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Eric com o pé na estrada
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"Não me compreendem, definitivamente, eu pensei. E logo meus pais, que se dizem tão modernos e abertos, que viveram sua juventude numa época tão revolucionária e democrática. Para que serviu minha mãe ter sido feminista militante, lutar pela liberdade das mulheres e feito piquete em porta de fábrica, se hoje as meninas só pensam em malhar pra ter um corpinho perfeito e ganhar rios de dinheiros, de preferência casando com um cara que tem o dobro da idade delas? De que adiantou meu pai ter lido tanta coisa, ter morado em comunidades hippies, ter me batizado com o nome de Eric em homenagem ao seu maior ídolo do blues? Hoje, o Brasil tem menos livrarias que o Sri-Lankas, os antigos hippies ou morreram de overdose ou são altos executivos de multinacionais e os shows de blues lotam estádios, com ingressos de não menos que quarenta dólares. Por isso, eu me sentia exilado de minha própria idade. E eu queria ser mais."
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ericcomopenaestrada-blog · 14 years ago
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O titanic bate no iceberg
     Para vocês terem uma leve ideia do que eu estou falando, certa vez me interressei por uma área da química bem bacaninha chamada orgânica, que trata das substâncias que formam a matéria viva. Fiquei fascinado com aquelas cadeias enormes de carbono que compunham figuras das mais exóticas no quadro-negro.
     De um a quatro carbonos, se não me falha a memória, eram gases; de cinco para cima se liquefaziam e, depois, se solidificavam pouco a pouco, até chegarem no carvão propriamente dito. Só sei que, lá no meio, tinha o petróleo, uma espécie de lama negra que jorrava dos poços, como tinha visto várias vezes nos filmes americanos.
     Pois bem, fiquei tão entusiasmado com aquele mundo cavernoso que provinha da fermentação de fósseis de animais enterrados a milhões de anos que pesquisei por conta própria durante um tempão. Até me esquecia de ir às aulas. Marcava ponto quase diariamente na biblioteca pública, pegava livros e enciclopédias e armava teorias a respeito do assunto. Delirava, sonhava com aquilo, me tornei um expert.
     Num belo dia, cheio de idéias, rascunhos, resumos e carregado de apostilas, fui à aula para conversar com o professor sobre a íntima relação da química orgânica com a biologia, o que, para mim, nada mais era do que a resposta ao princípio da vida na Terra. Afinal, quando a matéria inanimada ganha vida, há algo aí para se discutir com maior profundidade. Teria descoberto algum segredo milenar? Estaria Deus metido na química orgânica de uma forma ou outra?
     Entretanto, minha tentativa ruiu de vez quando o professor, chegando devagar, me olhou de cima a baixo e disse:
     -Eric, você faltou em cinco aulas. Pode se considerar de recuperação!
     -Mas, mestre - retruquei -, eu estava estudando.
     -Não enteressa, você deveria estar aqui!
     Exato, pensei, deveria estar lá só para marcar presença, bater cartão como um burocrata qualquer, só pra ensebar, enrolando e fingindo como os outros.
     Naquele dia, aprendi mais algumas coisas: a sociedade é hipócrita; somos todos personagens de uma grande peça; a honestidade é uma faca de dois gumes, nem sempre ela é bem aceita. Na escola, como na vida, é preferível que você não seja transparente. Para ser considerado um bom aluno, é necessário estudar e se movimentar freneticamente, passando a ideia de um cara curioso, esforçado. Se você sabe o que a experiência química demonstra, se conhece o objetivo e o resultado, é apenas um meio aluno. O aluno por inteiro tem que mostrar serviço, fazer marketing pessoal, ser um ator completo.
     O Titanic tinha batido no iceberg e naufragado, levando para o fundo do mar algumas das minhas esperanças e ilusões mais caras da juventude.
     Por outro lado, esse episódio me revelara a importância mágica da ficção na vida real. Ainda bem que eu gostava muito de ler e escrever pequenos contos; tinha até ganhado o concurso de um jornal e me preparava para ingressar naquele fulgante mundo de mentira.
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ericcomopenaestrada-blog · 14 years ago
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O teatrão social
     De qualquer maneira, as atitudes de minha mãe não divergiam do resto da sociedade. Essa idéia de se manter sempre em movimento fazia parte do teatro da vida. Pequenas mentiras - percebi cedo, infelizmente - não só eram consentidas, como, às vezes, se tornavam obrigatórias.
     Por exemplo, nas aulas de química no laboratório do colégio, isso sempre acontecia. O professor dividia a turma em grupos de cinco ou seis alunos, cada qual tomando conta de uma experiência. Havia momentos em que não se tinha nada para fazer, pois os intervalos entre uma reação e o respectivo resultado duravam às vezes uma boa meia hora e os alunos dispersavam: conversavam sobre futebol, comentavam o que tinha rolado nas festas do fim de semana, os CDs novos, os filmes que tinham estreado no cinema.
     Num desses dias, eu estava encostado no balcão do laboratório, quando o professor veio chegando na surdina:
     -E aí? - perguntou ele.
     -Aí que estou esperando - respondi.
     -O quê?
     Como já tinha esquecido completamente a finalidade da experiência, chutei:
     -Sei lá, estou esperando que o tolueno se dissolva no equilíbrio ácido-básico, que o benzoato de etila converse com o antraceno e resolvam no que vão se transformar...
     -Eric você não está nem aí!
     -Estou, mestre, estou aí, sim, mas como não há nada para fazer, estou dando um tempo!
     -Como os outros?
     -É, como os outros!
     Ele, então, virou-se para o resto da turma, guiando meu olhar. Acreditem se quiserem: os outros alunos se movimentavam como os cientistas da Nasa, levando pipetas, trazendo soluções amarelas, mechendo em potes esverdeados e fumegantes, misturando líquidos, trocando caldeirões de lugar, esvaziando frascos e conversando tecnicamente. Uns doutores no assunto.
     E ele disse:
     -Os outros estão trabalhando, Eric!
     -Trabalhando nada - rutruquei -, estão é ensebando.
     -Você está dizendo que eles estão me enganando?
     Ia dizer que sim, mas me contive a tempo.
     -Pense o que quiser. Eu, pelo menos, sou honesto; quando não tenho nada para fazer, não faço, fico esperando.
     -Não é assim, Eric. Sempre há alguma coisa para se fazer!
     -O senhor está me dizendo que devo ficar me movimentando só para deixar claro que estou fazendo alguma coisa? É isso? O senhor prefere um teatrão à realidade?
     O professor virou as costas para mim, devolvendo, enigmaticamente:
     -Pense o que quiser!
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ericcomopenaestrada-blog · 14 years ago
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A cama de pregos
     Minha mãe tinha se tornado impressionante, crucial. Naquela época, seu ritmo marcou minha vida. Teceu uma teia de grandes causas a que nós, pobres mortais, jamais conseguimos ao menos arranhar a superfície. Sua inquietação & desassossego criou um aforismo: nada se constrói sem sofrimento e persistência. Esse frenesi, contudo, essa oscilação pendular me prostava e criava em mim um efeito contrário: por mais que ela me fizesse ficar em movimento, meu corpo & mente insistiam em ficar parados. E eu me perguntava: persistência, vá lá, mas sofrimento, por quê?
     Já que, para ela, nada podia dar certo sem uma boa dose de sofrimento, um dia resolvi provocá-la:
     -Mãe, se você quiser compro uma cama de pregos para dormir nela o tempo todo... Se isso resolver...
     -Muito engraçado - ela retrucava -, muito engraçado mesmo. O dia em que você canalizar todo esse seu poder irônico para construir algo que preste...
     E ai por aí afora, numa retórica elíptica e crepuscular, capaz de tornar qualquer argumento injustificável.
     Em meus sonhos, via minha mãe crucificada na tela do micro. Num derradeiro esforço e com efeitos especias dignos de filmes de ficção científica, ela tentava completar com o dedão do pé seu último trabalho, acertando a tecla e digitando a mensagem que iria modificar totalmente a visão do mundo e os rumos da humanidade.
     Não me conpreendem, definitivamente, eu pensei. E logo meus pais, que se dizem tão modernos e abertos, que viveram sua juventude numa época tão revolucionária e democrática. Para que serviu minha mãe ter sido feminista militante, lutado pela liberdade das mulheres e feito piquete em porta de fábrica, se hoje as meninas só querem malhar para ter um corpinho perfeito e ganhar rios de dinheiro, de preferência casando com um cara que tem o dobro da idade delas?
     De que adiantou meu pai ter lido tanta coisa, ter morado em comunidades hippies, ter me batizado com o nome de Eric em homenagem ao seu ídolo maior  do blues?
     Hoje, o Brasil tem menos livrarias que o Sri-Lanka, os antigos hippies ou morreram de overdose ou são altos executivos de multinacionais e os shows de blues lotam estádios, com ingressos de não menos que quarenta dólares.
     Por isso, me sentia exilado de minha própria idade. E eu queria ser mais.
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ericcomopenaestrada-blog · 14 years ago
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Quero ser mais
     Foi por essa época, se bem me lembro, que eu quis fugir para o Azerbaijão, para Arapiraca ou para a ilha de Marajó. Juro, se conseguisse dinheiro suficiente, teria botado uma mochila nas costas, pegaria um ônibus e iria parando de rodoviária em rodoviária, de cidade em cidade, até chegar à fronteira. Daí, para o mar. Embarcaria num cargueiro e me aventuraria oceano afora. Iria para o Sri-Lanka. Vocês sabem onde fica isso? Nem eu. Mas me naturalizaria sri-lanquês ou sri-lanquense ou sri-lancano, sei lá como se chama um sujeito que mora num lugar desses.
    Iríamos em bando: eu, o Aluísio, o Raul, a Raquel, o Ivo e talvez o Freddy. Viraríamos ciganos, poetas, andarilhos, vagabundos profissionais; daríamos um jeito de sobreviver lavando pratos em lanchonetes, limpando latrinas, dirigiríamos caminhões, cortaríamos cana, improvisaríamos batuques bem brasileiros nos mercados e feiras livres.
     A idéia era me misturar com gente diferente, que pensasse diferente, que comesse outras coisas, que acreditasse na vida. Pois tinha me cansado bastante desse mundo de ninfetinhas que seguem a carreira de modelo e ganham trinta e cinco mil dólares por minuto. Achava tudo isso uma pobreza. Todos sabem que uma modelo não passa de um cabide que anda.
     Eu queria ser mais. Queria ir além das opções que me davam. Já conseguia me ver com trinta e poucos anos, casado: meu lar ostentava samambaias na sala, gerânimos na janela e trepadeiras no jardim, tenho um plano de saúde familiar, com direito a trita horas de UTI mensais e helicóptero de resgate, e minha mulher acaba de comprar um poodle de estimação. Além de uma bela agenda e um calendário lunar, tenho uma caneta personalizada e adquiri recentemente um terreninho para construir a tão sonhada casa própria. Dá pra imaginar um negócio desses? Isso tudo não estava nos meus planos.
     Voltando a minha mãe. Para levar a cabo todo aquele projeto de vida, o silêncio era fundamental. Vivíamos cochichando pelos cantos da casa; simples passos na sala atrapalhavam sua concentração; já não respirávamos normalmente, nossos pulmões não recebiam oxigÊnio necessário para alimentar o cérecro; economizávamos gestos, nossas atitudes eram mínimas, contidas.
     Dever, disciplina, renúncia, autodomínio. Quando transgredíamos aquelas regras, nos sentíamos criaturas execrávais. Minha mãe nos impunha uma devoção sublime & cabal a tudo o que fazia ou pensava. Nossa vida era sua vida.
     Seu mote era certeiro:
     -Você tem idéia do que isso significa? Tem?
     Nossas questões não possuíam grandeza. Nossos problemas não eram problemas. Nossas dúvidas ou impasses não passavam de meros acidentes de percurso, apetrechos, miçangas baratas de uma grande fantasia engendrada por ela com objetivos cósmicos, inúteis tijolinhos de sua fundamental obra arquitetônica com profundas ligações universais e históricas.
     Pose. Uma boa parte de sua propalada importância, devo admitir, provinha de sua pose: seu rosto se fechava, a comissura dos lábios se apertava rudemente, seus belos olhos castanhos faiscavam, as narinas dilatavam-se a intervalos regulares, rugas brotavam na testa. E tudo se compunha de forma inapelável.
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ericcomopenaestrada-blog · 14 years ago
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Mamãe entra em órbita
      Foi naquele tórrido verão da virada do século que minha mãe perdeu o emprego. Alegaram enxugamento de pessoal, terceirização de alguns departamentos, falta de verbas e outras besteiras econômicas em moda. Com a indenização, ela comprou um computador novo com megabytes o suficientes para guardar a história do mundo na memória - dos dinossauros á clonagem de seres humanos. Continuou trabalhando para a impresa, só que agora em casa.
     Como meu pai vivia de bicos, ela passou a tomar conta do rumo do navio. Pesquisava febrilmente, extenuava-se vinte e quatro horas por dia, salpicava suor por onde passava, vertia sangue pelos poros, desfibrilava o coração.
     Sua postura naquele escritório improvisado no meio da sala era impressionante. Alternava-se entre o teclado do micro, o scanner, o zip driver, o e-mail, a internet, o laptop e o fax com uma desenvoltura alucinada. Com o tempo, adaptou o telefone ao modem e já não tinha mais que pegar o bocal, falava diretamente por aqueles microfoninhos dos shows da Madonna, devidamente adaptados a sua cabeça, e ouvia a voz do interlocutor pelas caixas de som.
     Uma astronauta. Uma corretora da Bolsa de Valores. Um general do Pentágono brincando de video-game na Guerra do Golfo.
     Tudo o que ela fazia era de vital importância, questão de vida ou morte; suas tarefas tinham sempre um caráter inadiável; premissas, teorias & teses brotavam de seus febris miolos cerebrais, fazendo com que a humanidade assumisse uma vigília aterradora.
     Cada passo seu tinha um efeito devastador. Uma simples soma aritmética estava no mesmo patamar que a invenção da penicilina ou a cura do câncer; nada do que fazia era trivial, corriqueiro ou doméstico; tudo transcedia, retratava uma realidade superior, flutuava em limbos de proporcionalidade & sabedoria. Ela não tinha simples idéias, tinha projetos.
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