa defesa intransigente [atenção ao poder desta palavra, estaremos aqui para comprovar] das leis que regulam as relações internacionais e o direito à independência e soberania nacional”. Agora isso de que “estamos sem hesitações nem ambiguidade pela Ucrânica” e de que existe uma “unidade nacional em torno do apoio” ao país... Bem, grandes discursos se fizeram com base em ironia. Comunicar para dentro quando se fala para fora é uma arte. Para escolher palavras, e a sua força, fiquemos com estas: “Não somos ingénuos. Para ganhar, precisamos de ganhar a paz, fazer frente à agressão e de forçar o agressor a parar (...) À luta pela liberdade, Portugal nunca falhou, não falta e não faltará”. Promessas de palavras bonitas? Eu prefiro ver-lhes a força da vinculação.
Que os discursos mais importantes da História sejam lidos repetidas vezes, para percebermos se a força e o sentido das suas palavras se manteve inabalável ou se o tempo os dissolveu para lá do momento. As palavras raramente são apenas palavras.
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ccbrandao · 3 years ago
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Fico em mim
Esta noite fico em mim
Inventei uma história para me aconchegar
Vou deitar o meu coração na almofada
Dar-lhe o teu colo para ele sonhar.
Esta noite fico só de longe a olhar
A forma que dás a esse embalo
Os nomes que escolhem juntos para as estrelas
E o silêncio que escolheste para cuidá-lo. 
Tenho cores, melodias, o mundo inteiro
Tenho tamanha inocência para vos oferecer
Guardo tudo na caixinha da vontade
Esta noite tenho medo do que não me deixas esquecer.
Segura agora a minha mão
Fechamos a porta e saímos devagarinho
Olha um momento para trás, vês o desenho de um sorriso? 
Esta noite o meu coração já sabe dormir sozinho.
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ccbrandao · 3 years ago
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Minha senhora, aqui é que é a guerra de 2022?
Raul Solnado tinha uma adaptação particularmente bem conseguida de uma rábula do espanhol Miguel Gila. Em “A Guerra de 1908”, conta-nos sobre a “sua” ida à guerra, de táxi, depois de ter visto, no jornal, o anúncio para um “soldado que mate depressa”.
Era uma guerra com regras, claro. Só abria às nove da manhã, tinha uma senhora a vender castanhas à porta e um calendário rígido: “eles bombardeavam às segundas, quartas e sextas e a gente bombardeava às terças, quintas e sábados. E lá íamos morrendo”. E imagine-se que até havia leis que terminavam com a guerra, como o facto de lá ir o fiscal e decretar que a guerra tinha que acabar porque “a gente não tinha licença de porte de armas”. O público, naquele outubro de 1961, no Teatro Maria Vitória, ri a cada frase a propósito de uma guerra tão arrumadinha.
Já não se fazem guerras como antigamente. Podemos voltar a estes dias em que as coisas eram mais bem organizadas? Como dizia Solnado numa outra rábula, “vocês deram algum tiro na segunda feira? É que foi acertar num senhor bexigoso que não é da guerra. Isto não são brincadeiras que se tenham”. Não são. Acertar em civis que fogem não são “brincadeiras” que se tenham. Destruir maternidades, hospitais. Abrir corredores direitinhos para o lado do inimigo. Não são “brincadeiras” que se tenham. E “quantos é que vêm?”, pergunta Solnado, “não sei se temos balas que dê para todos”. Não têm, não têm balas, não têm misseís, não têm grande coisa com que se defender, nem têm a União Europeia, os Estados Unidos, a NATO. Não estará esta guerra mal organizada?
Ideal, então, era telefonar ao inimigo. “‘Tá lá? É do inimigo? Vocês podiam parar a guerra aí um bocadinho? Tenho aqui um colega com dores de cabeça”, parodiava Raul Solnado. Podiam parar a guerra um bocadinho? A Ucrânia tem homens que pouco ou nada percebem disto na linha da frente, cheios de medo, fartos de uma luta que não quiseram, que não entendem.
E já que foi criada a expressão - ou pleonasmo - “crime de guerra”, ou seja, a determinação do que se pode ou não fazer numa guerra, a ver se, como apela a rábula de Solnado, a coisa se organiza, podemos também organizar um bocadinho melhor a nossa veia solidária? Eu sei que as imagens que nos chegam nos dão vontade de arregaçar as mangas e fazer tudo, doar tudo, fazer chegar tudo. Eu sei porque foi isso - uma imagem, a do pequeno Alan Kurdi na costa -, que, em 2015, me fez organizar, com uns amigos uma mega campanha de doação de bens para entregar nas fronteiras europeias onde chegavam refugiados. Enchemos dois camiões e um contentor com roupa, alimentação e afins. Recebemos milhares de ofertas de ajuda, em doações e em braços mesmo.
Também recebemos inúmeras coisas que não servem a ninguém, todos temos aquele saco de roupa que já não vestimos, encostado, à espera de uma campanha deste ou outro género. Que fácil é desfazermo-nos de roupa e calçado que já não servem. 
Mas também há o oposto. Pessoas que vão ao supermercado e compram comida de bebé, massas, leite, enlatados como se não houvesse amanhã. Dois conselhos muito rápidos: primeiro, o que não serve a nós, não serve aos outros. E as necessidades de roupa são muito específicas. Segundo, esse dinheiro gasto no supermercado? Transfiram-no para uma organização que esteja a trabalhar no terreno para onde vão enviar os bens. Eu sei que dar dinheiro tem em nós um menor impacto, não é palpável, mas, acreditem, é o mais necessário para quem está a organizar a ajuda a refugiados.
É o que digo a todos os que me perguntavam como podiam ajudar a sério, já que eu, já em 2019, estava de corpo presente na Grécia a receber refugiados, e as pessoas se sentiam longe demais para ajudar. Façam donativos em dinheiro. Há coisas que é preciso pagar para a operação funcionar diariamente e, se pudermos comprar bens lá, é melhor para todos: para a logística e para a economia de quem leva com aquela situação pronta adentro (além do custo do transporte e do muito que se estraga até lá chegar). É o que tenho dito sempre, depois de ter acompanhado os camiões que enviei, depois de estar no terreno e ter percebido a dificuldade de armazenar a enormidade de coisas que lá chegam. Sabem que não são apenas os portugueses a enviar roupa e alimentação, não sabem?
E sabem também que tudo isso também vai ser preciso aqui, e durante bastante tempo? Quando a Rússia deixar a Ucrânia (porque é isso que acreditamos que vai acontecer um dia) os ucranianos que aqui recebermos não vão voltar a correr porque…não haverá casas, ruas, universidades, empresas, comércio, serviços para onde ir a correr.
E isto por cá, bem organizado, tantas doações, tantos empregos, tantas casas, até número de contribuinte, Segurança Social e de utente na hora, plataformas aos montes, vai-se a ver e com jeito ainda dava para afegãos, sírios, somalis, iemenitas e outros tantos. Se calhar até esses cabem nas caravanas que se organizam para ir buscar refugiados para trazer para Portugal. A nossa bondade não deixa de me emocionar. Mas organize-se a força desta ajuda para que chegue a tantos mais. Acima de tudo para que chegue verdadeiramente. Parece que, afinal, mostrámos a nós mesmos que é possível receber estas pessoas.
Organize-se esta ajuda para que não esmoreça com o tempo. Lembremo-nos que a necessidade não é só o imediato, que há vidas a continuar a viver quando o impacto esmorece, quando o nosso impulso deixa de ser ativado pelo mediatismo. Que quando a nossa vontade desmedida, imediata e humanamente caótica se desvanecer, porque é isso que acontece, estas vidas ainda precisarão de ajuda. Para fortalecer uma integração que é feita todos os dias, para oferecer empregos que não sejam para colmatar necessidades de sazonalidade, para pagar casa quando os apoios virem os prazos terminados, para os momentos em que a saúde quebrar, a física e a mental. Se acharem que não estão, neste momento, a fazer suficiente, lembrem-se que não vamos ser precisos apenas “neste momento”.
Organizemo-nos hoje e todos os dias daqui para a frente, que há tanto “para a frente” para enfrentar. Nesta batalha dos ucranianos, que é nossa, como nas de todos os outros que fogem. Vimos como a guerra estalou “de repente” na Europa? Um dia poderá ser a fome, a destruição da economia, as consequências das alterações climáticas, as perseguições por grupos extremistas. Não estamos longe. Liguem ao inimigo para organizarmos isto.
(Ainda assim, tenho que assumir que a palavra que usei até aqui não é a correta. Nem sou eu que o digo, é o dicionário. Se não vejamos: «invasão»; nome feminino; ato ou efeito de invadir; tomada ou ocupação militar de um lugar ou território; entrada hostil ou intrusiva em. Corresponde? Então sejamos rigorosos e não difundamos desinformação.)
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ccbrandao · 3 years ago
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Primeiro eles vieram pelos cabeleireiros, mas eu não fiz nada
Ainda os taliban não tinham entrado em Cabul e as paredes da cidade correram a ser tapadas sempre que tinham rostos de mulheres a fazer publicidade. Correram cabeleireiros, salões de beleza, ginásios, marcas de roupa. Uma conquista - por aqui um dado adquirido - com cerca de duas décadas apagava-se, assim, com tinta branca, em segundos. É aquela história do “primeiro eles vieram pelos cabeleireiros e eu não fiz nada porque achava isso supérfluo…”. Como supérfluo talvez seja também casamentos forçados, mulheres obrigadas a largar os empregos para ficar em casa, raparigas impedidas de ir à escola, jornalistas perseguidas, o corpo, o cabelo, os olhos tapados para não suscitar o desejo nos homens. Um dos líderes dos taliban disse que as mulheres iriam poder trabalhar, “fazer parte da sociedade” - imagine-se! - mas dentro da sharia, a lei islâmica. O que, na prática, quer dizer: nós decidimos a vossa vida, volta tudo ao que era. Mas até essa miragem já foi desfeita e jornalistas mulheres foram proibidas de entrar nas redações, enquanto professoras e alunas correram a queimar anos de estudo e artigos já à espera que lhes entrem em casa à força à procura de provas de heresia.
Quando os radicais não estavam no poder, as afegãs até foram aos Jogos Olímpicos. Agora, as jogadoras da seleção de futebol não saem de casa porque já foram ameaçadas e ainda só se passaram uns dias desde que o grupo conquistou Cabul. Os relatos falam em muitas mulheres escondidas em casa com medo de sair à rua, mas as imagens também nos mostram outras que desafiam o que aí vem - ou já aí está - e saem para protestar. Têm uma coragem que nós não compreendemos porque sempre que queremos sair para protestar, não nos passa pela cabeça levar um balázio ou ser espancados.                                                                                                                                      Querem trabalhar, estudar, enfim, viver como as pessoas normais, fazer parte e, assim, contribuir. E estavam a consegui-lo e, dessa forma, a tornar a sociedade melhor porque só com homens e mulheres nas escolas, nas universidades, nas empresas, nos lugares de decisão e de poder, no entretenimento é que podemos achar que a missão está cumprida. Ainda hoje o Dia da Mulher continua a ser importante, não para celebrar aquelas que têm carreiras maravilhosas e vidas de grandes conquistas, mas por aquelas a quem até sonhar é vedado. Por aquelas que têm menos valor que um homem.
Mas pronto, o que vale é que o Afeganistão é longe, é outro mundo. E, na verdade, eles até apoiam o regresso dos taliban contra o imperialismo norte-americano, portanto...estavam a pedi-las, não é? Porque é que eu aqui hei-de ser solidária e promover a vinda destas mulheres para Portugal, para que tenham uma oportunidade como eu tive? No fundo, quem é que quer saber do Afeganistão (a não ser, claro, as influencers de Instagram que, ao que parece, andam com transtornos de 15 segundos - o tempo de uma story)?
Nós por cá, que vivemos em democracia - sim, vivemos - não olhamos para as mulheres assim. Vêmo-las como iguais: os mesmos direitos, as mesmas oportunidades. Tudo certo, não é?. Pois digam-me, então, porque é que, em 33 candidatos a um posto de liderança nestas próximas eleições autárquicas, eu tenha contado apenas nove mulheres? Nem chega a um terço. Há algumas nas listas, claro, essa coisa do cumprimento de quotas afinal parece que tem que ser, mas e os lugares de liderança? Três partidos e um movimento apresentam mulheres para a Assembleia Municipal e uns impressionantes zero escolhem-nas como candidatas a próxima presidente da Câmara Municipal. O que me leva a pensar que, na ideia de quem escolhe, elas servem para organizar a “casa”, para encontrar o equilíbrio entre as forças, mas não para assumir o comando do navio.
Vamos lá ser objetivos: a câmara em Espinho alterna apenas entre PS e PSD. Portanto, quando outros partidos apresentam candidatas ao cargo, já sabem que o objetivo não é que elas se tornem presidentes, mas apenas ver se entram e lá fazem algum barulho (barulho, entenda-se, agitar as águas, não deixar que a política na cidade siga sempre o mesmo rumo. Não é barulho de fogo de artifício). E porque são apenas nove nomes, até me dou ao (pouco) trabalho de enumerar as restantes candidatas: duas à Junta de Freguesia de Silvalde, uma à de Espinho, uma à de Anta, e uma única também a Paramos. Nisto da igualdade, parece que a fotografia sai com melhor qualidade para os lados da CDU (apresenta quatro candidatas mulheres em seis corridas em que participa. Claro que nenhuma concorre à câmara municipal). Não, eu não me identifico com um cargo político, não tenho perfil, e quero contribuir de muitas outras formas. Não quero ser líder de cargos de índole alguma. Mas gostava de acreditar que só não vejo mulheres como candidatas à Câmara de Espinho porque elas também não querem (e aí tudo bem). Mas duvido. “Elas não aparecem, não se envolvem muito na política” (um dia sentamo-nos e discutimos o conceito de carga mental, pode ser?). No dia em que PS ou PSD acharem que uma mulher pode ser, efetivamente, presidente da câmara - e a não ser que seja alguém com quem tenha uma intransponível falta de sintonia de ideias - tem o meu voto.
Porque primeiros eles vieram pelos cabeleireiros, mas eu não fiz nada porque achava isso supérfluo. Depois vieram pelos lugares de liderança, mas eu não fiz nada porque pessoalmente não ambicionava a eles. Quando vieram pelos meus sonhos, pelas minhas ambições, pelas minhas escolhas e liberdades, e já não havia por que lutar.
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ccbrandao · 3 years ago
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Umbigos pela verdade
É possível que já vá tarde e que já tudo tenha sido dito sobre este tema, mas eu continuo a surpreender-me com a insistência do ser humano. Por isso, vou dar-me ao trabalho. Ainda não me cruzei com nenhum estudo que se tenha debruçado sobre a correlação entre negacionismo e fake news, mas quase que aposto que sei o resultado. Quanto mais negacionista, maior a tendência para acreditar e - pior - espalhar notícias falsas. Ora aqui estão dois termos que nunca pensei ouvir. Deparei-me com o primeiro - negacionista - pela primeira vez por causa da pandemia. E, sinceramente, não sei bem o que seja. É, muito resumidamente, uma pessoa que se nega a acreditar em alguma coisa, independentemente do que for, se vir que a maioria da população acredita? Ou o problema é a fonte ser o “sistema”? A dúvida é genuína, mas exemplos com que me deparo vão tendendo para uma conclusão: um negacionista é uma pessoa que se recusa a seguir toda e qualquer ideia que lhe limite a liberdade, que lhe atinja os quereres e, portanto, o ego, lhe ponha em causa o livre-arbítrio e a tão intocável e imaculada liberdade de expressão.
Eu, além de tudo, acho que ser negacionista deve ser uma canseira. Tentar encontrar teorias da conspiração em tudo, explicações mirabolantes para as imagens que estão mesmo ali à frente dos olhos, e ainda perder tempo a partilhar semelhante nas redes sociais dá mais trabalho do que tentar verificar a veracidade de uma notícia.
No início, quando se começou a falar de um vírus potencialmente letal e com forte capacidade de transmissão, eu também partilhei no Twitter um vídeo de um jornalista a explicar que não havia necessidade para alarmismo. O típico “é só uma gripe”. Era um jornalista, de uma televisão italiana, à partida tinha tudo para ser credível. E depois é o que se sabe dessa “gripezinha” (para nós, não negacionistas). A verdade é que, naquela altura, partilhei sem olhar ao contraditório, sem procurar outras fontes. Erro tremendo.
A minha área é a do jornalismo, da comunicação. Se me perguntarem, talvez esteja mais preparada para falar de questões de ética jornalística, pressão para publicação antes de todos, até liberdade de imprensa do que muitas pessoas. Mas não sou especialista em nada disso. Um jornalista também não é especialista em doenças infectocontagiosas (ou em qualquer área da medicina). O que ele faz é perguntar a quem é - a mais do que uma pessoa, se quiser ser rigoroso - e partilhar essa informação com as pessoas, contextualizando-a sempre. Pergunta: porque é que há quem receba isso e ache que é tudo mentira? Porque viram na internet? Porque lhes dá a volta aos planos para o fim-de-semana?
Aqui entra a questão das fake news, outro conceito que nunca pensei ouvir (sempre aprendi que se é “fake” não é notícia). Portanto, um negacionista acha que um órgão de comunicação social lhe dar imagens de hospitais no limite e pessoas a ser cremadas aos magotes na Índia é “fake”, mas um fórum na internet vir dizer que o Bill Gates anda a pôr chips dentro das pessoas que são vacinadas já é credível? Tenho que admitir que o vosso enredo é muito mais chamativo, isso é, mas...
Faz-me lembrar aqueles filmes de terror incrivelmente macabros, ou cheios de teorias da conspiração com desenvolvimentos demasiado intrincados para serem verossímeis, e acontecimentos que nos fazem pensar “só mesmo nos filmes”, até nos lembrarmos que aquele argumento saiu efetivamente da cabeça de alguém, que houve pelo menos uma pessoa no mundo a quem aquela ideia ocorreu. Há quem faça filmes com isso. E há quem traga o argumento para a vida real.
Ora o paradoxo não deixa de ser interessante (porque chamar-lhe ridículo pode ferir suscetibilidades e estas pessoas são muito dadas a crer que tudo é um ataque que lhes é dirigido). Um negacionista não acredita nas instituições, na comunicação social, nem sequer nos médicos que se dão ao trabalho de ir à televisão explicar por miúdos porque é que este vírus mata tanto e o que podemos fazer para o travar. Por outro lado, acredita cegamente no que lê em sites que não são escrutinados, em fóruns onde toda a gente diz o que lhe apetece, em mensagens reencaminhadas 2834837 vezes no whatsapp. É isso? Também ninguém disse que a coerência era qualidade que lhes assistisse.
No fundo, tudo vai dar à ideia de que nos querem controlar, roubar, usar para fins obscuros, lucrar enfim. Um negacionista não pensa com a cabeça, nem muito menos age com o coração. Dali, vem tudo exclusivamente do próprio umbigo.
Não sei, e gostava muito de saber, como se argumenta com estas pessoas. Os factos, a verdade, os exemplos não lhes dizem nada. Eles sabem a verdade, a eles ninguém os engana, ninguém lhes tira a liberdade, porque eles não são “carneiros” para andar atrás do rebanho. Beliscar o ego destas pessoas tem o efeito a que vamos assistindo: as festas com dezenas de pessoas, as manifestações “pela verdade”, os jantares que acabam com os clientes presos em esgotos no exterior de restaurantes. Os discursos do “a mim não me enganam” à procura de likes nas redes sociais. O desprezo pelo sacrifício de tantos que - sabem? - também gostávamos de andar mais livres, não fosse isso pôr tudo em causa e, enfim, sei lá, matar pessoas. E deixá-los, a estes negacionistas, a estes donos da verdade e umbiguistas, andar na sua realidade paralela é mais perigoso do que a nossa inércia ou ignorância gostam de acreditar. 
No fundo, o trabalho a que me vou dar aqui é este, o da insistência para não se deixarem cair nisso das fake news, e para não serem vocês um “carneiro” negacionista. É fácil, no fundo: leiam mais do que o título. Se uma notícia parecer “bombástica”, desconfiem. Se não encontrarem essa notícia em nenhum órgão de comunicação social, não partilhem. Esperem um tempo antes de começarem a lançar pedras: vejam mais à noite no telejornal ou leiam o jornal do dia seguinte, quando os jornalistas já tiveram tempo para confirmar as informações. Só precisam de deixar de lado a vontade de gritar “eu é que tenho razão, a mim ninguém me engana, nem me diz o que posso ou não fazer”. A cabeça, antes do próprio umbigo. Pela verdade.
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ccbrandao · 4 years ago
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Vacinar ou não vacinar. Eis uma não-questão
Há pessoas que falam num nível sonoro de propósito para que toda a gente ouça. Fazer isso com a ajuda da projeção que uma estação de comboios num túnel potencia torna quase impossível não ouvir o que não se quer. E o que não me apetecia ouvir era que “desde que começámos a usar máscaras, o número de infetados subiu” ou ainda o típico “a mim ninguém me apanha na vacina, as pessoas continuam a morrer na mesma e aquilo tem efeitos piores que a covid”.
Nessa altura, eu contava os dias para que a minha mãe recebesse a segunda dose e tinha passado pouco mais de uma semana de eu ter recebido a minha primeira. Se foi tudo imaculdamente perfeito tanto num processo como no outro? Claro que não. Se me passou pela cabeça não ser vacinada? Nunca. Se eu me julgo com a mínima legitimidade para me queixar? Nem por um segundo. A minha mãe tentou ir à “Casa Aberta” tomar a segunda dose, já que tinham diminuido o prazo entre tomas, mas voltou para trás porque não havia vacinas disponíveis. Teve que esperar até ao dia marcado.
Eu fiz o meu autoagendamento e recebi uma mensagem de confirmação apenas duas semanas depois. Felizmente, ligaram-me do centro de vacinação na Escola da Seara e pude ser vacinada no dia seguinte à chamada. Esperei uns quinze minutos, se tanto. Claro que há pessoas a esperar duas horas, ou mais, ao calor, à chuva. Mas sejamos humildes o bastante para reconhecer o esforço que tanta gente está a pôr no processo para que milhões sejam vacinados o mais rápido possível.
O pessoal que montou a operação logísitica praticamente de um dia para o outro, os assistentes e pessoal médico que foram retirados das suas funções, atrasando - e prejudicando, claro - o trabalho noutros locais. Antes de desatarmos a queixar-nos e a proferir insultos e reparos, lembremo-nos que ninguém está a fazer-nos um favor, ninguém nos deve nada. Pelo contrário, e felizmente foi isso que senti enquanto esperava aqueles trinta minutos no recobro, estamos todos a fazer a nossa parte (sim, eu sei que “todos” não é a palavra certa, mas já vou a essa parte da equação).
Enquanto olhava para o meu cartão com a data da segunda dose e via mais pessoas a chegar, muitos agora com a vacinação completa, pessoas com dificuldades de locomoção, pessoas a faltar ao trabalho, pessoas a deixar os filhos com alguém por uma horinha, senti-me parte de um processo muito importante. E senti que todos por ali sentiam o mesmo. Portanto, a todos os que desataram a mostrar nas redes sociais que já tinham sido vacinados: compreendo-vos, devem, sim, sentir-se orgulhosos e mostrá-lo ao mundo. Estamos a fazer a nossa parte, quais mosqueteiros, um por todos.
E somos nós que o estamos a fazer pelos outros todos que não se vão vacinar por opção própria. Segundo uma revista científica (aquelas fontes que, se todos nos baseassemos nelas, o mundo era mais fácil para toda a gente), por cada 20% de vacinados, diminui para metade a probabilidade de os não vacinados contraírem infeção. De nada, pessoas antivacinas. Cada um escolhe de que lado da história quer fazer parte.
Portanto, aceito que não queiram vacinar-se, que remédio. Mas não compreendo. Já me chegaram mil e um argumentos contra a vacinação e só o da fobia a agulhas é que me convence um bocadinho (uma fobia é um assunto sensível, vá).
O senhor da estação - que devia ter os seus 70 e alguns anos - diz que as pessoas continuam a ficar infetadas e a morrer mesmo depois de vacinadas. Tem razão. Mas, acredito, não terá visto as notícias que mostram como é nas faixas etárias mais baixas (ainda não vacinadas e, já sabemos, com os comportamentos mais perigosos para a propagação do vírus) que a doença mais tem crescido. E, com certeza, a memória não lhe permite voltar a janeiro deste ano quando, com mais ou menos os mesmos quatro mil infetados num dia, morriam 80 pessoas e não nove, como agora, além da impossibilidade de equiparar o número de internados. E dos 2,9 milhões de vacinados completamente, 0,1% terão ficado infetados. Mas quem quer saber de factos?
Lá o companheiro do senhor afirmava que era saudável, nunca tinha tomada vacina da gripe e nunca tinha gripe. Se eu lhe podia ter dito que havia ainda 10% de hipótese de ele infetar alguém que não a tem a sorte dele quanto à saúde, mesmo que essa pessoa tenha a vacinação completa? E que tomar a vacina diminui a carga viral em 40%? Podia. Mas ainda preservo a minha sanidade mental e discutir com quem acha que sabe mais que toda a gente não faz parte das minhas capacidades intelectuais.
Se calhar, além das fobias, ainda aceito o argumento das tromboses. É coisa para assustar. No entanto, se milhões de mulheres tomaram a pílula durante anos mesmo com essa ameaça em percentagens muito mais elevadas? Pois claro. E ninguém obrigou ninguém a nada, é um risco que decidimos assumir. Também querem dizer que são contra a pílula? (Não se preocupem, nem vou lançar o argumento do viagra, que até tem efeitos secundários mais alarmantes porque se começar com muitas estatísticas os antivacinas não olham duas vezes para a informação).
A Eurofound (Fundação Europeia para a Melhoria das Condições de Vida e de Trabalho) terá feito uma sondagem para perceber a resistência à vacina conforme as condições socioeconómicas. Os números mais elevados encontram-se entre os homens, os desempregados, pessoas com o ensino básico ou secundário, e os que - pasme-se! - usam as redes sociais como fonte de notícias. Se estes querem continuar a enfiar zaragatoas nariz acima para fazer tudo e mais alguma coisa, para entrar em qualquer lado, tenho que aceitar. Mas não compreendo como não perferem a facilidade de mostrar um certificado de vacinação. É que, além de tudo, ser do contra sai mais caro.
Não sei muito bem se consigo mudar mentalidades quanto à vacinação. Sei que contribui com a minha pequena gota do oceano. E se isso impediu que uma única pessoa não tivesse morrido de covid-19, valeu o incómodo no braço, a dor de cabeça, o tempo de espera, valeu o arriscar tromboses e a ameaça de ter um chip no meu corpo (!). Se essa pessoa era antivacina? Terá valido ainda mais. Cada um escolhe de que lado da história quer fazer parte. E somos muitos, felizmente.
(Uma palavra de apreço pelas vacinas que o Governo português está a doar aos países de língua portuguesa. Como dizia o Vice-Almirante Gouveia e Melo: “Ninguém se vai salvar sozinho. Ninguém se vai salvar primeiro que os outros. Temos que nos salvar a todos, de forma unida. Só como comunidade é que nos salvamos. Os países ricos não podem pensar que, vacinando-se, ficam livres. O ser humano não é uma ilha”).
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