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(Estudo de Literatura Fundamental) A Dança Cósmica das Feiticeiras
Capítulo II: Magia, amor e consciência
A autora abre o presente capítulo com um mito cosmológico, no qual apresenta a Deusa como um ser divino único em meio ao caos:
“Solitária, majestosa, plena em si Mesma, a Deusa, Ela, cujo nome não pode ser dito, flutuava no abismo da escuridão, antes do início de todas as coisas. E quando Ela mirou o espelho curvo do espaço negro, viu com sua luz o seu reflexo radiante e apaixonou-se por ele. Ela induziu-o a se expandir devido ao seu poder e fez amor consigo mesma, chamando-a de 'Miria, a Magnífica'. O seu êxtase irrompeu na única canção de tudo que é, foi ou será, e com a canção surgiu o movimento, ondas que jorravam para fora e se transformaram em todas as esferas e círculos dos mundos. A Deusa encheu-se de amor, que crescia, e deu à luz uma chuva de espíritos luminosos que ocuparam os mundos e tornaram-se todos os seres. Mas, naquele grande movimento, Miria foi levada embora, e enquanto saía da Deusa, tornava-se mais masculina. Primeiro, tornou-se o Deus Azul, o bondoso e risonho deus do amor. Depois, transformou-se no Deus Verde, coberto de vinhas, enraizado na terra, o espírito de todas as coisas que crescem. Por fim, tornou-se o Deus da Força, o Caçador, cujo rosto é o sol vermelho, mas, ainda assim, escuro como a morte. Mas o desejo sempre o devolve à Deusa, de modo que ele a Ela circula eternamente, buscando retornar em amor. Tudo começou em amor; tudo busca retornar em amor. O amor é a lei, mestre da sabedoria e o grande revelador dos mistérios.” (STARHAWK, p. 33)
No segundo capítulo de A Dança Cósmica das Feiticeiras, Starhawk mantém seu tom político — bastante coerente com seus posicionamentos sociais. Aqui, ela amplia o sentido da feitiçaria e elabora melhor o conceito de amor como prisma pelo qual a bruxa deve entender o mundo — conceito este que circunda toda a sua tese da bruxaria enquanto ato político, para além dos aspectos religiosos. O amor, tal como elencado pela autora, passa por percepções universais. Amar tudo e todos, com respeito e entendimento, seria então a ética fundamental da feitiçaria. Através do amor, a bruxa serve à força da vida, à essência vital da Grande Mãe. Por meio do amor acima de todas as coisas, estabelece-se a regra moral que circunda a prática da feitiçaria — não como uma caixa ou fórmula, mas como um princípio: o cerne do poder da bruxa.
Emoções intensas, em geral, figuram o real poder da bruxa. Amor, ódio, desespero, alegria — todos são elementos potentes que são canalizados e organizados quando elaboramos nosso intento, nossa intenção mágica, o propósito da magia. Entendemos por magia a arte de perceber e moldar as energias sutis-densas não visíveis neste plano. Segundo Dion Fortune, a magia é a arte de manipular nossa realidade por meio da vontade e dos pensamentos, canalizando emoções e forças invisíveis para efetuar mudanças significativas na matéria. Starhawk vai além e define magia como a manipulação das forças sutis que fluem pelo universo, um despertar de níveis mais profundos de consciência — para além do racional.
Esse segundo capítulo se debruça, ao fim, sobre os níveis elevados de consciência e as partes racionais e holísticas do nosso cérebro. Ela os nomeia como self jovem, self discursivo e self profundo (ou self deus), formas distintas de representar o inconsciente, consciente e subconsciente. A realidade é impregnada de energia e campos energéticos com os quais lidamos diariamente. Essas energias solidificam-se temporariamente e depois se dissolvem. Solve et coagula. Tudo que existe perece, morre e transmuta. Tudo é transitório, tudo se renova e retorna. O eterno ciclo de vida-morte-vida, bem discutido por Estés em Mulheres que Correm com os Lobos. Ao entender essa ciclicidade da matéria — e de todas as coisas do universo —, compreendemos a magia não como elemento sobrenatural, mas como o próprio movimento do universo em viver. A bruxa, como mediadora entre mundos, pode moldar e manipular essas energias para gerar mudanças tanto na vida individual quanto em níveis coletivos.
Nesse ponto, Starhawk debate o despertar na bruxaria como um aspecto mágico da feiticeira. Sem deixar de analisar o caráter coletivo das consciências como padrão social transmitido culturalmente, ela apresenta as limitações da cultura e expande as infinitas formas de ler o mundo. Esse aspecto é fascinante, pois, para um verdadeiro despertar espiritual, o indivíduo passa por uma brusca quebra de sua própria realidade — estágio descrito pela carta da Torre no Tarô. Momento em que nossas verdades e convicções são postas à prova, e raramente sobra pedra sobre pedra. É muito significativa a analogia que a autora faz desse processo, chamando-o de “luz das estrelas”. Ela diz que nossa mente consciente, o self discursivo, é como uma lanterna: ilumina o que é necessário em um feixe estreito. Já a luz das estrelas, que ilumina amplamente durante a noite, representa a visão do mundo pelos olhos inconscientes, do self jovem, acessível por meio do processo de despertar.
Para treinar, nesse sentido, o self jovem, ou a visão inconsciente, Starhawk propõe dois exercícios. O primeiro consiste em desenhar objetos não pela imagem que apresentam ao mundo, mas observando as diferentes formas que podem exercer em sua total capacidade de existir. Por exemplo, ao desenhar uma garrafa, não se deve copiá-la com os olhos racionais, mas enxergá-la para além do óbvio — suas formas geométricas, sombras, luzes. O segundo exercício — o que melhor funcionou para mim — é o dos sons. Em silêncio, senta-se confortavelmente e fecha-se os olhos. Atente-se aos sons ao redor, todos eles, mas sem focar em nenhum. Respire profundamente até entrar em estado de calmaria e concentração. Aos poucos, esse emaranhado de sonoridades transforma-se numa pequena e bagunçada orquestra. Nesse momento, pode-se brincar com os sentidos, imaginando cheiros para os sons, cores, formas, imaginando de onde vêm, como se parecem — mas sem se apegar a eles. Não demora até que entremos em estado alterado de consciência, uma pré-meditação. Muito útil para práticas mágicas ou para acalmar a mente.
Por meio desses exercícios, segundo a autora, temos a capacidade de entrar em contato com nosso self deus, ou subconsciente. É aqui que encontramos nossa sabedoria ancestral, nosso nível mais profundo de consciência — nós enquanto deuses. E para nos comunicar com nossa centelha divina, recorremos ao sistema não verbal de comunicação: a arte. A autora entra, então, no conceito de ritual como ponte para acesso ao self deus. Por meio da ritualística, despertamos o estado alterado necessário para contatar esse eu profundo, o subconsciente adormecido. Por isso, é essencial ativar a gnose (estado alterado de consciência) durante os ritos.
A arte é um meio muito válido de acesso ao self divino, pois o seduz e o atrai. Música, poemas, poesia, cantos, sons, cheiros, pinturas, cores — tudo isso alimenta o subconsciente. Por isso, em muitos casos, os objetos ritualísticos são importantes, em certo nível, mas nunca obrigatórios. A possessão divina — o êxtase ritualístico (que nada tem a ver com possessão demoníaca) — é consequência dessa relação sedutora entre a matéria e o subconsciente. Uma vez, ouvi que uma criança tem muita facilidade de projetar e moldar a própria realidade porque não distingue a imaginação da realidade. A criança, por natureza, pertence efetivamente a dois mundos — com acesso ilimitado e fluido. É comum a presença de amigos imaginários ou monstros embaixo da cama nesse período, pois a projeção é tão intensa que materializa. O êxtase ritualístico, a alteração da consciência para acessar o subconsciente, passa por essa volta à infância — sem medo — para alcançar esse estado mais puro de entendimento do universo, como uno e simultâneo. É fonte de criação. Passado, presente e futuro são apenas aspectos de um mesmo momento: tudo é. Somos todos parte do Todo, da Deusa, do Universo — e vice-versa. Refletimos, como espelhos, os mundos além da realidade — muitas vezes turvos demais, muitas vezes espelhados demais — mas sempre acessando um portal para o entendimento de que o mundo é uma criação perfeita da qual não devemos escapar. A espiritualidade não deve restringir o indivíduo de seu próprio mundo e natureza.
A feitiçaria, assemelhando-se às tradições xamânicas, é uma religião com valor espiritual no êxtase. Nesse sentido, a autora introduz a Lei Hermética da Vibração. Tudo vibra. Absolutamente tudo no universo está em constante estado vibracional — do átomo mais singular ao complexo galáctico. Somos vibração. Movemo-nos em ondas. Se entendermos esse conceito como insight principal da bruxaria, entenderemos que nosso corpo e mente precisam estar em sintonia com o universo — pois o que vibra aqui, vibra lá também. E, para efetuarmos mudanças significativas na nossa realidade, precisamos vibrar de acordo com elas.
Outro ponto muito interessante que Starhawk traz é o princípio da polaridade sob o prisma de uma crítica de gênero — o que considerei extremamente válido. Não convém mais entendermos o Todo apenas sob o olhar binário de masculino e feminino, como culturalmente nos foi transmitido. Sabemos que o papel de gênero embutido nesses conceitos nasce de um sistema de ordem masculina, e não cabe mais, ingenuamente, acharmos que aplicá-los à feitiçaria seja diferente. Starhawk não propõe efetivamente uma solução, mas eu, enquanto bruxa e pesquisadora de gênero, entendo que a melhor forma de converter esses conceitos seria romper com as nomenclaturas e subverter os significados. O Sagrado não é nada se não o absoluto tudo — sem distinção. Seus aspectos podem dançar entre o que há de selvagem (no sentido visceral e instintivo) e o que h�� de cultivado (no sentido organizado e palpável). Apesar de compreender as barreiras que subverter tais conceitos possa implicar — como a não acessibilidade para quem está começando — é interessante pensarmos para além dos conceitos de masculino e feminino.
A autora toca brevemente na Roda do Ano — sem explicar os festivais, mas introduzindo o culto aos ciclos da natureza. Expõe a visão do sexo como um ato sagrado dentro da bruxaria, um potente canal de energia liberado entre duas ou mais pessoas. Outro conceito amplamente debatido é a desdemonização da figura do deus. Na bruxaria, enquanto religião, o deus cornudo ou de chifres não tem relação com o diabo cristão — algo básico, mas necessário reforçar. Nesse ponto, Starhawk o descreve como uma divindade selvagem, mas também doce e sutil, parte vital dos ciclos naturais. O movimento vida-morte-vida acontece tanto externamente, na natureza em geral, quanto psiquicamente. E, nesse sentido, os arquétipos do Deus e da Deusa, alinhados aos festivais da Roda do Ano (mais adiante debatidos), ajudam a manusear as energias canalizadas dentro dessa vivência. A vida é um processo de mudança constante.
Outro ponto coerente de Starhawk é sua explicação de que a bruxaria não é uma religião de escassez. Não exige pobreza, privação da matéria, negação dos desejos ou qualquer outro conceito que implique a negação de uma vida digna durante nossa passagem por este plano. Todos esses conceitos nascem de vertentes monoteístas ou patriarcais de religião. A feitiçaria é uma forma de expressar a espiritualidade de forma coletiva, sim, e a caridade é um ponto de reflexão dentro da religião, mas não como prega o cristianismo. Pensar no coletivo não é apenas ajudar os socioeconomicamente vulneráveis, mas destruir a raiz desse problema na sociedade como um todo, para que não tenhamos uma realidade em que a pobreza material atinja metade da população mundial. Aqui, a autora é grandiosa ao propor a bruxaria como um ato político.
Concluindo, o segundo capítulo do livro prepara o leitor para adentrar um conceito de feitiçaria amplo, coletivo, ainda que individual — sem perder a essência ancestral de cuidar da natureza enquanto divindade-casa, de respeitar o divino dentro de nós e nos outros, e, por fim, entender que a bruxaria é, sim, política e consciente. Não vivemos além da matéria, e é extremamente relevante cuidarmos de todos os planos nos quais nos propomos a existir.
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(Estudo de Literatura Fundamental) Introdução à feitiçaria como uma religião de resgate ao sagrado feminino
Começando a série: estudos da literatura fundamental para as bases na bruxaria. Livro do mês de agosto: A Dança Cósmica das Feiticeiras, por Starhawk.
Esse projeto começa a partir da ânsia por escrever e o chamado para ensinar a arte. Portanto, a todos que possa vir a interessar, apresento um estudo completo - ou que pelo menos tem a propensão de ser, sobre a bruxaria enquanto espiritualidade e prática.
Introdução à feitiçaria como uma religião de resgate ao sagrado feminino
Quando digo que esse primeiro capítulo da Starhawk é um resgate ao sagrado feminino, não estou falando daquele discurso batido de mini-cursos pela internet. Esqueçam as rodas de mulheres brancas e ricas tentando acessar um suposto “sagrado feminino” entre mantas hindus mal colocadas e incensos industrializados. O que temos aqui é outra coisa. É raiz. É a poesia indomável da Terra.
No capítulo que abre o livro A Dança Cósmica das Feiticeiras, Starhawk traça um panorama da história do culto à Deusa, desde os primeiros registros, gravuras rupestres no Oriente e no Ocidente, até a contemporaneidade, com o surgimento da Wicca como expressão religiosa moderna. Nesse percurso, a autora se empenha em desmistificar a figura da bruxa e reabilitar práticas pagãs, por séculos demonizadas pelas religiões monoteístas e patrifocais.
O culto à Deusa Mãe é apresentado como alternativa para aqueles que desejam se conectar com uma imagem sagrada do feminino, mas não como ideal de pureza, submissão ou domesticidade. A Deusa, aqui, é terra, sangue, fogo, ventre, vulcão. Ao fazer esse movimento, Starhawk também ressignifica conceitos deturpados, especialmente pela moral católica. Ela introduz o conceito de Lei Tríplice, uma espécie de ética de ação e reação na bruxaria moderna, como tentativa de moldura moral.
Mas é aqui que entra o meu olhar crítico: a partir do momento em que entendi a natureza selvagem da bruxaria, essa ideia de lei tríplice perde força. Não que não haja responsabilidade; há. Mas trata-se de uma responsabilidade que parte da consciência, e não da culpa. É conduta, não doutrina. A bruxaria não é domada pela moral cristã. E sim: se me atacar, eu ataco. Não por impulso, mas por direito natural. O que não significa sair prejudicando terceiros a esmo, e sim agir com justiça, especialmente em casos de legítima defesa e necessidade vital.
A autora encerra o capítulo exaltando a natureza como organismo vivo: a Deusa encarnada. Essa visão — ancestral, vital — foi diluída com o advento das religiões que preferiram o espírito à carne, o céu à terra, o além ao agora. Ao afastar o sagrado da matéria, o patriarcado rebaixou o corpo, a terra, a mulher. E assim nos afastamos da nossa própria centelha.
Um dos pontos mais interessantes que Starhawk trabalha é o da espiritualidade como meio de expansão de consciência, não apenas num sentido metafísico ou "desperto", mas também como ferramenta de tomada de consciência de classe, de gênero e de ecologia. Espiritualidade, aqui, é ética viva. Ela não nos eleva para longe do mundo, nos mergulha nele, de peito aberto e olhos acesos. A bruxaria, como filosofia, não é fuga: é reconhecimento da interconexão de todos os mundos.
A ponte que Starhawk traça entre a espiritualidade e as leis herméticas não é arbitrária. Dentro das práticas, sabemos que o ser humano é capaz tanto do amor absoluto quanto da raiva extrema. O equilíbrio é a dança da bruxa. Não se trata de “fazer o bem sem olhar a quem”, mas de compreender que, quando um indivíduo sofre, o coletivo sangra. Starhawk é precisa ao afirmar que, na era da subjetividade, o espiritual não pode se limitar ao indivíduo. É o todo que importa.
É nesse chão que podemos reconstruir uma relação saudável com nossos corpos, e, por consequência, com a própria Terra.
O capítulo também abre espaço para expandirmos nossa noção de realidade. Starhawk propõe que ela não é apenas linear, objetiva ou individual, mas moldada por camadas de ancestralidade, cultura e história. Realidade é travessia. E, como nos lembra Frederik Meyer, ao falar da história das mentalidades, nossos gostos, ideias e valores são resultados de formações socioculturais que muitas vezes precisam ser quebradas e recriadas.
Nosso imaginário coletivo sobre bruxaria foi construído com base em séculos de repressão brutal — e depois, com pitadas generosas de folclore pop e fantasia midiática. A ridicularização da bruxa, a demonização do feminino e o desprezo por formas alternativas de espiritualidade são parte de um projeto de controle. A bruxa, quando não morta, foi folclorizada. Quando não calada, foi risível.
Outro ponto que a autora aborda, e que acho crucial, é a tendência moderna de usar os mitos como roteiros de atuação. Como se despertar espiritual dependesse de seguir um roteiro arquetípico, como atores de um teatro invisível. Mas não é isso. A bruxaria não é encenação: é ativação. É sentir-se deus, não apenas encenar o deus. Starhawk convida a pensar os mitos não como moldes, mas como gatilhos para acessar arquétipos profundos. E lembra: bruxaria é, acima de tudo, filosofia. E das mais viscerais.
Ela apresenta ainda o conceito da Mente Única, alinhado aos princípios herméticos, onde tudo está interligado. Ao lançar energia para algo ou alguém, estamos mexendo com o tecido da realidade, e, por consequência, conosco mesmos. Tudo afeta tudo. Cada um é um universo. Bruxaria é, por mais que possa ser praticada solitariamente, uma prática radicalmente coletiva.
Ser bruxa é se identificar com as dores do mundo. É se importar com vítimas do fanatismo, das guerras, da fome, da misoginia institucionalizada. É olhar para o sofrimento do outro como se fosse seu, e entender que é. Ser bruxa é um ato político. É caminhar entre mundos, como mediadora. E por isso mesmo, precisamos cuidar do corpo e da terra, não nos alienar da matéria, nem nos aprisionar nela. O equilíbrio é a única casa possível para a feiticeira.
O termo “bruxa” em si, resgatado com tanta força por Starhawk, já é um ato de resistência. Uma devolução de potência a uma palavra usurpada e violentada por séculos. Ser bruxa é recusar a domesticação.
A bruxaria, como diz a autora, é uma religião de poesia. Ela não se curva à razão instrumental. Fala em códigos, pulsa em símbolos, sente em ondas. Nem tudo aqui pode ser traduzido em palavras. E é por isso que sentir é fundamental. O êxtase ritualístico, o cone de poder, o ápice do rito, é uma leitura sensorial do invisível. Cada um percebe à sua maneira, e nenhuma verdade é absoluta. Apenas ressonâncias diversas de uma mesma vibração.
O capítulo se encerra com uma reflexão feminista profunda: com a queda dos cultos à Deusa, perdemos uma espiritualidade que acolhia a mulher. O cristianismo não apenas a expulsou dos altares, a demonizou. Mas o homem também sofre com os papéis rígidos que esse sistema impõe. A bruxaria, então, não é só libertação da mulher, mas convite aos homens a se reconciliarem com aquilo que lhes foi arrancado: a ternura, o choro, o cuidado, o amor.
O amor pela vida é o primeiro e mais importante preceito dentro da arte. Amar tudo eroticamente, no sentido mais profundo de Eros, o amor absoluto. Amar com o corpo, com o ventre, com a palavra. Não um amor edulcorado, pornografado, higienizado. Mas um amor selvagem, orgânico, presente. Amor que nutre, que cultiva, que regenera.
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Bruxaria, Loucura e Divino na Tradição Grega e na Contemporaneidade
A prática da bruxaria moderna abraça o paganismo e o politeísmo como caminhos pelos quais acessamos nosso divino ancestral. Deuses como arquétipos e o culto às antigas divindades tornam-se formas de reencontro com nossas raízes mais profundas. O reconstrucionismo dessas práticas tem solidificado, no imaginário social, a busca por conexões com nossos ancestrais e com saberes que pareciam perdidos. Um movimento digno e necessário diante da devastação ambiental e do adoecimento mental que assola a população global.
Esse movimento não é uma negação da razão ou da ciência — que são conquistas valiosas da humanidade —, mas sim um retorno simbólico ao cuidado com o sagrado que nos habita: o corpo e a natureza. Frente à cultura do desespero e da ansiedade social, há um grito por liberdade, por respiro, por reencontro. Trata-se de uma recusa à dessacralização da existência e não ao pensamento racional em si.
O culto aos deuses antigos, hoje, pode parecer loucura aos olhos de quem enxerga apenas sob a luz racionalista do Iluminismo. Deixar-se levar pelo êxtase divino, voltar a mente para o irracional, pode parecer uma ameaça — e, de fato, é. Mas é uma ameaça ao controle absoluto da razão, não à vida. Retornar a um estado primal de comunhão com o divino que habita em nós não deveria ser estigmatizado, ainda mais quando tantas religiões propagam essa necessidade de transcendência sem, no entanto, oferecer meios pelos quais o sujeito possa acessá-la por si.
Para entender esse fenômeno, volto à Grécia Antiga, berço da civilização ocidental. E.R. Dodds, em Os Gregos e o Irracional (2002), levanta uma questão provocadora: eram os gregos realmente tão voltados à racionalidade quanto afirmam os estudiosos modernos? Ou haveria, na cultura helênica, espaço legítimo para o irracional, o êxtase e a experiência divina?
Ao responder, Dodds recorre aos textos homéricos para apresentar a até — uma paixão insana, uma espécie de cegueira súbita imposta pelos deuses. Na Ilíada, até aparece como um bloqueio temporário da razão, um impulso cego que leva à tragédia. Outro conceito correlato é o menos, uma forma de possessão divina que toma o corpo e exalta as capacidades físicas e psíquicas do indivíduo.
Essas experiências eram vistas como estados excepcionais de consciência. E, diferentemente das patologias modernas, não eram permanentes nem indicativas de distúrbio. Eram compreendidas como manifestações espirituais intensas, passageiras, dotadas de um sentido sagrado. Compará-las diretamente a quadros clínicos contemporâneos — como a esquizofrenia, por exemplo — seria anacrônico. O que está em jogo aqui não é o sintoma em si, mas o significado atribuído à experiência. Para os gregos, tais estados revelavam a presença dos deuses, não a ausência da sanidade
A até, portanto, não era acompanhada de culpa: ela apenas acontecia, como manifestação inevitável da vontade divina. Essa condição psíquica liminar, na qual o ser humano se aproxima do sagrado, se distingue das doenças mentais porque não fragmenta o sujeito — pelo contrário, o reintegra a uma dimensão mais ampla da existência.
Essas manifestações não se limitavam aos campos de batalha. A loucura divina era também parte dos rituais, das festas, das profecias e das práticas sagradas. A vida humana era entendida como regida pela vontade dos deuses, o que eximia os indivíduos de responsabilidade moral diante de certos atos. Essa crença ecoa nas tradições religiosas posteriores — inclusive no cristianismo —, nas quais o julgamento e a justiça são projetados como prerrogativas do divino. Nas palavras de Dodds:
“O homem passa a projetar no cosmo sua própria e nascente demanda por justiça social, e quando de universos distantes retorna o magnífico eco de sua voz, com a punição prometida dos culpados, nesse momento ele se enche de coragem e segurança.” (DODDS, 2002)
Platão, por sua vez, reconhecia o valor espiritual da loucura. Em Fedro, ele define quatro formas de loucura divina: a profética (por Apolo), a ritual (por Dioniso), a poética (pelas Musas) e a erótica (por Afrodite e Eros). Segundo o filósofo, as maiores bênçãos chegam por meio da mania, um êxtase não patológico, mas ofertado pelos deuses com propósitos específicos.
Dodds retoma esse pensamento para refletir sobre os cultos apolíneos e dionisíacos como manifestações complementares. Apolo representa a luz, a ordem, o conhecimento oculto. Dioniso, o êxtase, a irracionalidade, o mergulho no inconsciente. Como discutiu Nietzsche em O nascimento da tragédia, essas duas forças estruturam o espírito grego: razão e delírio dançam juntas. Ambas as experiências visavam curar, libertar e reconectar o indivíduo à sua essência.
A necessidade de mediação com o sagrado por uma autoridade transcendente já existia antes do cristianismo. O declínio dos oráculos não representou o fim da fé, mas o surgimento de novas formas de religiosidade. Tanto Apolo quanto Dioniso ofereciam ao povo grego um alívio da culpa, uma reconstrução simbólica do sujeito. A experiência dionisíaca, em especial, era profundamente libertadora: ela promovia catarse, rompimento, descontrole — e, por fim, cura.
Dioniso, em todas as suas representações, foi um deus do povo. Acolhia a todos, indistintamente. Seus cultos celebravam os prazeres simples, o vinho, a dança, os excessos. O êxtase podia ser leve — um desprendimento sutil do eu — ou profundo — uma transformação radical da personalidade. Em qualquer caso, visava à cura. E seu meio era o corpo. A entrega. O delírio.
Hoje, na modernidade, pouco se fala da loucura divina como chave de acesso ao sagrado. Podemos ver algo similar nas religiões de matriz africana, onde a incorporação dos orixás ainda preserva esse contato com o transe, com a divindade viva no corpo. No entanto, ao olharmos para a bruxaria contemporânea como herdeira dos antigos cultos, notamos que o êxtase ritualístico foi, em grande parte, marginalizado. Como acessar a dimensão visceral do divino se não nos permitimos perder o controle? Se não nos deixamos tocar por aquilo que nos excede?
Embora a bruxaria contemporânea tenha nascido, em parte, como um resgate das práticas ancestrais ligadas ao sagrado feminino, à terra e aos ciclos naturais, observa-se que uma parcela significativa de suas manifestações atuais passou por um processo de racionalização e higienização, fortemente influenciado pelas tradições ocultistas europeias dos séculos XIX e XX. Nesse percurso, muito do êxtase ritualístico, da incorporação do corpo como lugar do divino e da transcendência simbólica foi atenuado ou deslocado em favor de sistemas simbólicos codificados, teosofismos e espiritualidades intelectualizadas. Isso, no entanto, não define toda a bruxaria moderna: práticas como a bruxaria tradicional, o culto à Deusa, o paganismo ecoespiritualista e as linhas reconstrucionistas mostram que ainda há caminhos vivos e viscerais que preservam o corpo como canal do sagrado e o transe como forma legítima de acessar o divino. O que se coloca em questão, portanto, não é a validade das práticas, mas o risco de se afastar do aspecto encarnado da espiritualidade, que sempre foi central às antigas religiões e à experiência da loucura divina.
Vejo, com preocupação, a racionalização excessiva das práticas mágicas. A bruxaria, que um dia foi rebeldia da terra, parece cada vez mais absorvida por um discurso ocultista europeu que afoga a sabedoria das velhas tradições. Ao afastar-se da experiência corporal, do transe, do delírio, perde-se aquilo que era a própria essência do sagrado: o vínculo entre corpo e cosmos, carne e espírito, razão e loucura.
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De Sacerdotisa à Imperatriz: reflexões sobre os arquétipos femininos no tarô
Dentro dos Arcanos Maiores, podemos destacar como fortes representações femininas A Sacerdotisa e A Imperatriz. Duas imagens extremamente simbólicas e ricas para dois arquétipos distintos das mulheres. Analisando seus signos e significados, chego ao ponto de relacioná-las entre si como caminho e complemento uma da outra. Ambas carregam elementos necessários para a evolução da mulher enquanto bruxa, cada uma com seu próprio ciclo a se cumprir.
A Sacerdotisa — ou Papisa, em diversos deques — representa o feminino frio e receptivo. É a força da introspecção analítica. Ela contempla e exala conhecimento. As cores claras, os símbolos lunares, as romãs (representação do submundo), o pergaminho em seu colo — tudo nos alerta para questões internas, de reflexão e análise. Entendemos aqui o momento primordial da reclusão e do estudo, mas não apenas isso. Percebemos a extrema necessidade de extravasar também! Pôr em prática todo o estudo, fazer algo com toda a análise, ouvir a voz que vem de dentro. A passividade da Sacerdotisa, em algum momento, precisa virar a chama quente e ativa da Imperatriz.
A terceira Arcana Maior do tarô é uma mulher centrada, bem-quista, estável e segura. O olhar duro e imponente, ainda assim brando e caloroso, mostra o resultado de todo o processo interno que incubamos na Sacerdotisa. A Imperatriz faz algo com a reflexão. Os elementos da carta são opostos aos da Sacerdotisa: as cores quentes, o vestido chamativo, a coroa de estrelas, a vegetação farta, o trono confortável. É um passo a mais na evolução da mulher. A Imperatriz executa, como força ativa que é, toda ação que questionamos no momento Sacerdotisa. É símbolo de luta, mas também de estabilidade, de carinho e de conquista. É mãe, é fértil, é rica.
Ao meditar frente às duas simbologias, chego à conclusão de que todas nós, mulheres que nos propomos a andar os caminhos da arte, da bruxaria — e dos mistérios da vida num geral — passamos pelos arquétipos da Sacerdotisa e da Imperatriz. Quando nos engajamos em buscar o conhecimento da Terra, em nos resguardarmos à nossa intuição e sairmos do estado contemplativo/meditativo para assumir as rédeas de nossas vidas, tornamo-nos criadoras e artesãs de nossas histórias, cientes de onde viemos e para onde vamos, munidas de nossos direitos, vestidas com nossa bravura e agraciadas com nossa coragem.
Entender nosso lugar no mundo, nossa ancestralidade e nosso propósito é mais que um chamado espiritual — é um compromisso com a construção da nossa essência, da nossa liberdade e da nossa potência enquanto nossas próprias deusas.
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Shadow Work Parte 1
Entendo que falar sobre trabalho com as sombras é, acima de tudo, um ponto individual e íntimo. Cada caminho é diferente e estabelecer comparações não seria honesto com ninguém. Entretanto, é válido salientar que o trabalho com as sombras é um conceito psicoterapêutico de C. G. Jung (psiquiatra e psicoterapeuta suíço), e não só pode como deve ser trabalhado em análise com um profissional. Ter o acompanhamento de um psicólogo/analista/psicanalista ajudará no seu discernimento e autoconhecimento. A ajuda dentro de um atendimento profissional proporcionará a você mais esclarecimento e norte ao conduzir suas sombras.
Dito isto, dentro da bruxaria trabalhar as sombras é também parte constante e importante para o crescimento e saúde da bruxa. Além do auxílio profissional, o cuidado espiritual acerca de nossas sombras é um meio pelo qual podemos encarar nossos medos, traumas, faltas e erros.
Falando aqui a partir da minha experiência como bruxa há seis anos, e agora, analisanda em psicanálise, tentarei mostrar como ambos os caminhos podem ajudar no Shadow Work.
Gostaria, antes de tudo, de dizer que o trabalho com as sombras é constante e contínuo. Não é feito da noite para o dia; é realmente desagradável, porém extremamente necessário.
Minha experiência trabalhando com minhas sombras
Quando descobri meu par de Deuses guias, meus pais na bruxaria, iniciou-se um período confuso e intenso para mim, com relação a intuição, mediunidade e contato com seres de outros planos. Como todo mundo no início do trabalho espiritual. Hécate e Dioniso eram os deuses que se apresentaram para mim em sonho como meus pais. Mas, por algum motivo não aparente, eu foquei no trabalho com Hécate. Talvez fosse minha extrema necessidade de ter uma influência feminina, de trabalhar o conceito de mãe em minha vida, não sei!, sei apenas que não senti nenhuma afinidade com Dioniso no começo. Isso me fez deixar de querer contato com deuses, sagrado masculino e qualquer coisa similar.
Tenho um histórico nada agradável de abuso sexual, assédio sexual e moral, violência doméstica e afins com relação à figura paterna, e masculina em si. Eu fui uma menina sexualizada desde de que me conheço por gente, recebendo constantemente pedidos de casamentos e flertes vindo de amigos próximos ao meu pai, sendo assediada por vizinhos, colegas, parentes e professores. Cresci num lar violento e vi minha mãe sofrer abuso doméstico por toda sua vida. A figura masculina não era para mim a mais agradável de se lidar, ou ter por perto. Talvez esta seja a grande razão pela qual não quis me envolver com Dioniso.
Cultuar Hécate é por si só um trabalho constante das sombras. É preciso se despir do ego quando se alinha a uma Deusa tão crua, em sentidos de máscaras, tão intensa e reveladora. Foram seis anos tentando entender e trabalhar de acordo com seus ensinamentos, muitas vezes duros demais aos olhos assustados de uma garota insegura.
Inclusive, este projeto (blog) é um pedido dela.
Mas e Dioniso?
Dioniso nunca se apresentou para mim até este ano. Nunca estabeleceu contato, nunca apareceu em sonhos, eu também não pesquisava ou não me interessava pelo estudo do Deus. Até iniciar (de forma efetiva) minha análise.
No início da pandemia, lá pelo mês de maio de 2020, resolvi que precisava de atendimento psicológico. Optei por uma psicanalista, por inúmeros motivos, dentre os quais a questão da fala livre e o envolvimento da ciência com as palavras. Eu curso letras, e isso é bastante significativo para mim.
O primeiro ano na experiência de ser analisada foi complexo, por muitas vezes me encontrei em contradição, ou com medo de estar encenando para ser alguém frente à minha analista que normalmente eu não sou. Mas mesmo assim, estava empolgada por estar em análise. Depois desse primeiro ano, as sessões começaram a fluir de forma diferente. Tenho me pegado com medo, ou receio, de entrar em análise, e acho que aqui eu atinjo um ponto crucial do trabalho com as sombras: o medo.
Diferente do medo trabalhado com Hécate (medo inconsciente de escuro, espíritos, de construções sociais e religiosas com relação à bruxaria), o trabalho com Dioniso está me levando por caminhos muito densos e intocáveis para mim: o trauma.
Quando me dei conta de que talvez não seria mais viável escapar de falar sobre meus traumas, todos eles relativos à figura masculina e paterna, entrei em um ciclo de autosabotagem. Por um tempo, deixei de priorizar a análise ou até mesmo desqualificar a eficiência dela em minha vida, não por duvidar da profissional ou do ramo, mas por não entender como funcionava na prática. Acho que nunca entenderei por completo, mas depois de algumas reflexões cheguei à conclusão de que: apenas faça!. A questão é não pensar muito em como isso ou aquilo vai ter efetividade na minha vida, em vez disso apenas vivenciar e deixar agir. Esta percepção ajudou a quebrar um pouco do tabu que, inconscientemente, eu tinha em relação à análise.
No dia 9 do mês de março do presente ano de 2021 eu anotei pela primeira vez em meu caderno o interesse por Dioniso que cresceu em mim do nada. Não me lembro como e porque despertou-me esse súbito desejo de me aproximar dele. Vi alguns vídeos e li alguns conteúdos sobre seus mitos. Aos poucos o Deus foi tornando outros contornos em minha mente, quebrando também alguns tabus que se estabeleceram através do senso comum dentro de mim. Esqueçam Percy Jackson aqui.
Quando dei por mim, já havia comprado o livro Dioniso no Exílio: sobre a repressão da emoção e do corpo, de Rafael López -Pedraza, analista Junguiano. É um livro pequeno, mas bastante útil, principalmente quando falamos de desmistificação da imagem de Dioniso.
Dioniso
Existem dois mitos mais conhecidos sobre a criação do Deus. No primeiro ele é filho de Zeus e Perséfone, deusa do submundo; no segundo, filho de Zeus e a mortal Sêmele. Ambos os mitos trazem dois aspectos comuns: a morte de Dioniso, ainda criança, pelas mãos dos Titãs, a mando da Deusa Hera; e seu renascimento a partir da coxa (muitas vezes virilha) de Zeus.
Entre os atributos de Dioniso, os mais famosos são a embriaguez pelo vinho, a loucura, o transe, a possessão ritualística. Falando a grosso modo, é o Deus dos vinhos, orgias e loucura. Um pouco além do que se sabem comumente sobre Ele, podemos dizer que Dioniso é também o Deus das emoções, das Tragédias, do Teatro, e das mulheres.
Dioniso era o Deus “masculino” mais próximo às mulheres, e aos humanos em geral também. Possui uma forte conexão com os ciclos de vida-morte-vida tão atrelados ao arquétipo da mulher selvagem[1]. Alguns escritos trazem a figura do Deus como andrógena, ou hemafrodita, descrito como um rapaz de beleza feminina[2]. O livro de Rafael López-Pedraza trouxe um ponto sobre o estudo do Deus que, em particular, me fez entender seu papel junto a mim no trabalho com as sombras. Dioniso rege também os traumas, em especial os traumas de infância.
Após nascer, fruto de mais uma das “infidelidades” de Zeus, Zagreu[3] (Dioniso) foi perseguido por Hera. A Deusa enviou os Titãs para destruir o menino fruto do amor de Zeus com Perséfone (ou Sêmele, dependendo da versão). Ainda criança, Dioniso foi esquartejado e devorado. Zeus conseguiu salvar seu coração. Em um dos mitos, Zeus dá o coração de Zagreu para que Sêmele ingira antes de engravidá-la, fazendo assim que seu filho fosse gerado em seu útero[4].
Todo o meu trabalho das sombras gira em torno dos traumas que sofri na infância, estes que deixaram marcas muito profundas em minha vida adulta, e continuam me travando e impedindo de progredir como indivíduo.
Após a leitura na integra do livro, tive um sonho bastante significativo.
O Chamado de Dioniso
Vou postar aqui um texto lúdico que fiz sobre meu sonho para relatá-lo.
…
A casa era modesta e arborizada, tinha inúmeras espécies de frutas e flores penduradas em árvores mais antigas que a própria humanidade, e eu as contemplava. Nesta casa havia um quarto, um quarto fora, bem na varanda. Estranho, não é? Quem planeja uma casa com um quarto na varanda?
Neste quarto havia alguém, não sei quem. Também não pudera, a única coisa que eu podia enxergar era sua mão. Uma mão humana qualquer, mas apenas uma mão, que me chamava constantemente. Eu morria de medo, corria e me escondia como uma garotinha assustada.
Certa noite, uma criança entrou no quarto e passou a alvorada lá, sem gritar, sem chorar, apenas entrou e de lá saiu.
“O que tem no quarto?” perguntei à menina, que muito se parecia comigo quando menor. Ela disse: “um rapaz. Ele quer falar com você”.
“Um rapaz?” questionei. “E como ele é?”
Fui perguntando sua aparência até extrair do discurso simplório, porém sincero, da menina que o homem a me chamava não se parecia com demônio algum, sendo assim, por que temê-lo?
Na noite seguinte, levantei um tanto acesa, instigada. A camisola babydoll não cobria tudo que devia cobrir, deixando-me arrepiada como gata ao vento gelado. Na mão, uma caixa de leite, no olhar a curiosidade. Entrei quarto à dentro.
O labirinto de escadas sem começo e nem fim me confundiu, mas no fim do corredor havia esse rapaz, ainda muito coberto pela escuridão. Dois passos à frente revelaram um ser peculiar. Não se parecia com um humano, muito menos com a descrição da criança, mas era amigável. Seus, talvez, dois metros de altura, o pé desproporcionalmente grande e peludo, o peito revestido por tatuagens tribais sem formato particular, e chifres enrolados não me assustaram. Em fato, o achei extremamente atraente. O rapaz/criatura me chamou:
“Eu estava esperando por você”.
Estava atraída, queria ele para mim. Por isso o segui, e caminhei pelas escadas sem rumo ao seu lado. Na última escada, uma porta, dentro da porta, um jardim.
“Mas quem realmente deseja falar com você está aqui”.
Um novo mundo se abriu, e o sol brilhou no meio da madrugada.
Entre beija-flores e jasmins, um senhor, de aparência semelhante ao que homem que me conduzia, porém menor e mais simpático, esperava com as mãos para trás.
“Estávamos te esperando, querida! Precisávamos que você viesse por livre e espontânea vontade, de bom coração e sem medo” sorriu. “Eu sou um ancestral, e a partir de agora eu te conduzirei pelos mistérios”.
Parada frente aos dois, minhas roupas haviam mudado. Uma túnica preta de veludo me cobria e nada mais. Meu corpo era maior, mais carnudo, mais pálido. Os homens conduziam um ritual, e eu estava sendo iniciada.
Eles proferiam palavras estranhas de olhos fechados. Seus corpos nus tinham o mesmo tom terroso e musgoso da paisagem. Seus pênis estavam cada vez mais eretos, mas não havia sexualização em seus atos. Eles lidavam com a reação natural de seus corpos com indiferença. Era só mais um dos efeitos da natureza, e isso não os impedia de me respeitar.
Ali estavam eles, corpos desnudos, pênis eretos, voz firme e olhar terno. Ao terminar o rito, fui conduzida à praia, no limiar entre o jardim e a próxima dimensão.
No mar, terminamos o processo entre seres de vários gêneros e ao mesmo tempo nenhum sexo. Baleias e orcas nadavam conosco, e podia-se ver flores amarelas boiando entre nossos corpos por toda extensão do mar.
Naquele momento e entendi que estava sendo curada e amada.
…
O cerne da experiência se dá na frase que um do seres proferiu: “eu te esperei todo esse tempo, mas queria que você viesse por livre e espontânea vontade”. Junto a este senhor havia um rapaz muito alto, de fisionomia similar a dele. Digo rapaz pelo pênis aparente, mas se observasse seriamente seu rosto, não poderia dizer se era um homem ou uma mulher. Quando acordei tive certeza do sinal. Nós sabemos quando um sonho é um sinal e quando é algo banal, e este em si era algo importante.
Observando os elementos do sonho entendi três pontos que meu trabalho das sombras tinha que abranger: o meu medo (de homens), meus traumas de infância (a criança) e minha relação com o masculino (a nudez).
Shadow Work
Voltando ao trabalho com as sombras, toda essa volta que eu fiz para tentar explicar a presença dos nossos guias nesse processo foi para dizer que trabalhar com nosso lado obscuro não é fácil, e apesar de tê-lo notado apenas recentemente, eu acredito que ele não se limita apenas ao despertar da consciência ou dentro de análise. Acredito que desde criança passamos por este processo, e de duas uma: ou o encaramos, ou o escondemos. Se o escondemos, com certeza voltará periodicamente em nosso caminho até dermos atenção a ele.
Nesses anos de trilhar mágico, entendi e aprendi que, como disse Jung, “Ninguém se ilumina imaginando figuras de luz, mas se conscientizando da escuridão”. Entretanto, por mais claro que isso pareça estar em minha mente, ainda caio em ciclos viciosos de erros e miséria. O Shadow Work é construído através desses tombos, porque uma hora cansamos de cair, ou como uma epifania, acordamos em meio ao caos e nos perguntamos: por que eu ainda estou aqui? Por que eu ainda faço isso?
Lembro-me de um episódio de Os Jovens Titãs, no qual a personagem Ravena e seus companheiros estavam assistindo um filme de terror. Os demais heróis queriam que Ravena admitisse que tinha medo do filme, mas ela não deu o braço a torcer, negando até o último seu medo. Faltou luz e a casa começou a dar indícios de estar sendo assombrada. Quanto mais Ravena negava seu medo, mais a assombração se fortalecia. No final, sobrou apenas ela dentro da casa (os outros haviam sido capturados pela criatura). Encurralada pela assombração, ao contemplar o desespero, Ravena se questiona: Eu tenho medo?, e ao admitir que teme a assombração, mas isso não quer dizer que não possa lutar contra ela, a criatura desaparece. É uma analogia muito legal que eu trago sempre comigo, desde pequena.
Às vezes percebemos essas nuances, outras não. É este o primeiro passo para o trabalho com as sombras: se questionar diariamente e constantemente sobre o porquê. Quanto mais nos perguntamos, mais caçamos em nosso inconsciente a resposta; mais máscaras vamos tirando, mais fundo nas sombras nos enfiamos. E é só lá que encontramos nossa resposta. Ter guias para te ajudar a não se perder por lá é o segundo passo para trabalhar este aspecto, Ninguém disse que precisamos passar por isso sozinhos. Dioniso veio para me mostrar isso.
Gostaria de deixar como dica, recomendação, ou citação apenas dois vídeos que me ajudaram a produzir este texto. Um é da cantora Kerli, sobre seu novo projeto espiritual e sua relação com o Shadow Work. Está em inglês, não tenho certeza se tem legendas, mas para quem consegue entender recomendo ver:
E também o material do podcast Caverna de Hekate:
Deixo também um trecho do episódio referido acima, para ilustrar melhor meu exemplo:
Obrigada por ler até aqui, sintam-se livres para compartilhar suas experiências, deixar críticas e sugestões.
…
[1]Conceito bastante discutido em Mulheres que correm com os lobos, de Clarissa P. Estés.
[2]Ver As Bacantes de Eurípedes.
[3]Primeiro nome de Dioniso
[4] Recomendo ler na integra o mito, não é meu objetivo aqui apresentá-lo no corpo do texto.
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Dioniso – A Criança da Promessa: reflexões sobre o sabá Yule.
Yule é a tradição neopagã que marca, na Roda do Ano, o início do fim do inverno. O Solstício de Inverno, conhecido como a noite mais escura do ano, celebra, paradoxalmente, o nascimento da luz. É nesse momento liminar que saudamos o retorno do Sol (ainda frágil, quase imperceptível), simbolizado pelo renascimento do Deus, a criança da promessa.
O que antes era, essencialmente, um marco dos ritmos da terra — tempo de descanso do solo e anúncio do retorno da luz, hoje ganha um contorno mais simbólico e psicológico. Nas tradições ancestrais, o Solstício de Inverno representava o ápice do frio e da escuridão, e, com ele, vinha a esperança: o Sol renasceria, e com ele, a promessa de um novo tempo de semeadura e colheita. Atualmente, ainda que a maioria de nós não viva mais do plantio literal, os ciclos permanecem, agora internos. A roda gira dentro de nós. Por isso, essa celebração foi sendo ressignificada: hoje, Yule se torna um convite a observar o solo da alma, perceber o que precisa repousar, o que deve ser encerrado, e o que, mesmo na escuridão, já começa a querer nascer.
Pensando nesse tempo introspecção que o sabá propõe, no qual a escuta interior prevalece, torna-se inevitável tocar no simbolismo profundo de Dioniso, aquele que morre e renasce, não para restaurar a ordem, mas para instaurar o êxtase: o colapso como portal para a verdade.
Num de seus mitos mais pungentes, Dioniso, ainda bebê, é despedaçado pelos titãs a mando de Hera. Zeus, com a ajuda de Atena, preserva o coração do filho e o gesta em sua coxa, até que renasça. É um nascimento não natural, anormal e sagrado, marcado por dor e ressurreição. Nesse ciclo de vida, morte e renascimento, o deus do delírio se ergue como o próprio símbolo do eterno retorno.
É a ele que lembro em Yule. Nesse solstício gelado, quando a noite parece eterna, celebramos a morte do sol, e, simultaneamente, seu renascimento. Hoje, nos despedimos daquilo que não nos serve mais. Fechamos ciclos. Cortamos laços. Amanhã, o sol voltará um pouco mais forte. E com ele, a certeza sutil de que dias mais quentes virão. A promessa de Dioniso está viva: tudo morre, tudo volta, tudo muda, e é no caos que o milagre da vida se revela.
Yule nos convida a silenciar e mergulhar em nós mesmos. Nesse mergulho, Dioniso sussurra, não como o deus da embriaguez sem sentido, mas como o portador da verdade oculta. Aquele que enlouquece, mas também cura a loucura. Que quebra para refazer. Que mostra que a luz não está na razão lógica, mas no êxtase primal.
E que não se confunda loucura com patologia. Aqui, loucura é rito. É atravessar os limites do permitido. É quebrar as grades do eu domesticado. Dioniso é aquele que nos leva ao abismo da alma, onde reside o medo, a dor, o desejo e a potência. “Vem”, ele diz. “Eu sou a verdade. Apenas o desejo puro e a felicidade libertam.” É no delírio dionisíaco que a alma vê, e volta a respirar.
Nas Bacantes, ao ser negado, Dioniso colapsa a razão de Tebas. Conduz as mulheres ao êxtase. Rompe o véu da ilusão com o vinho que não embebeda, mas revela. A insanidade delas não é fraqueza, é despertar. É pela destruição do que se acreditava inviolável que a alma enfim se reergue.
Quantas vezes não nos vimos em “becos sem saída”, segurando o coração nas mãos e perguntando, inúteis: “e agora?” E da razão, tão estimada, tão cultuada, não nos restou nada, a não ser uma garrafa vazia? Quantas vezes o choro alcoólico, o colapso emocional, foi o que nos permitiu enxergar o que a lucidez não mostrava? No turbilhão caótico de ideias, surge um fio de luz. Eis o mistério: a iluminação, às vezes, nasce do caos.
Dioniso é transgressor. É a própria dualidade: criança e velho, homem e mulher, deus e humano, vida e morte. Ele está no vinho que é sangue, no corpo que é carne, no riso que é pranto. Yule é também esse tempo: o tempo da transgressão dos medos, da aceitação da dualidade, da liberação do que nos impede de sermos. É tempo de renascer.
Celebremos, então, a ascensão do Deus nessa noite escura. Como quem planta uma semente no ventre do mundo, sem saber ainda o fruto, mas confiando na terra. Como quem aceita a escuridão, não como fim, mas como útero do retorno. Dioniso dança na sombra e acende em nós a centelha daquilo que não pode ser domesticado.
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Sobre responsabilidade afetiva e não monogamia
Por vezes, me pego refletindo sobre as formas de se relacionar dentro da não monogamia — conceito que tenho abraçado com bastante entusiasmo, e com muito custo também. Sempre que mergulho nesses mares, acabo chegando à conclusão de que não existe, em hipótese alguma, sob circunstância nenhuma, não monogamia sem responsabilidade afetiva. Do contrário, um termo mais adequado seria: desejo sem vínculo.
Entendo que a não monogamia tem raízes fincadas na desconstrução de um modelo opressivo de relacionamento — um modelo muito mais baseado em interesses privados do que em afeto genuíno. E entendo, também, que dentro da não monogamia, os contratos são mais do que importantes para uma convivência harmônica, ou, no mínimo, menos caótica. Toda relação exige um amontoado de poréns — não há outra via. Somos humanos, socialmente organizados em limites. Minha liberdade vai até onde começa a do outro. Mas o que fazer quando o desejo e a liberdade do meu parceiro parecem extrapolar os meus limites?
Dentro da minha relação, estabelecemos esses "poréns" muito baseados no respeito mútuo. Houve situações em que precisei entender que o meu desejo não podia passar por cima da responsabilidade que me propus a assumir. Do contrário, eu teria que soltar uma das pontas — para ser coerente com o que acredito ser certo. Sim, estou falando de ética. Ao iniciar uma relação que se propõe não monogâmica, eu assumi uma responsabilidade de caráter afetivo para com os outros. E, tendo uma relação nuclear, essa responsabilidade passa — sem rodeios — pela estabilidade do meu lar.
A não monogamia, por vezes, é romantizada como um território de liberdade infinita, mas essa imagem é ilusória. Não existe liberdade plena onde há laço, onde há troca, onde há afeto. O amor — seja ele monogâmico ou não — é feito de acordos. É nesses limites negociados que a liberdade real se constrói: a que respeita, a que escuta, a que se transforma junto. Às vezes, torna-se muito difícil diferenciar o que é uma necessidade legítima do que é uma urgência emocional mal elaborada. E, em muitas situações, é fácil confundir a escuta do desejo com a imposição do ego. Não monogamia é consideração, timing, escuta.
Compreendo quem defende uma certa "soberania" do desejo individual dentro da não monogamia, e valorizo a conversa franca entre casais. O desejo nunca deixará de existir, e não é saudável negligencia-lo. Mas também percebo que não existe desejo ilimitado. O que eu quero, o que o outro quer, e o que faz sentido no espaço comum, todos esses pontos precisam ser olhados com carinho. Não se trata de concessões forçadas, mas de encontrar caminhos de coexistência que não violentem a história construída. Quando o meu desejo ameaçou romper com a responsabilidade afetiva que, por livre vontade, escolhi estabelecer com o outro, precisei sentar comigo mesma e perguntar: como resolvo esse dilema?
A conclusão a que cheguei foi simples — embora nada fácil de aceitar. Eu tinha três vias: ou mudava a forma como meu relacionamento se propunha a ser; ou atropelava os sentimentos do outro e seguia adiante com o que eu queria; ou fazia concessões e moldava meu desejo para que ele não rompesse os limites do nosso acordo.
Minha reflexão me levou à percepção de que o desejo não é irracional — e tampouco eu sou. Pensei em formas de abarcar as duas situações, mas sempre com o compromisso que assumi com meu companheiro em mente. A outra pessoa em questão não aceitou minhas condições — muito dentro dos direitos dela. Sempre vou respeitar isso.
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Carta à Carolina
Trabalha para disciplina de memória e subjetividade do programa de pós-graduação (mestrado) UFSC. A proposta era escrever uma carta à Carolina Maria de Jesus:
Palhoça, 19 de maio de 2025
Carolina,
seu nome é quase como o meu. Caroline. Coexistimos aqui, onde o mundo torna muito difícil a existência de Carolinas, e sem dó poda nossos futuros. Você, melhor que ninguém, pode falar sobre isso. Li seu livro, e bem como Clarice disse: você que é uma escritora, pois escreve sua realidade.
E o que é escrever, senão sangrar em silêncio? Você sangrou no papel com a dignidade de quem carrega o peso do mundo na cabeça e, ainda assim, consegue equilibrar um caderno. Você escreveu fome com as vísceras. Transformou papel velho em página viva, lixo em literatura, miséria em memória.
Enquanto lia suas palavras, senti um espelho rachado: minha história não é a sua, mas minha carne reconhece a sua dor. Nós, Carolinas, escrevemos com a urgência de quem não pode esperar que o mundo nos entenda. Você o enfrentou com palavras. E eu, que venho depois, sigo tentando fazer o mesmo.
Seu nome é marca, é cicatriz e farol. Você me ensinou que escrever é existir com raiva, com beleza, com verdade. Você me deu permissão para gritar mesmo quando só me oferecem silêncio.
Obrigada, Carolina. Por ter escrito, por ter resistido, por ter sido. Que nunca nos falte o papel, a palavra e a coragem.
Com reverência e luta, Caroline.
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Mrs. Dalloway ou Droga! Preciso fingir ser mentalmente estável de novo!
Você já sentiu como se estivesse andando numa corda bamba ao participar de eventos sociais completamente inúteis e entediantes? Aquele rolê insalubre ao qual você comparece apenas para manter, de forma medíocre, uma amizade vazia? Onde há bebida em excesso, cigarro, drogas — tudo isso, muitas vezes, contra a sua verdadeira vontade? Ensaiando uma sobriedade de sentimentos ou uma estabilidade mental que, no fundo, você sabe que não possui?
Mrs. Dalloway é um pouco disso — e muito mais. Na obra da excelentíssima Virginia Woolf (1925), acompanhamos um único dia na vida de pessoas comuns, como eu e você, transitando e tentando sobreviver à sociedade exaustiva da Londres daquele tempo. Todos esses personagens, de alguma forma, estão ligados à vida de Clarissa Dalloway. Com exceção de Septimus, um veterano de guerra que, embora circule pelos mesmos espaços que Clarissa, nunca chega a conhecê-la. Ainda assim, seu suicídio acaba impactando profundamente o dia da protagonista.
A relação entre Clarissa e Septimus é, no entanto, muito mais simbólica do que literal. Virginia Woolf constrói, por meio deles, uma balança psicológica entre dois caminhos diante do sofrimento mental — tema que ela mesma conhecia profundamente. De um lado, está Septimus, que sucumbe à depressão; do outro, Clarissa, que ensaia uma sobriedade de espírito que claramente não possui. Ela escolhe se refugiar em festas vazias, cercada de pessoas fúteis e conversas sem sentido, e se convencer de que é feliz assim, em vez de encarar o desconforto latente das rígidas convenções sociais da época.
O envelhecimento traz a esses personagens — que um dia se moveram pelo deslumbramento com a vida — um gosto amargo de inutilidades sociais e eventualidades dispensáveis. Como se, de fato, nada mais fizesse sentido. Como se estivessem ali apenas por apego à própria imagem. Essa percepção consome Clarissa, e, ao saber do trágico fim de um completo desconhecido durante sua festa, ela quase sente alívio — como se, por um instante, tivesse enxergado alguma verdade libertadora naquele gesto extremo.
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Minha medida? Amor. E tua boca na minha Imerecida.
Minha vergonha? O verso Ardente. E o meu rosto Reverso de quem sonha.
Meu chamamento? Sagitário Ao meu lado Enlaçado ao Touro.
Minha riqueza? Procura Obstinada, tua presença Em tudo: julho, agosto Zodíaco antevisto, página
Ilustrada da revista Editorial, jornal Teia cindida.
Em cada canto da Casa Evidência veemente Do teu rosto. Hilda Hilst
In: Júbilo, memória, noviciado da paixão (1974)
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Alta magia é "coisa de homem; bruxaria histeria da mulher"
Questionando o cânone do ocultismo.
Há três meses ando estudando o ocultismo. Dei alguns passos em direção a um novo local dentro desses estudos, e, estando imersa em alguns livros do gênero, venho constatando dois fatores: alta magia é "coisa de homem; bruxaria histeria da mulher".
Você já parou para pensar porque quando evocamos a imagem do mago todo um arquétipo de sabedoria e manipulação da matéria nos vem à mente, mas quando fazemos o mesmo exercício com a palavra bruxa o imaginário é completamente oposto? Curioso, certo? Ao pensarmos em uma bruxa surgem imagens de loucura, feitiço vil, superstição ou erotismo descontrolado. O mago manipula a realidade; a bruxa é queimada por tentar.
Entre livros e símbolos, o que mais me surpreendeu não foi a complexidade dos sistemas mágicos, mas o que eles silenciam: o papel das mulheres. E ouso dizer que esse movimento não se fortaleceu apenas com a perseguição inquisitorial ou os dogmas da Igreja Católica. Não. Ele se perpetua dentro das próprias ordens ocultistas, onde o discurso da iluminação muitas vezes camufla estruturas patriarcais seculares.
Lendo Dogma e Ritual da Alta Magia, de Eliphas Levi, um nome importantíssimo para o ocultismo moderno, deparei-me com essa passagem:
Não há outra descrição para o que senti do que decepção e estranhamento. O autor pode ser um produto de seu tempo, mas como fica explícito em sua própria argumentação, ciente dos debates sobre a emancipação feminina em sua época — chegando a citar Guilherme Postello, que não seria um louco, a não ser pelo fato de simpatizar com o feminismo — não escapa da visão reducionista sobre o feminino no esoterismo. Em outras palavras, Levi reabilita o pensador apenas ao apagar o aspecto mais revolucionário de sua obra. Um louvor condicionado ao silêncio daquilo que rompe o padrão.
Se olharmos ligeiramente para o cenário atual ocultista, continuamos a ver uma certa dicotomia entre os gêneros. Os canais, livros e cursos dedicados à goetia, à cabala hermética, à alquimia e à alta magia ainda são amplamente dominados por homens. Por outro lado, os espaços voltados à bruxaria como prática ancestral, religiosa e folclórica, estão, em sua maioria, ocupados por mulheres — mulheres brilhantes, é verdade, mas ainda à margem dos sistemas ditos “ortodoxos” da tradição mágica.
Esse apagamento não é exclusividade dos estudos mágicos. Ele ecoa o que acontece em outros campos do saber. A ciência já nos mostrou o quanto mulheres foram silenciadas, seus nomes apagados ou apropriados por colegas homens. Com o ocultismo não seria diferente. Afinal, o que se oculta, muitas vezes, não é apenas o sagrado — mas também o feminino.
Entendo, então, a urgência e a potência de reivindicar-se como bruxa em um meio tradicionalmente reservado aos magos. Assumir essa identidade, longe de ser apenas um gesto simbólico, é um ato político e espiritual de ruptura. É desafiar um sistema que, ainda hoje — por mais que se pretenda iluminado — alimenta sutilmente o estigma que historicamente marginalizou o feminino dentro das práticas esotéricas. É uma forma de reexistir onde tantas foram silenciadas.
Talvez estejamos, finalmente, diante de uma brecha no tempo. Um momento propício para repensar o ocultismo como um corpo vivo, dinâmico, que pode e deve ser reestruturado. Com o crescente interesse da mídia e da cultura popular por temas ligados à espiritualidade, ancestralidade e práticas alternativas, abre-se um espaço fértil para recuperar o valor das tradições populares, do saber oral, do culto à natureza, da corporeidade mágica — elementos que sempre foram centrais na bruxaria, mas constantemente desvalorizados pelas ciências ocultas clássicas.
É hora de perguntar: e se os textos canônicos da magia fossem atravessados pelas vozes das curandeiras, benzedeiras, parteiras, xamãs, feiticeiras, mães de santo, pagãs? E se, ao invés de verticalizarmos ainda mais o conhecimento ocultista, pudéssemos integrar o que sempre foi uno, mas separado artificialmente por filtros de gênero, classe e poder?
Reivindicar-se como bruxa, hoje, é restaurar essa inteireza, é devolver complexidade e pluralidade àquilo que foi, por séculos, fragmentado. É deixar de lado a dicotomia entre razão e intuição, entre rito e mito, entre livro e corpo, entre mago e bruxa — para, enfim, abrir caminhos para uma magia mais inteira, inclusiva e verdadeira.
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Dostoevsky was right, my worst sin is, in fact, destroying and betraying myself for nothing.
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O elogio é um perigo
O elogio é um perigo
a idealização que tens de mim
A qualquer sinal de rejeição
eu me escapo
E portanto me permito idealizar
O elogio me prende e limita,
Eu temo fugir da sua expectativa.
Mar lodoso ainda que transparente
Um cristal facilmente partido
O elogio me reprime
Não cresço frente aquilo que idealizas em
Mim
Busco sempre estar presente nas tuas fantasias
E o outro atrofia meu espelho
————————————
Aquela oca
Você é tão autentica…
Todos os elogios vazios que batem aos meus ouvidos
Eu os ouço apática
Lutando contra o ego e a vontade de morrer
És arte da cabeça aos pés…
Pelos olhos carentes de outrem
As personas que eu sustento se formam belas
Não há, entretanto, uma viva alma que me leia em páginas brancas
Eu sou oca
Das danças poéticas que
vivenciam os caóticos versos
Da minha mente,
Ninguém saberá;
Dos beijos doces,
Ainda que sem desejo,
Não restarão mais que os
Borrões vermelho
do batom barato
Que mancham e estragam os versos do
Papel antigo - Baudelaire escritos -
No teu pescoço
Na tua boca calada
No teu egocentrismo
Eu morreria feliz em teus braços
Se deles pudesse tirar o calor
Da vida.
Ah sim, morreria feliz pelas tuas mãos
Firmes sobre minha garganta…
Se assim a dor pudesse torna-me desperta
Que seja por segundos,
Numa noite silenciosa
Num suspiro austero
De dor ou de prazer.
——————————-
Eu tinha esse sonho: mudar o mundo através da educação.
Eu sei que de onde vim e para onde vou são lugares destintos, e de uma diferença gritante. Sei que a perfeição é uma falácia capitalista, e que dessa vida só levamos memórias e deixamos saudades.
Mas há algo revoltante no envelhecer. É essa consciência avassaladora de que o amanhã pode não chegar, e dia após dia, a tão gélida e sombria essência da morte estará ali, próxima demais para ignorar, eminente demais para negar.
Então, daqui se nutre o amor que damos, ainda que não o recebamos; os sorrisos que pintamos e as piadas que contamos. Mas no final, sabemos.
Envelhecer é esse processo, de cinco em cinco anos aparente em nossa pele, não nos permitindo esquecer que a morte sempre vem; que o corpo sempre perece
- Perene em sua essência. E no final o que interessa é se foi válido. Se rodeamo-nos de quem importa. Se temos o que precisamos:
Um livro
Um vinho
Um amor pra chamar de seu.
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ESCREVO PORQUE MO(R)RO
Este ensaio eu pari. Estava, na verdade, gestando há tanto tempo que foi necessário dar à luz. Se não nascesse, morria eu. Nomeio meu texto porque tenho esse poder. Assim sendo, é um ensaio. Ensaio porque quero falar o que quero, livre e espontaneamente. Como uma mãe nomeia seu filho, sem medo de como essa decisão repercutirá em suas vidas, por nome, este texto leva o título de ensaio.
Mas meu texto não é apenas criação — é fruto de um recolhimento profundo, nascido no ventre de um silêncio que me atravessa. E só hoje posso parir estas palavras porque habito uma casa onde o silêncio me é permitido.
Quando Virginia Woolf afirmou que a mulher precisa de um teto todo seu para produzir, sem a esmagadora repressão da sociedade e do homem, falava dessa solidão inerente à criatividade — que não apenas os escritores, mas sobretudo as mulheres, necessitam (WOOLF, 2020).
O papel imposto ao gênero nos obriga a estar em casa e, por essa razão, dela dever��amos nos ocupar integralmente. Filhos, gestão e organização, limpeza e afazeres intermináveis: com todos esses elementos, qual tempo nos resta para escrevermos?
A casa aqui parte-se em dois lugares distintos: é refúgio e prisão. É onde a mulher, historicamente, foi enclausurada — e também onde, muitas vezes, encontrou seu único espaço possível de criação. A escrita feminina é profundamente marcada por espaços íntimos — físicos ou simbólicos. Nesse meio, o silêncio se torna matéria de invenção. Como construção simbólica e social, não é neutra. Ela carrega a história de papéis impostos, sobretudo às mulheres. É o espaço onde se esperava — e ainda se espera — que a mulher esteja, calada, dócil, domesticada. Mas esse mesmo espaço, que oprime, também abriga o desejo. O desejo de fuga, de criação, de questionamento, de transgressão.
Faço, então, do meu teto palco onde enceno as inquietações que não ouso dramatizar diante do mundo. As cortinas fechadas não escondem o incômodo: amplificam. Entre as paredes que me contêm, contenho também a urgência de escapar. Aqui onde deveria haver conforto, há também conflito. A inquietação, ebulição, nasce no cotidiano, no banal. A escrita grita o que a casa tentou por anos calar. A mulher une-se aos cômodos, somos uma.
Em Escrever, de Marguerite Duras, a casa, o silêncio e a autonomia do estar só são elementos fundantes da escrita. Escreve-se para não morrer. Sobrevive-se a partir da escrita. Não se trata apenas de abrigo: é campo para inquietações, de desejo e deslocamento. Ausência fértil do lar; vazio essencial da escrita. É ela que permite que se escreva. Sem essa interioridade, não há criação (DURAS, 1994).
Clarice gostava de escrever de madrugada, antes de todos acordarem, no silêncio absoluto, na pausa onde tudo ainda não era.
Como Duras, também encontrei na casa um território ambivalente: é dela que emana a escrita, mas é também dela que brota o medo. Escrevo, pois tenho hoje um lar silencioso. Antes não era assim. Pulei de casa em casa – do meu pai, minha mãe, ex-marido – até hoje sentar aqui, no silencioso espaço dedicado à escrita, sozinha. Às vezes, tal qual Duras, tenho medo. O silêncio evoca os espaços desocupados, ou ocupados pelo desconhecido. A casa como esse espaço ambíguo de conforto, criatividade, silêncio e medo. Eu temo também o que não é dito. Por isso, escreve-se. Para dissipar o medo.
Morar não necessariamente implica no pertencimento àquele espaço. É necessário fazê-la lar. A relação com o ambiente — a casa — está diretamente ligada à escrita de autoria feminina. Antes de escrever a partir dali, é preciso se sentir pertencente ao espaço. A solidão é construída, não é imposta.
A compra da casa em Neauphle-le-Château, com os direitos autorais da adaptação de Um barrage contre le Pacifique para o cinema, foi o estopim: um teto todo dela. Uma vez só, a mulher pode então parir o texto: quando se escreve, o faz sem preâmbulos. É isso ou nada. “A solidão também quer dizer isso: ou a morte, ou o livro” (DURAS, 1994, p. 17). A escrita como sobrevivência à própria solidão.
Escrever é salvação — mas também perdição. É aceitar morrer um pouco. É trilhar um caminho solitário, lúgubre. É gritar sem emitir som. É escrever para não morrer. Visceral e simbólica, a escrita — especialmente a feminina — é um ato revolucionário de sobrevivência, mas também de rendição à morte.
Como bem afirmou Cixous (2010), a escrita feminina é a lâmina necessária que poda o falo da estrutura social. Quantas de nós, ao longo dos séculos, não fomos apagadas por esse espectro falocêntrico? Escrever, para a mulher, é mais que um gesto estético — é político. É afirmar um corpo não castrado, não monetizado, não silenciado.
Escrever é também um gesto de amor. Amar é dar linguagem ao que tentaram calar. É honrar a ancestralidade. É, em sua forma mais pura, maternidade: gesto de nutrição e criação. Mas esse gesto primordial — o de escrever e amar — nos foi negado. À mulher, negava-se a linguagem para que não amasse, não se comunicasse com seus amantes, seus namoros adolescentes, não opinasse, não sonhasse.
Minha avó dizia: “Meu pai não queria que a gente aprendesse a ler e escrever, porque mulher sabida demais é um problema.” E completava: “Ler, só se fosse a Bíblia.”
Este texto foi gestado também a partir de um incômodo, de um deslocamento. E, ainda abrigada sob a teoria de Cixous (2010), reconheço na escrita feminina o primeiro passo para a reinserção da mulher no mundo. Um deslocamento que atravessa muitos lugares — partindo, talvez, do mais íntimo deles: a casa.
A casa, para a mulher, é território ambíguo: lugar do confinamento, mas também da insurgência. Ao escrever, mulheres como Woolf e Duras deslocam os sentidos desse espaço: transformam-no em matéria literária, tensionam-no como símbolo e subvertem sua lógica de contenção. O deslocamento – seja geográfico, existencial ou linguístico – é condição da escrita feminina, que resiste à prisão da domesticidade ao mesmo tempo em que faz dela um palco íntimo e político de criação.
Escrevo porque morro — pois escrever é movimento, como o parto: morte e nascimento. A mulher morre para se tornar mãe; a escritora, para se tornar texto.
O texto, uma vez expelido do âmago, nos faz vislumbrar o abismo. É uma morte não anunciada, uma travessia. Um parto. O livro é um filho que rompe com o cordão umbilical da mãe no ponto final.
Pronto.
Não é mais meu.
É do mundo.
E a solidão que me trouxe até aqui — na tinta preta sobre o papel branco — ainda persiste. Preciso é sempre alimentá-la.
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REFERÊNCIAS
CIXOUS, Hélène. O riso da medusa. Paris: Éditions Galilée, 2010.
DURAS, Marguerite. Escrever. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 11–49.
WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. São Paulo: Lafonte, 2020.
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I drag down the moon
I drag down the moon so I can realize how pale the light on my own skin resonates with the spectral, fleeting glow inside my soul. I have a thousand beings living rent-free in my head, and it’s hard to listen to every one of them. It feels like I am drowning in my fears, and when I resurface, I am a whole new human being — sometimes darker, sometimes brighter, sometimes just... dead.
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