Uma espécie de um diário online
Last active 2 hours ago
Don't wanna be here? Send us removal request.
Text
Entre o Piemonte, a Lombardia e o Ticino
É sempre um enorme prazer regressar a Itália.
Esta foi a minha quarta visita ao país e conto voltar, porque apesar do muito que já vi, tanto ficou por ver. E por rever, com olhos mais maduros, como sucedeu neste regresso a Milão em 2025 e já tinha ocorrido no regresso a Roma em 2019.
O plano era audaz. Aterrar em Malpensa, perto de Milão, alugar um carro no aeroporto, tocou-nos um Peugeot 208 praticamente a estrear, estabelecer base numa casa equidistante das regiões a visitar, na pequena vila de Castelletto Sopra Ticino, com cerca de dez mil habitantes, situada exatamente na fronteira entre o Piemonte (onde pertence) e a Lombardia, na extremidade sul do Lago Maior, e usá-los para percorrer toda a região dos Lagos. Enfim, quase toda, porque os lagos são tantos que o tempo não chegaria para todos.
Ainda assim visitámos ambas as costas do Lago Maior e do Lago de Como, os maiores, uma pequena parte do Lago de Lecco, o Lago de Lugano e ainda o Lago d'Orta. Outros ficaram por visitar, é certo, mas a paisagem característica da região é inconfundível. Estamos nos Alpes, em lagos alimentados pelas neves derretidas das montanhas, mais ou menos escarpadas, mas sempre enormes, que os rodeiam, em terras imemoriais, onde a cultura helvética se mistura com a latina. A paisagem repete-se, magnífica, de um lago para o outro.
O turismo é antigo, assíduo e variado. Vimos carros de quase todas as nacionalidades europeias. Ainda assim nada que se compare sequer com a cidade de Milão, quanto mais com as praias da Ligúria, da costa de Amalfi ou com as cidades de Veneza ou Roma. É um turismo suave, de grandes hotéis da Belle Époque, hoje restaurados em spas de luxo, e pequenos hotéis familiares à beira do lago, vestígios de um tempo em que as famílias endinheiradas do norte da Europa, rumavam, no Verão, para a Suiça e para esta região italiana, em busca de frescura e ar puro. É uma enorme serra de Sintra ou do Buçaco, com lagos gigantescos, onde se pode nadar, pescar, praticar desportos náuticos, ou simplesmente desfrutar da calma e da pureza destes ares de montanha, abençoados com uma paisagem deslumbrante.
Os vestígios dessa época são bem visiveis, nos inúmeros palácios e palacetes, ao gosto romântico ou art nouveau, que se encontram em quase todas as localidades e mesmo entre elas, nas margens dos lagos, nos jardins floridos e bem cuidados, onde imaginamos as senhoras da Belle Époque a passear de sombrinha, ao final da tarde, nos cais privados das casas ribeirinhas e dos hotéis, nas muitas marinas minúsculas, com ares de antiguidade, que se sucedem nas vilas e aldeias, cada uma com meia dúzia de embarcações ancoradas. Aqui não há grandes iates, como em Capri ou no Mónaco. Não iriam longe. Apenas pequenas embarcações de recreio para passear no lago, pescar ou dar um mergulho numa baía mais escondida, tão simples e despretensiosas que até se alugam aos turistas à hora, sem necessidade de carta de marinheiro ou qualquer qualificação náutica. Os maiores navios são o equivalente local aos nossos cacilheiros, que asseguram as viagens entre as várias povoações das margens dos lagos, a baixo custo, por vezes com o transporte de veículos opcional. Neste mundo feito de lagos, as embarcações são o meio de transporte mais rápido e barato entre as diversas localidades. O metropolitano dos locais, aproveitado pelos visitantes não motorizados.
Ainda hoje os acessos terrestres nem sempre são fáceis. A viagem de Bellagio para Como, por estradas estreitas, onde mal cabem dois carros, quanto mais um autocarro de turismo, é um desafio ao condutor mais afoito. Mesmo os acessos pedonais às pitorescas aldeias à beira lago, literalmente escavadas na rocha das montanhas, como Nesso, no lago de Como, ou Gandria, no lago de Lugano, é um atrevimento para os turistas de mais de cinquenta anos de idade. O regresso faz-se a custo e muito lentamente, com as pulsações aceleradas.
Entre as atrações da região estão também as ilhas, de povoamento antiquissimo e algumas com construções monumentais, como o palácio Borromeu, que deu o nome às três ilhas situadas em frente à cidade de Streso, a Ilha Bela (onde fica o citado palácio, de jardins luxuriantes), a pitoresca Ilha dos Pescadores e ainda a Ilha Mãe, a maior, com um belo jardim botânico. Um pouco adiante temos as ruínas dos castelos de Cannero, erigidas em três ilhéus, situados perto de Cannero Riviera, todas no Lago Maior. Também no Lago d'Orta temos a pequena ilha de São Júlio onde existe uma basílica dedicada a este santo e um convento beneditino.
A gastronomia é tipicamente italiana, mesmo quando atravessamos a fronteira omnipresente com a Suiça. Além das pizzas e das massas, predomina o escalope à milanesa e o peixe dos lagos. Nas sobremesas temos o Tiramisú e os doces com Panettone, além dos irresistíveis gelados italianos. Mas temos também uma versão local das tapas ibéricas, onde é possível pedir uma tábua de enchidos e queijos sortidos, com molhos da região, acompanhados pela maravilhosa variedade de pão, de todas as formas e feitios, todos deliciosos, e os vinhos locais ou, se preferir, uma magnífica cerveja artesanal, vendida em garrafas de 0,75 litros, como o vinho, e servida em frappé, com toda a pompa e circunstância.
Uma nova Itália, que não conhecia, muito mais suiça que o centro e o sul, com todo o seu pitoresco caos mediterrânico, mas não menos italiana por isso, na cultura, na língua, na gastronomia e até, infelizmente, na condução irresponsável dos motoclistas e até de pais de família em automóveis de porte pouco adaptado às estradas da região. Aqui deviam predominar os Smarts e os Topolinos e não os BMW e Mercedes, já para não falar nos Ferrari e Lamborghini, geralmente de matrícula suiça, as caravanas e os autopullman de luxo. Felizmente abundam as bicicletas e os pedestres, para contrastar, o que não facilita, no entanto, a vida ao condutor menos avisado.
Um aviso final à navegação: levem repelente para insetos, pois o mais certo é regressarem com recordações comichosas cravadas na pele.
Massamá, 25 de Julho de 2025
0 notes
Text
A Longevidade e o Sexo
Desde que existem estatísticas, que está claramente demonstrado, em média, que as mulheres vivem mais anos do que os homens. Este é um facto inalterado com o sucessivo aumento da esperança de vida do ser humano. Elas continuam a viver mais do que eles. E a diferença não é tão desprezível quanto isso, três ou quatro anos, em média, a mais.
Porquê? Esta é a grande questão, à qual muitos já deram respostas, geralmente válidas, mas nenhuma inequívoca na justificação plena do fenómeno.
Eu também não descobri a pólvora e não pretendo, com estas singelas linhas, trazer uma explicação final e revolucionária para a questão. Apenas contribuir, com um ponto de vista que nunca vi mencionado em explicações anteriores, mas que me parece evidente.
As explicações mais comuns envolvem a maior resistência física da mulher, destinada à proteção da prole e proliferação da espécie, ao menor esforço físico desenvolvido nas tarefas tradicionais dos dois sexos, ou até aos maus hábitos e vícios masculinos, como o tabaco, o álcool ou a alimentação descuidada.
Sinceramente, nenhum destes argumentos me convence.
As mulheres são mais resistentes fisicamente do que os homens? Então porque lhe chamam o sexo fraco, porque razão os atletas são tradicionalmente masculinos e, pese embora, no desporto atual, as mulheres estejam quase tão presentes como os homens, o físico masculino garante quase sempre melhores resultados práticos do que o feminino? A exceção são as modalidades que exigem maior elasticidade articular, onde a constituição feminina leva vantagem, precisamente por ser mais pequena, menos musculosa e sobretudo por não ter um pénis e um par de testículos no meio das pernas. No resto, o corpo masculino mostra-se sempre mais forte e eficaz.
Quanto ao esforço físico desenvolvido nas atividades físicas, também não fico muito convencido. Claro que, se o marido for mineiro de carvão e a mulher doméstica, a probabilidade dele morrer primeiro com um cancro ou infeção pulmonar é muito maior. Mas se ambos forem agricultores, mesmo que ele carregue mais com a sachola, e ela com os caixotes de batatas ou cebolas, não há uma diferença suficientemente significativa para justificar a mortalidade precoce do homem. Aliás, há mulheres que trabalham tanto ou mais do que os homens no campo, na ceifa dos cereais, na apanha da fruta, da azeitona, na vindima. E a tudo isto ainda juntam a lide da casa, o fazer o pão, os enchidos, as hortaliças da horta, a água do poço. Sem esquecer a mama dos filhos, a cozinha e a roupa lavada. Se formos analisar com rigor as comunidades agrícolas, facilmente chegamos à conclusão que elas trabalham tanto ou mais do que eles e nem por isso morrem mais cedo. Nas outras atividades também não me parece que a lide da casa e a criação dos filhos, sobretudo se acumulada com atividade profissional extra domiciliária, demonstre que as mulheres desenvolvem um esforço físico menor do que os homens, ao longo da vida, muito pelo contrário. Aliás, a preguiça dos homens é muito mais famosa e comum do que a das mulheres, que são seres ativos por natureza, incapazes de estar paradas, com bichos carpinteiros, como se diz das crianças.
Quanto aos hábitos, se é certo que, tradicionalmente, os homens fumavam e bebiam álcool em muito maior quantidade que as mulheres, há muito que as coisas se equiparam e hoje, conheço muitos casais em que os papéis se inverteram por completo e são elas que fumam e bebem, enquanto eles praticam desporto, só bebem água e bebidas saudáveis e têm um cuidado enorme com a alimentação. Porque razão a mudança de costumes, que já não é nova, e atinge quase todas as gerações, embora em proporção diferente, como é óbvio, não se reflete nas estatísticas?
Já no que concerne aos suicídios os números são concludentes, morrem três a quatro vezes mais homens por suicídio do que mulheres, no mundo ocidental. Será este o factor a fazer a diferença na esperança de vida? Dificilmente, porque a quantidade de suicídios não é suficientemente grande para justificar a maior longevidade estatística da mulher. Mas talvez ajude a compreendê-la.
Biologicamente os homens são predadores sexuais e as mulheres reprodutoras e cuidadores das crias. Por muito antiquada que esta afirmação possa parecer, ela está incutida no nosso ADN, na natureza humana. Por muito contrariada que possa ser, por tendências e mentalidades do momento, mantém-se como lei natural, inalterável ao longo dos séculos.
Desde que descobre a sua sexualidade que o homem não tem outra prioridade na vida do que copular. Já a mulher tem geralmente pouco interesse no sexo, salvo para fins procriativos. E quando finalmente tem a sua prole para criar, então o interesse pelo sexo torna-se totalmente secundário, quanto não deixa pura e simplesmente de existir. A sua tarefa principal na vida passa a ser criar os filhos, de forma mais ou menos obsessiva, desde que nascem até ao momento da morte da progenitora. E se tiver a felicidade de ter netos, esse instinto maternal transfere-se automaticamente para estes, gerando até, frequentemente, conflitos com as mães, sobre a melhor forma de cuidar e proteger a prole.
Já pensaram porque razão a prostituição é tida como a mais antiga profissão do mundo? Precisamente porque os homens têm uma necessidade biológica e compulsiva de copular e as mulheres não. Por isso, à falta da disponibilidade conjugal (ou pré-conjugal) para o coito e o sexo em geral, responde o mercado com a oferta de sexo ao preço adequado à procura e com a ampla oferta de pornografia, que já vem da pré história. Há pinturas rupestres de casais a copular, o que terá levado ao êxtase muitos neandertais e cromagnons do sexo masculino, enquanto as suas parceiras tratavam das crianças.
Ora esta obsessão masculina biológica pelo sexo e a cópula não se dá bem com a velhice. Enquanto as fêmeas idosas se deliciam com os netos, a empanturrá-los de doces e de roupinhas novas, os velhos babados lamentam a perda do vigor sexual de antanho e inventam maneiras de manter vivo o seu atávico desejo sexual. Modernamente são os comprimidos que dão ereções e também dão cabo do coração. São os esforços hercúleos para manter de pé o que já não se aguenta e o dinheiro mal gasto com profissionais, em troca da ilusão de uma sexualidade, em vias de extinção.
Ora esta vida faz mal à saúde, além de magoar também a carteira. Além disso, causa ansiedade, depressão e outras maleitas físicas e psicológicas.
A realidade é que a função biológica masculina não fica cumprida assim que insemina alguém. O seu instinto quer inseminar mais, todas as que puder, até morrer saciado. Mas a sociedade não lho permite, nem as mulheres. Por isso o homem, primeiro frustrado pela indisponibilidade feminina e depois deprimido pelo declínio da sua capacidade procriadora, definha. Entrega-se ao álcool, ao jogo, à agricultura e, por vezes, até ao suicídio.
Se já nem para procriar sirvo, o que raio ando por cá a fazer? A aturar os netos? Nem a paciência abunda nem o mulherio o deixa chegar perto da descendência. As crianças são o universo feminino por excelência. Os homens nunca são bem vindos nesse mundo. Até parece mal, levanta suspeitas de más intenções.
E aqui temos uma hipótese perfeitamente razoável para a durabilidade feminina, quando comparada com a masculina. Enquanto os homens aos sessenta anos de idade estão gastos, frustrados, deprimidos, sem objetivos na vida que não o dinheiro ou a bola (gostos mais populares no sexo masculino), as mulheres estão no céu, livres dos chatos dos maridos, graças à inexistência de sexo, e com filhos e netos para criar, principal objetivo de vida da grande maioria das mulheres. Por isso querem viver até aos cem anos, para verem os netos crescer, e conhecerem os bisnetos e verem-se rodeadas de criançada, mesmo que seja dos vizinhos, porque, em matéria infantil, as mulheres não são muito exigentes, qualquer criança lhes proporciona o prazer e a vontade de viver.
Já entre os homens, quantos gostariam de chegar aos cem anos? Para quê? Se aos sessenta já têm a sensação de estar a mais nesta vida, o que dirão se chegarem aos cem! Melhor é fumar e beber até dar cabo da saúde de vez.
Viver sem tesão é morrer em vida. E para pouca saúde, mais vale nenhuma!
16 de Abril de 2025
0 notes
Text
Sonhador
Sou um sonhador. Ao avolumar dos anos, quando outros escondem as frustrações biológicas com investimentos e jogo, buscando no vil metal a compensação para a velhice, eu encolho-me, viro-me, cada vez mais, para mim mesmo e sonho, nostálgico, com passados que não vivi.
Olho saudoso e emocionado os rostos jovens e apaixonantes, sobretudo os de antanho, fujo da mediocridade quotidiana, do trabalho, das contas para pagar, das rotinas sem sentido, que não consigo afastar.
Cheguei a uma fase da minha vida em que só me apetece renascer. Não propriamente como um infante de mama, mas como uma novel persona, noutra cidade, noutra vida, noutra profissão, perdido na busca de novas rotinas sem sentido, que, pela novidade, se façam atraentes.
Imagino como seria viver numa pequena cidade de província, no Alentejo ou em Espanha, perdido no tempo e no espaço. Será que retomaria o entusiasmo pela vida, que perdi pelo caminho, há muitos anos atrás? Será que cairia rapidamente no mesmo círculo vicioso, sem fim, que não o fatal? Quem sabe? Mas quem pode afirmar certezas sem a experiência?
Há quase um mês que nada escrevia, salvo críticas de cinema. Em parte por ter regressado, possesso, ao visionamento dos clássicos da sétima arte. Mas seguramente porque não senti coragem para escrever sobre mais nada. Para quê? Para deixar lavradas as minhas mágoas de barriga cheia? Para me fazer de vítima do meu próprio tédio, da lassidão com que vivo, do desinteresse e frieza que criei e amadureci no meu peito? Seria um fútil exercício de narcisismo. Prefiro não escrever, até sentir a alma a brotar nas palavras que escrevo.
Hoje quebrei o enguiço. Não porque tenha alguma coisa de especial para escrever. Apenas porque tive um breve contacto com um mundo real, tão distante do meu, que por vezes me esqueço que existe. Por vezes, faz falta ver como vive a outra metade. Temos o péssimo hábito de olhar para o céu e só contemplar as estrelas. São belas, mas estão tão longe, tão inacessíveis. É necessário olhar, de quando em vez, para o chão. Não para encher o ego de vaidade, por não termos os sapatos sujos de lama, mas para darmos valor ao pouco que temos. O pouco de alguns é o muito de muitos.
E se não conseguimos ser felizes com o pouco/muito que preenche as nossas vidas, melhor seria entregá-lo a quem lhe dê valor, do que chorar pelo vazio com que enchemos a existência.
Chorar é inútil, é ridículo, é até ofensivo, para os que pouco ou nada têm para rir. O único caminho para a felicidade está na busca incessante da vida, do prazer, do progresso.
Parar é morrer. Chorar é renunciar à vida. O único percurso é em frente. Se estamos mal, só há uma opção a tomar, arregaçar as mangas e enfrentar os desafios.
É neles que se esconde a alegria e a vontade de viver.
14 de Abril de 2025
0 notes
Text
Morra Marta!
Alguém me disse que foi ao funeral de alguém, que morreu, após uma longa e semi solitária agonia, aos 95 anos de idade.
A pena saía embargada da voz desse alguém, que pese embora ainda estivesse distante de tão provecta idade, para lá caminhava, a passos tão largos quanto a sua velhice permitia.
E eu pensei com os meus botões: que me fulminem já, aqui e agora, morto que nem um presunto, se alguma vez me passar pela ideia viver até tal idade, tal decrepitude, tal triste figura.
A sério, há muito que me sinto pronto para morrer. Não que deseje a morte, se assim fosse, já teria posto fim à vida, que não sou homem de indecisões. Não a desejo mas não a temo e sei que tenho de morrer. E já agora, como dizia o outro, morrer por morrer, antes de pé, como as árvores.
O que não suporto é a ideia da decadência, da demência, da decrepitude. Faz-me uma terrível impressão, ver alguém decrépito, sem um pingo de razão e nada de interessante a extrair da vida, a agarrar-se, com unhas e dentes, à sobrevivência.
Para quê? Que razões terão estes cadáveres ambulantes para se apegarem tanto ás suas vidas miseráveis? E a miséria a que me refiro é a moral, não a financeira, que só a acentua.
Viver com qualidade é um dever. Sobreviver a qualquer custo é um ato de profundo egoísmo.
Não quero sobreviver. Acho que o ser humano devia ter um prazo de validade, como os iogurtes. Assim que ganhasse bolor e começasse a cheirar mal, era mais do que tempo de o atirar para o caixote do lixo.
Melhor deixar uma imagem positiva, de um belo e saboroso iogurte de fruta, comido no pico das suas virtudes, do que apodrecer num canto, enojando os demais, com a sua podridão, e esperando uma alma caridosa que o atire, de vez, para o contentor.
Abençoada a juventude, que tudo nos promete. Aproveitem, por favor, enquanto podem, enquanto a vida é um prazer, uma descoberta, um enriquecimento constante.
Maldita seja a velhice e quem a quiser prolongar. Antes morrer no pico da vida, do que viver prisioneiro da morte adiada. Inevitável, temida, sofrida.
Não me deixem definhar até aos 95 anos de idade, por favor. No que depender de mim, vou assegurar-me, por todos os vícios ao meu alcance, que tal não me acontece.
Às vezes até me apetece recomeçar a fumar!
Morra Marta, nas morra farta!
17 de Março de 2025
0 notes
Text
Voando Pela Vida Afora
Este texto vai parecer uma sessão de auto análise, barata e narcisista, mas a verdade é que não resisto a registar, por escrito, um sonho estranhíssimo que tive esta manhã, mais ou menos entre as oito e a dez da manhã, que terminou abruptamente, por isso não tem um final, mas em compensação, tem uma tentativa de interpretação, provavelmente superficial e incompleta, porque ninguém é bom juiz ou psicólogo em causa própria, sobretudo se a sua formação for outra. Mas tentar não custa e se o resultado for medíocre, do ponto de vista psicológico, pelo menos é honesto, na exposição dos meus devaneios oníricos.
Antes de mais, tenho que realçar um dos aspectos que mais me impressionou neste sonho, o facto de me lembrar perfeitamente de muitos detalhes, quando habitualmente os sonhos se desvanecem, quase por magia, do meu consciente, assim que abro os olhos. Pelo menos costumava ser assim, mas tenho reparado, nos últimos meses, que os sonhos permanecem cada vez mais completos no meu consciente, ao ponto de me lembrar, muitas horas depois, de pequenos detalhes quase insignificantes de um sonho noturno (ou matinal, como foi este caso). Será fruto da velhice?
Por outro lado, tenho ainda que preambular que tenho sonhado, com alguma persistência, numa estranha capacidade de voar, por sobre as ruas e edifícios. Não como um super herói, veloz como uma bala, mas como uma pena ou saco de plástico, refém das correntes de ar, ascendentes e descendentes, das brisas e dos ventos fortes. Atiro-me ousadamente de um qualquer edifício, ou até a partir do chão, e dou comigo a pairar lentamente no ar, por vezes rente ao chão, com dificuldade em ganhar altura, outras com uma relativa facilidade, mas sempre com uma velocidade lenta e uma constante batalha para permanecer no ar, apesar da leveza. A gravidade faz o seu papel e eu tenho que aproveitar cada corrente de ar, cada impulso ténue para ganhar altura e conseguir completar um percurso sem uma aterragem forçada por escassa sustentação.
Mas a verdade é que me desloco, por vezes baixo, ao nível das ruas, evitando os obstáculos, outras vezes ganhando altura e alcançando o topo de grandes edifícios, de onde consigo lançar-me, com maior facilidade, planando grandes distâncias e gerindo, com redobrado cuidado, as correntes aéreas, de modo a conseguir alcançar o próximo ponto de paragem e de relançamento, para voos consecutivos.
Este é um pressuposto que não vem de hoje, mas de há vários meses atrás e em múltiplas ocasiões. Um sonho recorrente, nas mais variadas circunstâncias.
A aventura de hoje pegou neste dado adquirido e juntou-lhe outros ainda mais insólitos.
Desde logo, porque o meu voo foi acompanhado de uma almofada. Não uma almofada dotada de quaisquer poderes especiais, mas uma simples almofada de cama, provavelmente aquela mesma em que dormia. Por qualquer motivo estranho, a almofada passou a ser um elemento adicional, e muito útil, do meu voo, porque não só me permitia viajar bastante mais confortável, como, por vezes, parecia ter a capacidade de acelerar a velocidade de voo, não propriamente para ritmos alucinantes, mas suficientemente rápidos para me obrigar a ter cuidado com postes de iluminação, semáforos, árvores e outros obstáculos colocados no caminho e que a custo evitava. Voava por isso manifestamente baixo, comparativamente com outros sonhos, em que ascendia ao topo de edifícios de altura significativa.
Voava rente mas, em contrapartida, tinha um destino preciso. A minha viagem, feita às escondidas da família, antes que alguém reparasse, levou-me exatamente de Massamá até ao estádio da Luz, com o propósito inequívoco de assistir, à borla e de algum ponto elevado do estádio, a um jogo de futebol do Benfica. A princípio nem sabia com quem, mas após algum tempo nos meandros do estádio, descobri jogadores adversários vestidos de azul e concluí tratar-se de um jogo contra o Belenenses, não sei muito bem porquê, mas a identificação do adversário pareceu-me inequívoca, pelo simples observar das camisolas.
Agora impõe-se um novo parêntesis, porque tenho de explicar duas coisas importantes, para tentar interpretar o sonho. A primeira é que nunca entrei no novo estádio da Luz (novo, mas com mais de vinte anos), embora tenha crescido como benfiquista, há muito que não manifesto qualquer interesse pelo futebol ou pelo desporto em geral e nem sequer sou capaz de identificar dois jogadores do plantel do Benfica (e digo dois porque me lembrei do di Maria, que nem sequer tenho a certeza se ainda joga ou não e se está no Benfica ou noutro clube qualquer ou até se já se reformou). Obviamente que também não faço a mínima ideia se o Belenenses milita na primeira divisão ou noutra qualquer e se um jogo entre o Benfica e o Belenenses, à presente data, é minimamente plausível ou uma simples memória do passado.
Acrescento que, por altura da pandemia, cortei relações com o desporto de competição em geral e não vejo jogos, nem de futebol de praia, nem sequer da seleção nacional, nem jogos olímpicos, nem mundiais e muito menos do campeonato nacional e competições complementares. Nem sequer sei quando acontecem, quem ganha e perde, quem vai à frente do campeonato (embora, por vezes, a minha mulher me diga que o Benfica ficou à frente, sem saber bem de quem, nem porquê), como se desenrolam as atuais competições nacionais e estrangeiras, que aparentemente já mudaram radicalmente de regras desde a ultima vez que lhes prestei atenção.
Tudo isto porque cheguei à conclusão que a competição desportiva me incutia ansiedade. E isso já eu tinha demais, ao ponto de andar a tomar ansiolíticos para controlar o stress. Por isso, até porque sempre achei uma parvoíce, sentir entusiasmo ou tristeza por resultados desportivos, que não alteram minimamente a minha vida, resolvi cortar relações com o desporto de competição. De forma radical, acrescento. Nunca mais vi qualquer evento desportivo ao vivo ou na televisão, nunca mais consultei notícias desportivas na internet (já nem falo dos jornais, pois tenho orgulho em afirmar que nunca comprei um jornal desportivo na vida, o que nem é inteiramente verdade, pois comprei uma vez a Bola, há mais de quarenta anos, num episódio de fraqueza, que lamento até ao dia de hoje), nunca mais quis saber resultados ou intervir em conversas desportivas, ficando a olhar, frequentemente com cara de parvo, quando alguém faz um comentário sobre algum evento desportivo do qual nunca ouvi falar, nem tenho o menor interesse.
Outra parêntesis, talvez relacionado com o anterior, decorre do facto de, já por diversas ocasiões, ter sonhado com visitas intempestivas a estádios de futebol, mais concretamente aos estádios da Luz e de Alvalade, locais onde nunca entrei na vida, e ter imaginado um dia de uma partida de futebol importante, com a casa cheia, onde me incluo no meio da multidão, mas por qualquer razão estranha, encontro-me sempre dentro do estádio, em múltiplos corredores, halls e salões, mas sem a mínima capacidade de ver um bocadinho do jogo. No estádio da Luz ainda consigo por vezes vislumbrar uma pequena fração do relvado, sem que isso me permita perceber absolutamente nada do que se passa em campo. Já no de Alvalade, talvez por ser benfiquista, o bloqueio é total e só consigo ouvir o barulho do público a cada golo ou jogada de perigo e, por vezes, ver um bocadinho do terreno de jogo, nalgum ecrã espalhado pelo interior do estádio, onde se acumulam mirones, como eu, na esperança vã de ver alguma coisa ou, pelo menos, saber o resultado.
Servem estes dois pressupostos para explicar que também esta minha visita de hoje ao estádio da Luz, apesar de volante, sofreu o mesmo impedimento. Uma vez chegado ao destino, dei por mim encerrado no interior do estádio sem capacidade para ver nada mais que uma pequena fração do relvado onde não se passava nada.
Deu-se então um acontecimento estranho. Fui ao lavabo, onde me encontrava sozinho, e tive a tentação de espreitar por cima do espelho, para encontrar uma navalha afiada, deixada por alguém que achou poder precisar dela mais tarde, escondida naquele local insuspeito. Deduzi que confrontos violentos se adivinhavam e duvidei da pertinácia da minha presença naquele local.
Achei então que, talvez utilizando a minha capacidade voadora, seria possível encontrar um poleiro, nem que fosse na cobertura do estádio, de onde pudesse ver cabalmente o jogo. Mas só então uma preocupação me varreu o pensamento. O que diriam e fariam as pessoas, se vissem um indivíduo de pijama e agarrado a uma almofada, a voar para a cobertura do estádio ou para uma torre de iluminação. Ou até para um ponto mais elevado, onde existissem lugares vazios por ocupar? Seria um escândalo. E mesmo que lá chegasse despercebido, mais tarde ou mais cedo alguém daria pela minha presença.
Porque razão esse problema só se colocou no estádio e não na viagem, a baixa altitude, desde Massamá até Benfica é algo que não tem justificação. Parece que, por qualquer motivo, viajei invisível até ao destino, para me tornar incomodamente visível, na hora de ver o jogo.
Lembro-me que, enquanto percorria recantos escondidos do estádio, descobri pavilhões onde decorriam jogos de basquetebol, que eu conseguia ver na vertical mas não me despertaram qualquer interesse, e até um espaço redondo e amplo, onde era praticada uma estranha modalidade de luta, a dois, mas onde também intervinha uma bola. O objetivo era lançá-la com as mãos para um pequeno espaço defendido pelo adversário, o qual impedia os intentos do oponente de forma vigorosa e viril, fazendo lembrar a luta greco-romana. Apesar da originalidade desta modalidade desconhecida, que me prendeu a atenção por alguns minutos, mais pela beleza do recinto redondo, pavimentado a madeira brilhante, visto na vertical, do que pela luta propriamente dita, acabei por desinteressar-me depressa e prosseguir caminho, em busca de um ponto estratégico, de onde pudesse assistir, incógnito, à partida de futebol.
Foi mais ou menos por esta altura que acordei, sem chegar a ver o que quer que fosse do jogo.
Agora vem a segunda parte, mais difícil, da interpretação deste sonho aparentemente absurdo, na primeira pessoa, que nem sequer tem qualquer formação em psicologia, mas acha-se no direito, ainda assim, de refletir sobre o seu subconsciente e, ainda por cima, vertê-lo por escrito. Um pouco arrogante e egocêntrico, não acham?
Quem já leu os meus textos anteriores, percebeu perfeitamente que me encontro numa fase particularmente desencantada da vida, preso numa rotina sem perspectivas nem ambições. Sinto-me frequentemente prisioneiro da minha vida e anseio, estupidamente, fazer-me sozinho à estrada, sem destino nem percurso definidos, apenas em busca do desconhecido, de algo que me dê alento e gosto pela vida.
Será esse o simbolismo do voar? A liberdade de sair da minha vida banal e tacanha e a busca de aventura, sem um destino certo ou um objetivo definido? Seria uma explicação talvez demasiado simples, mas por vezes a verdade esconde-se precisamente atrás das razões mais óbvias.
E porquê esta insistência em estádios de futebol, onde nunca fui, e que, ainda por cima, me impedem sistematicamente de ver os jogos?
Será uma reação à minha decisão radical de cortar com o desporto competitivo, a começar pelo futebol, e já não ver uma competição desportiva, seja ela qual for, há mais de cinco anos?
Estará o meu subconsciente zangado comigo e sedento da emoção de uma partida de futebol?
Será que, de tanto querer evitar a ansiedade gratuita, por coisas sem interesse efetivo para a minha vida, como o desporto de competição, me estou a tornar ainda mais ansioso, pela renúncia às emoções.
A verdade é que a fuga às emoções gratuitas não me tornou menos ansioso. Pelo contrário, tornou-me ansioso de tudo, do mais banal quotidiano até à completa ausência de atividade (aflige-me não ter nada que fazer, nada que me entusiasme, que me dê prazer, desperdiçar fins de semana sem sequer sair à rua), ansiedade essa controlada, com dificuldade, com o recurso crescente a ansiolíticos e ao álcool.
Será que este estranho sonho é, na verdade, um espelho distorcido dos erros que tenho tomado na vida, nas minhas buscas de solidão e falsa tranquilidade, que à falta de emoções, se manifesta por via da ansiedade?
Será? Ou estaremos todos condenados à loucura, refiro-me à socialmente tolerável, seja pela ansiedade, pela depressão, pela obsessão, pela bipolaridade ou por qualquer outro transtorno psicológico. Será impossível sobreviver, sobretudo quando os anos começam a pesar, sem esse fardo psiquiátrico, que difere entre indivíduos mas é inevitável, na generalidade?
Será possível preservar a sanidade mental, depois de décadas de vivência e de tudo o que de bom e de mau tal acarreta?
Quanto mais vivo e olho as pessoas à minha volta, mais me convenço que não. Somos todos doentes. O melhor que podemos fazer é tentar minorar os efeitos, através das técnicas e drogas que a sociedade moderna coloca ao nosso dispor.
E talvez também usufruindo da loucura dos nossos sonhos. Se frequentemente são incómodos e frustrantes, como o que aqui relatei, por vezes também conseguem ser gratificantes e transportar-nos para um sentimento de paz e felicidade que a vida, infelizmente, já não me consegue dar há muito tempo.
6 de Março de 2025
1 note
·
View note
Text
Daqui a Cinco Anos
Numa série de televisão, daquelas comédias românticas para mulheres de meia idade, perguntava-se, quase retoricamente, onde cada personagem se via, daí por cinco anos. Esta é uma daquelas perguntas típicas de uma entrevista de emprego, para avaliar a ambição e determinação do candidato. Não faz tanto sentido aos cinquenta e seis anos de idade.
Na verdade, se estiver vivo, pois cada vez a possibilidade de não ver o dia seguinte aumenta, com a idade, não vejo grandes alterações no horizonte de cinco anos.
Isto se tudo correr bem, como é evidente, porque, cada vez mais, ganhamos consciência da fragilidade da vida e da possibilidade real de alguém que nos está próximo, a começar por nós próprios, ser afetado pela doença, pela incapacidade ou pela morte, num curto espaço de tempo, quanto mais em cinco anos. Não é pessimismo, é lucidez. A doença está à nossa espera, em cada consulta ou exame médico, e a morte, por mais que a queiramos enganar, com drogas mais modernas e eficazes, sempre triunfa no final. Por isso, o facto de estar rodeado de gente nos oitentas, não é garantia nenhuma que também lá chegue e muito menos com saúde. Nem eu, nem ninguém à minha volta, por mais que essa ideia me custe a aceitar.
Mas doenças e decessos à parte, que não eram o tema essencial desta reflexão, a verdade é que me vejo, daqui a cinco anos, apenas e só com mais cinco anos, tal como todos os outros à minha volta.
Cinco anos nem chegam para atingir a idade da reforma, nem é provável que a minha hipotética reforma altere grande coisa da minha vida. Continuarei a viver e trabalhar como até aqui. Apenas com um ligeiro desafogo financeiro, decorrente da redução das despesas e do aumento das receitas. Mas nada drástico, que chegue para mudar radicalmente o meu modo de vida.
Não me vejo sem a minha mulher, a menos que a doença e a morte ma roubem, para meu enorme desgosto. Mas se estiver viva e saudável, como desejo, vejo-a na mesma casa, com os mesmos afazeres, aturando-nos um ao outro com a distância saudável que a experiência nos ensinou, por vezes a custo. Talvez viajando mais, enquanto isso nos der prazer.
Até os meus filhos, apesar de adultos, espero-os mais independentes financeiramente, daqui por cinco anos, com trabalho e companhia afetiva, preferencialmente estável e afável. Mas não os vejo fora de casa. Nunca manifestaram nenhum anseio pela independência, pela aventura, pela novidade. Posso vir a ser surpreendido, mas mentiria se dissesse que os vejo nas suas próprias casas, com as suas famílias e empregos estáveis. Isso são fantasias da geração dos meus pais. Já percebi que a geração dos meus filhos não está muito interessada em casas, famílias e empregos estáveis. Por isso podem até passar períodos de euforia, por terras estrangeiras, relações intempestivas com companhias imprevistas, sucessos profissionais efémeros (como tudo na vida), mas, no final de tudo, vejo-os mais ou menos na mesma, fechados nos respectivos quartos, vivendo vidas virtuais, através de um ecrã de computador. Nem sequer vejo netos no horizonte, para alegrar os dias, deste casal de velhos precoces.
E depois de tantas explicações, para demonstrar a falta de perspectivas de mudança, em cinco anos, nesta fase monótona da minha vida, não consigo sequer concluir, se me devo alegrar ou entristecer por isso.
A maturidade é assim. Acabam as ilusões, os sonhos e as expectativas. Toma-se plena consciência da fragilidade da vida. Por isso, há que ficar feliz por estar vivo e saudável, por ter a família conosco, por ter capacidade para fazer coisas que nos dão prazer, como viajar, ou beber um bom whisky. O resto são vaidades ou frustrações.
O futuro é como a própria vida. Tem coisas boas e más. Suportemos as más, enquanto aguardamos pelas boas.
Que interesse tem o tempo, nas nossas vidas? Acaso a felicidade está na velhice, na longevidade?
Não basta um momento de felicidade para preencher uma vida, como escreveu Dostoiévski?
27 de Fevereiro de 2025
0 notes
Text
Uma pequena linha que separa
Aqui há uns anos atrás, havia um anúncio de televisão de uma operadora de TV por cabo, que começava sempre pela frase "há uma pequena linha que separa", no caso, aludindo ao menu onde se podia escolher os variados conteúdos e serviços daquele operador.
Hoje não consigo deixar de associar esse slogan aos aspectos mais primordiais e existenciais da vida. De facto, há uma pequena linha que separa quase tudo na nossa vida, a vida da morte, a saúde da doença, a sanidade da loucura, o sonho da realidade, a tristeza da alegria, a sobriedade da embriaguez, a felicidade da infelicidade, o passado do futuro.
Tudo na vida está preso por um fio, pendendo entre dois lados opostos, e raramente temos o controle total dos nossos movimentos para escolher o lado em que nos posicionamos, nessa ténue divisória. Tendemos a andar como ébrios, aos ziguezagues, por cima de uma linha invisível, ora tombando para um lado, ora para o outro, sem nunca perceber muito bem porquê. Parece que a vida ora nos empurra para um lado, ora para o outro, sem qualquer justificação ou fundamento.
E a verdade é que a idade, que nos deveria trazer lucidez, experiência, capacidade acrescida para distinguir o bem do mal, para andar seguro, do lado certo da linha, dessa fina linha que separa toda a nossa existência, pelo contrário, parece deixar-nos cada vez mais confusos, incapazes sequer de vislumbrar onde esta começa e acaba, mesmo depois de pôr os óculos.
Neste preciso momento que escrevo estas linhas, é sábado à noite, estou sozinho no meu quarto, dedilhando estas incoerências, para uma posteridade que não está mínimamente interessada nas minha dúvidas existenciais, sem saber muito bem se estou feliz, por ser sábado e não ter que me preocupar com trabalho e responsabilidades, ou se estou triste, por não conseguir encontrar nada mais interessante para fazer, numa noite de sábado, do que escrever estas linhas; se estou na posse plena das minhas capacidades intelectuais ou se aquilo que escrevo é produto do álcool que ingeri, provavelmente em excesso, ao jantar e após a refeição.
É assim a vida aos cinquentas, pelo menos a minha, cada vez há menos certezas, menos interesses, menos entusiasmos. Vive-se porque não há verdadeiramente nenhuma alternativa interessante, e aguardando, o mais serenamente possível, o fim eminente, que se sabe que vai acontecer, mais dia menos dia. Por isso não vale a pena pensar nisso. É viver um dia de cada vez, dar cada vez menos importância aos assuntos que nos possam preocupar e causar desgosto ou ansiedade e simplesmente existir, sem expectativas nem desilusões. A vida é assim mesmo. Há momentos bons e maus, há horas de dor e de prazer, de riso e de choro, e a única coisa que podemos fazer é tentar aproveitar algumas das coisas boas que a vida nos oferece, enquanto não temos que suportar as más que, mais tarde ou mais cedo, nos batem à porta.
De facto, a vida é uma fina linha que nos separa da morte iminente. Há que aprender a viver como um equilibrista, no lado certo dessa linha, até que a queda seja inevitável.
Todos os dias vemos pessoas que tombam, à nossa volta. Cada vez mais, com o acumular dos anos. Algumas ainda se levantam, para caminhar mais um pouco, com dificuldades, mas outras jazem para sempre, na memória dos sobreviventes.
E se alguma coisa se aprende, com a experiência, é que há muito pouco ao nosso alcance, que ajude a prolongar o caminho e a manter-nos do lado certo da vida, no lado da felicidade.
É seguir em frente e esperar pelo melhor. Tudo o resto são futilidades, que a posteridade vai esquecer, cinco minutos após o nosso desaparecimento.
Tudo é vaidade nesta vida, excepto a sobrevivência. Essa fina linha, totalmente invisível, que separa o passado do futuro e a existência da escuridão total do vazio.
15 de Fevereiro de 2025
0 notes
Text
D. Teresa e a Sé de Braga
Será mania minha, fixação nesta figura mal amada da história de Portugal, ou há qualquer coisa de incoerente no facto de uma personagem que ficou na história, como opositora aos intentos independentistas do filho, defendendo, ao invés, uma união com a Galiza, submetida a Leão e Castela, estar sepultada no mais elevado símbolo religioso da Portugalidade da época, que era a Sé de Braga?
Convém não esquecer que o Arcebispo de Braga foi o epicentro da revolução contra Santiago de Compostela e os galegos: era um Mendes da Maia, irmão do lidador, um dos mais acérrimos defensores do jovem infante, contra a mãe adúltera, que dormia e fazia bastardas com o Conde de Trava.
De todos os locais possíveis para a sua sepultura, o seu Bierzo natal, Ponferrada, capital da sua província, Leão, terra dos reis seus antepassados, onde governou o imperador seu pai, antes de conquistar Toledo e se perder de amores por uma princesa moura, Santiago, símbolo das aspirações independentistas galegas, Ourense, onde viveu vários anos, recolhida num convento, que refundou, e onde morreu a sua mãe e talvez ela própria, Teresa vem ser sepultada na Sé de Braga, sede incontestada dos seus inimigos, que contra ela conspiraram para a depor e colocar no seu lugar o jovem Afonso, fiel aos Maia e a outros portucalenses contestatários da Rainha e inimigos figadais do seu amancebado, o Conde de Trava.
Parece que os restos mortais foram mandados trazer mais tarde, por ordem expressa do filho, já rei, D. Afonso I de Portugal, para a Sé de Braga, onde ainda hoje repousam, junto ao túmulo de seu marido, o conde D. Henrique.
Seria assim uma reconciliação póstuma entre o filho e a mãe, ou então uma derradeira iniciativa para a retirar, definitivamente, das terras galegas e da influência dos Trava.
Qualquer que fosse o motivo, foi um justo e merecido regresso à sua terra, porque D. Teresa foi a primeira Rainha de Portugal, por todos conhecida e reconhecida como tal, até pelo papa, numa bula de 1116. A fundadora da independência das terras portucalenses.
Se em vida lhe impediram o sonho de construir um Portugal independente, unido à Galiza, ao menos foi-lhe permitido repousar no mais santo local das terras portucalenses, a Sé de Braga, primaz de toda a Hispânia cristã.
E porque razão o Portugal de D. Teresa incluía também a Galiza?
Explorando, na Wikipédia, a história de D. Henrique e de D. Teresa, percebemos que os planos desta nada mais eram do que a prossecução da estratégia ambiciosa do marido para a conquista do poder, alargando o condado para onde fosse possível.
A morte do conde obrigou-a a encontrar novos aliados, contra a irmã Urraca e o sobrinho Afonso VII, tendo encontrado o precioso apoio do poderoso conde de Trastâmara, Fernão Peres de Trava, com quem se uniu maritalmente e teve duas filhas.
Aqui ficam os extratos mais relevantes oriundos da Wikipedia:
Entre o primeiro trimestre de 1096 e o final de 1097 o conde Raimundo, ao ver a sua influência reduzida na corte, acordou com o seu primo Henrique de Borgonha, que ainda não tinha sido nomeado governador de Portugal, a partilha do poder, o tesouro real e o apoio mútuo. Através desta aliança, que teve a aprovação do abade Hugo de Cluny, parente de ambos, Raimundo "prometia sob juramento a seu primo Henrique entregar o reino de Toledo e um terço do tesouro real quando Afonso VI morresse". Se ele não pudesse entregar o reino de Toledo, ele lhe daria a Galiza. Henrique, por sua vez, comprometeu-se a ajudar Raimundo a obter "todos os domínios do rei Afonso e dois terços do tesouro".
O rei Afonso VI parece ter tido conhecimento do acordo entre D. Henrique e D. Raimundo e, para contrariar a iniciativa dos seus dois genros, nomeou Henrique conde da região que se estende desde o rio Minho até ao rio Tejo, que até então era governada pelo Conde Raimundo. Este viu o seu poder reduzido apenas ao governo da Galiza.
Pouco antes da sua morte, o rei Afonso VI de Leão zangou-se com D. Henrique e este partiu para França, a fim de recrutar mercenários que lhe permitissem disputar o trono ao sogro.
Quando D. Afonso VI de Leão faleceu em 1109, sucedeu-lhe a filha D. Urraca, entretanto casada com o rei Afonso de Aragão. D. Henrique acordou com o rei de Aragão uma divisão equitativa dos territórios conquistados aos mouros e em conjunto derrotaram as tropas do rei muçulmano de Saragoça. D. Urraca já tinha, no entanto, um filho herdeiro, nascido de D. Raimundo, falecido em 1107 como Rei da Galiza, o que deu azo a disputa política na Corte leonesa, entre os apoiantes de D. Afonso de Aragão, nomeadamente o conde D. Henrique, e os que defendiam os direitos do filho de D. Raimundo, Afonso VII, nomeadamente os galegos, castelhanos e leoneses, que temiam perder influência na Corte e direitos para os aragoneses.
Na Batalha de Candespina, o experiente D. Henrique e o rei de Aragão derrotaram as tropas leonesas, castelhanas e galegas partidárias de Afonso VII e de D. Urraca, a 26 de Outubro de 1110.
Na sequência da batalha de Candespina D. Henrique foi contactado por alguns nobres afectos à causa de D. Afonso VII e de D. Urraca e persuadido a juntar-se ao partido leonês, tendo-lhe sido prometido em troca da chefia do exército, a cidade de Zamora, o castelo de Ceia, entre outras benesses. O conde D. Henrique passou então a assinar como conde de Portugal, Zamora e Astorga, tal como se lê num documento assinado em Sahagún em Dezembro de 1111.
Agora associado à rainha, ambos cercam o castelo de Penafiel, ao qual o rei D. Afonso de Aragão se havia recolhido, assim que soube da deserção de D. Henrique. Pouco depois do pacto firmado com D. Henrique, D. Urraca preparava já a conciliação com D. Afonso de Aragão e procurava evitar que a cidade de Zamora fosse efectivamente entregue ao conde de Portugal.
D. Henrique morreu em Astorga a 22 de maio de 1112. O seu corpo foi transferido, como havia ordenado, para a cidade de Braga, onde foi sepultado na capela-mor da catedral que tinha fundado.
Depois da morte de Henrique, em 1112, Teresa governou o condado como rainha, por direito próprio, sendo reconhecida como tal pelo papa Pascoal II (através da Bula Fratrum Nostrum emitida em 18 de junho de 1116), pela sua irmã, Urraca da Galiza, Leão e Castela e, posteriormente, por seu sobrinho Afonso VII de Galiza, Leão e Castela. A partir de 1117 assina como "Ego regina Taresia de Portugal regis Ildefonssis filia".
Fernão Peres de Trava era filho do conde Pedro Froilaz de Trava e da condessa Urraca Froilaz, da Casa de Trava, a mais poderosa do Reino da Galiza na época. Participou na revolta galaico-portuguesa contra Urraca I de Leão e Castela, liderada pelo seu pai em 1116, em aliança com Teresa de Portugal. Esta insurreição pretendia defender os direitos de Afonso Raimundes coroado rei da Galiza, e garantir a autonomia do Condado Portucalense frente à rainha leonesa.
Os triunfos nas batalhas de Vilasobroso e Lanhoso selaram a aliança entre os Trava e Teresa de Portugal. Fernão Peres de Trava passou assim a governar o Porto e Coimbra e a firmar com Teresa importantes disposições e documentos no condado de Portugal.
Em 1116, os almorávidas invadiram a região de Coimbra e destruíram os castelos de Miranda da Beira e Santa Eulália próximos da cidade, tendo morto ou cativado as suas guarnições. Em 1117, deu-se o Cerco de Coimbra, imposto pelo emir almorávida Ali ben Iusuf em pessoa e D. Teresa encontrava-se na cidade, que resistiu ao violento assédio de vinte dias, embora os arrabaldes tenham sido postos a saque.
Atacadas pelas forças da sua meia-irmã, a rainha D. Urraca, durante a Crise de 1121, as forças de D. Teresa recuaram desde a margem esquerda do rio Minho, derrotadas e dispersas, até que D. Teresa se encerrou no Castelo de Lanhoso. Aí sofreu o Cerco de Lanhoso. Em posição de inferioridade, D. Teresa conseguiu ainda negociar o Tratado de Lanhoso, pelo qual salvou o seu governo do Condado Portucalense.
Com a morte de Urraca, Fernão tornou-se um grande aliado do rei Afonso VII de Leão no Reino da Galiza. Tanto que lhe foi confiada a importante tarefa de ser preceptor do seu filho, o futuro rei Fernando II. A Crónica Latina de Castilla considera que a sua influência foi determinante para que, no testamento de Afonso VII, os reinos de Galiza e Leão se separassem de Castela e Toledo.
A aliança e ligação de D. Teresa com o conde galego Fernão Peres de Trava, de quem teve duas filhas, indispôs contra ela os nobres portucalenses e o seu próprio filho Afonso Henriques.
Ressentidos com a proximidade de D. Teresa ao conde de Trastâmara, Fernão Peres de Trava, seu influente amante e ao favoritismo que demonstrava para com a nobreza galega, que apoiava os seus desígnios de vir a reinar como rainha independente, em 1127 revoltou-se a nobreza portuguesa de Entre-Douro-e-Minho, que se declarou a favor do infante D. Afonso Henriques, a esta data com dezasseis ou dezassete anos.
Ante a revolta dos nobres portugueses, o rei Afonso VII reuniu as suas hostes e, ao comando das suas tropas, dirigiu-se em pessoa a Portugal para restabelecer a sua tia no pleno governo do condado. A campanha do rei tinha o apoio do bispo de Compostela Diego Gelmires bem como da maioria da nobreza Galega.
Transpostas as fronteiras portuguesas, sucederam-se alguns cercos e combates. As terras de Guimarães, cujo castelo era sede dos condes de Portugal, haviam-se declarado a favor de D. Afonso Henriques e sobre este castelo de fulcral importância, onde por então se encontrava o infante, se focou Afonso VII de Leão, que para lá se dirigiu rapidamente. Seguiu-se o Cerco de Guimarães, após o qual o infante D. Afonso Henriques viu-se obrigado a jurar fidelidade para com o seu primo Afonso VII de Leão e D. Teresa reposta no governo, embora tenha esta também sofrido represálias e perdido algumas terras que adquirira a norte do rio Minho.
Durante o governo de D. Teresa, em 1128 deu-se a fixação dos templários em território português, tendo D. Teresa doado à Ordem o castelo de Soure, erguido na segunda metade do séc. XI por Sesnando Davides perto de Coimbra, na estrada que ligava esta cidade a Lisboa.
Em breve os interesses estratégicos de mãe e filho entraram em conflito. Em 1128, juntando os cavaleiros portugueses à sua causa contra Fernão Peres de Trava e D. Teresa, Afonso Henriques derrotou ambos na batalha de São Mamede, quando pretendiam tomar a soberania do espaço galaico-português, e assumiu o governo do condado.
Obrigada desse modo a deixar a governação, alguns autores defendem que foi detida pelo próprio filho no Castelo de Lanhoso ou se exilou num convento na Póvoa de Lanhoso, onde veio a falecer em 1130. Modernamente, depreende-se que após a batalha e já em fuga, ela e o conde Fernão Peres foram aprisionados e expulsos de Portugal.
D. Teresa teria falecido na Galiza, possivelmente no mosteiro de Montederramo que refundara em 1124, de acordo com um documento assinado em Allariz.
A partir de então, Fernão Peres de Trava concentrou a sua influência na Galiza, assinando como "Conde Fernando da Galécia" (Comes Fernandus de Gallecie). Aqui, realiza um trabalho de apoio aos mosteiros cistercienses, podendo atribuir-se-lhe a fundação do Mosteiro de Sobrado dos Monxes. Disputou a liderança da Galiza com Diego Gelmírez, o influente arcebispo de Santiago de Compostela, com quem manteve um tenso entendimento.
Nas campanhas mouras, comandou as tropas galegas ao serviço de Afonso VII nas suas incursões contra o Califado Almóada. As crónicas destacam o seu valor na conquista de Almería. Contra Portugal, defendeu com dificuldade o vale do Minho das investidas de Afonso Henriques, até à paz de Zamora de 1143.
São conhecidas também duas estadias na Terra Santa no final da segunda cruzada. Cedeu territórios aos Templários na actual costa da Corunha e foi quem introduziu esta ordem militar no Reino da Galiza.
Fernão faleceu entre 1 de novembro de 1155, ano em que aparece pela última vez na documentação do mosteiro de Sobrado e antes de 24 de julho de 1161, data em que a sua esposa Sancha assina um documento afirmando que era viúva. Foi sepultado no claustro da Catedral de Santiago de Compostela e, seis anos mais tarde, transladado para o Mosteiro de Sobrado dos Monxes.
Depois de digerida toda esta informação, parece evidente que D. Teresa e o Conde de Trava, conspiraram para assegurar a independência dos reinos de Portugal e da Galiza, com Teresa como Rainha de Portugal e Fernão como soberano da Galiza. Para tal se apoiaram mutuamente, mesmo quando foram forçados a prestar vassalagem a Afonso VII (tal como o jovem infante Afonso Henriques).
O sonho de um Portugal unido à Galiza, pelo casal e a sua descendência, morre em 1128, na batalha de São Mamede, com a vitória de Afonso Henriques.
Teresa afasta-se para um convento onde morre, dois anos depois. Fernão, desprovido do apoio português, apoia Afonso VII e defende-se das Investidas de Afonso Henriques, também ele determinado a ser rei da Galiza, tal como fora prometido ao pai, D. Henrique. Mas o senhor da Galiza defende-se bem e Afonso de Portugal desiste das suas pretensões às terras galegas.
No entanto Fernão Peres de Trava e D. Teresa acabam mesmo por conseguir o objectivo de ver a sua descendência na coroa galaico-leonesa. A filha de ambos, Teresa Fernandes de Trava casou, em segundas núpcias, em Setembro 1178, com o rei Fernando II de Leão e da Galiza, filho de Afonso VII, o qual, no entanto, fora também casado, em primeiras núpcias, com D. Urraca de Portugal, filha de Afonso Henriques e Mafalda de Sabóia, com quem teve um filho, futuro Afonso IX de Leão e da Galiza, apesar do casamento dos pais ter sido anulado pelo papa Alexandre III, por consanguinidade.
Este Afonso IX casou também com uma infanta portuguesa, em primeiras núpcias de ambos, Teresa Sanches, filha de Sancho I de Portugal, e de Dulce de Aragão. Apesar de terem tido três filhos, seria um filho do segundo casamento do rei, com Berengária de Castela, Fernando III de Castela, a reunificar os reinos de Leão, Galiza e Castela, separados por Afonso VII, sucedendo a Henrique I de Castela em 1214 no trono de Castela e a seu pai em 1230 no trono de Leão.
Ainda assim, foi um descendente de D. Teresa, por via do filho Afonso Henriques, a reunificar o império do pai da Rainha, Afonso VI, com exceção obviamente de Portugal, que só viria, temporariamente, entre 1580 e 1640, a ser reunificado aos restantes reinos peninsulares, pelos Filipes de Espanha, também eles, bem vistas as coisas e apesar de Habsburgos, descendentes distantes de D. Teresa.
8 e 9 de Fevereiro de 2025
0 notes
Text
A Dinastia Portucalense
Porque razão, sendo D. Teresa Rainha, como tal reconhecida pela sua própria corte, filhos, pelas cortes galega, leonesa, castelhana e aragonesa, entre outras, até pelo papa, foi preciso que D. Afonso Henriques fosse aclamado Rei pelas suas tropas, em Ourique, para que Portugal tivesse finalmente um Rei?
Porque motivo o Mestre de Avis iniciou uma nova dinastia, se era irmão e filho dos reis anteriores, D. Fernando, o Formoso, e D. Pedro, o Justiceiro?
Que razões justificam que a subida ao trono de um colateral do Rei, no caso o Duque de Bragança em 1640, originasse uma nova dinastia, enquanto a subida ao trono de outros colaterais do rei, como o Duque de Beja, em 1495, ou o Cardeal Infante em 1578, mantivessem inalterada a dinastia vigente?
Seria a bastardia? Tanto D. Teresa como D. João I eram filhos bastardos do soberano. Mas se D. Teresa perdeu a batalha de São Mamede, contra o filho, D. Afonso Henriques, neto de imperador (é curioso como a bastardia parece já não se aplicar aos netos, mas enfim, sendo Afonso I o Fundador e o Conquistador, parece ter uma legitimidade própria, que não carece de brasões leoneses, castelhanos ou borgonheses), D. João venceu a batalha de Aljubarrota contra a cunhada e rainha viúva, D. Leonor Teles, a sobrinha, D. Beatriz, a rainha legitima, filha de D. Fernando, e o marido desta, D. João I de Castela, os representantes da linha legítima à sucessão do Formoso.
Mas o critério da bastardia já não se aplicaria nas dinastias seguintes. Filipe II era descendente direto e legítimo dos reis de Portugal, neto de D. Manuel, o Venturoso e da sua segunda esposa, a rainha D. Maria de Aragão (embora por via não varonil, pois era filho de D. Isabel de Portugal, o que significa que D. Catarina de Bragança, sua prima direita, filha do Infante D. Duarte, Duque de Guimarães, lhe deveria ter preferido no acesso à coroa) e inaugurou a terceira dinastia.
Ao contrário do que sucedeu em 1385, desta vez o candidato bastardo, D. António, Prior do Crato, também ele neto de D. Manuel e da Rainha D. Maria, mas filho ilegítimo do infante D. Luís, não conseguiu ser Rei. Seguindo as pisadas de Afonso I e de João I, também António foi aclamado Rei pelo povo, mas foi derrotado na batalha de Alcântara, pelas tropas espanholas do duque de Alba, fiéis a Filipe II. Por isso nem sequer consta, geralmente, da lista dos reis de Portugal.
O que não impediu, contudo, o vencedor, Filipe I, de inaugurar uma nova dinastia, a Filipina, apesar de ser neto do rei português D Manuel I. Ao contrário do avô, curiosamente, que chegou ao trono por via colateral e eletiva, mas manteve a dinastia de Avis em vigor.
Neste caso, o sangue dos Habsburgo e os vários tronos estrangeiros, sobretudo o espanhol, falaram mais alto do que o sangue dos Avis (Filipe I era tetraneto de D. João I, tal como os outros pretendentes à coroa, D. Catarina de Bragança e o Prior do Crato, este último por via bastarda, ainda que varonil).
Portanto, neste caso, o critério para a formação de uma nova dinastia não foi a bastardia do Rei, mas o facto do mesmo já ser possuidor de outras coroas estrangeiras, antes de lhes juntar a portuguesa.
D. Pedro IV teria sido aconselhado contra este precedente? A verdade é que abdicou, em favor do filho, do título de imperador do Brasil, antes de disputar o de rei de Portugal. Caso contrário, poderíamos ter tido uma quinta dinastia, a dos brasileiros.
E quanto a D. Joao IV, o fundador da dinastia de Bragança? Pasme-se, também vai buscar a legitimidade a D. Manuel I, de quem era trineto, por via de D. Catarina de Bragança, filha legítima do Infante D. Duarte.
Em resumo, D. Manuel, que não era descendente, nem irmão, de D. João II, mas apenas primo, tendo sido nomeado sucessor por escolha do rei, após a morte do seu filho Afonso e do fracasso das tentativas que fez, para legitimar o seu bastardo Jorge de Lencastre, que deveria ter originado uma nova dinastia, pois foi o único rei nomeado por escolha do antecessor e não por descendência direta (embora fosse neto de D. Duarte por via legítima) manteve em vigor a dinastia de Avis. Mas os seus descendentes fundaram duas novas dinastias, ambas por via legítima, mas não varonil, afastando definitivamente a bastardia como critério inaugurativo das dinastias: a Filipina, iniciada pelo seu neto D. Filipe I, em 1580, e a de Bragança, iniciada pelo seu trineto D. João IV, em 1640.
Está confuso? Não é culpa sua, mas sim dos cronistas da História, que, de tanto puxarem a brasa à sardinha dos seus patronos, viram novas dinastias onde não existiam e fizeram vista grossa à possível quebra de outras. Afinal não era D. Manuel neto de D. Duarte e bisneto de D. João I. Porque razão não haveria de pertencer à dinastia de Avis? E porque não à de Borgonha? Não era o Mestre de Avis filho de D. Pedro, o Justiceiro, e irmão de D. Fernando, o Formoso, ainda que por via ilegítima?
O problema é que, por esta ordem de ideias, só há uma dinastia em Portugal. Todos descendem, afinal, por uma ou outra linha de descendência, do Conde D. Henrique, o borgonhês, e da Rainha D. Teresa de Portugal.
Porque razão há, então, quatro dinastias na história da monarquia portuguesa?
Por razões que a própria razão desconhece.
7 de Fevereiro de 2025
0 notes
Text
De Novo, o Silêncio
Hoje revi "Seduzida e Abandonada", a maravilhosa comédia negra de Pietro Germi, na qual traça um retrato deliciosamente perverso e hilariante da tacanha sociedade siciliana e da sua defesa intransigente da honra, até aos limites do absurdo.
Neste filme destaca-se, pela sua beleza e presença avassaladora, a magnífica Stefania Sandrelli, então com 18 anos de idade. Uma figura franzina de modelo, um rosto angelical e uma atitude silente, de permanente desafio, que desarma qualquer homem e me faz apaixonar perdidamente por ela, de cada vez que a revejo, neste filme ou em "Divórcio à Italiana", onde mal tinha ainda dezasseis anos de idade.
Paixões à parte, até porque é perverso e paradoxalmente ridículo apaixonar-me por uma miúda de dezasseis ou dezoito anos, que é, pelo menos, vinte e dois anos mais velha do que eu, pelo que tem idade para ser minha mãe, um dos aspetos mais apaixonantes destes personagens, interpretados pela bela Sandrelli, é a sua contenção, o seu frequente silêncio, raro numa atriz e filmes italianos.
Também Ingmar Bergman, um dos meus cineastas preferidos, escreveu largas dezenas de filmes e de peças de teatro, quase sempre com uma loquacidade voraz, pois é próprio de um dramaturgo comunicar pela palavra, em diálogo ou monólogo. No entanto, um dos momentos mais eloquentes da sua obra está precisamente no filme mais contido e atípico que fez, a que adequadamente chamou "O Silêncio".
Há qualquer coisa de muito belo e apaixonante no silêncio, sobretudo numa mulher, onde a ausência de discurso parece ainda mais improvável, mais elegante, mais sedutor. Adiciona magia, mistério, sedução, à omnipresente sensualidade feminina. Parece que cada palavra arrancada a uma bela mulher silenciosa é um beijo, uma concessão contida, que aumenta a paixão crescente do ouvinte.
Ou então sou eu que, calado e introvertido por natureza, aprecio essa qualidade rara numa mulher, manifestando amiúde uma paixão improvável por cada mulher atraente, que me contemple em silêncio, ou que nem sequer me olhe, apenas ofereça a beleza do seu silêncio à profundidade do meu olhar carente, de poeta permanentemente incumprido e apaixonado.
Haverá algo mais belo do que o silêncio? Assim de repente não me ocorre nada.
3 de Fevereiro de 2025
P.S. - Aos leitores mais atentos, e que grato eu fico, se os tiver, que me queiram acusar de incoerência por, ainda há pouco mais de um mês, ter escrito um texto em que lamentava a incapacidade de me apaixonar, aos cinquenta e seis anos de idade, que fique bem claro, até porque outra coisa não podia manifestamente ser, que as paixões a que aludo no presente desabafo escrito pertencem à categoria a que, poeticamente, apelei de simples nostalgias de paixão.
Haverá algo mais nostálgico e patético do que manifestar paixões por personagens de cinema dos anos sessenta, ainda por cima de filmes estreados antes do meu nascimento? Parece-me bem que não.
4 de Fevereiro de 2025
0 notes
Text
Viver para Escrever
Há muitos que escrevem para viver. Alguns escrevem bem e geralmente têm poucos leitores. Outros escrevem mal, mas conseguem ser lidos por muitos e até ganhar fortunas a escrever. Mas não é sobre nenhum destes que eu queria escrever.
O meu texto visa aqueles que vivem para escrever. Muitos nem publicam, mas escrevem, para si, para a gaveta ou para o seu equivalente contemporâneo, a blogosfera. Outros escrevem para os amigos, para os consortes, para a descendência. Poucos os lêem, se os apreciam é muito mais pela pessoa que pelo escrito, mas mesmo assim escrevem.
Porquê, por vaidade? Mas alguém pode ter vaidade naquilo que ninguém lê? É apenas para oferecer uns livros com o seu nome na capa, no Natal ou em visitas de cortesia, à laia de cartão de visita? Seria ridículo se esse fosse o seu único, ou principal, impulso para escrever.
Escreve-se por que se tem que escrever, porque faz parte da sua essência verter regularmente por escrito.
Eu sou um desses escritores compulsivos. Se o não fizer, começa a pesar-me a consciência. Há quanto tempo não escrevo, não pinto, não toco? A arte faz parte da minha vida, consumo-a com muito maior regularidade do que a produzo. É natural, o contrário é que seria estranho. Lembra-me uma série de humor britânica, em que um escritor se gabava de ser um dos poucos autores que escreveu mais livros do que leu. Não é o caso do escritor compulsivo, seguramente. Qualquer escritor que se preze, leu centenas de livros, antes de se arrogar o direito de escrever alguma coisa digna de ser lida, quanto mais publicada.
Não é o orgulho da publicação, não é o número de leitores, muito menos os lucros das vendas, não é a ilustração, a erudição, a inveja. É simplesmente o vício, a necessidade, a sanidade mental.
Escrevo para viver, não porque viva da escrita, mas porque dela careço, para suportar as tristezas, as frustrações, os tédios e as ansiedades da vida. No fundo, vivo para escrever.
Há alguns que padecem de verborreia. Eu sou dos que não tem dificuldade nenhuma em conviver com o silêncio. Pelo contrário, é a prosápia que me incomoda.
Mas se não escrever arrebento!
28 de Janeiro de 2025
0 notes
Text
Orgulho e Humildade
Quis a Fortuna que, num curto espaço de tempo, me dedicasse à leitura das biografias, detalhadas e ricamente ilustradas, de dois famosos artistas, à primeira vista, sem nada em comum, Vincent Van Gogh e Salvador Dalí.
Se o primeiro viveu integralmente no século XIX (1853-1890), o segundo viveu integralmente no século XX (1904-1989), pelo que nunca se cruzaram ou conheceram e não se pode dizer que Van Gogh tenha tido qualquer influência na pintura de Dalí. Dois estilos totalmente diversos, fruto de épocas distintas e de personalidades quase opostas.
E no entanto têm muito mais em comum do que as aparências fazem crer.
Um pai autoritário, com quem cortaram relacionamento, ainda jovens. Uma obsessão invulgar pela pintura e pela arte (neste particular Dalí, pela vida muito mais extensa que teve, mas também pelo enorme desenvolvimento tecnológico a que assistiu, no século XX, arriscou bastante mais, quer na inovação, quer na multidisciplinaridade das suas obras, mas sempre de forma obsessiva), um profundo misticismo, a passagem por França, onde fizeram uma boa parte da sua formação e carreira, uma enorme popularidade (póstuma no caso de Van Gogh) que os coloca no top dos artistas mais populares do século XX, mantendo, ainda hoje, um enorme fascínio entre o público, de gerações nascidas muito depois das suas obras mais admiradas.
E no entanto, o caminho para a arte e popularidade, foi completamente oposto nos dois artistas, apesar de ser ainda cedo para analisar o impacto da obra de Dalí na posteridade.
Van Gogh nasceu pobre, numa aldeia holandesa, filho de um modesto sacerdote protestante e da sua mulher. Foi sempre profundamente religioso e a sua primeira obsessão foi a de seguir os passos do pai e tornar-se, também ele, pastor. Fé não lhe faltava, mas o seu caráter impetuoso e paixões inconvenientes, afastaram-no do caminho do sacerdócio. Descobre então, já tardiamente, a pintura, que abraça com obsessão. Tinha um tio marchand de arte e quer ele, quer o irmão Theo, lançaram-se no mundo da venda de obras de arte, como empregados do tio. Mas Vincent rapidamente denota pouco talento para o negócio e regressa à casa paterna, dedicando-se a tempo inteiro à pintura. Já Theo ficaria o resto da vida ligado ao comércio de arte, primeiro na Bélgica e depois em França, tendo sustentado a vida de pintor do irmão, mediante uma pequena pensão, a troco de quadros, que não conseguia vender e se acumulavam nos armazéns da empresa e em sua casa.
Diz o mito que Van Gogh nunca vendeu um quadro em vida, o que não é inteiramente verdade. No início da sua curta carreira como pintor (durou apenas cerca de uma década, durante a qual Vincent pintou centenas de quadros, porque era um pintor obsessivo, com uma produção quase diária de obras, durante a maior parte da sua vida artística), vendeu uma obra por encomenda, na terra onde vivia com os pais, e no final da vida, quando começava finalmente a expor com os novos talentos parisienses e a participar em exposições de relevo, vendeu outro quadro, a uma colecionadora amiga da família. Mas convenhamos que dois quadros numa vida, ainda que curta, de apenas 37 anos, dos quais, só cerca de dez foram dedicados à pintura, é muito pouco. Paradoxalmente, quando Van Gogh começava finalmente a ganhar respeito e admiração dos colegas e a despertar o interesse do público, suicidou-se com sucesso, após várias tentativas anteriores falhadas.
Van Gogh estava longe de ser um tecnicista. Foi praticamente autodidata. Passou fugazmente por uma escola de arte, onde se deu mal com o método académico do ensino, pelo que a abandonou e decidiu praticar sozinho, aprendendo com as obras e as técnicas dos colegas com que se foi cruzando. Essa foi, aliás, uma das razões pelas quais pintou tantos quadros, com especial incidência em naturezas mortas, em flores e paisagens. Van Gogh pintava por instinto e repetia o mesmo quadro várias vezes, até conseguir aperfeiçoar o resultado. Mas não era um perfeccionista, longe disso, acreditava na espontaneidade da pintura. Fazia uma versão, outra melhor e por vezes uma terceira. Depois era outro dia e descobria outro tema para pintar. Raramente regressava aos seus quadros anteriores. Quando os terminava arrumava-os, até os despachar para o irmão, a troco da pensão mensal que o sustentava.
Foi assim que desenvolveu a sua técnica ao longo dos anos, que ele próprio reputava como imperfeita e pretendia melhorar a cada novo quadro, preocupado sobretudo com as conjugações de cores e o desenvolvimento de um estilo cromático próprio, expressivo, atraente e inovador.
Van Gogh nunca se considerou um grande pintor, apenas um aprendiz, que ambicionava dominar um estilo próprio, baseado nas cores contrastantes. Talvez por isso mesmo, a convivência com um pintor reputado como Gauguin, começou com um enorme entusiasmo, pela previsível troca de ideias e de experiências que implicava, mas terminou em tragédia, com o abandono do francês da casa de Vincent, desentendidos, pela rejeição de Gauguin do "amadorismo" de Van Gogh. Este sentiu uma profunda desilusão, que o levou à auto mutilação (a famosa orelha cortada), ao hospital e a um longo período de internamento voluntário em casas de acompanhamento de doentes psiquiátricos, num regime semi aberto, que lhe permitia sair, com limitações, para pintar, mantendo um pequeno estúdio para seu uso privado, período, aliás, em que pintou algumas das mais belas obras da sua vida, mas também em que tentou, pelo menos duas vezes, pôr termo à vida, pela ingestão das próprias tintas e outros produtos tóxicos usados na pintura.
Quando finalmente se achou em condições para deixar o hospício, livre das crises de loucura, que o impeliam para o suicídio, instalou-se numa casa de um médico, nos arredores de Paris, onde tudo parecia talhado para o sucesso. Era vigiado pelo novo amigo que também era pintor, estava perto de Theo e de Paris, parecia recuperado das crises psiquiátricas, os seus quadros começavam finalmente a despertar o interesse de galerias, exposições coletivas e colegas pintores. Mas o idílio durou poucos meses. Vincent atentaria novamente contra a sua vida, desta feita com um tiro no peito, que o matou, após muitas horas de sofrimento no quarto de uma pensão, acompanhado do amigo médico, incapaz de evitar o inevitável e do irmão Theo, que rapidamente se deslocou para junto de si, nas derradeiras horas de vida.
Vincent Van Gogh foi assim um pintor tardio, de técnica rudimentar e autodidata, que foi aperfeiçoando ao longo dos anos, obcecado pela sua pintura, mas que apenas reconhecia qualidade numa dúzia entre as centenas de obras que pintou e que, desiludido e sozinho, entrou num processo de auto destruição, que o conduziria a uma morte prematura.
Talvez impressionados pela loucura e morte dramática do holandês, o público e a crítica reagiram com um interesse crescente nas suas obras, que começou ainda antes da morte, mas cresceu exponencialmente depois dela. Passada uma década já era um dos mais apreciados pintores da sua geração. Vinte anos depois os seus quadros valiam pequenas fortunas.
Sem ser um tecnicista (não há obras "académicas" de Van Gogh, o seu estilo foi sempre simples e tosco) o seu grande mérito foi anunciar um expressionismo avant la lettre, de enorme preocupação e desenvolvimento cromáticos, que evoluiu de uma temática mais social (a fase holandesa dos "comedores de batatas", de um realismo digno de Zola) para um deslumbramento mágico, fruto talvez do seu desequilíbrio psicológico ou da medicação que tomava, que tem no famoso céu estrelado a sua mais elevada expressão.
É o exemplo de uma vida de obstinado insucesso que termina na glória do reconhecimento póstumo e da elevação imprevista ao Olimpo dos artistas mais venerados do seu tempo.
Salvador Dalí foi o oposto de tudo isto. Criança prodígio, filho de um notário, com dotes para a pintura desde a infância, denota ainda uma confiança que roça a megalomania, desde muito cedo. Frequenta a Academia de Belas Artes de Madrid, onde todos lhe reconhecem um enorme talento, mas também a irreverência e a arrogância de confrontar os professores com as novas tendências artísticas, nomeadamente o cubismo, o pontilhismo e ocasionalmente o dadaísmo. Acaba expulso da universidade, para desgosto do pai, por liderar conspirações contra o academismo de alguns professores.
Ruma então a Paris, onde trava conhecimento com os surrealistas, de quem haveria de ser o mais famoso e destacado membro, durante o resto da sua vida. Após o casamento com Gala, a sua musa e apoio para o resto da vida, passa os anos da guerra civil e da II Guerra Mundial nos Estados Unidos, onde a sua ousadia, o ego enorme, a extrema originalidade dos seus quadros e uma capacidade inata para a auto promoção, junto da comunicação social e da alta sociedade, o levam ao estrelato. As sua obras vendem-se muito e por bom preço, é chamado a colaborar em Hollywood, entre outros, com Hitchcock e Walt Disney, escreve livros de sucesso, onde se auto proclama um génio, pinta retratos, por encomenda, para inúmeros membros da alta burguesia americana, pinta cenários para bailados e óperas que estreiam, com sucesso, nas maiores salas norte americanas, a sua megalomania leva-o inclusivamente a manifestar admiração por figuras como Hitler e Estaline (pintou mais de um quadro com retratos de Adolf Hitler). Dalí era uma estrela a quem tudo se permitia e toda a excentricidade tinha cobertura mediática. Era o artista do século.
Tudo isto não agradou naturalmente aos surrealistas, os quais, liderados por André Breton e militantes convictos do marxismo, não toleraram a Dalí a forma como ridicularizava o movimento, pactuava com o capitalismo americano, numa sede tacanha pelo dinheiro (puseram-lhe até a alcunha de Avida Dollars, um anagrama do seu nome que evidencia a sua avidez pela riqueza) e sobretudo não lhe perdoaram a cumplicidade com o fascismo e o nazismo, sendo este o motivo formal para a sua expulsão do movimento.
Na verdade, Dalí nunca foi fascista, nem comunista, foi sempre Dalinista, um ego gigantesco que só tinha por interesses, a sua arte e a promoção da sua figura, como génio de reconhecimento mundial. A política não lhe interessava. Teve boas relações com os políticos americanos, como teve com Franco (até pintou um retrato da sua neta), com Pompidou, o presidente francês ou com o Rei Juan Carlos, que o faria 1.º Marquês de Dalí de Púbol, pouco antes da morte, título que recebeu com enorme orgulho e que terá mesmo levado a que legasse grande parte das suas obras as Estado Espanhol, em detrimento da sua Catalunha natal, onde nasceu e viveu grande parte da sua vida, mas que alegadamente não o soube acarinhar como artista (apesar de ter erigido um museu exemplar, totalmente dedicado ao artista, na sua cidade natal, em cuja concepção e execução Dalí participou ativa e obsessivamente).
Outra das peculiaridades de Dalí foi o crescente misticismo, que começou a expressar após o lançamento das bombas atómicas, no final da segunda guerra mundial. O pintor sentia um profundo medo da morte e isso aproximou-o da Igreja Católica, outro facto que o tornou persona non grata, entre a comunidade artística maioritariamente marxista, ao mesmo tempo que o enaltecia, aos olhos do regime franquista.
Dalí nunca abandonou o surrealismo, pelo contrário, continuou a ser o seu mais famoso e admirado representante, mas as suas fantasias delirantes, com elefantes, rinocerontes, muletas e objetos moles (como os famosos relógios) passaram a incluir santos, madonas (geralmente usando Gala como modelo), anjos e Cristos cósmicos. Mais tarde passou a usar modelos clássicos, de Michelangelo, de Rafael e de outros pintores renascentistas, como base para as suas fantasias surreais e experimentais de novas tecnologias, como o holograma.
Após a morte de Gala, a companheira de toda a vida, Dalí entrou em profunda crise, tentando matar-se por desidratação e até imolando-se pelo fogo.
O seu desejo, no final da vida, era que o futuro o considerasse o Rafael do seu tempo. O maior génio artístico do século XX.
Ao comparar estes dois percursos de vida e arte quase opostos, de Van Gogh e Dalí, embora com pontos em comum, como acima referi, e mesmo considerando que ainda é um pouco cedo para avaliar a influência de Dalí na arte do século XXI, sou pelo menos obrigado a constatar o seguinte:
Enquanto o obscuro, miserável e auto didata Van Gogh, que morreu aos 37 anos de idade, por suicídio, teve a sua fama, a admiração e valorização da sua obra póstumas, mas num crescendo imparável, desde há mais de um século, o Marquês Dalí, também conhecido por Avida Dollars (alcunha que ele não rejeitava e até elogiava), apesar da sua exemplar formação clássica, da inegável qualidade técnica dos seus trabalhos, mas que transformou a sua vida artística num circo de futilidades, em que ele assumia o papel de palhaço, para enorme satisfação e admiração gerais, parece ter perdido brilho, sem o espetáculo que sempre envolveu a sua vida. As obras, embora algumas mantenham um inegável prestígio e valor artístico e monetário, parecem já não surpreender ninguém. O Dalí póstumo é incapaz de esconder aquilo que sempre foi, toda a vida, um pintor talentoso, mas com um ego muito superior ao talento. Uma máquina publicitária, que fez dele uma estrela efémera da fama e da fortuna.
Resta saber por quanto tempo brilhará essa estreia e se não foi já, há muito, ultrapassada pela humilde honestidade do modesto Vincent, pastor de almas e pintor de camponeses comedores de batatas.
9 de Janeiro de 2025
0 notes
Text
Gin Tónico
Acordei eufórico. Nada de especialmente interessante, apenas um sonho onde me senti o rei da festa, sempre com um piada rápida e de gosto duvidoso, de resposta pronta, que me parecia brilhante e digna de consignação, para memória futura, nem que fosse no capítulo dedicado ao surrealismo.
Fiquei na cama a ver um filme, o que me pareceu a solução mais acertada, para um domingo de inverno chuvoso. Já a escolha do filme foi discutível, A Noiva Estava de Luto, um thriller com uma história de vingança sem piedade, protagonizado pela bela Jeanne Moreau, a qual, mesmo com quarenta anos de idade, exalava sensualidade a cada assassinato, talvez fruto do meu fetiche por mulheres maduras, belas e dominadoras. Como a minha mulher.
Era dia de chuva, por isso a casa impunha-se como refúgio, para um domingo sem história. A minha consorte, como de costume, vingou-se do tempo com uma azáfama que, pelo cansaço, a impedia de entrar em depressão. Uma decisão inteligente, reconheço.
Já eu, entrego-me com facilidade à depressão, não pela chuva, que me passa quase completamente ao lado, mas pelo domingo, pela ansiedade do fim de semana que termina e que, no caso, implicava também o final das férias natalícias e o recomeço do stress litigioso, já amanhã, sem contar com os prazos judiciais que terminavam na semana seguinte e que exigiam uma litigância e entrega, que eu estava longe de conseguir assegurar.
Após um surpreendente almoço a dois, pois apesar da azáfama, a minha cara metade arranjou tempo, não só para preparar um almoço requintado, como para me presentear com a sua companhia solitária à refeição (os filhos estão entregues a si próprios, como é próprio da idade adulta).
Sou um privilegiado, reconheço. Mas ainda assim ansioso. O pós refeição levou-me primeiro ao consumo moderado de álcool, um dos poucos prazeres da vida, na minha idade, e depois à constatação que a melhor forma de aproveitar este tormentoso domingo, mesmo influenciado pelo álcool, era começar a pôr o serviço em dia e acabar com algumas das ansiedades pendentes, sobretudo as que tinham prazo legal para o efeito.
Trabalhar ao domingo, ainda por cima, depois de dois gins? Porque não? A vida é plena de surpresas e se o gin ajuda a superar a depressão e a ansiedade, seria estúpido recusar a disponibilidade que ele me oferece, para levar esta vida em frente, algo que a idade não ajuda, com absoluta certeza.
No entretanto, posso sempre lavrar estas linhas, em jeito de apologia. Enquanto acabo o gin, que espera à minha frente, num copo partido, o fim temporário das minhas dúvidas existenciais.
O que seria dos velhos, sem o álcool? E um caderno de memórias.
5 de Janeiro de 2025
0 notes
Text
Paixão
Posso dizer, sem pudor, que uma das coisas que mais sinto falta, na maturidade, é a paixão. Acreditem que lhe chamaria velhice, sem qualquer receio, mas a verdade é que há tanta gente à minha volta que já passou dos oitenta, que acho prudente reservar o adjetivo para decrepitudes mais avançadas, caso lá chegue, o que não faço questão nenhuma.
Há pessoas que levam uma vida inteira sem conhecer a paixão. É um sentimento que não lhes serve, não se encaixa na sua personalidade equilibrada. Eu orgulho-me de dizer que nunca fui equilibrado nos sentimentos e que, quando era jovem, tinha a capacidade de me apaixonar, quase todos os dias.
É ridículo, bem sei. Para que serve tanta paixão? Apenas para nos deixar infelizes, de cada vez que constatamos a sua falta de reciprocidade. Mas que diabo, dá pica, entusiasmo pela vida. A eventualidade de cumprir uma paixão, ou de apenas a alimentar, com infundados anseios, é uma razão, mais que suficiente, para levantar da cama, sair de casa, conviver com outrém, o mais próximo possível da paixão ansiada.
Tive a felicidade de cumprir uma paixão na vida. Só uma, mas acreditem que não é pouco, é tudo! Há quem viva, até aos cem anos, sem ter conhecido uma paixão correspondida. A mim, bastaram dezessete anos de vida e uma determinação férrea em cumprir uma paixão, para que tal se tornasse realidade. Não é um elogio senão à inteligência que demonstrei, em tão tenra idade, ao perceber que, quarenta anos depois estaria a escrever que, se há coisa que valha a pena na vida, é viver uma paixão correspondida. E eu tive o privilégio, não apenas de a viver, mas de a prolongar, até onde foi humanamente possível.
Infelizmente, aos cinquenta e seis anos de idade, não tenho a capacidade de me apaixonar. Não sei exatamente quando perdi essa capacidade, mas foi algures pelo caminho. Acreditem que tenho pena.
Não desvalorizo o amor, a amizade, o carinho ou outros sentimentos positivos, que mantenho e tento nutrir, com as limitações que são próprias à minha natureza solitária. Mas sempre fui alimentado por paixões.
Não é o amor que dá alento nas manhãs frias, ao levantar da cama, não é a amizade que faz enfrentar a vida, cada vez com menor paciência para os outros e não é o carinho que me enche a vida, que me dá sentido ao viver. Falta-me a paixão. A velhice roubou-me a paixão, algo que considero imperdoável, porque aí residia a essência do meu viver, o fogo que me alimentava a existência e me fazia ansiar por cada novo dia.
Hoje olho uma jovem mulher bonita e as lágrimas vêm-me aos olhos. Não me apaixono, limito-me a sentir a nostalgia da paixão, que é um sentimento triste e impotente. É óbvio que, se tivesse a idade dela, provavelmente fugiria, com medo dos meus sentimentos e uma timidez inata. Mas a verdade é que, mesmo que fosse no plano mais remoto das possibilidades, no mundo dos sonhos e das quimeras de adolescente, a paixão cresceria em mim.
Hoje não cresce, não existe nem sequer em mera improbabilidade, tenho plena consciência disso. Os homens velhos que andam à procura de paixões jovens, a troco de jantares e presentes, são ridículos. Deixam-se enganar, por incapacidade em enfrentar a realidade da velhice. Iludem-se com pouco, em troca de muito.
Não tenho essa insensatez. Sei que o meu tempo das paixões acabou e dou-me por feliz pela maravilhosa oportunidade de ter experimentado uma, e longa.
A velhice é o tempo das memórias e o presente é totalmente desprovido de paixão.
Mas a verdade é que é bem melhor reviver as paixões do passado do que chorar as impossíveis do presente.
Pode parecer pouco, mas esse é o meu consolo de velho.
É melhor perder uma paixão esgotada do que viver sem nunca ter sentido uma paixão correspondida.
23 de Dezembro de 2024
P.S. - Não posso deixar de acrescentar que, na noite que se seguiu à escrita das linhas anteriores, tive um sonho erótico particularmente interessante, que incluía a ex-modelo Cláudia Schiffer, pessoa aliás, pela qual, sem deixar de lhe reconhecer as evidentes virtudes, nunca demonstrei a mais pequena inclinação.
Seria o meu subconsciente a contradizer-me e a afirmar peremptoriamente que, pelo menos em sonhos, a paixão nunca esmorece?
A verdade é que acordei mais bem disposto. Talvez por ser véspera de Natal.
24 de Dezembro de 2024
0 notes
Text
A Família Moribunda
Quando era criança, a família era o centro do meu mundo. Não apenas a família chegada, os pais, os avós e os irmãos, para quem os tinha, mas também aquilo que hoje já consideramos família afastada, como tios, primos direitos e por vezes até tios avós e respetiva descendência, quantas vezes coabitando na mesma casa.
Como o meu pai era natural de uma pequena vila alentejana, posso afirmar, sem exagero, que quase um quarteirão inteiro da vila era habitado por parentes, entre tios, tios avós, primos direitos e afastados e outros, que se não eram parentes eram afins ou afilhados, enfim, uma enorme família a quem se visitava religiosamente, de cada vez que se "ia à terra".
Mas mesmo a parentela em diáspora, convivia com frequência, ninguém faltava a um casamento, batizado ou enterro, ou até a uma simples visita ao hospital, de cada vez que alguém era acometido de alguma maleita.
Telefonava-se a dar os parabéns pelo aniversário, a desejar boas festas, e visitava-se com frequência a casa uns dos outros. Convivi e frequentei, assiduamente, a casa de muitos tios e primos, alguns afastados e até com afins desses familiares, com quem nos cruzávamos, inevitavelmente, entre tantas visitas. Alguns considero ainda amigos de infância e cumprimento-os com verdadeira amizade.
O mundo estava organizado à volta da unidade familiar. Era à família que se recorria, de cada vez que era preciso. Um filho ia estudar para Lisboa, ficava em casa do tio. Era preciso um favor burocrático, pedia-se ao familiar que trabalhava nos serviços, ou tinha algum afim no local. As férias passavam-se também em casa uns dos outros, fosse no regresso à vila, para as festas anuais ou outras ocasiões especiais, fosse até porque um tio ou primo tinha uma casa de férias na praia, que justificava uma visita ocasional, num fim de semana, ou nem que fosse só para uma almoçarada em família. Era uma vida muito mais coletiva e a principal coletividade era a família, num sentido alargado do termo.
Hoje ainda vislumbro alguns vestígios desta intensa vivência familiar, mas só nas comunidades de imigrantes, onde todo o fim de semana há jantares e convívio, até de madrugada, em casa uns dos outros.
Mas entre os portugueses de origem não acontece assim. Com a idade, a família foi-se reduzindo, reduzindo, ao ponto de, por vezes, chegar quase à unidade.
Ainda há pouco, um cliente solteiro me perguntava a quem haveria de deixar a herança? Filho único, como eu, tem uma tia no estrangeiro que não sabe se é viva ou morta e dois primos que são completos desconhecidos.
Também eu, com a idade, vi a minha família a diminuir. Morreram os mais velhos, os mais novos seguiram o seu caminho e hoje, a minha família é a minha mulher (que é afim e não familiar, em sentido jurídico), os dois filhos e a velha mãe viúva. Tudo o resto está extraviado. Alguns não sei se estão vivos ou mortos, se andam por cá ou pelo estrangeiro, se estão casados, solteiros, divorciados ou viúvos. Muito menos sei se têm filhos e netos e quais os respectivos nomes. Quebrou-se o laço familiar e não foi só na minha família, eu olho à minha volta e vejo o mesmo por todo o lado, pais e filhos que não se falam, irmãos de relações cortadas, primos que nunca se viram na vida, nem sabem da existência uns dos outros.
A bem da verdade, tenho até de reconhecer que, mesmo a família restrita, aquela de casa, que se vê todos os dias, já teve dias melhores. Os filhos estão adultos, o casal velho. Cada um vive para o seu lado e pouco convívio há em comum. Tenho os dois filhos em casa, mas um faz o favor de vir tomar as refeições com os pais e o outro nem isso, fecha-se no quarto e de vez em quando, geralmente quando precisa de alguma coisa, faz o favor de nos dirigir a palavra.
Esta é uma família disfuncional e o problema é que, para onde quer que me volte, vejo essa disfuncionalidade generalizada. Aquilo que era regra, o convívio e entreajuda familiares, tornou-se exceção. Hoje, cada um vive para si, para os seus interesses, problemas, amigos, objetivos. A família está lá para apoiar, entenda-se, para pagar as contas ou dar uma cama para dormir ou um prato de sopa, em momentos de crise, mas quanto menos convívio melhor, evita-as problemas e discussões.
Esta desagregação da família tradicional, conjugada com o aumento substancial da esperança de vida, das habilitações literárias dos mais novos, que os leva à emigração, neste mundo globalizado, tem conduzido a família à completa ausência, à solidão. Morre-se sozinho ou acompanhado por uma empregada, paga à hora, ou num lar de terceira idade ou hospital, rodeado de desconhecidos.
Se juntarmos a tudo isto as novas tendências de organização social, os casais do mesmo sexo, a liberdade de género, as uniões de facto de curta duração, a enorme descida da natalidade, apenas compensada pela imigração, então temos uma sociedade familiar à beira da extinção, o que leva alguns a opinar sobre se ainda se justifica a existência de disposições sucessórias a proteger a família e se não deveríamos adotar um modelo moderno e anglo saxónico, de cada um ser livre de dispor dos seus bens, como muito bem entender, deixando-os a quem achar mais justo, mesmo que essas pessoas sejam amantes oportunistas, que apareçam no final da vida, precisamente a ocupar o espaço outrora ocupado pela família, ou cuidadores extremosos, que trocam a companhia e apoio na velhice por doações e legados em testamento.
Porque não tenhamos dúvidas, são esses os principais beneficiários de uma eventual extinção do regime da sucessão legitimária. Não são os casais do mesmo sexo, porque esses são cônjuges protegidos pela lei, em termos iguais aos heterossexuais. Não são os unidos de facto, porque esses, com mais ou menos direitos, variando de país para país, também estão protegidos pela lei, com direitos de habitação da casa de morada de família e até com direitos sucessórios restritos (como sucede no Brasil). Sem esquecer que o regime da sucessão legitimária nunca impediu a existência de uma quota disponível, que pode ser livremente deixada em testamento a quem se quiser. Hoje até já se pode deserdar o cônjuge, por convenção prévia ao casamento e subsequente testamento que o exclua da herança.
Por isso, a quem protegem as normas da sucessão legitimária? Essencialmente aos filhos. Acabar com elas é acabar com o pouco que resta da unidade familiar, na nossa sociedade. É matar definitivamente a família, na nossa cultura.
Que se façam acertos, por exemplo, extinguindo a legítima dos pais, havendo cônjuge sobrevivo, até posso concordar. Até admito que uma legítima de dois terços da herança seja excessiva, nos casos em que só existam dois herdeiros. Mas acabar simplesmente com a sucessão legitimária e entregar à livre vontade do testador a disposição total dos seus bens, sobretudo numa sociedade em que se morre cada vez mais tarde, sendo comum chegar a ultrapassar um século de vida, parece-me um risco desnecessário e uma machadada final no que resta da família, o seu núcleo essencial, a relação entre pais e filhos.
A liberdade não tem que ser sinónimo de solidão nem é incompatível com os laços familiares. E não faz qualquer sentido sujeitar o que resta das famílias a essa guerrilha patrimonial, na fase terminal da vida dos velhos. Sete cães ao osso da herança, onde se misturam filhos, sobrinhos, amantes, novos cônjuges de ocasião, cuidadores, lares de terceira idade, misericórdias (porque uma boa fatia das suas receitas vem precisamente das doações e heranças dos velhos, que morrem nos seus lares), igrejas reformadas e ortodoxas, sem esquecer os profissionais que até estão legalmente impedidos de receber heranças dos seus clientes, mas mesmo assim são frequentemente beneficiados, fazendo letra morta da lei.
Afinal de contas, se não houvesse herdeiros legitimários e a liberdade dispositiva fosse total, porque razão se haveria de impedir as disposições testamentárias a favor de advogados, de notários, de médicos, de sacerdotes, de enfermeiros ou outros profissionais, que lidam com o testador, na sua velhice? Ou comem todos, ou há moralidade.
Eu preferia que continuasse a haver moralidade e que os filhos, mais ainda do que os cônjuges, continuassem a ser protegidos pelo direito sucessório.
Em memória da família que já fomos e que, quem sabe, talvez um dia voltemos a ser, para conforto da nossa velhice.
16 de Dezembro de 2024
0 notes
Text
Falta de Educação
O ator João André afirmou ao Expresso que “Os atores dizem que faltam subsídios, mas falta-nos é educação. Não sabemos o que é ir ao teatro, não temos práticas culturais”.
Esta afirmação, contra corrente, com a qual concordo em absoluto, esconde na verdade dois defeitos profundos dos portugueses. O primeiro é a subsídio-dependência, o segundo é a iliteracia.
No primeiro caso temos a desculpa de quarenta e oito anos de proto-fascismo e mais cinquenta anos de proto-socialismo. Tudo somado dá quase um século em que os portugueses esperaram que o Estado lhes resolvesse todos os seus problemas.
O Estado é que tem a obrigação de arranjar emprego, casa, educação, saúde, apoio à infância, à velhice, ao desemprego, garantir um salário mínimo elevado, lugares na função pública, pensões de velhice generosas, subsídios para tudo e para todos. Se alguma coisa não corre bem, a culpa é do Estado, que tinha a obrigação de acautelar todas as necessidades, de todos os seus cidadãos, até ao mais ínfimo desejo.
Esta dependência do Estado estende-se a todas áreas de atividade, a todas as idades, géneros, regiões e graus de escolaridade dos portugueses.
Com tantas exigências do Estado, seria de esperar que os portugueses estivessem dispostos a pagar impostos elevados, que assegurassem tamanho volume de benefícios. Puro engano. O português foge aos impostos como o diabo da cruz e corre para o subsídio sem o mínimo pudor ou peso de consciência. Mesmo que não tenha direito, o melhor é concorrer, pode ser que paguem, nem que seja preciso forjar alguns requisitos fundamentais.
O português médio nasceu de mão estendida ao erário público. Tudo o que pingar é bem vindo. Já para pagar, acha que devem pedir aos ricos, aos bancos, à União Europeia, aos estrangeiros, que por cá andam aos milhares. Esses é que têm dinheiro, por isso, esses é que devem pagar impostos. O português é pobre por natureza, mesmo que tenha milhões e ande de Porsche, em segunda mão. Não tem capacidade financeira para pagar impostos, apenas para receber subsídios, ajudas, apoios, comparticipações, pensões, isenções e outros benefícios públicos, venham eles de onde vierem. E fica com inveja se o vizinho receber mais do que ele: é uma injustiça, uma pouca vergonha, é tratar uns como filhos e outros como enteados. A máxima expressão da raça lusitana é o velho ditado que diz que "ou comem todos, ou há moralidade", isto para os que não comem, ou comem pouco, obviamente, porque os que têm a barriga cheia, fecham-se em copas e deixam as reclamações para os outros, sempre afirmando o princípio básico de que "não há direito", deviam pagar a todos, mas escondendo os seus rendimentos e a conta bancária de tudo e de todos, como se fosse sagrada.
Há quem esconda as contas bancárias dos cônjuges e filhos, há quem ande com notas escondidas, para que ninguém saiba os seus rendimentos. Não são só os governantes! Esses são uma mera imagem refletida da sociedade que temos e daquilo que somos, por mais indignação que se expresse à mesa de café ou nos fóruns radiofónicos. As queixas exprimem geralmente inveja, de quem recebe mais do que eu, de quem se sabe governar à conta do Estado, de quem mama mais na teta pública, deixando os outros com fome. Esse é o moralismo nacional, a luta desesperada pelas tetas do Estado, que embora enormes e exangues, não deixam de produzir, todos os anos, mais uns bons milhões de litros de leite, para alimentar um povo esfomeado, insaciável e extremamente preguiçoso e invejoso.
O segundo problema é a iliteracia. Somos um país de velhos e de doutores, seria de esperar que, com tanto reformado e diplomado, a procura cultural fosse massiva, com listas de espera de semanas e meses para assistir a um espetáculo, para ir a um concerto ou a um museu, para ler as obras mais populares do momento, enfim, para consumir cultura. Puro engano.
O português médio, mesmo diplomado pela universidade, foge da cultura como dos impostos. Só lhe interessa futebol, copos, convívio, festivais de rock, jogos, carros, motas e férias em praias paradisíacas, de preferência de copo na mão. Também há os que apreciam viagens e desportos radicais, onde podem igualmente praticar todos os acima descritos hobbies.
Ir a um museu? O governo até os pôs à borla para os residentes, mas a afluência, embora tenha subido (o português detesta desperdiçar borlas), não há filas para entrar ou, nas raras ocasiões em que há, ou são estrangeiros, para visitar os Jerónimos ou a Torre de Belém, ou meia dúzia de portugueses, para visitar o MAAT na única manhã mensal em que a visita é de borla, só porque o museu está na moda e as entradas são caras e limitadas.
Não há filas na Gulbenkian, nem mesmo nos domingos mensais em que a entrada é de borla. Já nem falo nos outros.
Concertos? Contam-se às centenas os portugueses que já entraram no Teatro São Carlos. Mesmo o Teatro Dona Maria II só teve afluência quando o La Feria lá montou uma revista. Para ver teatro a sério tem as mesmas centenas de clientes que o São Carlos.
Há milhares de lisboetas que nunca entraram no Museu de Arte Antiga e mais ainda que não sabem sequer onde fica o de Arte Contemporânea. O mesmo se dirá dos portuenses e do Museu Soares dos Reis ou dos viseenses e do Museu Grão Vasco. O Museu do Azulejo, no magnífico convento da Madredeus, é mais conhecido pelos estrangeiros, do que pelos lisboetas.
Haja arraiais com sardinha assada e copos de plástico, com fados ou música pimba e as gentes acorrem, aos magotes, para ouvir o Quim Barreiros. Deem-lhes música erudita, mesmo que seja de graça, e são sempre os mesmos que lá vão, até se conhecem pelos nomes próprios.
Haja raves e queimas das fitas e Rock in Rio e outros do género, que até se compram bilhetes com meses de antecedência. Mas para ouvir o mais exímio músico de jazz ou um pianista clássico, sobram lugares no mais modesto auditório.
Os portugueses estão positivamente a borrifar-se para a cultura, por isso, ela só existe subsidiada pelo Estado ou pelas autarquias locais. Não há filme português que dê lucro. Não há uma peça de teatro que ganhe dinheiro, exceto os musicais do La Feria, que, independentemente de se gostar ou não das suas produções, deveria ser estudado e imitado, no modelo de fazer cultura em Portugal, sem depender de subsídios e ganhando dinheiro. Não há festival de jazz ou de música clássica que dê lucro, por mais concorrido que seja e mais renomados os artistas presentes.
A cultura em Portugal não é uma indústria, é uma obra de caridade. Há associações e empresários que se dedicam a mendigar subsídios e apoios ao Estado, às empresas públicas, às autarquias locais, à Gulbenkian, à RTP, para montarem eventos cujas receitas de bilheteira não cobrem nem os custos de promoção, quanto mais os artistas, os técnicos, o aluguer dos espaços. Tudo isto é fornecido gratuitamente por entidades públicas, ou pago por patrocinadores, geralmente também do setor público. Cada vez que vou ver um concerto de jazz a um teatro, estou a gastar centenas de euros a alguma entidade pública, dos quais amortizo dez ou quinze euros no bilhete. O mesmo de cada vez que for ver um concerto de música clássica, um filme português ao cinema ou uma peça de teatro, que não seja produzida pelo La Feria.
Mas isto não significa que não existam privados a ganhar dinheiro com estes prejuízos públicos. Há concertos e festivais produzidos total ou parcialmente pelas autarquias, ou pelo CCB ou pela Culturgest ou pela EGEAC ou pela Casa da Música ou o Centro Olga Cadaval, entre outras entidades públicas que se dedicam à produção cultural. Têm a gestão dos espaços culturais, pelo que necessitam de rentabilizar a sua manutenção, o pessoal que empregam e cumprir com a função pública de oferecer cultura. Mas frequentemente preferem subcontratar os espetáculos. Não têm nem uma equipa de produção de espetáculos, que saiba quem contactar, como contratar e negociar preços e datas, nem vocação para isso. São geridos por funcionários públicos, que saem às cinco e não sabem, nem querem saber, nada sobre cultura. Por isso estão recetivos a propostas, que vêm dos agentes dos músicos ou, no caso dos estrangeiros, de produtoras especializadas, que contratam com os representantes dos artistas, no estrangeiro, tratam da logística do transporte e alojamento e contratam os seus serviços, chave na mão, com as direções dos recintos culturais. O preço é tanto (já incluindo naturalmente a margem de lucro do produtor). Vocês arranjam a sala, os instrumentos necessários, os técnicos de luzes e som, tratem da promoção e até podem ficar com a receita da bilheteira (que não paga nem um décimo das despesas totais).
Se a sala enche ou fica vazia é igual ao litro. Cada um cumpriu a sua missão. Há oferta cultural, paga a peso de ouro pelo erário público, os artistas são pagos, os produtores também e as entidades que gerem espaços culturais gastam o orçamento anual, oferecendo ao público espetáculos culturais, que para isso foram criadas.
Mas o sistema é vicioso. Não há sequer uma tentativa de gestão inovadora, que torne a cultura atrativa e auto-suficiente financeiramente. É muito mais fácil viver do subsídio. Dá muito menos trabalho, há oferta variada, até se esgotarem os orçamentos e os subsídios, e todos ganham.
Mas tudo isto se passa à margem do grande público, que não sabe, não quer saber e não há ninguém que lhe ensine a gostar de cultura.
A cultura é um privilégio das elites, subsidiada pelo Estado. O tal Estado que tem que providenciar tudo para os cidadãos, também cumpre essa função de assegurar programação cultural variada, às elites que a frequentam.
Talvez devesse gastar mais na educação cultural dos cidadãos e incentivar a produção privada. Criar uma verdadeira indústria cultural auto suficiente.
Então sim, prestaria um bom serviço à cultura e aos cidadãos.
26 de Novembro de 2024
0 notes
Text
Reféns Sentimentais
De uma forma ou de outra, vivemos reféns dos nossos sentimentos.
Alguns acharão esta ideia perfeita, por serem, precisamente, esses sentimentos, que nos distinguem e caracterizam, como seres humanos.
Outros terão dúvidas, pois, para eles, a principal característica do ser humano é a inteligência, a racionalidade, a capacidade de interagir com o meio que o rodeia, adaptando-o aos seus interesses pessoais ou coletivos. Isto só é possível fazer-se com frieza e objetividade. Os sentimentos complicam e põem em risco, em última análise, a nossa própria sobrevivência.
Temos então dois modelos opostos, que defendem abordagens diversas da vida e da interação social.
Um que advoga o contacto pessoal, a exaltação do sentimento, a solidariedade, o amor desinteressado pelo próximo e pelo meio que nos rodeia, e outro que foge às emoções, evita-as o quanto pode, para nunca perder a frieza e a capacidade para julgar, convenientemente, cada situação, de acordo com os interesses que defende.
Além disso, os sentimentos magoam. Os amores não correspondidos ou ingratos, a impossibilidade de ajudar tudo e todos, a incapacidade para evitar problemas, doenças, tragédias, pessoais ou coletivas. São circunstâncias profundamente decepcionantes, que deixam mágoas e marcam o carácter do indivíduo negativamente, podendo mesmo conduzir ao desânimo, ao desespero e à depressão.
Aqueles que vivem com os sentimentos à flor da pele, têm a invejável capacidade de majorar os efeitos de cada momento de felicidade que experimentem, mas também sofrem profundamente por cada desgosto, injustiça ou decepção. Qualquer ato, simples e banal, é suficiente para os pôr a chorar, de alegria ou de tristeza.
Esta vulnerabilidade assusta. Pelo menos, a mim, sempre me assustou. Fui educado no tempo em que, aos homens, se exigia que não chorassem e sempre reprimi os meus sentimentos, em parte por decoro viril, em parte como mecanismo de defesa, contra a tristeza e o desgosto. Não se lamentam decepções quando as expectativas são baixas. Não se sofre com as derrotas, se os objetivos não forem valorizados em demasia.
É claro que, ao anestesiar a nossa capacidade emotiva, para evitar a decepção e a tristeza, também estamos a minimizar os efeitos das alegrias, a relativizar as conquistas, a banalizar os momentos de felicidade, que a vida tenha para nos oferecer.
Ficamos emocionalmente apáticos, com uma reação, quase indiferente, quer às boas, quer às más notícias. As más convém relativizar, para minorar o sofrimento, mas as boas também, porque se nos deixamos levar por entusiasmos, mais tarde ou mais cedo, acabamos expostos ao sofrimento, porque não há mal que sempre dure, nem bem que se não acabe.
O problema é que a vida é feita, precisamente, destes altos e baixos, destes momentos emotivos em que, ora choramos de alegria, ora de tristeza.
Se só jogarmos à defesa, evitando este carrossel emocional, podemos ser muito frios e racionais, capazes de analisar objetivamente qualquer situação, por mais dolorosa que possa parecer aos demais. Aparentemente, somos seres que alcançaram um estádio superior ao emotivo, sobrepondo a razão a quaisquer outras motivações.
E onde entra a felicidade, nesse processo de esvaziamento emocional?
A felicidade é um sentimento, e absolutamente essencial, para o equilíbrio psicológico do ser humano. São os momentos felizes que dão forças, para aguentar as adversidades da vida.
Se suprimir os sentimentos nos ameniza o sofrimento e o desgosto, também nos priva dos momentos de felicidade. E de que vale a vida, sem esses momentos de felicidade? Acaso somos máquinas, para medir o nosso bem estar em termos de produtividade? Por isso o método defensivo, em última análise, não funciona, pois conduz ao tédio, à indiferença, à ansiedade e à depressão.
Resumindo, é um ciclo vicioso, em que a única solução válida seria encontrar um equilíbrio, entre a entrega desenfreada e a fuga assustada ao sentimento. Ambos os extremos conduzem à infelicidade. Só uma dose equilibrada, de emoção e de sobriedade, permite viver saudavelmente e sem desequilíbrios psicológicos.
Mas se a teoria é fácil de desenvolver, a prática demonstra que temos muito pouco controle sobre os nossos sentimentos. Somos naturalmente tendentes para as emoções ou para a sua ausência. Ninguém escolhe ser um psicopata. Nem depende da nossa vontade a incapacidade de aceitar a miséria e o sofrimento que nos rodeia.
Mesmo que arregace as mangas e combata cada injustiça, cada doença, cada carência social, sabe que é uma luta perdida à partida e o único consolo, no meio de tanta desgraça, é conseguir fazer a diferença para algumas pessoas. Cada vitória dá forças para continuar, mas cada derrota faz perder o ânimo e a fé na humanidade. E as derrotas serão sempre em maior número que as vitórias.
Vivemos assim, sempre, reféns dos nossos sentimentos, seja no altruísmo de evitar o sofrimento alheio ou no egoísmo de evitar o próprio, e com uma escassa capacidade de manipular as nossas emoções.
Imperfeitos e incoerentes, até na capacidade de sermos felizes.
31 de Outubro de 2024
0 notes