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faugfaug · 6 months ago
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Ainda Estou Aqui, filme e livro, dezembro de 2024
Eu devorei o livro do Marcelo Rubens Paiva em três dias. Acho que foi a voz familiar que eu identifiquei. A sua escrita me lembrou a da Alison Bechdel, que também usa memórias suas e da sua família, que também faz uma colagem de documentos, livros, notícias, fotos, músicas, filmes, referências, literatura médica. A escrita de ambos sempre desemboca na sua própria sexualidade. Um escritor machinho me lembrando de uma grande sapatão.
Chega a ser incômodo, no livro do Marcelo, o peso do olhar masculino sobre as mulheres. Por que ele está lá? Por que não focar na meditação sobre memória, passado, doença e violência, incerteza de futuro, nessa grande metáfora genial de intercalar ditadura e Alzheimer para falar das feridas de uma familia e de um país?
Na minha vida, não há nada mais pessoal que a minha sexualidade. Eu construí a minha identidade assim, tendo ela como centro. Está tanto nas minhas entranhas que fica banal, mais um dia acordando um homem gay. É a minha vida.
Marcelo adolescente, Marcelo jovem adulto, Marcelo casado. Falando das mulheres. Como sempre falou. Como é a sua marca registrada. Enquanto o horror acontece, a vida acontece. A gente vive tanto que até para de perceber. Ele não. Um pai assassinado, uma mãe torturada. E, mesmo assim, a vida acontecendo. O sexo acontecendo. As mulheres. A vida continua, a vida não é só luta, a vida não é só luto.
Esse grande narrador honesto. Que tem o dom de parecer que está falando diretamente o que passa pela sua cabeça, sem filtro, que conta a sua história, da sua família e do seu país em uma sentada, conectando o pessoal e o público. O sertão é o mundo.
É a articulação de um grande pensamento, é quase um ensaio. E isso deixa o filme do Walter Salles ainda mais surpreendente. Ainda Estou Aqui não é um livro cinematográfico. Mas a história da Eunice Paiva, sim. Essa grande sacada. Que, sim, está no livro. Vamos contar a história da minha mãe. Eunice Paiva, heroína trágica, que lutou pra preservar a memória, sua e de um país. A Hécuba de Fernanda Torres.
A maneira direta e sutil que o filme escolhe para relatar o horror, sem fugir, sem dramatizar, é a sua grande força. Enquanto o livro articula uma tese, o filme está mais preocupado em contar uma história quase sem grandes artimanhas. Vejam o que aconteceu com Eunice, com Rubens, com Marcelo, Veroca, Nabiu, com o país.
A música do Erasmo Carlos na casa vazia. É preciso dar um jeito, meu amigo.
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faugfaug · 6 months ago
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Hairspray, teatro Renault, dezembro de 2024
Eu estou velho, mas ainda consigo me divertir. Ainda bem. Eu imagino que o John Waters também esteja assim. Tem essa história de que ele criou um dos maiores cavalos de tróia do mundo, de que ele colocou nos high schools norte-americanos, do país todo, um homem vestido de mulher, uma drag queen no palco. Ainda bem.
Hairspray é um musical muito divertido. A montagem do teatro Renault deixa a diversão acontecer, vazar do palco para a plateia e mobilizar a todos. Comunhão. You can't stop the beat.
A Tracey Turnblad da Vera Canto é carismática, é honesta, é realmente a nossa porta de entrada naquele mundo estranho de Baltimore. Atriz inteligente, ela sabe a hora exata de quando sair do texto e comentar, com a plateia, a ação do palco. Eu vou demorar para esquecer o "que merda", de maneira constrangida e sem graça, que ela soltou depois de falar animadamente a péssima expressão "afrotástico", que está no texto da peça, e que pode até funcionar nos Estados Unidos, mas que, aqui, é patética. Ela sabe. Nós sabemos. Nós sabemos que ela sabe. E o seu "que merda" chega até a ter a qualidade de questionar um dos maiores defeitos do texto: o seu tom de white saviour. Obrigado, Vera.
Pena que outros membros do elenco não tenham a mesma sensibilidade. Eu entendo que as plateias hoje estão buscando o caco. O momento especial, fora do script, que funciona pra rede, que gera conversa, que faz o bait. Neste sentido, a montagem é high dopamine. Tudo acontece ao mesmo tempo no palco. Todos os atores querem ter o seu momento, e podem, ao mesmo tempo. Todo mundo está comentando a ação. Improviso. Easter eggs. Observe tudo. Pra mim, falta foco, mas o momento não é de foco, é de experiência. As plateias querem uma experiência única. Hairspray é isso e muito mais.
Quem tinha o "direito" de abusar disso, não abusou. Tiago Abravanel como Edna Turnblad faz o espetáculo correr, ajuda a manter o ritmo e só se utiliza do caco sabiamente. Consegue transformar uma música bobinha, entre Edna e seu marido (vivido pelo ótimo Lindsay Paulino), num grande momento único. Bingo!
Mas a peça encontra o foco no momento que importa. Aline Cunha como Maybelle lidera os atores com clareza da mensagem que deve ser passada em I Know Where I've Been. A cena funciona, quase, em close up. É o momento mais lindo da noite.
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