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O tempo
Cadê o meu pai que nem conheci?
Ele levou.
Cadê minha infância que nem percebi?
Passou, como ele.
Cadê minha juventude que pouco gozei?
Foi levada por ele.
Cadê meu emprego que sempre honrei?
Fui aposentado por ele.
Cadê minha vitalidade que bem gastei?
Enfraqueceu com a ajuda dele.
Cadê minha mãe que estava aqui?
Ele a levou até meu pai.
Cadê os meus filhos que eram meu motivo?
Ele me tirou deles.
Cadê minha esposa que era a outra parte de mim?
Ele me tirou dela.
Cadê nosso lar que me fez leve?
Ele, novamente, me fez voltar.
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Cicuta perfumada
Tu, sujeito de segunda que maltratas tua esposa,
és covarde e insensível
viestes de onde tens socado
frequentas os amigos sem remorso
dissimulas bondade
tens amigas que gostam de ti
te escondes em máscara frágil
enganas, por ora
enfrentarás tormenta que estragará o papel
estarás sozinho em praça movimentada
sofrerás punição, se coragem a ela for dada.
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Concubina da miséria
Pobre Mainha, nunca conheceu conforto
Cresceu na pobreza e se acostumou a ela
A vida, ah, a vida foi só trabalho e renúncia
Sua face descreve as batalhas vividas
Dia após dia, ano após ano
Um não depois de outro não
Acho que ela perdeu em todas as frentes:
viuvez precoce, também o ninho vazio
O que resta a esta sobrevivente passar ainda?
Aguardar a visita do filho, de quando em quando?
Desejar a chegada de um neto para preencher
espaços deixados pelos sonhos não realizados?
Não sei se ela teve tempo de sonhar
Talvez seja este o maior erro de sua vida:
nunca ter sonhado
Este erro, eu não quero cometer.
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O chumbo nosso de cada dia
Só resta o rosto para aferirmos a ferida
Está visto da minha vista
Calibre maior que colibri
Quem, neste corpo, projetou tamanho projetil?
Os que usam couro ou os que levam côro
Não dê deferência a tal diferença
Nada muda para o mudo
A vida tirou-lhe a vida
Da vila para a vala
Ao culpado, a culpa.
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Mimi sina pesa
Grana separada, viagem marcada
África, berço de todos nós
Tanzânia, maravilha de tribos e manadas
Para agradar, algumas frases decoradas:
habari, jina lako ni nani, nzuri sana,
jambo, siku njema, maji, simba, chakula,
e um monte de outras pelas quais
esforcei-me para encaixar
Tudo era festa, como na Bahia
até que um dia, uma senhora
ofereceu-me um colar
Pensei: agora vou esnobar
soltei um “mimi sina pesa”
como resposta, um olhar
O que ele me disse não é para ouvir,
mas para doer na alma
as palavras de seus olhos
rasgaram meus tecidos
atingiram minha sombra
Elas me disseram que eu dizer a ela “mimi sina pesa”
era o mesmo que reclamar de poeira nos olhos
a um cego vitalício,
ou queixar-me de unha encravada a um cotoco,
ou lamentar-me pelo sol a um acamado,
ou reclamar do patrão a um desempregado,
se eu preferisse um “nikusaidie vipi?”
não voltaria tão envergonhado.
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Era uma vez, várias vezes
Meu sonho era viver no velho oeste,
Fazer barba com canivete,
Ser o mocinho da produção
Ganhar trilha do Morricone
Saltar do trem em Flagstone
Despachar três na estação
Meu sonho era proteger a Cardinale
Contra a corja do mutilado
Tocar gaita até o dia combinado
De esperar o tempo certo
De deixar o Fonda no deserto
Meu sonho é que esta lotada pia
Lave sozinha suas vasilhas
Será que as Cardinale, os Fonda, os Bronson, os Leone lavam vasilhas?
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Declaração antecipada
Eu, um João Ninguém da Silva, surgido em meados dos 60,
Partido Deus sabe quando, natural do mundo,
filho de uma Linda e um breve José, dois pais,
sobrevivente, sem turma,
casado, gêmeos criados, pretensioso,
errático, lunático, antipático,
mais pequeno que bonito,
sonhador incauto e inculto,
com pisadas lá fora, sem dinheiro guardado,
muitos sonhos realizados,
declaro – para felicidade dos amigos e angústia dos perdedores – que valeu a pena, que faria tudo de novo,
que recebi além do combinado,
que talvez Ele tenha se engando,
que não levo nada senão gratidão,
que me retiro em paz.
Planeta Terra, janeiro de 2021
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Cutapa
Tempo bom era correr atrás da bola
Nem tinha tempo pra amuar
Era todo dia, ele todo
Bastava a escola encerrar
Campinho de nome estranho
Ninguém sabia explicar
Os perebas escolhiam os times para poderem jogar
Também o dono da bola tinha de se humilhar
Quatro-olhos era no gol: pra evitar machucar
O distraído goleiro olhava o trem no viaduto
Enquanto a bola entrava mansinha
Fazendo mudar o placar
O time de fora marcava o tempo
Tinha gente que contava só oito de dez
Mas era tudo gente honesta
Querendo logo voltar antes do corpo esfriar
Os times de dentro rezavam pro relógio enguiçar
Quem chutava para mais, ia no rio buscar
Falta? Era preciso sangrar; ou mais alto gritar
Não havia com o que se preocupar
Poeira ou barro, nada nos fazia parar
Só no escuro quando a bola sumia
A gente sabia que era hora de encerrar.
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Deixem-no respirar
Se a evolução fosse plena
Dispensaria fardas e cassetetes,
Mas estes ainda são sujeitos
Onde há povos sem predicados
Se o confronto é inevitável
Que vença a lei
Se ele nem foi cogitado
Que impere o respeito
O joelho no pescoço
Ignora qualquer direito
Excluindo o de ser humilhado
Não é ato isolado
O joelho no pescoço
Segue do parto à vala
Contra isso deve-se revoltar.
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Nictofobia
Pobre noite que um dia venerei
O que fizestes da tua vida?
Vives no próprio relento, sem dignidade
Exposta a violências e abusos
Estás sujeita a gratuitas agressões
Perdem-se em ti almas ingênuas
Tornaste refúgio de súcias cruéis
Tu abrigas a morte, o medo, o sexo forçado
Tuas sombras guardam segredos obscenos
Tu precisas de um teto seguro
Onde eu possa te visitar sem hora de voltar
Acompanhar-te até que te esvazies na aurora
Para onde levas teus hóspedes quando te retiras?
Deixa-os por lá, muda de vida.
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Coro infantil para adultos insensatos
Bucho cheio eio eio
Feijoada ada ada
Pé na estrada trada trada
Motorista ista ista
De gravata ata ata
Pista nova ova ova
Carro velho elho elho
Clandestino ino ino
Sem banheiro eiro eiro
Diarreia eia eia
Um peidinho inho inho
Jeans borrado ado ado
Vacilada ada ada.
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Amigo, espero que nunca o contem numa lista de indigentes; tampouco, que eu faça parte dessa estatística.
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Piedade da serra
Tu me acompanhas desde o meu sempre
O teu sempre antecede o meu
À distância pareces me proteger, sinto-me seguro ao mirar-te
Embora me enganas com teu azulado véu
Renova-me escalar-te, entrego-me a teus cuidados
Alcançar-te o topo é conquista constante
Nunca me deixes cair em teus abismos
Prezo-te tanto que me angustia
Compartilhar-te com os demais
Preocupa-me tuas riquezas minerais
Atraíste a cobiça dessa gente do progresso
São desprezíveis aqueles que cavam em tuas faldas
Abalam-te com suas bananas acesas em teus pontos fracos
Podem arruinar-te antes que eu me vá
Reduzir-te-ão a ferro fundido
A ver-te faltar-me prefiro partir.
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A vida ideal em dois tempos
Tendo nascido; chorou
Tendo chorado; mamou
Tendo mamado; cresceu
Tendo crescido; estudou
Tendo estudado; trabalhou
Tendo trabalhado; namorou
Tendo namorado; casou
Tendo casado; criou
Tendo criado; envelheceu
Tendo envelhecido; adoeceu
Tendo adoecido; morreu
Tendo morrido; ?????
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Sotaques do Chico
Esse trem nasce logo ali
O tempo todo uai, sem pará
Nasce fraquim sô, só cê veno
Dá pena só de oiá
Dá mostra que num vai vingá
Ô, meu rei, parece que comeu água
Aonde? Aqui ele já é adulto
chega pocando, nem dá ozadia
Mas, deixa o pescado do dia
Vixi mainha, é um escândalo de grande
Tá mangando deu, vissi
Sem querer arengar
Ele é mais amostrado prás baixas de cá
É peixe que só a gota
A Tototó sugere tombar
O cabra tem de saber manobrar
Eita pega, então, tudo é fastio
Daqui pra frente, não tem disdrobro, corre tudinho pro mar
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Noturno
Apita o trem da madrugada
desperta o homem sem vintém
levanta o bêbado da enxurrada
sacode o berço do neném
Apita o trem da madrugada
susta o coito da Luzia
põe ladrão em disparada
acorda o intrépido vigia
Apita o trem da madrugada
balança a cama da meretriz
desconcentra o camarada
deixa o próximo feliz
Apita o trem da madrugada
manda recado muito além
vai passar na encruzilhada
espera cruzar com ninguém
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