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A alma no espelho

O espelho nunca foi sĂł vidro,
mas um pedaço de carne apodrecida,
uma alma murcha, caĂda em sua prĂłpria reflexĂŁo,
onde o tempo nĂŁo passa,
mas se arrasta como um cadáver esquecido.
Dentro do vidro, a dança é feita de ossos quebrados,
a alma se dissolve na neblina espessa,
como a podridĂŁo que toma conta de um corpo
que já não sabe mais o que é viver.
NĂŁo Ă© o reflexo que se vĂŞ,
mas o que se perde,
o que se esconde entre os pedaços de carne desfeita,
no silêncio gélido de uma verdade morta,
onde o olhar nĂŁo encontra mais o que amar.
O espelho nĂŁo mostra o que se vĂŞ,
mas o que se apodrece na carne,
o que se desintegra nas frestas do ser,
onde as sombras se esticam,
tentando lembrar o que foram.
Ele reflete a alma em seu estado de decomposição,
o corpo que sangra sem sangue,
a dor que não existe, mas que está ali,
enterrada nas rachaduras do vidro,
gritando em silĂŞncio.
E quando o espelho se quebra,
o reflexo nĂŁo se vai - ele se espalha,
como pedaços de uma carne que nunca foi inteira,
e a verdade se desfaz na podridĂŁo do que restou,
invisĂvel,
afogada no lugar onde tudo morre
antes de ser visto.
E no final, nĂŁo somos carne,
somos os fragmentos do espelho que deixamos quebrar,
somos a alma do outro lado do reflexo,
perdidos no vidro que jamais soubemos tocar.
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O espelho que comeu o céu 🪞

Na manhĂŁ em que Lira fez dez anos, o cĂ©u mastigava lentamente uma estrela esquecida. Ele rangia. Era possĂvel ouvir, se prestasse atenção — um estalo entre as nuvens, como os ossos de um gigante velho se curvando.
Ela despertou com o som das galinhas chorando no quintal. O som era errado. Os ovos tinham cascas de vidro naquele dia, e sangravam memĂłria.
Sua mĂŁe penteava seus cabelos como se costurasse um vĂ©u invisĂvel sobre o rosto da menina. Os dedos tremiam, puxavam, costuravam. E a cada nĂł apertado no couro cabeludo, uma palavra saĂa de sua boca como fumaça:
— Casamento.
— Dever.
— Alegria. (Mas a palavra veio murcha, como fruta podre.)
Seu pai estava sentado à mesa, engolindo o silêncio. Dizia que a filha precisava “se preparar”. Que o tempo voava, mesmo quando as asas não batiam.
— Dez anos — disse, sem olhá-la. — Já metade do caminho para ser mulher.
A faca em sua mĂŁo brilhava como lĂngua. Ele a passava na pedra com gosto, como quem limpa pensamentos perigosos.
Na parede da sala, o relógio andava para trás.
Lira mordeu o ar. O bolo em seu prato estava inteiro, mas quando ela piscou, só restavam migalhas — e uma vela ainda acesa, tremendo sozinha.
Ela desceu da cadeira. Os adultos continuavam a falar, mas suas vozes agora tinham formas: uma era um peixe seco, outra um prego.
Elas batiam contra as paredes, escorregavam pela janela, desapareciam.
No quintal, o vento falava com sotaque de floresta.
O céu estava mais perto do chão.
Tão perto que Lira teve vontade de tocá-lo.
Ou comĂŞ-lo.
Ou gritar até que ele engolisse o mundo inteiro.
Mas nĂŁo gritou.
Só caminhou até o poço. Olhou para dentro.
E no fundo, viu uma versĂŁo dela mesma, com olhos de vidro, vestida de noiva, sorrindo com a boca costurada.
Lira piscou.
A imagem sumiu.
E ali, sozinha, ela soube: não haveria mais infância.
Só a fome do céu — e o espelho dentro dela que começava a mastigar o mundo.
Lira sentiu um estalo por dentro — como se um vitral antigo, que ela nunca soube que existia, começasse a rachar em silêncio dentro de seu peito. Cada trinca cantava uma nota aguda, como sinos pequenos feitos de dor e segredo.
Ela suspirou, e o mundo se arrepiou — um sopro longo que parecia vir do próprio inverno, como se ela tivesse se tornado o vento que atravessa as frestas das portas e assombra as casas.
"Se quebrar mais..." — pensou, sem usar palavras — "nĂŁo haverá dedos suficientes no mundo para recolher cada lasca invisĂvel que fui."
E entĂŁo ficou quieta, tentando nĂŁo respirar tĂŁo fundo. Tentando nĂŁo se partir toda.
Lira sentiu um sussurro que não fazia som — era feito de vento quebrado e cheiro de terra molhada, e voava direto de dentro da floresta como se tivesse escorrido pelas folhas.
NĂŁo passava pelos ouvidos, mas entrava pelas costelas.
Ela virou devagar, como quem teme que o mundo mude de forma enquanto se distrai. A floresta a observava com olhos que não estavam lá. As árvores tinham pescoços compridos demais. A sombra dos galhos se arrastava no chão como dedos de tinta.
Ela nunca tinha entrado.
Seu pai dizia que lá era um lugar de crescimento indecente, onde meninas viravam ervas ou fumaça. Onde o chão não obedecia e o céu se esquecia de existir.
Coisa de menino, dizia ele.
Lugares que sĂł suportavam a lĂłgica do bruto.
Mas o sussurro nĂŁo concordava.
Ele veio de novo, com suavidade de véu, mas com a força de um grito enterrado vivo.
"Lira."
Foi seu nome — mas dito com outra grafia.
Foi uma prece e uma ameaça.
Um eco que vinha de antes dela.
A floresta nĂŁo chamava com voz.
Chamava com sede.
E dentro de Lira, algo respondeu — um espelho antigo girando, um rio se erguendo ao contrário, um coração abrindo os olhos pela primeira vez.
Lira deu um passo.
O chão não gemeu — ele suspirou, como se aceitasse que ela finalmente estivesse ali.
A floresta não a recebeu como se ela fosse uma intrusa, mas como se ela fosse uma lembrança. As árvores se curvaram em reverência torta, e o ar se adensou ao redor dela, denso como água sonhando.
E entĂŁo ela o viu.
Suspenso entre dois galhos retorcidos, flutuava um espelho feito de água parada, moldado pelo nada — como uma janela onde nĂŁo havia parede. Uma superfĂcie lĂmpida e imĂłvel, sem moldura, sem origem.
Seu reflexo estava ali.
Mas nĂŁo era bem ela.
Pisava descalça sobre um chĂŁo de espinhos, com um vĂ©u cobrindo o rosto e algo em suas mĂŁos — algo pequeno, como uma faĂsca ou uma semente.
E atrás da imagem, uma sombra com olhos de vidro e galhos por dedos se movia como se respirasse.
Lira nĂŁo gritou.
Nem fugiu.
O espelho nĂŁo a assustava.
Ele a reconhecia.
Era como se dissesse:
"VocĂŞ sempre esteve aqui."
A sombra continuava ali, imĂłvel, como se esperasse um gesto. Mas Lira nĂŁo se moveu. SĂł piscou devagar, e quando abriu os olhos de novo, o canto do quarto estava vazio. Como se nunca tivesse havido nada ali.
Ou como se ela mesma tivesse acabado de nascer de novo.
Engoliu seco.
O chão estava frio sob seus pés descalços quando ela voltou a caminhar.
As paredes pareciam mais apertadas do que de costume — como se tivessem crescido para dentro durante o dia.
Na cozinha, a mesa estava posta com pão escuro e sopa rala. O pai murmurava orações entre dentes, mais por obrigação do que fé. A mãe mexia a colher com o corpo inteiro, como se cada gesto fosse pedido de perdão.
— Sente-se, Lira — disse o pai, sem olhar.
Ela obedeceu.
O pão tinha gosto de terra úmida e a sopa, de água chorada.
O silĂŞncio mastigava com eles.
A única voz era a da colher batendo na cerâmica. Ritmada. Repetida. Como um feitiço para manter tudo no lugar.
Lira olhava para as mĂŁos. Ainda tremiam, levemente.
Mas ninguém via.
— Dez anos... já pode aprender a fiar lã — disse o pai. — E a andar com o noivo, quando ele vier da cidade.
A mĂŁe assentiu, sem levantar os olhos.
Lira nĂŁo respondeu.
Seu estĂ´mago apertou, mas nĂŁo de fome.
De alguma coisa que nascia.
Quando terminou de comer, sem dizer uma palavra, subiu para o quarto.
Se deitou devagar, como quem se acomoda dentro de um eco.
A sombra não estava mais lá.
Mas deixara algo.
No canto do quarto, onde ela a tinha visto antes, havia um fio de lĂŁ negra, pendurado no ar. Flutuando sozinho.
Lira o encarou por um instante.
Depois virou o rosto e fechou os olhos.
E adormeceu com o coração feito de vidro em repouso — cheio de rachaduras que brilhavam como céu noturno.
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