Trabalho feito pelos alunos do CAAD para a disciplina Produção Colaborativa via Web, UFMG, 2022
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Texto I
Todos os dias Camila lia a carta, era um ritual que não conseguia ignorar. Muita coisa já perdera o sentido, como uma palavra repetida incontáveis vezes. Ainda assim, ela admirava o envelope por alguns segundos antes de retirar dele a folha de caderno com quinas gastas. Quem a visse desdobrar o papel com tanto cuidado poderia imaginar que era uma carta a ela enviada, mas não, a caligrafia redonda e irregular era da própria garota. Sem nunca encontrar o destinatário, a correspondência retornara a ela muitos anos atrás. Talvez tivesse mesmo que ser assim, não fosse por aquele texto, as fagulhas de lembrança que existiam nela já teriam sumido há muito tempo.
Oi, irmão!
Estou escrevendo essa carta porque a Dona Rita mandou todo mundo da sala escrever uma carta para alguém que a gente não vê faz muito tempo. Eu não sei se tem assim tanto tempo que eu te vi, também já faz um tempão que eu vi a Vó. Mas achei melhor mandar para você porque acho que você vai ler e a Vó nunca usa o óculos dela. A mãe fala que ela só finge que lê as coisas pra não ficar com vergonha na frente dos outros.
O povo falou que o mundo ia acabar no final do ano, mas nem aconteceu nada. Eu acho que isso deve de ser uma coisa boa. No natal a gente matou uma galinha, eu sei que você não gosta que mata elas, mas era festa. Quando o Mauro cortou o pescoço, ela saiu correndo com a cabeça pendurada, foi meio triste e engraçado ao mesmo tempo. O bom foi que ele deixou eu comer o coração, o coração é a melhor parte de tudo.
A escola vai mandar nossas cartas pelo correio, se demorar muito, quem sabe você até já voltou quando ela chegar aí, mas não tem problema, eu te conto tudo pessoalmente. E aí você pode me levar pra comer coxinha no meu aniversário igual antes.
Um abração Camila
P.s.: Também estou mandando no envelope uma foto minha. A foto é para você ver como que eu estou agora e me reconhecer quando voltar.
Texto II
O transporte balançava demais, passavam por um asteroide enquanto o chiado úmido do motor anunciava uma tarde instável. Camila respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de tranquilidade. O barulho aumentava e diminuía, mas, pelo menos, ela estava sentada e o atraso lhe daria tempo para descansar depois do dia cansativo. Foi então que olhou para uma menina no corredor à frente.
O que chamava a atenção era que a outra garota estava realmente parada, parecia não se afetar pelo bambolear da nave. Permanecia de pé sem se apoiar em nada e segurava um papel com ambas as mãos, como se fosse precioso. Camila tentava focar na carta que a menina protegia tão zelozamente, mas à distância e sem lentes, não conseguia ler o que estava escrito. Só dava para saber que ela havia colado vários adesivos holográficos no envelope rosa, o glitter refletia em seus pulsos rechonchudos.
Alguma coisa naquela visão fez com que Camila se virasse no banco. Mas, além do equilíbrio extraordinário, nada havia ali que ela identificasse como realmente interessante ou preocupante. Não conseguia definir porque a imagem da garota chamava tanto sua atenção. A condução seguiu e só quando desembarcou e estava no metrô, é que ela percebeu que aquela menina a lembrava dela mesma mais jovem. Obviamente, compartilhavam o fato de serem humanas, eram da mesma espécie que nunca fora alvo de exaltações de graciosidade. Mas o que a fazia lembrar de si era o olhar ávido de aprovação, de esperança.
Quando chegou à estação, a dificuldade de se espremer entre a multidão para descer só a fez pensar ainda mais na própria inadequação. Saiu caminhando muito rápido na cidade baixa, onde morava. Camila parecia determinada a algo, mas o que lhe importava no momento era a caminhada em si. O movimento era algo concreto, algo que ela controlava, o poder que tinha de se deslocar, de ir para onde quisesse.
Ver-se criança era pensar no quanto ela fora feliz e alheia aos dramas que se formavam a nível familiar, nacional, global, galáctico… Era lembrar das promessas que fizera a si mesma e que não cumprira, era saber que, se aquela menina visse presa nessa realidade de merda, teria dó.
Ao fechar a porta, veio a percepção de que agora era necessário parar. O instinto era dar voltas ao redor da pequena mesa de refeições. Quanto mais corresse, mais seus sentimentos iam demorar a alcançá-la. Mas os poucos segundos em que ficou parada na sala foram suficientes para perder a maratona. As dores tomaram lugar silenciosamente, mas muito rápido. Quando ela percebeu, já era tarde. O medo e a tristeza subiam por entre os dedos dos pés, tomavam os tornozelos, os joelhos. Ela se notava cada vez mais ciente de cada um dos próprios membros e isso era insuportável.
Camila deixou sua bolsa na mesa, pegou um cobertor e se enfiou na cama o mais rápido que pôde. Com a cabeça no travesseiro, ela planejava fingir que estava dormindo caso o intrometido do Capitão do Espaço chegasse. Não tinha forças para conversar com ele e explicar que nada acontecera. Ainda eram cinco da tarde e, se ele chegasse logo, essa desculpa não seria a melhor. Ela permaneceu imóvel assim mesmo.
Camila ficou parada por seis horas, o Capitão não chegava e o receio de se mostrar vulnerável se transformava em ódio pelo descaso. Ele aparecia toda hora e logo agora não adivinhou que ela se sentia terrivelmente triste?
Nota: Texto 2 é uma fanfic produzida a partir do texto “Amor” presente no livro Laços de Família de Clarice Lispector
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Depois de brigar com o Capitão do Espaço mais uma vez, proibindo-o de ficar em sua casa, Camila entrou na capsula de transporte que levava ao Salão das Memorias.
O Salão não ficava em sua casa, mas a capsula reduzia consideravelmente o tempo da viagem. Por fora, o Salão era de um tamanho comum, nada extraordinariamente grande ou muito chamativo. Sua arquitetura lembrava a Grécia antiga, com grandes vigas adornadas na frente e uma escada que levava a entrada principal.
Quando se entrava no Salão é que se percebia a sua real magnitude. Vários andares com inúmeras estantes de vários livros em cores, tamanhos e formatos diferentes. Olhando pra cima, não se conseguia ver o teto e olhando pra frente, só se percebia a curvatura das estantes entrando no que parecia ser o infinito. Era a materialização da Biblioteca de Babel, algo praticamente infinito ao olho humano.
Camila sabia que já estivera lá, sabia que já tinha feito aquele mesmo trajeto muitas vezes, mas não se lembrava quantas foram. Foram tantas vezes que desenvolveu um método pra saber em qual estante tinha parado. Riscava com um canivete a ponta da estante que já explorará por completo.
Depois de encontrar onde tinha estado da ultima vez, a Camila tomou um livro qualquer e o abriu. Por se tratar de memorias, a forma como o livro era “experimentando” não era nada comum. Quando se abria um livro, as letras saiam das paginas e começavam a rodar como em um caldeirão, depois o leitor era colocado em uma espécie de transe, onde seus olhos esbranquiçavam e podia ver com uma clareza que variava. Quanto mais nova fosse a memória, mas nítida era, mas se fosse uma memoria antiga, a imagem se tornava embaçada e nebulosa. As memorias eram experienciadas em primeira pessoa, como se você estivesse as revivendo, mas sem poder alterar as ações realizadas.
Depois de alguns livros explorados, Camila percebeu que não estava chegando em lugar algum, foi lá para procurar memorias de sua mãe, mas não achará nada até agora. Em seu momento de frustração, percebeu algo. Um vulto passou muito rapidamente pelo corredor onde estava. Assustada e curiosa, correu até a ponta do corredor e seguiu na direção que o vulto ia. Correndo na máxima velocidade que conseguia e vendo que não aguentaria mais, gritou: - Ei! Espera!
O vulto, muitos metros a sua frente, parou por poucos estantes, olhou para trás e, percebendo quem a seguia, sumiu como uma fumaça sendo sobrada. Camila, depois de percorrer mais alguns metros, se viu parada onde o vulto estava. Sem sinal dele ou de algum vestígio de sua presença. Cansada e sem saber em qual parte do Salão estava, Camila se virou para trás e viu uma porta. Era uma porta-dupla grande, inteira de mármore e com enormes cadeados à trancando.
Nunca tinha visto ela antes e percebeu que ficar em frente dela despertava sentimentos horríveis em si mesma. Era como um grande pavor, seu coração palpitava, seu punho estava cerrado e tremia muito. Nunca tinha sentido aquilo antes
Não sabia o que estava atrás da porta, pensava que poderia ter respostas sobre a mãe, sobre a identidade do Capitão do Espaço e sobre seu passado
Assustada, Camila correu para longe daquela porta sombria. Correndo em busca da saída e pensado o que era aquela criatura que acabará de ver. Distraída, acabou esbarrando em uma das estantes, derrubando uma pilha de livros.
No momento, saiu de seus próprios pensamentos e reparou em algo estranho. Na pilha de livros que acabará de derrubar, tinha algo diferente. Um memoria que nunca havia explorado antes. Era um envelope, empoeirado com marcas de brilho e uma cor gasta.
Sem saber o que era, abriu esperando ver o que aquela memória á mostraria, mas nada aconteceu.
Diferente dos outros livros do Salão, o conteúdo daquele envelope não era apresentado a ela como estava acostumada, precisou ler o que aquelas papeis tinham a dizer.
O conteúdo da carta deixou-a cheia de dúvidas. Quem eram aquelas pessoas e porque a vida que ela parecera descrever, era tão diferente da que estava acostumada?
Camila guardou a carta e foi em direção a sua casa. Estava na esperança de questionar o Capitão do Espaço sobre o que acabara de ler, mas não o encontrou.
Meses se passaram e ela ainda não tinha respostas.
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