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Nenhuma a menos – 8 de março de 2017
Quero começar esse texto citando uma das escritoras que me formou. Num pequeno conto, ela resume a história de tantas mulheres pelo mundo. “Disse adeus aos pais e, montada no camelo, partiu com a longa caravana na qual seguiam seus bens e as grandes arcas do dote. Atravessaram desertos, atravessaram montanhas, Chegando afinal à terra do futuro do futuro esposo, eis que ele saiu de casa e veio andado ao seu encontro. ‘Este é aquele com quem viverás para sempre’, disse o chefe da caravana à mulher. Então ela pegou a ponta do espesso véu que trazia enrolado na cabeça, e com ele cobriu o rosto, sem que nem se vissem os olhos. Assim permaneceria dali em diante. Para que jamais soubesse o que havia escolhido, aquele que a escolhera sem conhecê-la.” O conto é de Marina Colasanti, está no seu livro ‘Contos de Amor rasgado’. Ao mesmo tempo em que nos mostra uma síntese de como as mulheres foram (e são) negociadas pelo mundo, através de casamentos, contratos, acordos ou bordéis, ela também nos lembra que sempre há algo que nenhum, ninguém nos pode roubar, nem comprar. Claro, Marina, como todas as feministas que vieram antes de mim, me ensinaram, sabe que isso não basta e que não �� possível fechar os olhos enquanto as caravanas atravessam o deserto, roubando a liberdade e dando flores em dias como hoje.
Às vezes, o roubo é mais subjetivo, como nos mostra Moema Franca no seu texto “Ladrões de Horizonte”. Moema comenta, na sua crônica, como é difícil que uma mulher esteja sozinha em qualquer lugar público (uma praça, uma praia, um bar) sem que algum homem interprete que ela está procurando chamar a atenção de algum. Então, explica Moema, tal homem posta-se diante da mulher, puxa conversa, rouba-lhe o horizonte. As mulheres habituaram-se a ser roubadas em suas vidas, seus horizontes, suas liberdades, mas o mundo nunca viveu sem que houvesse protestos femininos. O maior de todos os assaltos é o que se faz à vida das mulheres. A # nenhuma a menos é um chamamento para que, no dia de hoje, falemos de quantas mulheres tem sido subtraídas do mundo pela violência de gênero. Segundo o Mapa da Violência publicado em 2014, há 13 feminicídios diários no Brasil, o que nos coloca na 5ª posição na lista dos piores lugares para se nascer mulher. Esses números referem-se à violência doméstica, não estão aí as mulheres que morrem por falta de assistência médica em partos e abortos mal conduzidos, não estão aí as que morrem em consequência da violência policial por serem mães ou companheiras de transgressores das leis. Entre as que não morrem, estão as que são surradas cotidianamente, que vivem assustadas pela próxima aproximação.
Mas hoje, confesso, fui feliz e quero compartilhar essa felicidade. Participei de uma caminhada com mulheres tão diversas: universitárias, professoras, funcionárias, pescadoras, marisqueiras, dançarinas e vi outras tantas aproximarem-se das portas por onde passávamos, apoiando, repetindo as palavras de ordem. Lembrei-me de mim aos dezessete anos, nas rodas feministas, desconstruindo conceitos. Depois, recebi mensagem de uma filha, participando de uma roda de conversa sobre mulheres na universidade em que estuda e da outra, lembrando que estamos juntas na luta; recebi mensagem do jovem coletivo “Severinas”, do Ceará sobre as manifestações feministas lá, outra do Rio Grande do Norte, convidando para a passeata lá, outra das manas de Brasília... confesso, almocei feliz. Sem a ilusão de que estejamos perto, mas com a certeza de que estamos vivas e que o que é não tem volta. Não há “recatada e do lar” que nos engane mais, jamais. As meninas estão nas ruas, nas redes, nas rodas de conversa. Ninguém nos roubará o horizonte presente. Fiquem felizes comigo Marina, Dandara, Simone, Clarice, Chimamanda, Chiziane, Scott, Virgínia e todas. Somos parte dessa corrente que vai para frente e que nenhuma caravana poderá deter.
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310117
I. lua nova
desejo ameno crescente tua pele tua atenção ou talvez a minha talvez de dois caminhos que se cruzem ou andar de mãos dadas na rua livre da dúvida estranha que persiste do alívio de sinais que me rodeiam e eu não sou desconfiada, não mas não dou confiança alguma a mim mesma por minhas mãos só desfaço um ato que agora percebo e não quero mais. o peso de suas palavras voa e me arrebata desato os nós de minha percepção porque você disse que não tem nada a ver eu sigo olhando no castanho de seus olhos e me iludindo com a consciência dolorosa de saber
que talvez nem você saiba mesmo as cartas não falavam da nossa verdade, mas ainda assim doem meus sonhos e ainda assim me sinto atraída por um desejo ameno de felicidade um desejo ameno de tranquilidade que escorre enquanto corre seus olhos pela tela do telefone e me ignora que percorre caminhos escusos que faço quando evito seu nome em minha cabeça que descorre do ato falho das palavras que usamos demais eu aguento tanto mais, mas não sei se devo.
II. a lua cresce
meu chão ainda fértil em meu peito uma calma estranha quando o momento chega cheio de caos quando o silêncio chega e eu não me aperreio o carro pára no meio da rua o homem encapuzado as tramas se desvelam em meio a rua iluminada e eu não tremo eu não pestanejo nem mais espero o pior a noite escura adentra minha mente insone das bifurcações eu tomo o caminho um desejo de coragem esquenta meu peito
Hanna Vasconcelos
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De sujeito inspirador a sujeito inexistente...
“Meu professor de análise sintática era o tipo do sujeito inexistente. Um pleonasmo , o principal predicado da sua vida , regular como um paradigma da primeira conjugação. / Entre uma oração subordinada e um adjunto adverbial , ele não tinha dúvidas : sempre achava um jeito de nos torturar com um aposto. (...) Um dia , matei-o com um objeto direto na cabeça.” ( Paulo Leminski )
Leminski , nas suas letras que sempre trazem a necessária inquietação , concorda com Paulo Freire, o educador da mudança , que nos diz , através de tantos textos que aquele professor que não conduz o educando a pensar , que não provoca a formação da expressão e, é claro, da leitura do mundo e dos textos de forma crítica , é um sujeito inexistente. Na verdade, é pior, já o que não existe , não constrói , nem destrói e, esse professor, destrói a oportunidade de oferecer um repertório, através dos que antes pensaram e escreveram sobre o mundo, possibilitando a formação de um independente pensar. Claro, sempre haverá escolha de textos. A seleção que um professor faz depende de sua própria formação e de sua visão de mundo, claro, mas o mais importante é a iniciação, os passos que podem levar a um leitor independente, a um pensar que amplia o próprio mundo que o forma. A formação cidadã depende do repertório e conhecimento que se propicia. Na definição grega para a arte da politica está o sentido de pensar no bem comum, na construção do que é coletivo. Penso que esse sentido só se alcança a partir duma compreensão abrangente do que somos como sociedade, do que nos formou, dos que pensaram a estrutura social na qual vivemos.
Você deve pensar: mas afinal pode-se atribuir tanto poder à ação educacional ? Responde talvez a isso uma entrevista de Antônio Cândido à revista ‘Educação’, quando afirma que há um processo de mudança de atitude na educação brasileira e que essa mudança é filha da mudança na sociedade , já que, as estratégias que usamos para educar definem os objetivos que temos. Daí a responsabilidade de quem entra numa sala de aula cresce muito.
Sabemos que uma grande parte dos alunos brasileiros chegam aos bancos universitários ainda como analfabetos funcionais, o que quer dizer que não conseguem compreender o sentido inteiro de um texto pouco complexo e não conseguem exprimir-se com clareza em um texto seu. Tenho conversado muito sobre as estratégias de formação da leitores com estudantes de Pedagogia e Letras. Eles conhecem bem o quadro: o ensino público entregue à iniciativa quase heróica de alguns bons profissionais, dinamitado pela falta de escrúpulos de politiqueiros, outros tantos funcionários de cargos estratégicos para as políticas educacionais que apenas são nomeados por interesses eleitoreiros e nenhum compromisso; ensino privado que transforma educandos em clientes e professores em funcionários burocráticos, silenciosos. A boa notícia é que eles, os estudantes ou uma boa parte deles, não desistiram de exigir uma educação composta do plural e é sobre eles que fala Antônio Cândido. Uma nova sociedade faz uma nova forma de educar. A leitura é pressuposto básico para toda formação. No Brasil, a má leitura é fruto de muitos desajustes que se agravaram nos anos da ditadura militar. Entre eles o empobrecimento (cultural) do currículo e o empobrecimento (cultural e financeiro) dos professores.
Ninguém se forma crítico ou criativo que não seja um bom leitor de mundo e de textos. A escola não é o único lugar , é claro , pois há grandes leitores fora das escolas e leitores limitados dentro dela (e , às vezes com tanto poder ). Conta-nos Celso Pedro Luft , no seu livro ‘Língua e liberdade’, que Machado de Assis , encontrando um amigo que menciona que estivera procurando-o na semana anterior para convidá-lo a lecionar língua portuguesa , mas sem trabalhar gramática , apenas com leitura e escrita. Machado responde que teria aceito , pois nada entendia de gramática e quando abrira uma, sentira-se analfabeto. Todos sabem que a escola de Machado foi sua fome de leitura. O bom texto literário alimenta a sensibilidade, abre os olhos para a beleza estética e amadurece o senso crítico. Não seria assim que deveriam as escolas contribuir para formar melhores cidadãos? Eliot,o poeta, diz que se há alguma função que se pode atribuir à poesia é justamente a de tornar os usuários de uma língua mais sensíveis e capazes de expressão , até mesmo quando não conhecem bem os poetas , porque a língua usada enriquece.
Quem trabalha na rede privada , no ensino médio , sabe que o trabalho com a língua é dirigido para os objetivos que a seleção para as universidades traça. Afinal, quem não quer que seu filho estude numa universidade pública , atire a primeira pedra. Conciliar o incentivo à leitura inteligente aos objetivos da seleção para a universidade, sair do gramaticismo exagerado foi uma ambição acalentada longos anos e dificultada pelas provas vestibulares do período da ditadura militar, quando tivemos um empobrecimento visceral no currículo do ensino médio. Na época, cobravam história da literatura (e não leitura crítica)e questões isoladas de análise gramatical.
Quando as provas começaram a mudar , passando a privilegiar a leitura e deixando de lado a gramática pontual; quando surgiram as definições dos PCNs e o Enem, pensamos que então teríamos espaço para que o ensino de língua privilegiasse as atividades que alimentam o exercício ler e pensar; pensar e escrever; expressar-se na largueza e profundidade que esse exercício pode significar o encontro com o mundo das ideias e o seu próprio sentido. No entanto, essa transformação precisaria ainda de tempo e insistência. O tempo de transformar antigos comportamentos viciados como dogmas religiosos escolares, o tempo de aposentar as certezas, o tempo de aproximar a vaidade das pesquisas acadêmicas da realidade das salas de aula brasileiras, o tempo de fazer nascer um orgulho pela língua do Brasil ao menos semelhante ao que se tem pelo futebol. Não aconteceu, ao menos ainda.
Somos seres de linguagem. Não somos objetivamente definíveis como uma lista de nomes ou uma base de cálculos, nossa formação (sobretudo a básica) deveria contar com aquilo que alimenta nossa subjetividade e aí estão as descobertas que a arte, a literatura e as disciplinas humanas constroem, através da linguagem. A linguagem nos exercita a expressão e instrumentaliza raciocínios complexos. A linguagem veste nossos sonhos, nossos ideais, faz com que cheguem ao outro, oportuniza o encontro, o debate, enfim, faz com que realizemos o ser social, aquilo que nos tira da selva, aquilo que faz de nós o que devemos ser. Fico pensando no sujeito inexistente, aquele em que querem transformar o professor. Um sujeito inexistente, falando a ninguém e ajudando a formar um grande conjunto vazio.
Outubro, 2015
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O manto misterioso da fé
No seu belo poema chamado Guardar, Antônio Cícero nos diz que guardar uma coisa não é trancá-la num cofre, mas admirá-la, iluminá-la , talvez porque a ilusão da posse, que sempre faz de nós infelizes guardiões do nosso medo, não nos permita compreender essa simples verdade: não somos donos de nada, apenas possuímos o que conseguimos guardar no coração como sentimento ou lembrança, nada material, muito menos alguém. O poeta diz que “
Por isso melhor se guarda / o vôo de um pássaro/ do que pássaros sem vôos.”
Lembrei-me desse poema há alguns dias, na anunciação da Páscoa por discursos, e-mails e conversas nos dias que a antecederam e depois , como a vi ser vivida entre muita comilança , vinho e chocolate. Pensava em como tantas vezes percebo a relação das pessoas com sua fé muito parecida com o sentimento de posse de algo, como se o credo que se tem fosse feito de coisas, rituais e símbolos mais do que de ideias e sentimentos. Nesse tema, aquilo que me cativou sempre esteve ligado a exemplo de pessoas que ficaram guardadas em mim como lembranças da fé com que tento me cobrir. Tive uma adolescência ácida e sem fé. Partilhava uma classe de uma escola pública federal, uma boa escola. Lá, aprendi o melhor e o pior do básico sobre humanidade. Um desses exemplos foi um rapaz, estudante também, espírita, com quem eu conversava algumas vezes. No começo da nossa amizade, achava-o ingênuo, mas gostava de sua alegria de passarinho, sempre cumprimentando quem passava pelo largo pátio da escola. Aos poucos, percebi que ele se dedicava a ser amigo dos mais tristes ou azedos e eu, provavelmente, estava entre eles. Um dia, indaguei irônica sobre aquela ‘caridade’ e ele não vacilou nem um segundo ao nega-la. Disse-me, olhando-me nos olhos sério, que as pessoas que não gostavam de aproximação ofereciam a ele a oportunidade de conquista-las e isso era um grande aprendizado para ele, não para elas. Era ele, disse-me, quem estava ganhando. Só muito depois compreendi sua gentileza. Outro exemplo veio de uma professora de língua portuguesa. Nunca foi de atenções especiais , não nos bajulava, nem nos oprimia com notas impossíveis , mas era de uma firmeza natural e incontestável , falava bem , era culta , sorridente e (o que muito me impressionava) nos ouvia e falava olhando nos olhos de cada um. Eu a enfrentei algumas vezes, com frases secas, quando falávamos fora das aulas, e ela sempre me respondia com algo para pensar. Acho que gostava de mim. Era uma mulher de fé clara e tranqüila , mas nunca tentou nos converter. Respeitava nossa falsa incredulidade e, apenas deixava claro que não concordava. Certa feita, respondendo a um colega que, não me lembro mais por que caminhos de debate , afirmou que Jesus fora um homem comum , ela disse que de nada serviam os títulos que os homens deram a ele, mas sua mensagem que, caso fosse seguida como lei, mudaria o mundo. Lembro-me dela ereta e forte quando disse que bastaria isso, não seriam preciso rituais, datas ou mesmo fé, bastava que os homens que se dizem e que não se dizem cristãos levassem uma vida cristã... Naquele tempo, eu andava bem avessa a qualquer diálogo sobre assuntos de fé, mas o que ela disse me tocou profundamente porque eram justamente os que arrotavam cristandade sem vivê-la que me incomodavam. Na verdade, ainda hoje não creio que seja possível , quanto mais olho em torno, menos creio que seja possível , mas só depois que ela passou por mim , guardei algum sentido em se ter fé e passei a lembrar-me do maior exemplo que havia tido desse sentimento vivido em práticas cotidianas: minha querida avó Odete. Com ela e por amar estar com ela, acompanhei algumas missas em igrejas e aprendi a gostar dos templos. Nunca a vi irritar-se com ninguém, nunca a soube sem coragem ou desanimada. Sua fé era simples, mas os gestos com atendia com o pouco que tinha a outros que tinham menos, o cuidado com seu oratório decorado com papéis cortados por ela mesma, a expressão de seu rosto quando rezava diante dele, tudo isso ficou gravado em mim e foi recordado pelas palavras da professora. Ainda durante adolescência tive meus primeiros contatos com o candomblé e a umbanda, e, embora não tenha compreendido o sentido dos conceitos e rituais naquela época, pude compreender que aquele caminho de fé era, para os iniciados, um caminho de autoconhecimento e espiritualização pela via do aprofundamento da nossa relação com a natureza e com os sentimentos que nos moldam, é um re-ligare pela via do que somos, do que está em nós. Desde então, tive e tenho muito respeito por aqueles que têm coragem de seguir tal desafio. Também pude um dia aproximar-me de um budista, e fiquei impressionada com a serenidade expressa em tudo. Essa fé, para os que a possuem, parece aquecer como um cobertor e acaba se estendendo a outros , mesmo os que fingem não sentir nenhum frio quando a vida regela o mundo em que pisamos. Também aí o caminho do autoconhecimento é a estrada escolhida, mas há também muito desprendimento das coisas do mundo. Um budista trabalha sua mente para estar desligado do mundo material, embora vivo e atuante nele. É uma fé que impressiona pela serenidade dos seus praticantes, é uma fé que não grita na praça , não invade espaços , não é pretensiosa , resiste a um debate intelectual e não se fecha em cofres. Espalha-se naturalmente como luz. Manifesta-se em todos os credos e não tem nenhum preconceito. No romance “O Evangelho segundo Jesus Cristo” , Saramago criou um fantástico diálogo entre Jesus , Deus e o diabo no meio da imensidão do mar ( que é tão solitário e atemporal quanto o deserto). Quando Jesus pergunta a Deus que vantagem teriam os homens do seu imenso sofrimento , Deus responde que eles teriam a esperança, viveriam animados pela esperança de um mundo melhor. Esse é o prêmio seguro da fé e não é pouco. Em mim, ficaram guardadas dessas pessoas alguma coisa além das palavras, além dos olhares que sorriam. Em mim, todas essas vozes fazem eco e não encontro contradições, ao contrário, penso que o que atrapalha minha adoção exclusiva de um credo é a convivência (dentro de qualquer uma) da rejeição de uma delas. Compreendo que espiritualizar-se é uma escolha importante e ( na minha opinião) necessária. Todas as pessoas que me apresentaram exemplos honestos de fé estão guardadas em mim. Nesses caminhos de fé, alguma coisa que acolhe, sem sufocar; ouve, sem julgar; ilumina, sem ostentar. Em todas, encontro algo que se pode buscar quando a vida dói, como um manto, uma oração, um mantra, um oriki, uma benção, um abraço.
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Feminismo é amor!
dedicado às Severinas (coletivo feminista do Sertão Central do Ceará)
Feminismo é amor pelas mulheres e pelos homens. É amor por uma humanidade mais plena de justiça; é amor pela equidade de direitos. Homens e mulheres são diferentes, o que não quer dizer que devam ser desiguais. A natureza os fez diferentes, mas homens e mulheres são mais que seres da natureza, seres sociais. Nossas desigualdades foram constituídas socialmente, através dos direitos concedidos e dos costumes estabelecidos. Vivemos um tempo de revisão desses costumes porque hoje muitas pessoas no mundo todo desejam (e expressam esse desejo) que os direitos humanos sejam respeitados e que as oportunidades sejam democratizadas.
Historicamente, as feministas sempre lutaram por isso, sempre acreditaram que apenas quando as pessoas compreendessem a necessidade de se desenvolver empatia para resolver os conflitos sociais, estaríamos no caminho por um mundo, de fato, mais civilizado. Civilizado não no verniz das maneiras sociais, mas no sentido definitivo das leis e costumes que respeitem as diferenças, enquanto combatem as desigualdades. Muito antes de se discutir os muito nuances da identidade de gênero, muito antes até de se constituírem os diversos feminismos nas suas especificidades, muito antes de debatermos as confluências dispersões das identidades contemporâneas, as feministas já lutavam por respeito às diferenças, portanto pela soberana necessidade de respeito e empatia na administração das relações sociais.
Paulina Chiziane, escritora feminista moçambicana, nos lembra a simbologia das andorinhas, na cultura chope, para a compreensão de que não podemos aprisionar ninguém que deseje de fato ser livre. Não se pode impedir que as andorinhas voem. A tirania que reinou e escravizou tantas categorias de gente por tanto tempo (nas dominações forjadas por estigmas de raça, credo ou gênero) tem seus fundamentos hoje expostos ao ridículo, ao absurdo, embora seus efeitos perdurem. O feminismo faz parte dessa onda de ideologias que vem desmontando os argumentos teóricos das tiranias antes soberanas. No caso específico, a cultura patriarcal.
Essa tem sido a grande contribuição das feministas na evolução de uma mentalidade que vai mudando o mundo para melhor, apesar das evidentes tensões. Um mundo onde as mulheres sejam vistas e respeitadas na sua humanidade inteira e não como seres utilitários, expostos à violência e preconceitos de gênero; queremos um mundo melhor, onde os homens possam também expor toda sua humanidade, atuando como parceiros e não como predadores que disputam presas. Todos nós, homens e mulheres de todas as classes sociais, religiões e orientações sexuais temos direito a ser respeitados na nossa total integridade. Por isso feminismo é revolução, é revolução e amor ou é um amor revolucionário. Um amor que propõe que nos respeitemos e amemos uns aos outros nas nossas diferenças e na plenitude da nossa humanidade.
Agosto, 2015
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A pele de foca
‘Meu doido coração aonde vais, no teu imenso anseio de liberdade?’ (Florbela Espanca)
Retornar para casa é uma viagem necessária, que, via de regra, adiamos mais do que devíamos. Não falo aqui do retorno físico, também importante, de reconhecimento de batentes, soleiras e quintais nos quais se viveu a infância, agora, com os olhos de quem já sabe o que aqueles passos escreveram na sua alma adulta. Falo de outro retorno, daquele que se faz a um eu interno, chão psíquico, fundo do que somos, que abandonamos em algum momento por motivos vários, medo, conveniência, aliança com outro mundo estranho a nós ou apenas porque, quase sempre, precisamos nos afastar para enxergar (e compreender) de fato a matéria de que somos feitos. Não sei a resposta para a pergunta ‘ por que nos afastamos de quem somos? ’. Sei que é muito comum que aconteça em algumas circunstâncias sociais.
Com as mulheres, é comum que o casamento, sobretudo quando nos acontece muito cedo e, as obrigações familiares, incluindo os pais dos quais nos tornamos um pouco mães. Outras vezes, é a necessidade de investir tempo numa carreira que nos assegure independência e respeito social. Não seria grande o problema, se depois de cessada a primeira necessidade, tal situação não se prolongasse por tanto tempo. São experiências que frequentemente nos afastam de questões fundamentais da personalidade, porque não dizer, dos sonhos e projetos, para que nos concentremos no que, naquele momento, é o fundamental, nesses casos, o bem estar do projeto que chamamos família. Mas, que fique claro, e, as mulheres compreendem bem isto, não é que esse projeto em particular não as faça felizes, não preencha o cadinho de paz que precisamos para dormir, mas certamente não basta.
Dentro de quem parte de si fica sempre o chamamento, a lacuna, o caminho aberto para a aldeia à qual pertencemos, que é o que somos. Algo que falta, e que, na sua falta, nos resseca a pele, enrouquece a voz, amarga o beijo. Algo que nos faz, vez em quando, em meio aos preparativos de um almoço, em meio a uma festa de aniversário infantil, num final de tarde, antes da última reunião de trabalho ou enquanto dirigimos numa longa avenida, ter um desejo tão grande de chorar que parece que vamos chorar por toda a vida.
No livro Mulheres que correm com os lobos, a psicanalista Clarissa Pinkola Estés elenca várias lendas relacionadas a arquétipos emocionais comuns na vida de mulheres. Numa delas, narra a história da mulher-foca que, embora pertencesse ao mundo submerso do oceano, vem à superfície em algumas ocasiões para dançar sob a lua com suas companheiras e, numa dessas ocasiões, é capturada por um pescador solitário, que lhe rouba a pele de foca, ficando ela, por anos, sob a forma de mulher e esposa. Ela chega a esquecer-se de quem é, tem um filho, vive para a família, tudo o mais parece pertencer a uma outra vida. No conto, o homem promete que, depois de algum tempo, devolveria a pele para que ela retornasse ao mar. Mas a promessa não é cumprida e, depois de algum tempo, ela vai ficando cada vez mais exausta, ressequida e ressentida. A promessa quebrada é, para muitas mulheres, nos lembra Pinkola, conhecida concretamente de muitas formas, como ‘depois que as crianças crescerem’, ‘depois que eu fechar tal contrato’, ‘depois de fulana se formar...’ e não é necessariamente descumprida pelo outro, já que o pescador pode representar nosso ego, como analisa Pinkola. No entanto, adiamos o rompimento com aquilo a que nos acostumamos porque rompimentos doem. Mas a voz interior é persistente, o chamado do oceano forte e, chega o momento em que é irresistível. É quando ela tomará sua pele de volta por algum tempo ou para sempre, mas não a deixará mais pertencer a ninguém.
Acontece, às vezes, que esse caminho pelo qual nos afastamos de nós é longo, corre-se o risco de perder-se para sempre, corre-se o risco de que sequer nos lembremos de onde viemos. É como ser um pequeno barco no meio do oceano, sem horizontes. Se esse desnorteamento, porém, não for definitivo que nos cegue, tomamos de volta nossa pele de foca e encontramos o caminho.
Recuperar a posse de si é viver uma liberdade que só a maturidade nos permite, pois só ela nos dá realmente a dimensão do que vem a ser isso. Algumas mulheres precisam afastar-se do projeto família para experimentar esse encontro consigo, outras conseguem encontrar esse espaço, afastando-se apenas temporariamente e, colocando em seu cotidiano essa prática. Nem sempre se tem a consciência do processo. Às vezes, é o mergulho na vida criativa que nos traz de volta quem somos profundamente. Há aquelas que se reencontram consigo dançando, fazendo artesanato, cantando, rezando, cumprindo seu projeto espiritual, buscando o auto conhecimento pela via da meditação, viajando, criando um espaço só seu em algum lugar do mundo, misturando ervas, cozinhando, plantando, buscando o silêncio, escrevendo ou tornando a outras atividades que nos conectam com o profundo de nós, atividades essas que muitas vezes abandonamos pelo cuidado com o outro.
Muitas vezes, o chamamento acontece e atendemos, quase por acidente, como quando se entra numa rua por acaso ou quando se pensa estar matando tempo, folheando um livro, permitindo-se uma dança, ouvindo uma música, contemplando uma imagem, um lugar... e, de repente, o impacto de uma frase, um verso, um gesto, uma melodia nos toma e já não estamos mais lá. Então percebemos que não há ninguém, nem nada ali que nos impeça de mergulhar no oceano, alçar vôo, enfim, buscar o caminho de volta.
Ainda que a vida nos conduza a essa experiência sem que saibamos como, a força que a conduz é arrebatadora e inconfundível. Reencontrar consigo é fazer as pazes com a vida que deixamos um tanto morta dentro de nós. Em sua mais bela música, Gonzaguinha nos fala de modo que talvez defina esse momento. A música chama-se ‘De volta ao começo’. Há algum tempo tenho-a como um mantra, muitas vezes caminho pelas ruas ouvindo-a na voz de Nana Caymmi, ‘...e é como se eu despertasse de um sonho / Que não me deixou viver/ E a vida explodisse em meu peito /Com as cores que eu não sonhei /E é como se eu descobrisse que a força / Esteve o tempo todo em mim / E é como se então de repente eu chegasse/ Ao fundo do fim/ De volta ao começo.’
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Sobre mulheres limpas, sujas, ébrias, sóbrias...
Dessa vez, ao ler o capítulo 8: a preservação do self : a identificação das armadilhas de Mulheres que correm com os lobos, de Clarissa Pinkola, , não pude deixar de lembrar todo o tempo dos versos de Angélica Freitas. A poetisa dialoga com o capítulo de Pinkola desde o título, como mantras. Em algumas circunstâncias, poemas funcionam como orações. Poesia, digo poesia mesmo, aquela articulação de palavras que vem da alma de alguém e que, antes de desejarem mostrar-se ao outro, são um despejo inevitável do sangue criativo, essa poesia, para mim, é sagrada, como uma oração. Pois bem, esse conjunto de poemas que a gaúcha, Angélica Freitas, escreveu e publicou sob o título Um útero é do tamanho de um punho é feito de versos que parecem referendados nas reflexões de Pinkola.
A reflexão de Pinkola parte de um conto que narra a história de uma menina pobre que vivia na floresta, catava gravetos, folhas e outras coisas com as quais criava tudo em seu mundo. A menina tinha roupas feitas por ela mesma e sapatos feitos de tecidos vermelho, também costurados por ela. Um dia surge uma rica senhora, numa carruagem dourada, leva a menina, compra roupas e sapatos novos, queima suas coisas e lhe dá uma vida rica, cheia de novas regras e nenhuma liberdade. Um dia, a caminho da missa, a menina consegue que a senhora lhe compre distraidamente sapatinhos vermelhos misteriosamente atraentes. Esses sapatinhos fazem então a menina dançar, dançar sem parar e a levam pelo mundo sem parar nunca de dançar. Ela fica exausta, mas não consegue parar.
Angélica Freitas, na sua poesia, usa de um humor tipicamente feminino para tratar de desconstruir as ideias normatizadoras que amputam as mulheres e suas vidas criativas há tanto tempo e de tantas formas. As culturas que organizaram o mundo a partir das prioridades masculinas têm construído carruagens douradas nas quais as mulheres ficam “penteadas e sentadinhas” por décadas, por vezes, a vida inteira. Angélica escreve “porque uma mulher boa/ é uma mulher limpa/ e se ela é uma mulher limpa/ ela é uma mulher boa.(...) uma mulher sóbria/ é uma mulher limpa/ uma mulher ébria é uma mulher suja.” Ao trabalhar com clichês e normas conhecidas que infantilizam e reduzem as mulheres a padrões falsos, que congelam o sangue e a vida criativa, enquanto as fazem sentir culpas (enfatizando as dicotomias boa/má, limpa/suja, sóbria/ébria), Angélica nos faz rir, junto com ela, do reconhecimento imediato destas mentiras e, assim como podem fazer as orações profundas, mantras e rituais sagrados, nos liberta com uma alegria inusitada. Mais adiante, seus poemas nos falam de uma “mulher braba”, num claro diálogo com Pinkola, que cita muitas mulheres famosas que tiveram que assumir o arquétipo de uma “mulher braba” para exercer seu talento, sua personalidade, ainda que isso as tenha feito calçar sapatinhos vermelhos que as dominaram cm uma dança infernal. Ela cita Janis Joplin, Edith Piaf, Marilyn Monroe, todas isoladas dos padrões comportamentais aceitos, todas seduzidas pela carruagem dourada das quais só fugiram calçando sapatinhos que as dominou na loucura de dançar até a morte.
É nossa natureza primitiva, primeva, feminina que nos salva em um ambiente cheio de armadilhas, alçapões, carruagens douradas, enfim, estratégias que compõem parte da cultura do mundo com conceitos que convenceram as mulheres de que sua natureza não era adequada, que eram sujas, que precisavam ser “domesticadas”, o que quase sempre significa que deveriam abrir mão dos seus sapatos vermelhos feitos por suas próprias mãos. No entanto e apesar de todas as armadilhas, como nos ensina Pinkola “mesmo nas piores circunstâncias, como as descritas na história dos sapatinhos vermelhos, até os instintos mais prejudicados podem ser curados”
Ao longo de minha vida, vi e li histórias de mulheres que reencontraram seu instinto criativo, o que as levou a se reencontrar e, daí, não mais abriram mão de sua própria natureza. Não precisamos terminar, como a menina da história, com os pés amputados por termos deixado a fome alastrar-se em nossas almas até nos perdermos de nós mesmas em tal voracidade. Lembremo-nos do sagrado em nós. Pinkola fala de muitas formas de armadilhas nas quais as mulheres podem sucumbir, perderem seus pés ou suas vidas. Lembremos que quando alguém constrói uma armadilha para capturar um animal, o faz porque teme enfrentá-lo diretamente ou porque sabe que o desejo de liberdade da presa é forte o suficiente para salvá-la e que ela não se submeterá, a não ser por engano. Esse é o grande perigo, essa, me parece é a grande lição desse capítulo, que não nos deixemos enganar, que confiemos na nossa natureza primeva, escutando-a porque ela é forte.
Para reforçar essa ideia, deixo vocês com mais alguns versos de Angélica: “um útero é do tamanho de um punho/ num útero cabem cadeiras/ todos os médicos couberam num útero (...)uma pessoa já coube num útero/ não cabe num punho/ quero dizer, cabe/ se a mão estiver aberta “ Que esses versos funcionem como mantras para nos lembrar do que somos.
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Estranha contabilidade
Contabilidade é uma tarefa adiada e temida por todos que precisam estabelecer o difícil equilíbrio entre o necessário (sobretudo,o desejado) e vil metal (agora plástico). Irritante é o trabalho de fechar contas que não obedecem nunca às nossas expectativas , sempre além ;curiosa , a descoberta de que , a desistência que mais nos frustra não é a do necessário , mas a do supérfluo , aquilo , seja lá o que for , livro , doce , carro ou viagem que não cabe em nosso orçamento , como um corpo 48 não caberia numa roupa 40 , mas que enche d’água a boca do sonho. O pior desta ginástica desesperada é que , acostumados ao tão freqüente ‘não dá’, pegamos a mania esquisita de colocar no dinheiro toda perspectiva de ser feliz , como se apenas dele dependesse a tão esperada sensação de que tudo está no lugar.Não me entendam mal , não que eu não ache delicioso poder desejar sem fazer contas , muito pelo contrário , aliás , dizem que exatamente desta nossa ‘necessidade’ de poder comprar o desnecessário , ou seja , inventar ou substituir talvez necessidades mais difíceis de serem atendidas (e é claro que estas não são de coisas ) , sobrevive mais de 80% do comércio e serviços no mundo todo. Mas o que é incrível é a relação neurótica que estabelecemos com o dinheiro em si e não com o que ele compra. Rubem Braga, cronista-poeta,em um texto chamado ‘Pobres homens ricos’, conta a história de um conhecido seu que tendo enriquecido repentinamente , vivia angustiado ao desejar comprar , por exemplo , uma obra de arte que desejava,pois desconfiava sempre que o preço talvez não fosse justo e que estavam se aproveitando de sua nova condição.Braga termina sua crônica chamando os homens que vivem assim de pobres-diabos , já que “não descobriram que a grande vantagem de se ter dinheiro é justamente não se preocupar , não ter que pensar , a todo momento , em dinheiro...”
Mais cheia de vícios e enganos é nossa contabilidade emocional : interpretamos como ganho o domínio que temos sobre alguém numa relação de afeto , como se desejássemos fazê-lo espelho de nós e , então não ganhamos , perdemos quem estava ali antes ;quando uma relação de afeto é rompida , dizemos que alguém morreu para nós , portanto que o subtraímos na nossa contabilidade emotiva , mas , na verdade , ninguém é tão vivo em nós como aquele que nos fere ; nenhuma relação está finda enquanto alguma ferida dói .Nessa estranha contabilidade , muitos preferem economizar alegrias , somar impedimentos de felicidade , como se estivessem fazendo uma poupança para algum futuro , não sei quando.
Conheço uma senhora generosa e forte , que tem o hábito de negar-se a todas as possibilidades de passeios e prazeres simples só para depois suspirar diante de alguém ‘eu não posso...’ . Há pais jovens austeros que impedem seus filhos de viverem aquelas coisas que depois lembramos com tanto gosto como o banho de chuva , o pé descalço, os quintais vizinhos, a dormida bagunçada com os primos no chão da sala, o picolé lambuzado e o almoço atrasado, mas com todos presentes, um dia de brinquedos espalhados,enfim todo o pacote que faz de um tempo o que se chama infância. Estes pais esquivam-se de viver a felicidade simples de ler nos olhos dos filhos a alegria grata que vem de pequenos gestos , como o brinquedo inesperado , a leitura ou o filme partilhados , a festa de aniversário ou o passeio pela calçada . Lembro-me de um conto de García Márquez chamado ‘O verão feliz da senhora Forbes’, que está na série Doze contos peregrinos.Nesse conto , o narrador lembra de um verão vivido na infância , numa casa de praia em uma ilha cheia de mistérios e aventuras a experimentar , que é quase estragado pela chegada de uma senhora alemã, encarregada de ensinar maneiras requintadas e européias ao narrador e seu irmão. Os dois desenvolvem um ódio visceral pela governanta até que descobrem que ela , à noite , depois que eles deitavam , entregava-se aos prazeres de um verão numa ilha : mergulhava sob o luar , ouvia música , dançava ou varava a madrugada fazendo doces e bebendo garrafas inteiras de vinho.O final do conto é surpreendente e trata da nossa enorme fome de felicidade que desejamos esconder.
Pior que todas as tolas economias é a que fazemos com as palavras que existem dentro de nós para aqueles que amamos e que guardamos para um momento que nunca chega : as boas e as más , guardadas sob segredo , que fingimos não saber.Não dizemos , como se aguardássemos um dia...Quem nunca viveu a experiência de perder alguém que se quis sem dizê-las__as palavras__ engasgadas para sempre.
A poeta feiticeira Hilda Hilst ,intensa e de palavra ferina, traduz o avesso dessa perda em versos desesperados: “Ama-me./É tempo ainda./ Interroga-me./ E eu te direi que nosso tempo é agora. (...) / Se refazer o tempo /a mim , me fosse dado / Faria do meu rosto de parábola / rede de mel , ofício de magia.’
Algum dia talvez , aquela senhora venha a andar pensativa num final de tarde e descobrir surpresa as cores mudando no céu .Então esquecerá a hora da padaria e da reza das seis , que já não será necessária. Aqueles pais poderão ainda descobrir nos netos que mais que responsabilidade , crianças por perto , são oportunidade de presenciar felicidade sem pudor. Mas , até mesmo para os que crêem poder reencontrar afetos em outros mundos , nada redime a palavra não dita , o calor do olhar perdido sem sentir , que se apagou , no frio silêncio da morte.
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Reencontrando Clarice
‘O que te escrevo é de fogo como olhos em brasa’ (Clarice Lispector)
Essa frase de Clarice está num livro que pertencem ao seleto grupo daqueles que nunca cesso de ler porque sempre me dizem mais e mais. É Água Viva, uma obra inclassificável quanto ao gênero de escrita e dessas que os críticos tratam de esquecer logo terminam por quase serem esquecidas. Nela, a mulher de olhos e frases oblíquas nos brinda com reflexões que fazem curvas sinuosas e vão abrindo clareiras por diversos assuntos, entre eles, seu processo criador ou melhor, o que vem antes, o que a inspira ou o que a obriga a escrever. Ela trata do que queima, do que incomoda e que, invariavelmente muda nosso olhar.
Mais casmurra que social, mesmo gostando tanto de teatro, custo animar-me a ir conferir novidades, mas o convite de ver a moça Goulart encarnada em Clarice a desfiar seus textos foi irresistível. Surpresa, a moça Beth me trouxe minha Clarice preferida. Digo a preferida porque quem tem intimidade com as páginas da judia de olhos oblíquos como as frases que construía, sabe que eram várias as Clarices. Algumas vezes, em seus textos, as situações coincidem com as que viveu (principalmente nas crônicas e alguns contos), noutras as personagens distanciam-se muito de sua vida, mas tudo era narrado numa nova língua literária, a clariceana. Nela surgiram as meninas e suas descobertas, como em ‘Cem anos de Perdão’ e ‘Felicidade Clandestina’, ou as senhoras já próximas de descansar suas cabeças como flores que murcham, tais como a de ‘Passeio a Petrópolis’ e ‘Feliz Aniversário’ ou os bichos que metaforizavam situações humanas como em ‘Tentação’ e ‘Uma Galinha’, ou ainda as mulheres em tantas e diversas posições, desde a perdida Macabéa transitando pelo não lugar de sonho nenhum até as mães classe média em seus táxis, salas e cozinhas.
Beth, no entanto, teceu sua rede de captura da alma clareceana seletivamente, escolhendo entre todas algumas das minhas preferidas mulheres-clarice. Sua primeira aparição no palco já insinuava as escolhas. De costas, usando um vestido envelope que lhe alongava a silhueta e remetia a alguns usados em fotos deixadas pela escritora, estica o braço num gesto que pareceu trazê-la, junto com o cigarro, seu companheiro constante. Lá estava uma Clarice, qual seria? mas meu coração já sabia que era ela, a minha preferida, a Clarice que expressa as transformações em movimentos/sentimentos de marés internas em fundos oceanos femininos. A Clarice que tantas vezes tratou de como personagens que ‘por destinos tortos vieram a cair num destino de mulher’, encarceradas em vidas de cuidar, veem emergir de dentro dos seus mares profundos outras mulheres que sabem o que é amar vastamente, amar o mundo e a si, amar o sentido de sentir. São muitas e algumas delas foram habilmente costuradas por Beth na sua interpretação. Lá esteve a corajosa Joana, de ‘Perto do coração selvagem’, que desde menina dizia que ia ser herói quando crescesse.Ela é a personagem de estreia de Clarice em romances.Lá esteve também a forte Ana, do conto ‘Amor’, tão parecida com Clarice ao tratar de seus filhos, sua vida doméstica como árvores que cresciam sob sua proteção. Lá esteve Lori e sua oscilação entre a submissão e a ruptura com um homem que a queria contida e lá esteve a mulher que encontra no rato o momento de compreender que viver(e amar) é também aceitar o que não é agradável.Enfim, lá estava Clarice, uma delas, mas reencontrá-la me trouxe de volta as outras também.
Das boas coisas de se ter leitura como um hábito tão contínuo que chega ao imprescindível é ir , aos poucos, conhecendo a obra toda ou quase toda de um(a) autor(a).Isso nos liga de modo especial a quem escreveu. Tornamo-nos um pouco íntimos. Aquilo que os teóricos chamam de estilo termina por ser como o jeito conhecido, como se soubéssemos o que diriam, como ririam ou se aborreceriam diante de alguma situação. É mais um prato à nossa mesa, mais um copo junto ao nosso, alguém longe do corpo, perto da alma.
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Carta a Vinícius
Fortaleza, 19 de Outubro de 2001
Poetinha,
Atrevo-me a trata-lo pelo apelido que você mesmo adotou, afinal sempre me senti perto de você. Hoje é nosso aniversário. Por coincidência romântica, nascemos no mesmo libriano dia, embora separados por décadas e por espaços que nunca se cruzaram. Só conheci o Rio e as ruas banhadas pelo mar que olhaste tanto, anos depois que tinhas partido. Fiquei por aí, bebendo versos que fizeste para outras, visitando lugares onde estiveste, afinal aniversário é dia de se presentear.
No ano em que foste embora, eu sequer chegara aos vinte e outros homens me agradaram apenas por me lembrar você em algum gesto. Um deles, deu-me o livro Para uma menina com uma flor e eu fingi que havias escrito para mim. Por isso dei próprio que se salvasse, gostava de ler poesia e, certa tarde, leu-me cheio de um tom muito grave “Por não te possuir, tendo-te minha/ por só quereres tudo/ e eu dar-te nada/ hei de lembrar-te sempre com ternura.” Fiquei apaixonada e novamente dei a outro os beijos que eram seus, mas a paixão durou apenas a tarde em que ele vestiu-se de seus versos. Outra vez, desejando terminar um namoro, enviei ao indesejado o soneto da separação “De repente do riso fez-se o pranto/ silencioso e branco como a bruma/ E das bocas unidas fez-se espuma/ E das mãos espalmadas fez-se o espanto”.(...)
Não sei se minha paixão pertence a ti ou a poesia com que tantas vezes vesti meu desejo de beleza, minha ilusão de que alguém pudesse mesmo se perder por outro. Tu fazias crer que sim. Por isso, resolvi escrever-te essa confissão. Confesso que muitas e muitas vezes quis ser a musa dos teus poemas, ou melhor, da tua paixão. Fingi que escreveste para mim “Meus amigos, meus irmãos, cegai os olhos da mulher morena/ Que os olhos da mulher morena estão me envolvendo/ E estão me despertando de noite...”
Enfim, amado, quero também dar notícias dessa terra. Continuas por aqui, nas páginas dos livros, nos beijos que roubas de tantos homens sem poesia, nas músicas que jovens bocas cantam sem saber sequer seu nome. Mesmo os que te conhecem pouco, sabem do cor algum trecho de letra sua musicada por Jobim, Toquinho ou Chico ou ainda os versos mais famosos de teus sonetos como “Maior amor nem mais estranho existe / que o meu, que não sossega a coisa amada/ E quando a sente alegre, fica triste / E se a Vê descontente, dá risada.’” Continuas em nossos lábios, de uma forma ou outra.
Em mim, ah, em mim continuas firme, vivo, quente. Apaixonada pelo que não sei de você, invento porque nada melhor para a paixão do que uma boa utopia. Então acredito quando ouço, na versão de você que alguns contam, que não eras nem mulherengo, nem traidor. Acredito (porque quero) que amavas uma mulher de cada vez até que se esgotasse todo o amor, sorvido sofregamente, como deve ser. Feminista, traída por essa paixão secreta que ora revelo, entrego-me no auge da minha madureza de mulher ao teu carinho póstumo e finjo que fomos grandes amantes. Na verdade, agora, se pudéssemos jogar com o tempo e nos encontrarmos num tempo mágico, é que seria bom. Hoje faço quarenta anos, seria ótimo encontrar o Vinícius de quarenta também. Não desperdiçaria esse sonho sendo jovem demais. Sei que suas mulheres foram sempre mais jovens, mas se estamos no plano dos sonhos...
Não sei se amarias o tempo de hoje, o mundo me parece cheio de uma rispidez estranha, as moças coloridas das praias são olhadas pelas câmeras dos computadores mais que ao vivo. Chico continua nos encantando, embora seja cada vez mais raro que esteja por aí. Ela, a moça morena do recôncavo que tanto gostavas, é dela, de Maria Bethânia, a voz que escolho hoje para ouvir os versos teus que desejo sejam nossos: “Ah, quem me dera ir-me / Contigo agora /Para um horizonte firme / (Comum, embora...) /Ah, quem me dera ir-me! /Ah, quem me dera amar-te /Sem mais ciúmes /De alguém em algum lugar/ Que não presumes... /Ah, quem me dera amar-te! (...)Ah, quem me dera ter-te / Como um lugar/Para eu morar-te/ Morar-te até morrer-te...”
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Da necessidade dos descuidados de uma mãe
“Nosso relacionamento com essa mãe da alma deve girar sempre, mudar, transformar-se; ele é um paradoxo. Essa mãe é a escola na qual nascemos” (Clarissa Pinkola Estés)
Hoje mais uma vez me surpreendi de como o exercício da maternidade pode significar poder e impotência diante do outro ou do que podemos fazer pelo outro. Não há quem possa avaliar essa questão com mais propriedade do que quem tenha tido uma mãe danosa ou uma mãe generosa em sua vida. Ambas são inesquecíveis. Sobretudo depois que me tornei uma mãe madura, tenho buscado avaliar se estive próxima de um desses pólos na vida dos meus três filhos. Avaliação inútil, penso, porque só eles é que poderão fazê-lo, mas acho que faz mesmo parte do papel apurador das rugas e de uma preparação necessária para a curva em direção ao desconhecido, que todos faremos, uma avaliação do quanto nossos gestos contribuíram ou atrapalharam os companheiros de viagem. Ninguém mais companheiro(a) de viagem que um(a) filho(a).
A angústia de hoje me veio por dois caminhos. A caçula mora em outro estado, onde faz faculdade e onde também moram meus irmãos, mãe e boa parte da família. Evito ligar todo o tempo, não gosto da sensação de monitorá-la, mas sempre nos falamos pela net e por telefone, sinto falta de ouvir sua voz e ouvi-la me chamar de mãe. É uma moça inteligente, muito senhora de si, de suas opiniões, orgulho-me que assim seja. Ontem, senti algo além da saudade habitual, uma vontade de tê-la mais uma vez menina comigo. Postei na rede social uma música que cantei muitas vezes para ela e desejei boa noite. Pela manhã, o telefone. Ela estava adoentada, sentia-se mal. Eu senti um misto de ferocidade e desânimo em mim. Havia a ferocidade de querer chegar lá imediatamente, com lençóis limpos, boa comida de mãe, chás, reclamações e beijos; havia a certeza de que ela muitas vezes me prefere longe para melhor afirmar sua força e vê-se livre de minha sombra, que é grande. Embora saiba que ela está assistida e tem todos os recursos para melhorar, passei o resto do dia com a sensação de que precisava fazer algo, como quando se tem mãos e não se pode usá-las, como quando se tem pernas boas, amarradas a uma cadeira. Sei que o amor sadio deve deixar que os filhos cresçam e afastem-se o necessário para que voem, como fazem os pássaros e orgulho-me de conseguir praticá-lo, não tenho dúvidas disso porque os vejo perfeitamente capazes de viver sem mim. Mas há algo além, algo que pertence a uma ética do cuidado, que quando se é mãe, inevitavelmente se tem.
Em seu livro Saber Cuidar (2000), Leonardo Boff, o filósofo que a igreja católica nos ofertou, narra a fábula greco-romana que fala da criação humana, quando o Cuidado teria tomado do barro da Terra e feito um ser. Ele narra que certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de barro. Tomou desse barro e deu-lhe forma. Enquanto contemplava o que havia feito, apareceu Júpiter(deus supremo).Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito nele, o que Júpiter fez de bom grado. Quando, porém, Cuidado quis dar um nome à criatura que havia moldado, Júpiter o proibiu. Exigiu que fosse imposto o seu nome. Enquanto Júpiter e Cuidado discutiam, surgiu, de repente, a Terra. Quis também ela conferir o seu nome à criatura, pois fora feita de barro, material do corpo da Terra. Originou-se então uma discussão generalizada. De comum acordo pediram a Saturno que funcionasse como árbitro. Esse tomou a seguinte decisão: "Você, Júpiter, deu-lhe o espírito; receberá, pois, de volta este espírito por ocasião da morte dessa criatura. Você, Terra, deu-lhe o corpo; receberá, portanto, também de volta o seu corpo quando essa criatura morrer. Mas como você, Cuidado, foi quem, por primeiro, moldou a criatura, ficará sob sua proteção enquanto ela viver. Uma vez que entre vocês há acalorada discussão acerca do nome, decido eu: esta criatura será chamada Homem, isto é, feita de húmus, que significa terra fértil.
Boff torna a esse mito para nos lembrar nossa essência. Somos, essencialmente, voltados para o cuidado com a vida, conosco, com o outro, quanto mais estivermos sintonizados com nossa essência humana, ou, o que talvez seja a mesma coisa, com nossa essência divina, mais nos sentimos impelidos a cuidar da vida. Penso que as mães que amam ( pois que não há a imposição ao amor, a não ser pelos códigos culturais e as mães, como todos os humanos não melhores nem piores se não conseguem amar, são só o que são, humanas), mas as mulheres que, apesar dos encargos pesados exigidos socialmente, conseguem preservar o amor pelos filhos, são movidas por um desejo de cuidar infinito, que não se esgota com o esgotamento das necessidades deles e é aí que é preciso aprender a respeitá-los o suficiente para dispensá-los, ainda que parcialmente, de nós. É um equilíbrio delicado. Como saberemos se se sabem amados? Se não se sentirão abandonados? Pergunta-me uma amiga. Respondo: não saberemos, ao menos não por enquanto. Mas que diabos, por que nos concentramos mais no que exige nosso ego e na satisfação social de enquadramo-nos como mães perfeitas ( o que quase sempre significa dizer aquelas que sacrificaram tudo) do que em entregar a vida dos filhos adultos a eles, já que é deles? Busco esse equilíbrio. Estou aqui, minha casa e meu mundo está aqui para quando eles quiserem, colo, mesa de mãe, espaço e tempo, mas saio da cena da vida deles, busco meu espaço separado porque sei que eles precisam ser quem são, um pouco longe de mim.
Há muitas situações que nos movem em direção à nossa humanidade mais plena ou, a nossa atitude de ocupação com o outro, pois, como diz Boff ‘cuidar é mais que um ato; é uma atitude, pois abrange mais que um momento de atenção, de zelo, desvelo.’ É também não confundir cuidar do outro com cuidar do seu ego ou de sua imagem. Quero ser para meus filhos como um quintal, uma varanda, uma biblioteca. Lugares onde se vai brincar, descansar, pesquisar, mas não se mora porque a morada de cada um é em si mesmo.
Agosto 2014
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Coração de estudante
“ Quero falar de uma coisa / advinha onde ela anda / deve estar dentro do peito / ou caminha pelo ar // pode estar aqui do lado / bem mais perto que pensamos / a folha da juventude é o nome certo desse amor (...) coração de estudante / há que se cuidar do broto pra que a vida nos dê flor”
É nessa música que Mílton Nascimento nos fala dos “sonhos espalhados no caminho” , nos fala de juventude e fé , de um vigor esperançoso , uma certeza de poder , que todos um dia sentimos, ou , para nossa saúde emocional, devíamos sentir. Dia desses, vi Mílton e seu sorriso de menino tímido contando dos tempos em que ele viajava pelo país , recebido pelos diretórios acadêmicos , cantando e inventando hinos , sob o sol gélido da ditadura . Eram tempos fechados para a juventude , para a esperança, para a poesia , mas talvez até porque a negativa fosse tão clara , floresciam os poetas , o vigor e a fé na mudança , por salas e salas onde se reuniam jovens cheios de palavras.
Hoje, outros tempos de silêncio por uma censura que seleciona e edita as vozes que devem falar e a confusão babélica das redes sociais. Antes , os censores patéticos , tantas vezes enganados pela criatividade artística , deixavam o alimento à esperança escapar em suas barbas ; hoje , o poder é mais hábil em tentar silenciar sonhos, confundindo-os, rouba-lhes o alimento (único não perecível) ao pensamento crítico : a possibilidade de discutir o mundo , construir projetos , fabricar idéias num espaço livre , público e superior , ou seja , a universidade pública. Concordo que há muita coisa que precisa mudar na universidade , como de resto em todos os setores públicos , cheios dos vícios da corrupção e da falta de ética , mas não se pode negar a contribuição da universidade pública para a pesquisa e construção do pensamento no nosso país. Não vamos tapar o sol com a peneira , a idéia é privatizar a universidade. O pior é que isso não está sendo feito de forma planejada e estruturada . Os professores mais preparados correm desesperados para outros empregos ou aposentam-se precocemente, de todos os cantos surgem cursos de pós-graduação improvisados para suprir um mercado , também em parte improvisado de novas faculdades que tentam ocupar o espaço deixado pela lacuna da universidade pública. A promessa para os próximos anos é deixar minguar as universidades públicas, é isso que está anunciado.
No meio disso tudo , fica o coração de estudante , perplexo , paralisado , desesperançado e impotente. Essa é a herança que temos juntado para essa geração : a desesperança. Mas , como Mílton , ainda vejo nos olhos atônitos dos jovens algo que não se pode destruir com facilidade ; algo que mistura força física e uma fé natural de quem tem o tempo a sua frente como uma estrada aberta. Juventude e fé, apesar do descaso;coração , apesar da indiferença. E nós , que estamos com eles , todos os dias , que partilhamos de uma parte do caminho , ao menos um pouco , cuidemos do broto para que a vida nos dê flor.
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As dores do parto
“Eu canto, grito, corro, rio...e nunca chego a ti” (Caetano Veloso, em Mãe) Assisti, ainda há pouco, bem atrasada, a um filme com a atriz sueca Alicia Vikander . O filme é de 2013 e com ela ganhou o prêmio de melhor atriz no festival de cinema de Marraquexe. Chama-se “Hotel” e no Brasil recebeu o título de “Hotel terapêutico”, mas tudo isso é para apenas começar a dizer que ele desengasgou um bocado de coisas guardadas que talvez eu consiga despejar neste texto. No filme, a personagem vivida por Alicia, Erika, passa por um parto traumático, precipitado por pequeno incidente que frustra seu plano de fazer um cesárea, pois não queria passar pelo parto natural. Tudo é muito rápido e ela é quase amarrada para que se conclua o parto, já que a criança corria risco de morrer. A criança nasce, ela dorme logo em seguida e quando acorda fica sabendo que o menino tivera um dano cerebral provocado por falta de ar durante o parto e que esse dano seria definitivo. A partir daí, ela entra em estado de ausência, parece alheia a tudo ao redor, recusa-se a ver ou pegar na criança, apesar da cobrança do marido, dos médicos e das tentativas terapêuticas de vários profissionais. Numa dessas tentativas, Erika frequenta um grupo no qual os relatos de dores emocionais, de rejeições e agressões são constantes, mas nada faz com que Erika fale ou melhore até que uma moça diz que gostaria de ser outra pessoa, de viver outra vida, num lugar onde ninguém lhe conhecesse, onde não tivesse que carregar tudo que viveu. Esse é o gatilho para Erika. Ela e mais quatro pessoas do grupo resolvem, sem nenhum apoio profissional, hospedarem-se em um hotel para falarem sobre as pessoas que queriam ser. A princípio é um exercício superficial que parece não tocar nas verdadeiras feridas traumáticas, mas aos poucos, vão surgindo situações que os revelam profundamente, além das máscaras simuladas. Enfim, Erika, que guardou o mais profundamente que pode a dor da frustração de lidar com o sonho de uma maternidade perfeita, também termina por explodir e permite-se expressar toda a raiva que sentiu. Este filme me trouxe muitas questões que há muito me inquietam. Podemos chamá-las genericamente de “dores do parto”, mas envolvem a vida das mulheres desde que são meninas. Referem-se a forma como são gestadas e paridas as ideias sobre ser mãe, sobre como são desconsiderados os sentimentos de uma mulher em momentos tão difíceis e fundamentais de sua vida. Por exemplo, no filme, na hora que tudo se precipita e o parto precisa ser acelerado, Erika não compreende porque a estão submetendo a um parto como ela não quer, grita, mas as explicações são dadas ao marido apenas para que ele ajude a tentar acalmá-la. Essa violência que sofre simboliza bem como nossa sociedade confunde um ser que participa da criação da vida (uma mulher) com um saco onde se guarda algo que (parece) pertencer a um homem. Ainda considerando que tudo é urgenciado na tentativa de salvar a vida da criança e pensando no quanto acontece (no mundo real ) de os profissionais de saúde nada escutarem, ignorarem, atropelarem os sentimentos e sentidos de uma mulher nesta hora sob o pretexto de fazerem seu melhor trabalho, fico pensando, o quanto desse trabalho poderia ser melhor e mais humano ( e creio, livrar algumas tragédias) se se desse atenção por alguns minutos ao que diz e sente aquela que deveria ser a protagonista deste enredo? A outra violência vem por uma cobrança imediata (do marido e dos profissionais de saúde) para que ela supere o trauma (do parto e da notícia) e esteja pronta para assumir a estimulação do filho no hospital, já que isso poderia ajudar a acelerar sua alta. Quem já passou por uma gestação e parto, ainda que em condições de harmonia, sabe da montanha russa emocional que se enfrenta enquanto os hormônios brincam de nos enlouquecer e o mundo nos quer imediatamente equilibradas, disponíveis e mães perfeitas (aliás, o que é mesmo esse ser que inventaram, a mãe perfeita?) Por isso, Erika só consegue expressar seus sentimentos (e enfrenta-los) quando se isola om estranhos que não criaram dela a expectativa do modelo de mãe, na verdade, eles sequer sabem que ela tivera um filho, mas por motivos outros, permitem que ela se expresse sem ser julgada. É assim que Erika consegue iniciar sua cura e voltar para sua vida, e seu filho. Por que será que não concedemos às mulheres que se tornam mães, o direito de permanecerem humanas? Por que se tornam subitamente alguém cujos sentimentos e dores não devem ser considerados? Ou pior, como se pode querer que alguém, cuja humanidade é ignorada, seja, ao mesmo tempo, o mais perfeito modelo humano de amor e disponibilidade? Setembro, 2015
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Que poema lindo! lindo lindo!
Entre
Eu não sou como você Mas espero Eu nao sou como você Mas sinto Nos ossos Não sou como você Mas rio Por dentro Tudo lava Tudo leva Tudo de encontro Ao mar Minha maré pororoca Destrutiva Eu não sou como você Mas queimo Fluo Flutuo Mas minto Também fico Também resto Também basta a mim um sorriso pequeno Um vento ameno na pele e Não estou sozinha Um abrir os olhos e me transporto Eu não sou como você mas também quero ser feliz
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