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OMELIX
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Do meu nome, Octávio Miguel Félix, e do Obélix. Quem cai no caldeirão vem à tona molhado, e à toa para sempre.
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omelix · 2 years ago
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As luzes do palco caem sobre o seu rosto. Dá um passo para o lado. Faz depois o movimento contrário, para onde estava. Os corpos libertam-se da luz e são agora sombras espalmadas no cenário desagregado: contorcionistas, gigantones, cores caídas mal embrulhadas em guardanapos usados; e o palhaço amodorrado chafurdando em folhas das árvores incontinentes do fim do verão.
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omelix · 2 years ago
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Difícil não é o dia, é o acordar. O dia passa-se bem: uma chapada para um lado, um sorriso para o outro, e os afazeres. A noite pouco importa, todos os dias a empurrar até a narrativa do sonho se extinguir no protocolo matinal – chinelos, rádio, água sobre o corpo –, pregadeira que segura o dia. Hoje, na estação do Metro, alguém me perguntou as horas por três vezes, por três vezes ditei o que os dois víamos no relógio público. Pediu-me depois lume para o cigarro e “desculpe” – não queria uma coisa nem outra, foi decente.
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omelix · 3 years ago
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O Vizinho
(Com David Matos)
Desde que vim para cá morar habituei-me a olhar pelo óculo da porta sempre que saio de casa. Sem outra explicação aparente, justifico a diligência pelo fato do elevador ficar mesmo em frente. Hoje, quando espreito é a figura de V que entrevejo. Reajo retirando a mão da maçaneta, suspendendo a saída. Espreito e penso na inconsequência que é qualquer coisa por detrás da porta. Deixo-me ficar. Nesse instante noto a imobilidade do homem dentro do seu sobretudo — parece nem respirar, como se de um casaco pendurado num cabide se tratasse. A cena entusiasma-me — uma certa excitação (e o elevador que não chega, e eu que preciso de sair. Será que a figura se vai mover?). Na agitação, deixo cair as chaves da mão. Agacho-me para apanhá-las. Volto ao óculo e já só vejo a porta do elevador. Desço pelas escadas na expectativa de surpreender alguém no rés-do-chão. Encontro Mayara, a rececionista, boquiaberta. “Parece-me assustada!”, atrevo-me a observar. A resposta foi um encolher de ombros e uma conveniente transfiguração para um ar casual, próprio de quem é competente em lidar com pessoas de uma forma neutra e formal. Ao mesmo tempo, desapontado por não ter ali uma aliada, questiono o porquê desta iminente obsessão, desta narrativa enroscando-se.
Tento abstrair-me durante o resto do dia, mas aquele espetro não se desapega de todo, enleando-se definitivamente em mim no momento em que, de regresso a casa, encontro à porta do apartamento de V uma caixa de cartão selada acomodada sobre um casaco.
'Bem, preciso descansar. Por agora não alimento mais estranheza'.
Acordo ainda vestido, e pela debilidade do sol atravessando a janela, sei que é final de madrugada. Não tenho outra intenção senão sair e espreitar a porta ao lado. A caixa estava lá, apenas a caixa.
Durante dois dias, foi o tempo que aguentei - um par de dias para pegar no objeto, tão leve como uma caixa vazia, e entregá-lo a Mayara. Ela fica de novo desconsertada, o que eu já esperava, pelo que vou preparado para “te contar Mayara, e terás de me ouvir, sobre o que tenho presenciado nestes últimos tempos no apartamento do meu vizinho”.
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omelix · 3 years ago
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Pepim vai de carro quando a placa Vilarandelo o faz parar. Segue a sua direção e pouco depois chega a um povoado cercado por uma orla de árvores de troncos grossos estendidos até às copas, que muito lá em cima tombam todas na mesma direção, formando em baixo sombras, que Pepim, mais tarde, soube que eram o ponto de atracão da aldeia. As sombras esboçavam mosaicos no chão que alternavam reflexos de sol filtrados pela trama complexa de ramos e folhas, com desenhos de contornos de corpos em relevo, cada um deles identificado por uma data. Lembravam esculturas antropomórficas (e assim eram ), representavam os antigos da terra no seu mosaico de repouso eterno. Às Sombras de Vilarandelo havia quem chamasse os Mosaicos de Vilarandelo.
A Pepim, mal chegou, pediram-lhe amavelmente que limpasse os pés bem limpos. “É que as nossas sombras são muito sensíveis a alguma pedra que traga no sapato!”. Pepim acedeu e limpou os pés energicamente num tapete magnético que sugava o que as solas traziam. Pepim não encontrava qualquer dificuldade em comunicar com aquela gente. Falava-se ali o Vilaranduelo, uma fusão de português com galego, linguarejar típico daquela zona raiana que junta as duas regiões. Pronto para visitar a aldeia, o forasteiro espantou-se com as casas iguais de telhados iguais. Em cada um dos telhados, havia uma letra; juntando os telhados formava-se a informação “Vilarandelo tem um transfogueiro e cataventos. Seja Bem Vindo!” Sobre os cataventos, Pepim percebeu que eram o equivalente ao animal doméstico de outros lugares, como o cão e o gato. Em Vilarandelo, havia cataventos rodopiando por todo o lado porque toda a gente os fazia rodar.
Pepim sentiu vontade de comer e procurou uma taberna, onde, já acomodado, mais do que a decoração ou a ementa, estranhou a fisionomia das pessoas: todos eram diferentes, sem qualquer traço comum que estabelecesse parecença de algum com outro. Havia o moreno alto, o loiro baixo e vice-versa, a gorda de nariz grande e a magra bochechuda, e por aí fora. Eram todos tão diferentes que Vilarandelo lembrava uma Arca de Noé de bípedes. O forasteiro chamou por quem ali servia, pediu o que queria e perguntou o nome da pessoa. Resposta: “Nós não temos nomes. Somos todos diferentes”. Pepim recuou então à sua chegada a Vilarandelo e ao encontro com as Sombras-Mosaicos. "Realmente, mesmo os que já partiram apenas eram identificados pela sua fisionomia e por uma data. Interessante", reflectia. Depois de um belo repasto de sopa de couves e nabos, dirigia-se para o exterior. Como qualquer visitante procurava o lugar sagrado. E é assim que no meio da aldeia, numa praça central, não encontrava igreja nem pelourinho para visitar... mas um transfogueiro. E o que é um transfogueiro, Pepim? O forasteiro abeirando-se do monumento proeminente, enfrentava uma grande azáfama. Uns retiravam potes com qualquer coisa lá dentro a ferver que cheirava bem, enquanto outros colocavam. Uns arrastavam as brasas crepitando na base do objecto e transportavam meia dúzia delas. Outros penduravam latões com água. Enfim. Acendiam-se tochas nas laterais do transfogueiro, porque caía a noite e a lua naquele dia não se via... E, o forasteiro, achou assim por bem não voltar a mergulhar na orla densa de árvores e decide pernoitar em Vilarandelo.
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omelix · 4 years ago
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À distância do primeiro dia impõem-se nutritivas histórias urdidas de sonho debruado a arame farpado. Alimenta-se o embuste por soros de alma. Cai a primeira nódoa e a dúvida ganha forma: Alastra-se da cabeça aos passos alcançando um lugar de fraca luz e de cantos e a vontade de nele estar. O olhar, pousado em baço vidro tinto, entrevê - bem lá no fundo - parcas pingas frescas. A miopia em esforço lento avança. Estende-se. Abre-se ao jogo da nitidez. Com a mesma certeza do lençol recebendo uma chapada de vento e libertando-se do estendal.
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omelix · 5 years ago
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Crepitam estalidos vindos da mesinha de cabeceira.
Afasto o pequeno móvel da parede.
O mesmo som, mais chegado ao ouvido.
Dispo a mesa dos livros, deste caderno, desta caneta, do candeeiro.
Encaro um inseto sem asas incrustado
na teia de uma aranha,
compenetrada a bater na carapaça dura da sua presa.
Com a ponta do chinelo esmago o inseto e seu carrasco.
Não sem antes ditar como primeira vítima
a que até então ainda não o era,
e que nesse instante sofre morte imediata.
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omelix · 5 years ago
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Nas ruas pasmadas, pedaços de coisas contornam o abandono dos passeios. (As caudas dos cães indiferentes às moscas). Irrespirável sossego. Saturado. Como nas casas que serviram vida, na breve noite de um sonho longo. (O silêncio da lua escorregando pelo espelho do abrigo). E depois foram ficando, e depois janelas soltas no tempo e seus caprichos. Como hoje, esta mão de gente procurando outro dia, desenhando poesia, de mão livre sobre papel, como comboio sobre carril. Por esse trilho, regressa depois um poema novo, desassombrado em corpo vazio.
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omelix · 8 years ago
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O pássaro não quer ficar para a fotografia. Sai de um galho. Já de cima deixa uma pena caindo, que se vai prender no mesmo galho. Trepo para outro galho. Sendo mais grosso, este pode ceder porque é velho e suporta agora um peso que não é o peso da pena que baloiça, logo ali por cima, como um brinco sem o vento, de cima para baixo, escorrida no ar. Dali vejo o sol tomar conta de outro galho, pousando nele, depois saindo, como fez o pássaro e voltando a pousar.
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omelix · 8 years ago
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Numa tarde de quando eu tinha sete anos esperava sobre os carris, sobre as pedras que os preenchiam, fixando-os de um lado depois do outro, quando me fartava de importunar a formiga. Esperava dela a qualquer momento uma incursão pelos meus joelhos descobertos, o formigueiro a exasperar-me até que a fazia saltar posicionando os dedos - como se fossem fazer rolar um berlinde - largando o do meio, E o comboio já não passava,. De todas as vezes subia depois a rua: o dia cinzento e molhado, a nuvem vivida de velha instalada num ângulo em que a rua curvava, onde os edifícios de cada lado se uniam formando uma espécie de cobertura exalando entranhas podres. Aí, de todas as vezes, a cada subida, havia um homem sentado numa cadeira e no tempo - no tempo a julgar pela presença necessária que a sua pose marcava. Não olhava nada que lhe estivesse perto ou por ele passasse. O olhar caía-lhe pela rua absorvendo cada metro de distância até onde a vista ia ganhar uma expressão de esforço, sem querer no entanto ir mais além. O homem usava um chapéu de abas reclinadas. Chegava-se-lhe aos ombros, que seguravam um casaco caído sobre as costas voltadas para o fim da rua, começo de outra, à porta da sua loja, em tempos, de comboios pequenos.
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omelix · 8 years ago
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O metro cheio. Absorvo-me na chuva que persiste contra a janela. Não olho ninguém. Desconfortável, sinto a água que trouxe de fora. Preciso comprar botas novas, é inverno, e a merda de sapatos que trago. As meias escorrem para o calcanhar e ainda é de manhã, madrugada silenciosa. Tento sair na estação do costume - vou tarde, há gente a mais. A voz gravada anunciava São Bento e eu pensava na bicicleta, no zumbir do aro das rodas enquanto viro à esquerda, o corpo um pouco inclinado fazendo subir o joelho, os pés parados sobre as pedaleiras. Agora de pé atropelo dois ou três passageiros mas a porta fecha-se. Saio na próxima. Logo hoje que levo chuva nos pés. Atento à paragem seguinte, ponho­-me do lado de fora. São mais escadas até à rua, mais do que o costume. Percorrida, a água faz um som estranho, a borracha mole, nada parecido com o das rodas da bicicleta acelerando o vento.
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omelix · 8 years ago
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Quando Maria Cândida há 61 anos entrou pela primeira vez naquela que é desde então a sua casa, não havia nome nem número cravados na fachada. A toponímia de Vale de Lamas, aldeia limítrofe da cidade de Bragança, na cavada dos primeiros montes do Parque Natural de Montesinho, é matéria recente: de 2009. Até lá, nos mais de cem anos de pedras erguidas, aquela casa do Largo da Fonte sempre foi reconhecida como a dos Pereiras. Miguel tem 3 anos de idade quando os pais, Helena e António Pereira, são fulminados por um raio: é tempo de Verão, do calor seco nos campos de Trás-os ­Montes. Durante uma segada ao trigo, o céu começa a encher-­se. Ao primeiro trovoar os obreiros arredam, e logo uma bátega cai. O que se vê é pó misturado com vapor da água a bater no chão torrado. O casal decide abrigar-­se por debaixo de um telheiro, naquela sua propriedade, naquele dia em que morrem juntos. António regressara do Brasil havia meia dúzia de anos, nos primeiros do século passado. Veio para voltar, não sabendo, então, que não mais iria ver a mulher brasileira que lá deixara. Helena, sua prima, é jovem e bonita. Casam­-se na terra que é a dos dois, e no centro da aldeia constroem sua casa. Depois da morte dos pais, Miguel e a irmã Arminda ficam aos cuidados dos tios. Arminda morreria pouco tempo depois. Miguel cresce na vida de uma família do campo, abastada pelo que a terra dá e pelo que nela se trabalha. A poucos quilómetros, para dentro dos montes de Montesinho, num vale como o de Lamas mas ainda mais afincado, enfia-­se a Aveleda. Nesta aldeia moram Josefa Rita Valente e o marido Manuel António Rodrigues Barreira. Emigrantes regressados do Brasil (diria deles o povo que teriam ganho a Sorte Grande no outro lado do Atlântico e que enquanto tudo não gastaram não descansaram). Maria Cândida é a segunda mais nova dos oito filhos do casal ­ - quatro raparigas; outros tantos rapazes - ­ e aos 24 anos está mais do que em idade de se casar. Pretendentes não faltam à rapariga que desde tenra idade faz do trabalho no campo a sua vida, montando os alforges a cavalo de burra até à cidade de Bragança onde na feira faz render cada colheita. Dita­-lhe o destino que seu marido ou será o Barnabé de Baçal ou o Miguel de Vale de Lamas, mesmo pouco sabendo quer de um quer do outro. O nó é desatado pelo irmão Alfredo: O de Vale de Lamas, rapariga, que é quem lá dita os feriados! Maria Cândida e Miguel Pereira casam-­se em 1949. Têm dois filhos. A sua casa chega muita gente. São tempos difíceis num reduto de um país pobre. Cândida e Miguel têm terras para se trabalhar. São estimados. Acolhem famílias que ali educam os filhos, em noites abrigadas sobre palha estendida no chão e um caldo de castanhas ao calor do lume. Outros, que a vida faz de andarilhos ali encontram poiso nas duas ou três semanas de negócio que os detém pela região: os latoeiros dos utensílios de lata, os peliqueiros das peles e os ciganos negociando cavalos. Ao forno da cozinha vem o povo cozer o pão; na adega à face da rua não há quem não pare para beber um copo; chegam as linhas telefónicas e instala­-se o telefone público no 2 do Largo da Fonte. Cinquenta anos depois da morte de seus pais, Miguel desce aos lameiros junto ao rio. Vão regar uma horta, ele e a mulher. No regresso, nesse fim de tarde do dia 9 de Junho, pingas grossas caem e soltam pó. Cândida segue um pouco à frente na subida acentuada. Miguel apercebe-­se da presença de um miúdo da aldeia e sob um carvalho de copa densa pára, distrai-­se. “Anda, Miguel, já é tarde”, ouve-­se de longe. O céu enchia-­se como há meio século. O raio rompeu o tronco da velha árvore e a vida do meu avô Miguel. Diz agora a minha avó Cândida, sentada no escano da cozinha, recordando o chão que era de terra batida no tempo em que uma mãe deitava todas as noites os quatro filhos e de manhã religiosamente lhes mudava a palha ensopada de urina, o tempo da criada Julieta recebendo o amante pelo lado de dentro do postigo às horas em que a noite escondia, conta agora Maria Cândida, mancando e andando, que o povo lhe dizia que era coisa de pragas rogadas, de mau ­olhado da brasileira que o sogro deixara no Brasil, conta agora Maria Cândida - rendilhando um pano de linho - que o bispo lhe garantiu que as pragas recaem sobre quem as roga, e que há pessoas que trazem mais eletricidade no corpo que outras, e quando o mau tempo se aproxima devem cuidar de onde se vão abrigar.
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omelix · 8 years ago
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A mesa está encostada a uma cama. À sua frente, duas cadeiras: uma verde e outra de madeira envernizada. O guarda-roupa foi embutido, não conta como espaço ocupado. Durante a noite sobra luz, entre a janela e a sombra onde se encaixa a mesa alaranjada. O cartaz pouco diz, o quarto não tem mais nada. Na cozinha, o azeite crepita em lume brando. A lenha arde como se de uma foto de uma chama imensa. A passo vai-se para noite, são dez watts tentando os sessenta. Amanhã será com outra lâmpada, uma óbvia, de filamentos nervosos.
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omelix · 8 years ago
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Um sofá e suas mazelas sob uma manta curta, um vestíbulo, um balcão forrado de folhetos prometendo ora Benidorm ora Jesus. Uma sineta dourada pendendo. Depois, segundos de gritaria elétrica. Entre a parede e o corrimão, degraus afunilados luz agastada na parede marmorizada. Na escuridão do terceiro piso, a história contada como quem conta rosários, que o prédio tem 134 anos, pertencendo à mesma família até há três décadas, ocupado hoje por uma residencial, a Estrela de duas estrelas, propriedade de um pastor evangélico. E a chave roda na fechadura da porta do quarto de teto branco, de chão de madeira onde o sol se dispõe. Depois de rodado o trinco e das últimas vozes da rua empurradas pela noite, o silêncio. Quanto às luzes, refluem numa onda abrindo o brilho da proa de vidro e de um rosto nela emoldurado. Reacendem-se os cantos gastos nas pontas, nas dobras e nas molas das coisas, vibrando para gente desta noite, que, para lá da porta, sobe e desce a escadaria, cicerone dos quatro andares.
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omelix · 8 years ago
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O abrunheiro-bravo é uma planta silvestre pequena: Forma uma malha intrincada de raminhos espevitados que se prendem à pele e à roupa e uns nos outros. Tecem bordaduras naturais nos lameiros, onde comem e bebem os animais. No mês de março centenas de abelhas voam sobre as suas flores brancas. São vai-e-vens de zumbidos. É o sabor adocicado da primeira primavera. É o respirar lento que não deixa fugir o que é novo.
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omelix · 8 years ago
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Três galegos refugiaram-se na Aveleda em Bragança, junto à sua terra natal, que por essa altura sofria a Guerra Civil Espanhola. Foi na década de 1930. A história é contada por Maria Cândida, 86 anos, natural da aldeia transmontana. Devem ter chegado por aqueles montes além, junto a Espanha. Eu e outra garota íamos muitas vezes para lá com as crias do gado. Chegámos a ver valas, que diziam ser as trincheiras da época da traulitada. Nesses rasgos de terra havia balas e arreios de cavalos. Os espanhóis andavam fugidos da guarda. Os meus pais esconderam-­nos numa curriça ao cimo da aldeia. Ficaram lá uns tempos. Nós e outras famílias chegávamos-­lhes comida. Depois passaram para um palheiro, quando se pensava que a guarda suspeitava do esconderijo anterior. Uma vez fui espreitar, a esse palheiro, e eles não estavam. Os bolsos de um, acho que era do casaco do Júlio, tinham muitos santinhos. Foi dos três o único que ficou por cá. Casou-­se com a Carmelinda. Lembro-­me bem dela: alta, bonita, o cabelo loiro sobre os ombros. Coitada, um dia estava na margem do rio debruçada a lavar a roupa, caiu e ninguém mais deu por ela. Também teve má sorte o Eládio. Foi­ para Meixedo, onde duas irmãs, a que chamavam as da Florinda de Meixedo, o acolheram para logo o denunciarem à guarda. Dizem que foi morto dentro da casa madrasta e o sangue que deixou nas tábuas nunca mais saiu.
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omelix · 8 years ago
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A Márcia e o Jorge beijaram-se enquanto dançavam. Eu vi-os. Pedia um fino quando olhei para o recinto; e eles lá no meio dos pares a rodopiar, parados no beijo. No verão passado beijei eu a Márcia. E ainda a beijei bastante até novembro, quando terminámos namoro. “Vou deixar-te. Vou mudar. De pessoas, de cidade...” Disse-me mais algumas coisas, de que agora não me lembro. Da separação tive uns dias chorados até Márcia se ir - para Roma vender bilhetes de cinema. Olhando-a agora embrulhada noutros braços, sinto aqui saudade dos beijos dela. Lembro-me de um em particular, o primeiro. Foi na festa do São To. A Banda Progresso tocava o “se fosses minha punha-te o mais lindo açaime, para que a tua boca d'ouro só beijasse a boca do Jaime”, e eu de volta do ouvido dela “dança comigo, linda” e a Márcia dançou. Ficámos agarradinhos até pouco faltava para o sol nascer.
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omelix · 8 years ago
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Curva contra curva, a subida nada fica a dever em declive a uma montanha-russa. Mas são as paisagens paradoxais que marcam o percurso. A terra vulcânica fica para trás, depois de atravessado o túnel que rompe a terra. À saída, um corredor de nevoeiro abre fugas para escarpas de floresta húmida. No fim da subida, o cume: lugar habitado pela natureza e uma casa suspensa sobre um precipício; lá dentro espaços esvaziados e portas esmorecidas. Encontrei-te sentada com os pés sobre o varandim baloiçando a cadeira. O fumo do cigarro entoava os feixes de luz que chegavam à sala, mostrando o teu rosto silencioso e concreto, como as linhas de sombra ondulando o serro do outro lado da janela. Foi a última vez que te vi. Foi quando comecei a escrever que, uma vez, um pouco mais à frente, na quase ponta do meu braço esticado.
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