"Um poeta tosco e falido, escrevendo versos desapaixonados e sem sentido". — Entre Estradas e Escritos, 2018.
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01/01/1969

Telmo passou a noite toda em claro, com a janela de seu quarto aberta. Era um homem solitário, seus pais haviam morrido logo após a Batalha de Girón, em 1961. Os amigos que nutrira ao longo de sua pacata vida, na grande maioria fugiram, se tornaram gusanos, ou, simplesmente, renegaram seu passado nesta época de vacas gordas. Telmo passou sozinho a virada de 1968 para 1969, sozinho, mas não solitário, ele não gostava de datas especiais, antes de tudo, aquilo havia sido uma escolha e, escolhas, para um homem de Santa Clara são levadas até às últimas consequências, a vida o enrijeceu e um velho camarada o dissera para jamais perder a ternura. Então, manteve os bons modos e, para não desagradar, decidiu voltar para si, olhar o mundo a volta, ouvir aquela cidade pulsar.
E, nessa escolha de quedar-se só em data tão especial, lembrou-se de dos anos passados, de Santa Clara, no coração de Cuba, de seu pai que trabalhava em um posto Texaco e de sua mãe que trabalhava na casa de uns excêntricos estadunidenses. Ele morara na periferia de Reparto Camacho, quando tudo ainda era areia e era possível passar as tardes jogando basebol com Harry e Maria, tão filhos de operários quanto ele, para refrescar, apostavam corrida até o rio Cubanicay. Telmo se lembrava de tudo isso. Mas a única lembrança de seu pai, era dele indo trabalhar em um Jeep Willys de tipo militar dos anos 1940, de capota de lona, a imagem era clara na sua cabeça, o jipe avançando no horizonte, aquela nuvem de poeira meio amarelada, meio alaranjada, voando por de trás e a mão de seu pai acenando, como quem dá um até logo na janela. As rodas se movendo na irregularidade do solo, chacoalhando para lá e para cá, sua mãe na carona, Telmo ficava esfregando sua mão na luva de basebol, como se fosse uma obrigação moral, ficar na frente do seu chalé de madeira, até o jipe de seu pai sumir no horizonte, em direção ao centro da cidade. Seu pai, um espanhol pobre da Catalunha, de nome Santiago, deixava sua mãe em Vigia, rua B, sua mãe, uma cubana filha de ex-escravos, se chamava Carlota. Quando o jipe finalmente sumia no horizonte, Telmo ia correndo até seus amigos para jogar basebol até o meio dia. Sua irmã mais velha, freira fracassada, desempregada, Hortência, o cuidava, e gritava da varanda para Telmo voltar e almoçar. Telmo se lembrou que naquela época, a professora ia até a sua casa, Hortência juntava dinheiro para ir para Havana fazer um curso normal e dar aulas, Telmo aprendeu a ler e a escrever com sua professora, uma estadunidense amiga dos patrões de sua mãe, Telmo não lembrava seu nome, mas sabe que ouviu José Martí pela primeira vez, da boca daquela professora.
Telmo voltou-se para o presente, olhou ao redor, as caixas de charutos e cigarrilhas que havia comprado para passar a noite, todos médios-fortes, pois Telmo gostava de tabaco. Sua máquina de escrever Remington, tomada de um burguês, repousava sobre sua escrivaninha e seu maço de folhas, ele gostava de escrever, alguns livros, A República de Platão, um tomo de obras completas de Lenin e uma bíblia que sua mãe lhe deu e que nunca lera. Mas estava lá, a olhos vistos, como que para o lembrar de um dia ler. Telmo degustou mais um pouco sua cigarrilha, não era um grande fã de charutos, preparou um café com Jägermeister, que ganhou de um alemão oriental que conhecera na embaixada em seu trabalho para o partido. Uma garrafa sem rótulo, a não ser pelo brasão inconfundível e as escritas “D.D.R”, uma bela combinação de café cubano e álcool alemão, com a cigarrilha Cohiba, para amargar o palato e fazer o esôfago queimar. Telmo era um homem duro e vivia e aproveitava o que tinha.
De volta a janela, o seu relógio um Poljot soviético, já marcava quase onze horas, ele havia jantado na sede do partido, cortou um pedaço de bolo que fizera para o café, percebeu o aumento das movimentações, mais crianças, mais pessoas, mais carros. A meia noite se aproximava e todos queriam comemorar. E ele, ao olhar no horizonte, se lembrou que tudo em sua vida foi tardio, aprendeu a ler tardiamente, começou a trabalhar tardiamente, no posto Texaco, o mesmo em que seu pai trabalhara. Os anos 1950 foram agitados, seu pai defendeu com unhas e dentes o assalto ao Moncada, foi preso pela polícia de Batista, por distribuir panfletos revolucionários, eles o deixaram inválido para trabalhar diante de tanta tortura. Foi assim que Telmo conseguiu, com 15 anos, seu primeiro emprego. Lembrou-se que naquele salto no tempo, era ele quem acenava com a mão sumindo no horizonte com seu jipe, era ele quem deixava sua mãe no trabalho. Ele falou consigo mesmo, nesse momento, “agora te entendo, viejo!”. Telmo sorriu, com a cigarrilha ardendo entre os dedos, olhando para o céu estrelado, ouvindo o barulho do mar, sentindo o cheiro salgado, com essas mudanças da vida.
Os tardes da vida. Aprendeu a ler tarde, nunca havia aberto um livro, não era inteligente, nem belo, nem estadunidense e nem europeu. Telmo era um latino que vivia abastecendo aqueles gigantescos carros americanos, um capacho, que trilhava uma vida medíocre em uma colônia na América Central. Lamentava-se que, nem ao menos podia ir ao famoso mar do Caribe. Não conseguia entender o que era tudo aquilo, o que fazia o mundo ser como era, Telmo era um indignado. Mas, Telmo lembrou-se que era tardio. Até sua virgindade perdeu tardiamente, motivo de vergonha e chacota, Telmo sorriu de novo, lembrando das piadas. Telmo era tardio. E, enquanto todos já estavam embriagados naquelas horas da noite, Telmo recém degustava seu segundo gole de café com Jägermeister, para manter-se acordado, para manter-se embriagado e aquecido, embora fosse verão.
Telmo juntou-se à guerrilha tardiamente, quando o Comandante Guevara já havia praticamente tomado a cidade, Batista havia fugido e a revolução estava prestes a triunfar, Telmo apresentou-se à coluna revolucionária. Com uma espingarda de gatilho emperrado, botas furadas, roupas da Texaco, os barbudos viram sinceridade no olhar do jovem Telmo, àquela altura com 17 anos. Lembrou-se que Guevara o perguntou se sabia ler, prontamente disse que sim e o Comandante o mandou estudar, pois seria importante, tomar o poder era a coisa mais fácil. Guevara era um ícone para Telmo.
A revolução estava prestes a completar dez anos, Telmo prestes a completar 27 anos. Ele refletiu e pensou que era muito novo para ter aqueles pensamentos nostálgicos, de um idoso que nada tem de futuro e jacta-se pelo passado. Telmo falou em voz alta, “não temos mais o camarada Che, nem o camarada Camilo”, “não tenho mais meus pais”. Sua irmã fugiu com um advogado viciado em jogatina para Miami, ouvira falar que tinha sido abatido em Girón. Seus amigos de infância perderam-se por Cuba, jamais os encontrou.
Telmo era um homem duro, pouco culto, trabalhava arduamente para o partido, havia deixado de ser militar. Chegou a Havana em 1959 com roupas do trabalho da Texaco, motivo cômico para todos, já que, chegou representando o imperialismo. Seus camaradas brincavam que ele era um espião “gusano”, Telmo ficava sem jeito e, sempre que isso acontecia, achava alguma coisa para mudar os rumos dos assuntos.
Entre suas cigarrilhas, seu café com a bebida alemã, sua janela, seu horizonte e memórias, um pensamento profundo tomou conta dele. Olhou ao redor, sua M1 Garand roubada e emperrada estava recostada ao lado do guarda-roupas, uma bandeira de Cuba e do Movimento 26 de Julho. E concluiu: “fizemos uma revolução no país, ajudei como pude, mudamos nossa ilha, orgulhamos o espírito de José Martí, mas nada mudou dentro de mim”.
Um pensamento profundo de um homem que dá de frente com a contradição, da mudança exterior, do mundo em ebulição, de toda a estética revolucionária e sua árdua dedicação ao longo de dez anos. Mas nada mudou dentro de si, ainda era o mesmo homem, já não andava de jipe, mas a pé, já não acenava para os pais, não tinha sua irmã, seus amigos.
Pensou firme, os festejos do dia primeiro seriam enormes, tinha de estar cedo a postos no Capitólio, com sua farda revolucionária, desfilar como ex-guerrilheiro e membro do partido para os milhões. Ouvir o discurso de Fidel, viva a revolução! Ficou nervoso, mas não pelos festejos, por Fidel, pela revolução, nervoso por si mesmo, de nada ter mudado em essência, Telmo era um interstício entre o antigo e o novo, entre o cubano interiorano e a nova ilha cosmopolita cheia de russos, poloneses, alemães, chineses e mais aqueles técnicos de todos os lados do bloco socialista. Telmo sabia que havia feito o certo, mas o homem não é só material, suas frustrações ainda o acompanhavam.
Nessa divagação, as horas voaram, o sol já nascia e voltamos ao início da narrativa, Telmo não havia dormido e nem ficado embriagado, viajou em sua memória, apoiado em sua janela. Relacionando o horizonte, com seu quarto, o particular com o geral, havia pensado dialeticamente, embora jamais tenha lido O Capital. Percebeu um camarada seu, Gimenez, dedicado a entregar as correspondências dos membros do partido. Chegou em sua bicicleta Iugoslava engraçada, gritando: “Hola, camarada!”, Telmo desceu, estranhou, pegou as cartas e subiu.
Havia ganhado um livro do seu camarada alemão da embaixada, tomo II das obras de Lenin, logo pensou que demonstrava profundo desconhecimento do marxismo e encucou-se. Embaixo, havia uma carta, de Anastácia Salazar.
E a carta dizia:
Continua…
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