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Os Arquivos Magnus
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arquivosmagnusbr · 5 months ago
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MAG070 — Livro dos Mortos
Caso #0030912: Depoimento de Masato Murray, a respeito de uma herança inusitada e suas causas.
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Aviso de conteúdo: horror corporal, gore, assassinato, violência
Tradução: Lia
ARQUIVISTA
Depoimento de Masato Murray, a respeito de uma herança inusitada e suas causas. Depoimento original prestado em 9 de dezembro de 2003. Gravação de áudio por Jonathan Sims, arquivista chefe do Instituto Magnus, Londres.
Início do depoimento.
ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Eu fiquei me perguntei por que ele me deixou alguma coisa, pra começo de conversa. Philip Doah e eu sempre nos odiamos. Sabe aquele amigo que você tem que não é realmente seu amigo, mas vocês frequentam as mesmas festas e a antipatia não é tão significativa a ponto de vocês realmente evitarem um ao outro, então todo mundo simplesmente assume que vocês são amigos e você meio que absorve isso e até começa a imaginá-lo ali quando pensa nos "seus amigos" como um grupo, mas no fundo vocês dois sabem que não gostam um do outro, só que daria mais trabalho não serem amigos? Bom, o Phil era um desses. Ele era tranquilo se nós estivessémos conversando sobre um filme e ele estivesse detonando os diálogos ou as escolhas de elenco, mas sempre que começava a beber, ele ficava político, e digamos que ele era o tipo de cara que achava que o salário mínimo era uma má ideia. Eu não tenho lá opiniões muito fortes, mas definitivamente isso não é o tipo de conversa que você quer ouvir depois de quatro cervejas. Principalmente quando você já ouviu isso várias vezes. Era tipo, sim, Phil, nós sabemos que você chegou onde chegou por puro esforço e determinação, e o fato de seus pais terem te dado a segunda casa deles de presente de 21 anos não ajudou em nada. Idiota. Não que eu queira falar mal dos mortos.
Enfim, até onde eu sabia, minha antipatia por ele sempre foi mútua, então foi uma grande surpresa descobrir que ele tinha deixado alguma coisa pra mim em seu testamento. Eu adoraria fazer algum comentário sarcástico e dizer que o único presente que eu precisava era ele ter caído debaixo daquele trem, mas, pra ser sincero, a morte dele realmente me deixou bem abalado. Todos nós ficamos. Quer dizer, 37 anos. É uma idade estranha pra partir. Não chega a ser uma "trágica perda da vida de um jovem tão cheio de potencial", mas ainda tá bem longe de um "acho que já era a hora dele". Acho que só caiu a nossa ficha de que estávamos entrando numa fase da nossa vida em que às vezes as pessoas morrem. A vida não era mais uma certeza, e não demoraria muito até que os funerais começassem a superar os casamentos. Isso aconteceu em fevereiro e eu tinha acabado de fazer 34 anos, mas aquilo ficou na minha cabeça. Mortalidade. Eu ficava pensando comigo mesmo: o momento em que eu morrer vai ser exatamente igual ao de agora. Não é uma coisa que vai ficar pra sempre no futuro; eu estarei naquele momento do mesmo jeito que estou neste. E eu vou acabar. Nunca fui um homem religioso e sempre digo que me conforto na ideia de um descanso pacífico, mas isso é mentira. Eu tô apavorado.
A herança que eu recebi do Phil não ajudou em nada pra me acalmar. Dizia no inventário que era o diário dele, mas não parecia muito ser isso. Era claramente mais velho do que 37 anos, com o forro preto desbotado e gasto nos cantos. Por um momento eu até me perguntei se talvez aquilo fosse algum tipo de diário de família passado de geração em geração, mas aí deixá-lo pra mim faria ainda menos sentido. Ainda assim, eu fiquei com ele. Quer dizer, o que mais eu poderia fazer numa situação dessas? Ele era maior do que parecia ser em cima da mesa, e mais pesado, tipo uma daquelas bíblias velhas de família que às vezes você encontra em museus. Ainda tive a decência de esperar até o final do processo antes de levá-lo pra casa e começar a pesquisar na Internet o quanto ele poderia valer.
Na verdade, aquela foi a primeira vez que eu parei pra olhar ele. Sei lá, aquilo tudo era tão surreal que não parecia muito certo ler aquela coisa quando eles me deram pela primeira vez. Não tinha nenhum nome óbvio na capa, e me perguntei se ela poderia ter uma capa de proteção perdida por aí, mas parecia grande demais pra caber em algo assim. Ao abri-lo no começo, parecia que faltava uma primeira página com o título ou qualquer outro tipo de identificação. Em vez disso, havia uma citação impressa, embora não apontasse nenhum autor pra ela.
Dizia: "A vida é uma corrente contra a qual não se pode lutar. É uma marcha com um único destino. Você não pode cessar seu passo nem desviar seu caminho para evitar o término da jornada."
E abaixo dela, em tinta azul desbotada, havia uma mensagem escrita à mão:
"Você já leu demais."
Eu ri com isso, tava começando a achar que talvez o Phil tivesse encontrando um último jeito de ser idiota mesmo debaixo da terra. Nunca achei que ele tivesse muita imaginação, mas uma pegadinha macabra parecia a explicação mais provável naquele momento. Então eu virei a página pra ver o que tinha depois.
A página seguinte estava em latim, mas não tinha sido impressa. Parecia ter sido feita à mão, tipo aqueles livros velhos medievais que os monges costumavam escrever. A escrita gótica ornamentada descia em cascata pela página, constante e nítida.
Obviamente eu não consegui ler — mesmo se eu soubesse o mínima sobre latim, o que eu não sei, eu mal conseguia distinguir qual letra era qual. A próxima página era parecida, e a próxima também. Foram quase umas vinte páginas antes que a escrita se transformasse em algo próximo do que eu conhecia.
Era inglês, mas não o inglês moderno. Não tenho certeza se era inglês antigo ou médio ou alguma coisa assim, mas uma vez tentaram me fazer estudar Os Contos da Cantuária na aula de inglês, e parecia um pouco com aquilo. Parecido o suficiente com palavras reais pra saber que era o mesmo idioma, mas estava escrito todo errado e não fazia muito sentido quando eu tentava ler. Mas tiveram algumas palavras que se destacaram. Parecia ser sobre alguém chamado Julian, e "Mortis" apareceu algumas vezes, o que presumi ser "Morte", e até uma ocorrência da palavra “Homicidium”, que eu nem sabia que era uma palavra naquela época.
As páginas seguintes eram mais do mesmo, apesar de eu ir entendendo cada vez mais, cada uma escrita com uma caligrafia bem diferente até chegar à pagina do Christopher. Essa foi uma das primeiras a serem impressas e, assim como as outras, não tinha nenhum cabeçalho ou formatação — era só um bloco sólido de texto que cobria a página. Era um relato da morte de alguém chamado Cristopher, que aparentemente ocorreu no Ano de Nosso Senhor de Mil Quinhentos e Noventa e Dois. Ele foi arrastado pelas ruas de Norwich por um cavalo, raspando uma boa quantidade de pele no solo áspero e congelado. Depois de mais ou menos dez minutos deixando aquele rastro de sangue, o cavalo para, se vira e bate os cascos na cabeça dele até ela estourar. Christopher não perde a consciência até o terceiro impacto. Esse cenário todo foi descrito em detalhes vívidos e gráficos. Eu me senti um pouco mal lendo o relato de como ele se sentiu ao ouvir seu próprio crânio quebrando.
Logo ficou claro que todos os relatos eram parecidos. Cada um detalhava uma morte — muitas vezes violenta e sempre desagradável. Elas estavam em ordem cronológica com mais ou menos de cinco a dez anos entre cada uma, embora às vezes ocorressem muito mais rápido, uma depois da outra. Também comecei a notar em algumas páginas uma leve queimadura nas bordas, apesar de ter levado um tempo até que as minhas próprias tentativas de queimá-lo me mostrassem o quão resistente ele realmente era.
Com o passar dos anos, o estilo do livro e as maneiras de morrer iam se atualizando junto, embora ninguém naquelas páginas parecesse ter morrido de forma natural. Eu já não estava lendo com muita atenção naquele ponto, cada morte horrível sendo muito parecida com a outra, até chegar às duas últimas páginas antes que o conteúdo do livro ficasse em branco. A penúltima era pra Philip Doah, e a última, como você já deve ter adivinhado, era pra mim.
Foi difícil ler a descrição do livro sobre a morte do Phil. Ele foi tomado pelo terror enquanto se sentia caindo da plataforma, o barulho estridente das rodas do trem enquanto elas rugiam incontrolavelmente em sua direção. Dizia que, embora suas pernas estivessem decepadas e seu corpo esmagado, levou quase dois minutos pra ele morrer enquanto observava seu sangue escorrendo pelos trilhos.
Eu não conseguia acreditar no que eu tava lendo, era doentio. Será que alguém tinha escrito aquilo no livro depois da morte dele? Por que alguém faria algo assim? Ou será que o acidente do Phil tinha sido muito mais intencional do que todo mundo pensava? Talvez tenha sido suicídio? Mas mesmo assim! Tipo, eu respeito o direito de qualquer um de acabar com a própria vida, mas mesmo que fosse esse o caso, escrever uma ficção sangrenta sobre isso antes tá muito além de qualquer coisa que o Phil fosse capaz de fazer. Eu não sabia o que fazer, eu deveria contar pra alguém? E dizer o quê? O livro era antigo e essas páginas parecem ser mais novas do que as partes antigas manuscritas, claro, mas ainda parecem ser parte do livro. Se aquilo fosse alguma palhaçada inventada ou uma piada mórbida, quem quer que tenha feito isso teve o trabalho de escrever, imprimir e envelhecer um livro inteiro de um jeito muito convincente só pra me enganar, sendo que minha única relevância era o fato de eu meio que não gostar muito de um cara que morreu. Nada daquilo fazia sentido.
Por fim, virei a última página antes que elas ficassem em branco. Era a minha morte. Era pra acontecer, segundo ele, em 2014. Onze anos no futuro. Aparentemente eu estaria caminhando por uma estrada rural isolada em Lancashire, de todos os lugares, quando um carro que passava perderia o controle e me atropelaria. O impacto me jogaria contra o gradeamento arborizado, me empalando em um galho de árvore caído. O motorista morreria no acidente e ninguém mais passaria por mim enquanto eu estivesse ali, sozinho e gritando por socorro, até que meu corpo finalmente sucumbisse. Ele era bastante específico sobre como seria a sensação da madeira áspera atravessada em meu torso.
Fechei o livro e tentei entender o que tinha acabado de ler. Era uma piada. Tinha que ser. Uma brincadeira doentia de alguém que claramente me odiava muito mais do que eu imaginava. O Phil tinha decidido se matar e mandou alguém fazer isso pra me assediar depois. Essa era a única explicação que fazia sentido. Além disso, mesmo que de alguma forma aquilo fosse verdade e essa coisa pudesse realmente prever o futuro, meu fim ainda estaria a mais de uma década no futuro. Longe demais pra eu me preocupar agora. Eu simplesmente não iria pra Lancashire. Talvez nunca. Com certeza não em 2014. Eu não fazia ideia do que poderia sequer me fazer ir até lá pra começo de conversa. Então eu fiz o possível pra ignorar aquilo. Por um tempo.
Mas aquilo ficou na minha cabeça. Quer dizer, como não ia ficar? Então comecei a dar uma olhada em algumas das outras mortes que ele detalhava. Não obsessivamente, pelo menos não naquele momento, mas tirei um tempo pra pesquisar alguns daqueles nomes online e como eles morreram. Não foi fácil já que o livro só falava os primeiros nomes e a maioria deles veio muito antes dos registros online. Porém, eventualmente eu encontrei um. Alexander, segundo o livro, morreu em 1983 depois que sua casa foi invadida. Ele foi esfaqueado sete vezes em sua cama antes de ter sua garganta cortada. A página chegou a me garantir que o assassino nunca foi identificado ou capturado. Bom, depois de procurar um pouco, eu encontrei ele. Alexander Willard. Era um artigo sobre a história da pequena cidade de Alcester, perto de Stratford. Ele focava nos aspectos mais sombrios da história da cidade e detalhava os poucos fantasmas que supostamente assombravam a área. No final do artigo havia a menção de um estranho assassinato não resolvido que ocorreu em 1983, no qual um mecânico local chamado Alexander Willard foi morto em sua cama. Nenhum culpado foi encontrado e não conseguiram determinar nenhuma motivação para o crime.
Claro que isso não provava nada. Não de verdade. Só que quem escreveu o livro realmente deu uma pesquisada. Não tinha nada ali além de muito tempo e energia que, por algum motivo, foram investidos no único propósito de me assustar. Se aquilo fosse verdade — se fosse real —, e o Phil tivesse a posse daquele livro, com certeza ele poderia ter lido sobre sua própria morte e feito algo para evitá-la. Voltei pra página da minha própria morte — o desejo doentio de reler os detalhes me atormentando. E foi aí que tudo o que eu achava que sabia foi pro ralo. Porque a página tinha mudado.
As palavras eram tão sólidas e imóveis como sempre foram, mas agora me diziam que eu morreria em Londres. Em 2012. Aparentemente eu alugaria um apartamento em Bethnal Green que tinha um cano de gás com defeito. O gás se acumularia sem ser percebido e, quando eu tentasse acender o forno pra cozinhar um pedaço de salmão, ele explodiria e incendiaria o lugar todo. Eu seria internado no pronto-socorro do Hospital Real de Londres com queimaduras de terceiro grau em mais de setenta por cento do meu corpo, onde morreria dezenove horas depois.
Meu corpo inteiro tremia naquele momento. Joguei o livro do outro lado da sala e dei o fora. Andei por horas sem direção nenhuma. Aquilo não era possível. Eu tava ficando louco. Essa era a única explicação. Mas eu sabia que estava tão são quanto sempre estive. Quando ele mudou? Foi quando eu abri a página pra ler de novo? Ou talvez quando eu tomei a decisão de nunca visitar Lancashire? Se o livro sabia o futuro, então o quanto ele sabia sobre mim? Minhas decisões e escolhas eram minhas, então o livro estava respondendo a elas ou só ao fato de eu ter aberto ele de novo? Talvez ele mudasse toda vez que eu o abrisse, mesmo que eu não lesse a página — cada interação mudando meu destino, embora nenhuma, ao que parecia, o tornasse menos horrível.
Fui passar uns dias com um amigo meu, John Kendrick. Ele percebeu que tinha alguma coisa errada e, felizmente, não me perguntou nada — em vez disso, só tentou me animar. Eu tentei esquecer, ignorar o que eu tinha lido, mas aquilo não é o tipo de coisa que dá pra apagar da mente, e eventualmente me vi de volta àquela casa solitária, encarando aquele livro maldito. Será que ele tinha mudado? Será que agora as palavras dentro daquela capa preta e esfarrapada já descreviam um novo e mais doloroso fim pra mim? Ou será que ele tinha tido alguma misericórdia, me concedendo uma morte mais rápida?
Eu tentei destruí-lo, é claro. Ele não queimava e água não parecia danificar as páginas. Derramar tinta não funcioava e, apesar de eu ter pensado em enterrá-lo, não conseguia ignorar a sensação de que aqueles que vieram antes de mim já deviam ter tentado tudo isso. Li minha morte de novo, e ele me contou como eu seria parcialmente decapitado por um pedaço de alvenaria que cairia na véspera do Ano Novo de 2011.
Eu tento não ler, claro. Mas às vezes fica difícil demais. Toda vez a data fica mais próxima e o jeito que eu morro continua igualmente horrível. Quando eu fecho o livro fico pensando se aquelas mesmas palavras ainda estão lá, escondidas e esperando o momento certo, ou se já se transformaram em algum terror novo e desconhecido que eu não posso saber e nem evitar, esperando pra pular em mim.
Eu não trouxe o livro comigo pra te mostrar e não tô planejando escrever um testamento. Não sei se você precisa ter a posse daquela coisa ou se só ler já a faz escrever o seu destino. De qualquer jeito, vou guardá-lo até quando eu puder. Até eu chegar a um fim que pode até ser mais horrível, mas não é fundamentalmente diferente daquele que espera por todos nós.
ARQUIVISTA
Fim do depoimento.
O Sr. Murray desapareceu pouco depois de prestar esse depoimento. Até onde sabemos, foi um desaparecimento voluntário já que o aluguel do apartamento dele foi cancelado pouco antes e ele renunciou ao seu cargo de administrador no Conselho Municipal de Birmingham. Desde então, ele aparentemente conseguiu mudar ou esconder sua identidade, e nem Sasha ou Tim tiveram sorte em localizá-lo, embora o Tim tenha conseguido confirmar que um tal de Philip Doah faleceu depois de cair embaixo de um trem na Estação Birmingham New Street em 1º de agosto de 2003. Também não encontramos nenhum relato de acidente que corresponda a nenhuma das supostas mortes previstas pra ele. Eu desencorajei novas tentativas de localizar o Sr. Murray porque até mesmo o último de seus possíveis fins aconteceu há alguns anos, e se ele estava mesmo certo sobre o livro, é bem provável que já tenha morrido há muito tempo.
No entanto, é notável em seu relato a ausência de qualquer indicativo de que esse livro já tenha pertencido a Jurgen Leitner. Parece apoiar a teoria de que, seja lá o que forem esses livros, Leitner não é inteiramente responsável por eles.
Outra notícia um pouquinho animadora é que, aparentemente, o TI finalmente descobriu o que tem de errado com o computador da Sasha: ele estava apresentando erros de autenticação ao tentar se conectar a dispositivos ou redes externas. Não posso dizer que sei exatamente o que isso significa, mas espero que agora que o problema foi identificado eles possam encontrar alguma solução alternativa e ela possa utilizar totalmente as habilidades técnicas dela em investigações futuras.
Fim da gravação.
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Complemento.
Livros. De novo e de novo, as coisas sempre parecem voltar pra esses livros. Existem outros artefatos que possuem poderes sinistros, com certeza, mas nenhum deles parecem ser tão frequentes ou traiçoeiros quanto esses malditos livros. Mas por quê? Eu sempre achei que o Leitner tinha criado eles de algum jeito, alugando partes de sua própria alma condenada pra dar poder a eles ou alguma bobagem assim. Mas não. Agora eu já ouvi o suficiente pra ter certeza de que esses livros existiam muito antes de ele conseguir caçá-los. Mas nem todos, ao que parece.
Eu encontrei uma coisa nos túneis. Agora eu já explorei completamente o andar superior, pelo menos até onde eu consegui ir. Mais pra frente algumas passagens estavam bloqueadas ou destruídas por obras de infraestrutura. Canos e esgoto, esse tipo de coisa. Pode ser que os andares mais abaixo tenham uma rota que saia do outro lado, mas eu ainda preciso fazer muito progresso lá embaixo. Mas, logo depois que comecei a explorar o segundo andar, eu encontrei algo. Era uma sala — vazia, exceto por três cadeiras de madeira. Parecia que tinha mais antes, mas elas tinham sido destruídas. Pelas marcas de queimadura nos cantos, acho que sei pro que foram usadas. As cinzas eram velhas, era impossível dizer o que poderiam ter sido antes de serem queimadas, exceto pelos pequenos pedaços de papel velho espalhados pelo chão. Acho que alguém rasgou um livro e depois o queimou. Tinha só um pedaço grande o suficiente pra decifrar alguma coisa legível: "Eles têm como adversários o Satariel, ou ocultadores, os Demônios do absurdo, da inércia intelectual e do Mistério."
Isso responde à pergunta sobre o que aconteceu com a cópia de A Chave de Salomão que a Gertrude comprou. Mas se ela só comprou para destruí-lo, por que lá embaixo? Não parecia ter nenhum significado especial na sala, exceto pelo fato de conter alguns móveis de madeira antigos. Mas nenhum sinal dos outros Leitners. Vou precisar continuar procurando.
Fim do complemento.
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arquivosmagnusbr · 8 months ago
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MAG069 — Pensamento do Dia
Caso #0101811: Depoimento de Darren Harlow a respeito de um experimento psicológico que fracassou na Universidade de Surrey.
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Aviso de conteúdo: insetos, aranhas, automutilação, horror corporal, gore
Tradução: Lia
MARTIN
Aqui está. A Sasha veio hoje?
ARQUIVISTA
Ah, ela tirou o dia de folga. Disse que passaria o dia com aquele tal de Tom.
Martin: Ah. Eles vão fazer alguma coisa legal?
Arquivista: Ela não disse.
Martin: Você já conheceu ele?
Arquivista: Como eu teria conhecido? Nós não fazemos sociais. Ele parece ser legal, eu acho. No estilo de Kensington. Você já o conheceu?
Martin: Não, mas ela é muito reservada com essas coisas. Diferente do Tim.
Arquivista: Hum.
Martin: Só conversa com ele, por favor.
Arquivista: Acho que já falamos mais do que o suficiente. Duvido que mais conversas ajudariam em algo.
Martin: Não tem como vocês trabalharem juntos desse jeito.
Arquivista: Ironicamente, acho que trabalhar é tudo que eu e o Tim conseguimos fazer juntos.
Martin: Olha. John. Quando foi a última vez que nós conversamos? Só conversamos, sem todas essas...
Arquivista: Obrigado pelo chá, Martin.
Martin: Ok. Tá bom. Ele não tá errado, sabe?
Arquivista: Eu sei.
Depoimento de Darren Harlow...
Depoimento de Darren Harlow a respeito de um experimento psicológico que fracassou na Universidade de Surrey. Depoimento original prestado em 18 de novembro de 2010. Gravação de áudio por Jonathan Sims, arquivista chefe do Instituto Magnus, Londres.
Início do depoimento.
ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
As coisas sempre parecem tão óbvias pensando agora. Aquele experimento sempre foi uma péssima ideia. Mesmo naquela época, lembro de pensar que parecia ter saído de um filme de terror. Quer dizer, toda vez que eu ficava sabendo de um novo detalhe sobre ele, eu ia pra casa e contava à minha esposa e nós ficávamos especulando durante o jantar sobre como aquilo ia dar errado de algum jeito grotesco e horrível. Nós ríamos e analisávamos as maneiras pelas quais aquilo poderia transformar aqueles pobres estudantes de graduação em assassinos loucos ou monstros mutantes.
E quando comecei a ver mais e mais aranhas pelo laboratório, transformei aquela sensação real de desconforto em... um tipo divertido de medo, como se eu estivesse só brincando de ficar assustado. É tão estranho — mesmo quando você realmente tá procurando pelo terror, é impossível acreditar de verdade nele. Sempre parece ser algo que você inventou, só se divertindo um pouco assustando a si mesmo. Porque essas coisas não acontecem. Não no mundo real.
Mas... às vezes, você pensa sobre o que é o mundo real. Só o que o seu cérebro mistura a partir do que os seus sentidos te dizem. Nós criamos o mundo de muitas maneiras. Acho que não deveria ser surpresa que, quando não tomamos cuidado, podemos mudá-lo.
Antes de fazer perguntas aprofundadas sobre as metodologias ou a estrutura do experimento, preciso deixar uma coisa clara: eu sou só um dos faxineiros. Eu não faço ideia de como ou por que eles começaram isso ou — só Deus sabe — de onde veio o financiamento. Acho difícil acreditar que o Departamento de Psicologia autorizou, mas não sou um acadêmico, e essas decisões estão muito acima de mim.
Eu cuido principalmente dos laboratórios de ciências. A maioria das equipes de limpeza da universidade se desloca muito, trabalhando em diferentes prédios ou departamentos de um mês pra outro, mas tem muitas coisas nos laboratórios que exigem treinamento adicional pra limpar com segurança, então somos um pouco mais especializados do que o resto do pessoal. Quer dizer, eles ainda não nos deixaram chegar nem perto dos equipamentos realmente caros; quem tomava conta dessas coisas eram os técnicos do laboratório, mas a questão é que sou um rosto muito mais familiar nos departamentos de ciências do que os outros faxineiros.
Tem também o fato de que o pessoal do curso de ciências até conversava comigo às vezes. Não quero dizer que é porque eu sou branco e o resto da equipe de limpeza não é, mas eles sempre falavam comigo de um jeito que não falavam com os outros, então me tornei o ponto de contato entre os faxineiros e o resto da equipe. Resumindo, eu geralmente sabia mais ou menos o que tava rolando com a maioria dos experimentos que eram realizados por lá.
Então, quando a Dra. Elizabeth Bates me contou sobre o estudo mais recente dos seus alunos da pós-graduação em psicologia, pensei que ela tava me zoando. O Departamento de Psicologia é geralmente um dos menos exigentes, pelo meu ponto de vista, porque é quase inteiramente composto por pessoas que ficam sentadas na frente de computadores ou em salas de entrevista. Uma vez ou outra, acho que eles usaram uma máquina de ressonância magnética em algum hospital, mas isso era mais na área da neurociência e, mais importante, não acontecia nos prédios que eu limpava.
Desde que estou lá, o que já faz uns bons sete anos, eles nunca chegaram perto da parapsicologia — nada que fosse remotamente menos respeitável como pesquisa — então, quando a Liz me explicou o experimento e eu percebi que eles estavam basicamente fazendo pesquisas sobre PES, fiquei um pouco animado. Quer dizer, ela disfarçou com todo tipo de jargão científico e me deixou tonto de tanto falar, mas ainda assim se resumia basicamente a ver se os pensamentos e sentimentos de um grupo de pessoas em uma sala tinham algum efeito sobre a experiência de um sujeito em uma sala separada e isolada. O que eu quero dizer é que ela pode até falar em "dinâmica de grupo" e chamar aquilo de "intuição de proximidade" ou o que quer que ela tenha dito, mas eu reconheço uma pesquisa de PES quando tô esfregando o chão dela.
Não que eu me ligasse, claro — eu amo esse tipo de porcaria. Eu sou louco por terror, mas geralmente prefiro mais o lado da ficção científica. Demônios e fantasmas nunca me pegaram de verdade, mas me dê alienígenas ou os poderes sinistros da mente humana e eu tô dentro.
Eu não falei nada disso pra Liz, é claro — tinha a impressão de que era um assunto delicado, e não tenho motivo pra irritar as pessoas com quem eu trabalho. Mas você pode ter certeza de que eu tava bem mais de olho nesse experimento do que nos outros. Principalmente quando ela me contou um pouco mais sobre como eles estavam realizando ele.
A premissa básica era bem semelhante à maioria desses estudos. Tinha uma sala com um espelho unidirecional onde o sujeito ficava sentado e conectado em fios para que medissem suas respostas físicas. Do outro lado do vidro ficavam entre um e vinte participantes que receberiam estímulos para obterem uma determinada resposta ou sentimento. Esses sentimentos eram incitados enquanto a atenção deles continuaria voltada pro sujeito do outro lado do vidro.
Aí eles simplesmente mediam qual resposta — se é que houvesse alguma — o sujeito tinha a algo que não podia ver, ouvir ou perceber de qualquer outra forma. Às vezes, o sujeito era informado de que havia pessoas do outro lado do vidro quando na verdade não tinha, pra formar um grupo de controle e eliminar qualquer resposta placebo. O nome da sujeita era Annabelle Cane.
Mas o que realmente me pegou foi o que a Liz me contou sobre a natureza específica dos sentimentos que eles estavam tentando projetar. Eles estavam planejando trabalhar com o medo. Especificamente, eles selecionaram um grupo de pessoas que se identificavam como aracnofóbicas para serem os projetores e, em certos momentos enquanto observavam Annabelle, vídeos de aranhas rastejando, comendo e se reproduzindo eram projetados aleatoriamente sobre o vidro, incitando uma resposta aguda de medo.
O raciocínio era que o medo era uma emoção extremamente poderosa e que seria muito fácil de distinguir nas respostas de Annabelle. Eles queriam ver se conseguiam usar a percepção extrassensorial para assustá-la.
Eu disse que parecia ter saído de um filme de terror, né? Não sei como eles não perceberam isso. Quer dizer, talvez tenham percebido. Talvez tenham seguido em frente pelo mesmo motivo que eu brincava com a Laura sobre isso, em vez de pedir uma transferência. Você começa a apreciar a macabreza da situação porque no fundo sabe que é seguro. O pior que poderia acontecer seria alguns alunos ficarem chateados. Devia ter sido só uma fantasia passageira.
Enfim, eu não posso falar muito sobre o que aconteceu durante a maior parte do estudo. Por motivos óbvios, eu não tava limpando as salas em questão enquanto eles estavam fazendo os testes, mas fiquei sabendo de algumas coisas pela Liz e alguns dos outros pesquisadores. Parecia estar indo bem no começo. Annabelle mostrava alguns sinais sutis, mas estatisticamente significativos, de angústia e desconforto enquanto as aranhas eram mostradas. Sinais que ficavam visivelmente ausentes durante os períodos de controle.
Eu sei que as reações de medo eram certamente sérias o suficiente para os pobres coitados que, sem querer, se inscreveram como projetores: eu tive que limpar a sala quando um deles vomitou durante a primeira rodada de testes. Ele teve que abandonar o experimento, se me lembro bem. Sortudo.
Tenho certeza de que você consegue adivinhar o que eu acabei limpando mais e mais ao longo do estudo. Teias de aranha. Quer dizer, não dá pra evitar elas em prédios com tetos altos e cantos convidativos, mas mesmo assim, apareciam mais e mais delas a cada dia. Eu varria ou aspirava elas à noite só pra encontrá-las de volta na manhã seguinte, mais espessas do que nunca.
Eu nunca consegui ver direito as aranhas responsáveis por elas. Ao contrário da maioria das que eu já tinha visto, que ficam sentadas, gordas e orgulhosas, no centro de suas teias, o máximo que eu via dessas era um rápido movimento de pernas escuras desaparecendo em um buraco no reboco ou atrás de uma instalação na parede.
Isso me assustava bastante, mas eu achava que era de um jeito bom. Eu sabia que, logicamente, elas estavam só fugindo do inverno. Quer dizer, você sabe como tem estado frio nas últimas semanas. Eu tentava assustar a Liz dizendo a ela como seus experimentos sombrios estavam invocando um exército de aranhas. Eu não fazia ideia...
Os testes estavam progredindo, e eles começaram a introduzir vários projetores ao mesmo tempo pra ver como isso afetava a intensidade dos sentimentos que Annabelle estava recebendo. A Liz ficou muito animada com os resultados. Ainda lembro da cara dela quando me contou que a Annabelle aparentemente tinha relatado ter vários sonhos perturbadores com aranhas.
Notavelmente, em nenhum momento do experimento ela foi informada de que estavam usando aranhas. A Liz tava animada, me contando como os sonhos pareciam mapear muito bem as respostas fisiológicas que eles estavam registrando; como a Annabelle tinha sonhado com "perninhas pequenas correndo por suas veias como se fosse uma teia".
Mas foi aí que eles começaram a ter problemas. Embora adicionar mais projetores tenha aumentado inicialmente a intensidade das respostas, parece que isso diminuiu bem rápido, e logo as medições mudaram significativamente. Eles ainda estavam obtendo respostas notáveis, mas não eram como as que haviam recebido antes. Elas não pareciam ser de medo.
Liz ficou irritada com isso. Mesmo que os resultados ainda parecessem bons para um estudo geral de PES, a variação no tom das resposta aparentemente confundiria a pesquisa de um jeito que ela não gostava.
Eu só vi Annabelle Cane uma vez durante esse período. Ela não era difícil de identificar. Ela se vestia como se uma loja de roupas vintage tivesse explodido em cima dela, e seu cabelo curto e loiro descolorido contrastava fortemente com sua pele escura. Na primeira vez que a vi, eu gostei dela. Ela parecia ser o tipo de aluna que ocasionalmente falava com os faxineiros como se nós fôssemos pessoas. Não que tenhamos realmente conversado, mas ela tinha essa energia.
Nessa outra vez, porém, foi bem quando ela tava saindo da sala do espelho. Ela estava andando de um jeito estranho, como se suas calças não lhe servissem direito. Ela ficava dobrando os joelhos em ângulos meio esquisitos, andando com uma postura rígida. Seu braço estava estendido e ela deslizava a mão pela parede enquanto caminhava, movendo os dedos rapidamente para que corressem como... bom, como uma aranha com pernas faltando.
Mesmo assim, eu nem comecei a considerar o que poderia estar acontecendo. Não... eu só comecei a levar a sério depois do que aconteceu na última quinta-feira. Eu tava no turno da noite e tinha acabado de terminar de varrer os laboratórios. Tinha começado a passar pano nos corredores que levavam até as salas que a Liz estava usando quando notei que as luzes ainda estavam acesas. Ela tinha mencionado que naquela tarde eles estavam tentando as primeiras sessões com todos os dezenove projetores restantes — eles tinham tido um número previsivelmente grande de desistências.
Eu sei que quanto mais pessoas estiverem envolvidas em um teste, mais tempo ele tende a levar e tem mais chances de atrasar, então podia muito bem ter ultrapassado o horário, mas eram nove e meia da noite naquele momento, então parecia muito improvável que tivesse durado tanto tempo. Pensei que talvez tivessem deixado as luzes acesas por acidente. Essas coisas acontecem. Me esforcei pra esquecer que as luzes naquelas salas eram normalmente ativadas pelo movimento.
Espero um dia esquecer o que eu vi quando abri aquela porta, mas não vou. Todos os aracnofóbicos, os "projetores" da Liz, estavam de pé em dois círculos, um dentro do outro. Suas mãos e braços estavam entrelaçados em um padrão complexo, e eles andavam em círculos, girando lentamente, mas de forma constante.
A Liz não tava lá, mas no canto pude ver um de seus alunos da pós-graduação — acho que o nome dele era Mark — parado ali, encarando aquilo como se estivesse em algum tipo de transe. Quer dizer, todos pareciam estar em um transe.
Do outro lado do vidro, pude ver Annabelle Cane parada ali, olhando pra eles. Seu corpo estava curvado e contorcido de um jeito que definitivamente não era natural, e eu realmente queria que fosse um truque da luz, mas por um segundo pareceu que ela tinha mais de dois olhos.
Quase no mesmo instante em que abri a porta, o movimento do círculo parou abruptamente e suas cabeças se viraram para me encarar todas de uma vez. Fiquei paralisado de pânico. Eles soltaram os braços e por um momento eu tive certeza de que iam me atacar, mas em vez disso se viraram para a janela, em direção a Annabelle, e caminharam até ela, se alinhando bem na frente do vidro.
Com um movimento repentino e brusco, eles inclinaram as cabeças para trás e depois bateram contra a janela espelhada, a quebrando inteira de uma só vez. Eu queria correr, mas não conseguia fazer meu corpo se mexer. Eu só fiquei parado ali, assistindo o sangue escorrer dos cortes nas testas deles enquanto a Annabelle começava a subir pela janela quebrada, seus membros se movendo e se estendendo, lenta e deliberadamente. Os outros não moveram um músculo enquanto ela rastejava sobre eles e depois sobre o chão em minha direção.
Quando ela estava a mais ou menos 30 centímetros de mim, ela se endireitou até sua altura total. Não sei exatamente qual era a altura dela antes, mas agora ela se erguia quase trinta centímetros acima de mim. Os olhos dela se fixaram nos meus e eu comecei a sentir algo. Era como se centenas de perninhas pequenas estivessem correndo dentro do meu crânio, se movendo e se agitando pela minha mente.
Senti minhas mãos, que estavam soltas ao lado do meu corpo, começarem a se levantar. Elas agarraram minhas pernas e aí, aparentemente por vontade própria, começaram a rastejar pra cima de mim, subindo lentamente sobre meu estômago, meu peito, meus ombros, até que, finalmente, pousaram em minha garganta. Eu nunca fui um homem forte, mas isso não parecia importar quando meus próprios dedos começaram a se fechar em volta do meu pescoço.
O pânico estava me fazendo respirar rápido e superficialmente, mas em segundos eu não conseguia mais fazer nem isso. Não sei se você já foi estrangulado, mas demora muito mais do que você imagina. Não faço ideia de quanto tempo demorou pras bordas da minha visão começarem a escurecer, mas pareceu ser uma eternidade.
Aí, com o canto do olho, vi Mark, o pesquisador, se mover. Não sei como ele quebrou o feitiço que Annabelle tinha lançado sobre ele, mas aparentemente ele conseguiu. Com um movimento repentino e inesperado, ele a atacou e jogou todo seu peso em cima dela.
O ataque a pegou completamente desprevenida e ela caiu com força contra a borda da janela quebrada, a lateral de sua cabeça fazendo um barulho horrível de esmagamento ao bater. De repente, os outros desabaram no chão, como se suas cordas tivessem sido cortadas. Minhas mãos também caíram e eu respirei fundo, longa e dolorosamente.
Eu desabei e levei alguns momentos tentando me recompor. Mark já tava com o celular na mão tentando chamar a polícia. Eu tava grogue e parecia que alguém tinha lixado meu cérebro, mas consegui me levantar. Olhei para o corpo amassado de Annabelle Cane exatamente quando ela começou a se levantar. Dava pra ver que o lado do crânio dela tinha sido esmagado, e por baixo da bagunça de sangue e ossos, vi uma massa de teias de aranha opacas e brancas.
Eu corri. Não me orgulho disso. Saí correndo daquele prédio, voltei pro meu carro e simplesmente fui embora. Dirigi por quase uma hora antes de finalmente parar em uma estrada lateral e começar a chorar. Nunca mais vi nenhum deles.
A administração da Universidade entrou em contato comigo antes da polícia. Eles me disseram, de maneira bem clara, que se eu valorizasse meu emprego eu oficialmente não tinha estado no prédio naquela noite. Eu nem sei o que teria dito à polícia de qualquer forma, e eu precisava daquele trabalho, então, quando fui questionado, disse que estava em casa, doente com uma virose. Acho que o fato de eu estar com uma cara horrível ajudou a convencê-los, e usei uma camisa de gola alta quando prestei meu depoimento.
A versão oficial foi que Annabelle tinha sofrido um surto psicótico e quebrado a janela, ferindo várias pessoas com os cacos de vidro antes de espancar Mark quase até a morte e fugir do prédio. As outras pessoas naquela sala parecem não se lembrar de nada, e eu não sei se o Mark mencionou meu nome no testemunho dele. Ele e Liz ainda não retornaram à Universidade e eu não fiz nenhum esforço para entrar em contato com eles.
Até onde eu sei, Annabelle Cane ainda tá por aí. Mas eu tô mantendo distância de qualquer coisa remotamente relacionada a aranhas. De algum jeito, eu consegui sobreviver a um filme de terror. Não tenho a menor intenção de procurar outro.
ARQUIVISTA
Fim do depoimento.
Mais aranhas. O testemunho do Sr. Harlow pelo menos teve a decência de ser bastante corroborado. A história da estudante de psicologia que enlouqueceu durante um estudo de PES ainda é bastante discutida em certos setores da Universidade de Surrey, e tem vários artigos de jornal que cobrem os eventos detalhadamente, embora nenhum deles mencione o... ponto de vista aracnídeo, nem mesmo o envolvimento do Sr. Harlow.
Tanto Mark Voight quanto a Dra. Elizabeth Bates deixaram a Universidade quase imediatamente depois do incidente, sob circunstâncias um tanto vagas. A Dra. Bates recusou categoricamente nosso pedido de entrevista, e o Martin me informou que o depoimento do Sr. Voight foi desconexo e quase incompreensível. Aparentemente, biologicamente falando, o relato dele sobre as aranhas não faz sentido nenhum, de acordo com o Martin. Além disso, aparentemente, ele chorou muito. Porém, ele pelo menos confirmou a presença do Sr. Harlow no evento, e o resto da conversa foi uma confusão de divagações sobre pernas e correrias.
Apesar dos problemas recentes, Tim se saiu bem nessa. Os relatórios policiais confirmam a história oficial de uma aluna que sofreu um episódio violento e atacou outras pessoas envolvidas em um estudo de pesquisa. O fato foi atribuído a um ataque psicótico, embora os pais de Annabelle Cane tenham afirmado repetidamente que ela não tinha histórico de doenças mentais ou violência. Realmente, é raro ver um uso tão descarado da imagem de um lunático espumando pela boca fora das páginas de uma ficção sensacionalista. Eu não acho que ela tenha enlouquecido.
Annabelle Cane nunca foi presa e parece ter desaparecido, ao que tudo indica. O que é igualmente — se não mais — preocupante, é que nos anos desde esse depoimento, todos os outros participantes desse estudo, os chamados "projetores" da Dra. Bates, também desapareceram. Não consigo deixar de imaginar quantas teias de aranha podem ser encontradas em suas antigas casas.
Fim da gravação.
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ARQUIVISTA
Complemento.
Eu, uh... eu não voltei pros túneis. Eu acho que tô... vou falar a real, eu tô com medo. Principalmente depois da exploração abortada da semana passada.
E, ainda assim, todas as outras pistas parecem ter esgotado ou me levado a mais perguntas sem resolver nada, e a não ser que eu confronte Elias com o que descobri ou espere na improvável esperança de receber mais fitas da Basira, tô lutando pra encontrar qualquer plano que não me leve para aqueles túneis. Descer lá pra encontrar algo que deixou bem claro que não quer ser encontrado.
Eu deveria pedir ajuda pros outros, mas eu... Não posso. Na melhor das hipóteses, eles só tentariam me convencer a não fazer isso. Na pior das hipóteses... Não, eu... se eu vou descer lá, eu vou sozinho.
Eu deveria só deixar isso pra lá. Eles estão certos. Mas não posso não saber.
Fim do complemento.
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arquivosmagnusbr · 10 months ago
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MAG068 — Contos de um Hospital de Campanha
Caso #0030306: Depoimento de Joseph Russo a respeito de um livro supostamente escrito por Sir Frederick Treeves.
Ouvir em: Spotify | Youtube
Aviso de conteúdo: guerra, doenças, insetos
Tradução: Lia
ARQUIVISTA
Depoimento de Joseph Russo a respeito de um livro supostamente escrito por Sir Frederick Treeves. Depoimento original prestado em 3 de junho de 2003. Gravação de áudio por Jonathan Sims, arquivista chefe do Instituto Magnus, Londres.
Início do depoimento.
ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Obrigado por me deixarem fazer isso. Quer dizer, eu sei que vocês deixam qualquer um gravar um depoimento. É por isso que vocês são o Instituto Magnus! Então eu poderia só ter inventado alguma coisa, eu acho, mas não quero desperdiçar seu tempo ou irritar vocês. Digo, sou muito fã do trabalho de vocês. Nunca tive aptidão acadêmica pra ter acesso à sua biblioteca nem nada assim, mas quando todos aqueles depoimentos vazaram em 1999... Eu sei que todos os jornais chamavam vocês de malucos, mas... eu sei. Tá? Eu entendo. Eu li todos eles, do começo ao fim, e com certeza tem um monte de bobagem lá, um monte de gente viajando no ácido e mentirosos, mas no meio deles — lá no fundo — tinha alguma coisa lá. Tem coisas que acontecem no escuro e agora eu acho que tenho uma pra compartilhar com vocês.
Então, eu sou meio que um artista. Eu gosto de usar os detritos do tempo que a humanidade passou nesse planeta pra recriar o próprio reflexo dela, certo? Então eu pego o que os outros consideram lixo e uso isso pra mandar uma mensagem pros manipuladores e ricaços que seguram nossas vidas na palma da mão e brincam com a nossa sociedade como se fosse um jogo de xadrez. Uma mensagem de arte. Você sabe do que eu tô falando. Aposto que você tem um monte de coisa no seu arquivo sobre os Illuminati. É por isso que eles te difamaram tanto. Eu não tô pedindo pra vocês ficarem de olho neles nem nada assim — eu só quero que vocês saibam que eu entendo. Tá? Eu entendo.
Então, enfim, eu passo muito tempo no lixão. Não tanto naquelas caçambas enormes de ferro ou no depósito de garrafas — quer dizer, como se eu já não tivesse garrafas suficientes no meu estúdio — mas, sabe, naquela parte do meio onde eles vendem as coisas. As coisas que realmente ultrapassam a linha entre o lixo e o tesouro. Espelhos que estão manchados, mas ainda bons. Móveis antigos que estão um pouco arranhados demais pra uma loja de caridade. Você pode conseguir coisas incríveis por quase nada se procurar bem e não for muito exigente.
E quando você tá fazendo arte, você não precisa ser exigente. Se alguma coisa não estiver perfeita, você pode deixar ela perfeita. Você usa a beleza dentro de você pra alcançar e extrair a beleza do objeto. Às vezes, o quebrando mais; às vezes, consertando só o necessário. E, uma vez, colocando fogo nele. Então, as pessoas no lixão perto da minha área me conhecem e, geralmente, quando eu apareço, elas me informam sobre qualquer coisa boa que chega lá.
Então, eu fui verificar uma dica que me passaram perto de Wood Green dois dias atrás e eles geralmente não têm muitas coisas boas. Quer dizer, eu já fui lá algumas vezes que eles não tinham literalmente nada à venda, mas desta vez eles tinham algumas peças de mobília e um conjunto de talheres, mas nada que eu pudesse usar. Mas um dos caras que trabalha lá, acho que o nome dele é Gus? Ou Al? Ele tem cara de Gus ou Al.
Enfim, ele me mostrou a única coisa que realmente me chamou a atenção. Era uma cesta de vime cheia de livros antigos. Isso sim me interessava. Eu tô trabalhando numa peça no momento chamada "Visualizações da Página", e é sobre a morte da mídia impressa no início da era digital. A questão é que eu tô enchendo um monte de monitores de computador com livros rasgados, então livros baratos — principalmente aqueles um pouco velhos e um pouco amarelados — eram exatamente o que eu precisava.
Descartei alguns porque a textura ou o tom da página não estavam bons, mas tinha vários lá que eu poderia usar. Aí eu vi um livro que parecia um pouco mais velho que os outros bem no fundo da cesta. Era grande e as páginas pareciam grossas e soltas. O título era Contos de um Hospital de Campanha, de Frederick Treeves.
Então é claro que eu ia comprar ele, né? Quer dizer, obviamente você conhece Frederick Treeves, o cirurgião que era melhor amigo de Joseph Merrick, também conhecido como Homem Elefante, também conhecido como minha curiosidade médica vitoriana favorita de todos os tempos. E não só porque ele tem o mesmo nome que eu, apesar de eu não ver problema nisso.
Quer dizer, eu conhecia o livro — o relato de Treeves sobre o tempo que trabalhou num hospital de campanha durante a Segunda Guerra dos Bôeres. Eu já tinha lido ele antes, claro, mas minha cópia desapareceu na época em que a Sandra se mudou. Ela não era exatamente fã e acho que ela jogou um monte de coisa minha fora por ressentimento. A questão é que esse exemplar parecia antigo. Tipo, do século XIX, que foi quando ele escreveu, o que significava que tinha uma boa chance de essa ser uma primeira edição e esse tipo de coisa pode ser muito valiosa. O que significava que eu teria uma boa leitura e conseguiria uma grana. Todo mundo sai ganhando, né?
Então eu compro ele por uns 50 centavos e vou embora, mas é estranho. Não sei quem era o dono anterior, pode até ter sido uma cópia da biblioteca, mas o adesivo tinha sido quase todo arrancado. Mas ele não tinha um frontispício e muitas páginas tinham gramaturas ou layouts diferentes, e meio que parece que elas foram impressas em momentos diferentes.
É só quando chego em casa que eu lembro que Contos de um Hospital de Campanha foi realmente baseado em uma série de pequenas colunas que ele escreveu pra Revista Médica Britânica durante a própria guerra. Então, eu penso que o que eu tenho aqui pode ser só algum tipo de revisão ou cópia de rascunho, ou talvez alguma coleção personalizada desses artigos, e eu fico muito animado.
Mas quando comecei a ler tinha alguma coisa meio estranha. Pedaços de alguns capítulos que eu não me lembro da versão que li antes. O livro é velho, sujo e meio difícil de ler, então copiei algumas passagens pra vocês.
Então, quase na metade do Capítulo Treze, ele fala sobre “os homens com as pás” — os soldados que subiam todos os dias pra cavar os túmulos daqueles que haviam morrido no hospital. Ele os descreve como “desleixados e indiferentes, sua atitude despreocupada escondendo a profunda tristeza dentro deles por seu dever solene”. Só que, na versão que eu tenho, é assim:
Nota do arquivista: anexadas a este depoimento em vários pontos estão versões manuscritas de supostas passagens do livro em questão.
“As sepulturas em Frere eram cavadas por nossos próprios homens, ou melhor, por um pequeno grupo de trabalho de um regimento nas proximidades. Quase todas as manhãs eles vinham, os homens com as pás. Eram sete deles, com um cabo, e eles chegavam alegremente, com as pás nos ombros e os cachimbos nas bocas. Estavam de mangas arregaçadas e havia uma grande exibição de cintos e colarinhos desabotoados. Seus capacetes costumavam estar colocados em suas cabeças de forma informal. Eles eram indescritivelmente desleixados e marchavam de forma sugestiva, como se estivessem em uma procissão vaga e desordenada. Havia apenas um homem que mantinha em sua conduta um senso de decoro, ainda que eu não tenha qualquer afeição por essa lembrança. Ele usava seu uniforme de maneira precisa, e embora o suor invadisse seu rosto enquanto ele trabalhava em sua triste tarefa, nenhuma gota dele tocava seu casaco. Ele me olhava fixamente enquanto eu o observava trabalhar. Imaginei que as moscas voavam mais densamente sobre qualquer sepultura em que ele trabalhasse. Perguntei ao cabo seu nome e ele me disse que aquele era o Soldado Amherst. Adequado o suficiente, observei, que ele fosse chamado pelo nome de um transmissor de varíola, quando ele mesmo parecia quase tomado pela febre. Me arrependi de meu comentário no dia seguinte quando ele parou em frente à sua sepultura aberta, me saudou e morreu ali mesmo de febre tifoide.”
Estranho, né? Isso não tá no original. Bom, a primeira parte sim, eu acho, mas a parte sobre o cara morrendo de febre enquanto cavava uma cova definitivamente não. Então eu acho que deve ser uma versão com todas as partes que eles cortaram para publicar como livro ou no jornal. Ainda assim, não é necessariamente sobrenatural, né?
Bom, mais à frente no livro tem o Capítulo Dezenove, “A História do Homem Inquieto”. Na versão que eu li antes, é uma história bonitinha sobre um soldado com uma perna ferida que recebe uma cama, mas continua cedendo sua cama pra outros soldados que ele acha que precisam mais dela. Mas isso piora o estado de sua perna cada vez mais e no final eles têm que obrigá-lo a ficar na cama. O objetivo é ilustrar o altruísmo de um soldado para com seus companheiros.
Bom, nessa edição esquisita ela é um pouco diferente.
“Entre os feridos que vieram de Spion Kop estava um soldado que reconheci, embora eu mal consiga acreditar. O soldado Amherst, que havia sido enterrado há dois meses na sepultura que ele mesmo cavou, foi trazido em uma maca. O fêmur estava quebrado e a fratura tinha sido muito acometida durante a viagem até o hospital. Ele não respondeu às minhas perguntas sobre sua suposta morte além de abrir um sorriso malicioso e foi colocado em uma cama em uma das tendas. O membro foi ajustado temporariamente e ele foi instruído a ficar bem quieto e não se mover. Na manhã seguinte, no entanto, ele foi encontrado deitado de bruços, com o membro fora de posição e suas talas, como ele disse, me olhando novamente nos olhos, “de qualquer jeito.” Perguntei por que ele havia se movido. Ele me disse, com moscas zumbindo ao redor de sua cabeça febril, “veja, doutor, sou um homem muito inquieto.” O membro foi ajustado de forma mais elaborada e tudo foi deixado em uma posição excelente. Na manhã seguinte, no entanto, o homem inquieto foi encontrado deitado no chão da tenda, e em sua cama estava um homem que havia sido baleado no peito. A tenda estava lotada e o número de camas era pequeno; aqueles que não podiam ser acomodados em camas tinham que deitar em macas no chão. O homem que foi baleado no peito havia chegado durante a noite e tinha sido colocado na única maca disponível. Amherst me disse que ficava feliz em compartilhar o pouco que tinha com os necessitados. Eu… Admito que não tinha certeza de como proceder quando o homem que foi baleado no peito morreu inesperadamente, sua ferida havia infeccionando com grande rapidez, e no devido tempo o homem inquieto estava de volta à sua própria cama mais uma vez. Não foi por muito tempo, no entanto, pois em outra visita matinal Amherst foi encontrado no chão novamente, e novamente deu a explicação de que um dos feridos que estava no chão, que havia chegado à noite, parecia estar muito mal, então ele trocou de lugar. O ocupante atual também morreu por uma ferida infeccionada dentro de algumas horas depois de eu perceber. Fiquei profundamente abalado por esse estranho presságio de doença e fatalidade, mas não conseguia pensar em uma solução imediata para o problema. No entanto, mover um homem com uma fratura no fêmur da cama para o chão e vice-versa não só causa desordem nas talas e bandagens, mas também grande perigo para o membro danificado. Então, quase fiquei aliviado quando a ferida gangrenou em uma velocidade tão alarmante que a amputação se tornou simplesmente impossível. Quando ele faleceu pela segunda vez, implorei que permanecesse assim. Ele apenas me olhou: “mas veja, doutor, sou um homem muito inquieto.”
Bem assustador, né? Dá pra entender por que eu queria trazer isso pra vocês. Quer dizer, eu sei que não é exatamente como ter um depoimento meu, meu próprio contato com a escuridão que espreita por trás do véu sombrio e ataca a humanidade desavisada, mas é quase tão bom quanto, né?
Vou ser sincero, eu não li ele inteiro antes de trazer aqui, eu pensei que vocês provavelmente estariam numa posição melhor pra fazer isso com seus pesquisadores e tal, mas tem uma outra parte que eu anotei. Estava em pior estado que os outros, mas era o capítulo final, o Capítulo Trinta. No original, ele relata a morte bastante miserável de um soldado em contraste com o heroísmo no campo de batalha e é intitulado “Sic Transit Gloria Mundi”. Nessa versão ele não tem um título, e é assim:
“Lembro-me de uma manhã em Chieveley, antes do café da manhã, observando um homem solitário se aproximar das filas do hospital. Eu sabia que era ele muito antes de minha visão ficar clara. Ele agora cambaleava em direção ao hospital, um fantasma de um homem esfarrapado, destruído e de cor cáqui. Ele arrastava seu rifle com ele, seu cinto havia sumido, seu capacete estava posicionado na parte de trás de sua cabeça, sua túnica estava jogada sobre os ombros; ele estava literalmente preto de moscas. Ele me disse que tinha vindo dos campos de concentração, que havia muitos entre os bôeres que estavam no mesmo estado que ele, e que ansiava por me tocar com tudo o que tínhamos infligido a eles. Ele falou sobre doença, putrefação e as criaturas que se contorciam na imundície. Falou, sem fôlego, sobre sua revelação. Então ele morreu, assim como o homem que veio enterrá-lo.”
Então, é, achei que poderia ser interessante pra vocês.
Considere o livro uma doação. Não é tão legal quanto ter um contato próximo de verdade, mas é quase tão bom quanto. Mas toma cuidado quando mexer nele, essas páginas velhas são meio afiadas.
ARQUIVISTA
Fim do depoimento.
O Sr. Russo foi encontrado morto em sua casa em 5 de junho de 2003, dois dias após seu depoimento. A causa da morte foi identificada como envenenamento do sangue causado por um ferimento na mão. Considerando que os registros médicos que a Sasha desenterrou parecem indicar que a putrefação estava muito mais avançada do que o período razoavelmente permitiria, suspeito que o Sr. Russo pode ter tido um contato muito mais próximo do que imaginava com um livro muito perigoso.
Um Leitner, eu diria, apesar de uma ligeira fuligem ao redor das bordas desse depoimento me leve a acreditar que a Gertrude pode ter tomado uma decisão um tanto unilateral sobre descartá-lo em vez de armazená-lo.
Além disso, todos os detalhes parecem ser mais ou menos precisos. Sir Frederick Treeves realmente trabalhou em um hospital de campanha durante a Segunda Guerra dos Bôeres e escreveu um livro sobre isso intitulado Contos de Um Hospital de Campanha, publicado em 1900. O Tim caçou uma versão online do texto e ela com certeza não corresponde ao que o Sr. Russo reproduziu aqui.
Curiosamente, o texto oficial não faz qualquer menção aos campos de concentração utilizados para aprisionar civis bôeres durante o conflito, onde a doença e a fome mataram milhares de pessoas e, de fato, é perfeitamente possível que não fizesse parte da guerra que Treeves encontrou ou com a qual se envolveu. Estranho, então, que seja lá o que for a coisa que o assombrasse tenha escolhido isso como sua mensagem final.
Amherst está rapidamente se tornando parte de uma lista desconfortavelmente longa de nomes que temo ver em um depoimento. Será que ele pode ter sido um ancestral de John Amherst? Ou, dadas as várias aparentes mortes do soldado no livro, poderia ser a mesma criatura com mais de cem anos de idade? Se sim, eu me pergunto quantas vezes ele morreu de doença e enfermidade.
Outro ponto é uma conexão que o Treeves faz que eu não tinha considerado — a de Jeffrey Amherst, um baronete do século XVIII que é mais lembrado por fornecer deliberadamente cobertores infectados com varíola a tribos nativas americanas durante as chamadas Guerras Francesas e Indígenas, levando a uma epidemia devastadora. Uma conexão com um tipo muito diferente de monstro, mas ainda assim um que tem as características de doenças.
Presumi que Amherst fosse algo semelhante à Prentiss por sua conexão com insetos, mas isso pode não ser tudo. Insetos e doenças. Nenhuma conexão clara além do fato de que eles parecem semelhantes de alguma forma. Ambos fazem a pessoa se sentir claramente impura.
Fim da gravação.
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ARQUIVISTA
Complemento.
Eu tô nos túneis. Eu tava explorando e me perdi. Eu não desci nenhuma das escadas e acho que ainda tô embaixo do Instituto. Tinha algumas aranhas, então mudei de rota e encontrei... acho que é uma tubulação de gás, deve ser pro prédio todo. Mas tem alguém vindo e eu... eu não sei quem mais estaria aqui embaixo, além de... o que quer que seja a coisa que tá aqui embaixo, eu tava... tava só checando os níveis superiores, eu não me preparei pra...
SASHA
Jon?
[ARQUIVISTA GRITA, ASSUSTADO]
Jon, é você?
Arquivista: Ai, Sasha, graças a Deus. Eu pensei que você... eu pensei que você fosse um... Sei lá. O que você tá fazendo aqui embaixo?
Sasha: Esqueci meu casaco. Percebi que o alçapão tava aberto e queria ter certeza de que você tava bem. O Elias te deu a chave?
Arquivista: Sim, ele... ele achou que isso podia ajudar a acabar com algumas das minhas "imaginações mais absurdas". Você tá bem?
Sasha: Sim, eu tô bem. Eu não gosto muito daqui embaixo. Difícil de me concentrar.
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ARQUIVISTA
Sasha conseguiu nos tirar dos túneis com sucesso. Talvez eu possa adiar explorações futuras por um tempo, pelo menos até que minha frequência cardíaca se estabilize em algum momento em mais ou menos um ano. Aquele lugar prega peças estranhas na sua mente. Quando eu vi a Sasha lá embaixo, por um momento foi como se eu não a reconhecesse. Ela parecia... alta demais, de alguma forma. Eu tranquei o alçapão de novo por enquanto. Acho que eu preciso de um pouco de ar fresco.
Fim do complemento.
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arquivosmagnusbr · 1 year ago
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MAG067 — Desejo Ardente
Caso #0071803: Depoimento de Jack Barnabas a respeito de um breve namoro com Agnes Montague no outono de 2006.
Ouvir em: Spotify | Youtube
Aviso de conteúdo: fogo, mutilação, aranhas
Tradução: Lia
ARQUIVISTA
Depoimento de Jack Barnabas a respeito de um breve namoro com Agnes Montague no outono de 2006. Depoimento original prestado em 18 de março de 2007. Gravação de áudio por Jonathan Sims, arquivista chefe do Instituto Magnus, Londres.
Início do depoimento.
ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Eu sabia que ela não era normal. Acho que foi isso que me atraiu pra ela em primeiro lugar. Eu pensei que ela era como eu, outra esquisita excluída do mundo. Quer dizer, não tinha como eu saber que ela não era humana. Pelo menos, eu não vejo como ela poderia ter sido humana — não do jeito que pensamos.
Mas ela era tão linda. Ela era alta, tinha cabelos longos, lisos e ruivos e aqueles olhos que, quando olhavam pra você, não parecia que ela estava te vendo, mas te prendendo. Eu nunca entendi a expressão “ficar petrificado” até que ela me olhou nos olhos pela primeira vez. Não sei — talvez meus reflexos de lutar ou fugir estejam estragados, porque não foi isso que eu senti quando aconteceu.
Eu deveria ter fugido, é claro. Não sei se você normalmente deixa as pessoas sozinhas numa sala enquanto escrevem seus depoimentos, mas dá pra entender você fazer isso no meu caso. Já tô me acostumando com as pessoas dando desculpas educadas pra não olhar pra mim.
A Deliah tentou me avisar. Deliah Aconjo trabalhava no Café Canyon desde que foi inaugurado em 1991, e assim que eu voltei pra cozinha depois de ver Agnes Montague pela primeira vez ela viu a expressão em meus olhos e balançou a cabeça. Ela me disse que ela era problema, que tinha alguma coisa errada com ela. Pedi mais detalhes e a Deliah só deu de ombros. Disse que ela vinha no café desde que ele abriu e que tinha alguma coisa errada.
Na época, entendi que ela quis dizer que a Agnes vinha desde que era criança, já que ela parecia ter a minha idade. Mas pensando agora, eu não tenho tanta certeza.
Não é como se isso fosse fazer alguma diferença. Fui atraído por ela de um jeito que eu nem consigo explicar. Eu nunca conseguia dizer nada ou emitir um som sequer quando os olhos dela caíam sobre mim.
Eu mal conseguia falar o suficiente pra confirmar o pedido dela, embora fosse sempre a mesma coisa: uma xícara grande de café preto com espaço suficiente pro leite. Ela nunca colocava o leite. Ela nunca nem bebia. Ela só pegava o café e ficava sentada lá, olhando a rua pela janela por mais ou menos uma hora. Não é como se tivesse muito pra ver — era só uma rua normal e fora do centro de Sheffield, não era grande coisa.
Ainda assim, ela ficava sentada lá, observando, sozinha com seus pensamentos por mais ou menos uma hora, depois se levantava e saía. Eu ia até a mesa pra recolher o café dela. Ele tava sempre pelando de quente.
Era uma rotinazinha tão estranha, e eu ficava o tempo todo me perguntando no que ela poderia estar pensando. Como era a vida dela que todas as terças-feiras às 3 da tarde ela vinha no mesmo café e não bebia um café preto? Do jeito que ela sempre pedia o café, sempre parecia que ela gostava. Do pedido, quero dizer. Como se a frase “um café preto com espaço pra leite” fosse algo deliciosamente novo pra ela dizer.
Naquele ano, pouco antes de eu finalmente falar com ela, só vi duas ocasiões em que ela não estava sentada sozinha.
A primeira foi quando outro homem tentou dar em cima dela. Pelo menos eu acho que era isso que ele tava fazendo. Eu não conhecia ele, mas você sempre sabe quando alguém começa uma conversa com esse intuito. Ele caminhou até ela e começou a dizer algo, muito confiante. Agnes — embora eu não soubesse o nome dela naquela época — só olhou pra cima e encontrou os olhos dele. Eu pude vê-lo começar a vacilar. O suor começou a escorrer pela testa dele, mas ele continuou falando. Então Agnes fez menção de se levantar.
Foi só um movimento muito pequeno, mas o homem se assustou como se tivesse ouvido um tiro, esbarrando na mesa e derramando café sobre a mão. O café estava ali há quase 40 minutos, mas eu vi sua pele começar a ficar vermelha com queimaduras onde o líquido a tocou. Ele gritou e, de repente, todos estavam olhando pra ele. Seu rosto ficou quase da mesma cor da mão queimada e ele gritou algo vago pra nós sobre nos processar por conta da temperatura e saiu correndo porta afora com dor e constrangimento. Nem preciso dizer que não ouvimos falar dos advogados dele.
Foi nesse dia que eu notei as leves marcas de queimadura na cadeira em que Agnes estava sentada — embora na época eu não tenha relacionado as duas coisas.
A outra vez foi perto do final de outubro do ano passado. Lembro disso porque a Deliah tava reclamando comigo sobre como era impossível conseguir uma fantasia de Halloween feminina decente que, segundo ela, não mostrasse uma quilômetro de pele. Eu tava fazendo uma piada sem graça sobre ir vestido de fantasma com um lençol e dizer a todos que era sexy porque o fantasma tava tecnicamente pelado, quando olhei e vi outra pessoa sentada à mesa com a Agnes.
Era uma mulher asiática baixa, com cabelo cortado rente e uma estrutura e musculosa e forte. Lembro de ficar um pouco surpreso porque ela parecia estar vestindo só uma regata, considerando o frio que estava começando a fazer. Mas ela exibia uma tatuagem nas costas bem intimidadora do que parecia ser um homem envolto nas chamas do inferno. Ainda lembro de como achei perturbador aquele rosto gritando, se contorcendo de agonia no fogo tatuado.
Mas mais estranho do que tudo isso era o fato de que Agnes parecia estar conversando com ela. Dizendo palavras de verdade que não eram um pedido de café ou um agradecimento. A voz dela era suave e eu não conseguia entender nenhuma palavra. Quer dizer, eu sei que eu não deveria estar tentando ouvir, eu sei que é uma coisa esquisita de se fazer, mas você não entende como aquela ocasião era importante: ver aquela mulher linda cujo nome eu não sabia finalmente falando com outro ser humano. Foi incrível.
Mas a voz da mulher mais baixa era alta e ela não estava tentando ser sutil. Ela falava sobre algum tipo de trabalho e se Agnes seria capaz de fazê-lo. No começo pensei que fosse uma entrevista de emprego, mas aí ela começou a falar sobre a Agnes ser “liberada” de alguma coisa.
A Agnes só disse algo suavemente e balançou a cabeça. Ela parecia triste, uma expressão que eu nunca tinha visto no rosto dela antes.
A outra mulher suspirou, claramente insatisfeita com a resposta, e se levantou pra ir embora. Antes de ir, ela pegou um envelope de papel pardo e o entregou. Disse que estava entregando pra ela agora pra não acabar esquecendo depois. Ela disse que era "uma coleção". Parecia que o envelope estava cheio de dinheiro.
Agnes o guardou na jaqueta e voltou a olhar pela janela enquanto sua companheira intimidadora saía com uma expressão frustrada. Foi nesse momento que decidi tentar falar com a Agnes. Ver ela interagindo com outra pessoa, mesmo de um jeito tão estranho, desbloqueou alguma coisa na minha cabeça.
Na terça-feira seguinte, quando ela entrou e pediu seu café, eu perguntei o nome dela. Ela olhou pra mim, surpresa, e por um segundo eu senti que tinha cometido um erro terrível. Mas aí ela me respondeu. Com muita naturalidade. E aí eu a convidei pra sair. Não sei como isso aconteceu, o convite só saiu da minha boca antes que eu pudesse evitar.
Houve um momento de silêncio absoluto, como se todos no lugar tivessem parado de respirar, embora ninguém tivesse olhado pra gente. Então o rosto da Agnes se contorceu em algo que eu acho que era um sorriso e ela disse sim. Uma onda de alegria inebriante tomou conta de mim, e ela pegou seu café e foi pra mesa de sempre.
Eu conseguia sentir a Deliah me encarando da cozinha e eu não quis me virar porque sabia exatamente a cara que ela estaria fazendo. Eu tava feliz demais pra deixar ela arruinar tudo resmungando que aquilo acabaria em desastre. Foi só depois que a Agnes deixou seu café intocado e foi embora pra sei lá onde que eu percebi que não tínhamos marcado nada.
Passei o dia seguinte na fossa, me martirizando por ter sido tão idiota. Tenho folga do trabalho nas quartas-feiras, então eu tive muito tempo pra ficar me lamentando pela casa e sentindo pena de mim mesmo. Por volta das três da tarde, porém, ouvi uma batida na porta.
Do outro lado estava Agnes. Ela vestia um casaco de lã escuro e um lenço cinza e tinha aquele mesmo sorrisinho no rosto. Ela perguntou se eu estava pronto pra ir.
Eu não estava. Pedi pra ela esperar um minuto e corri de volta pro meu quarto pra passar um desodorante e colocar uma camiseta limpa. Enquanto eu fazia isso, notei um cheiro estranho, tipo quando você liga um aquecedor elétrico pela primeira vez depois de um bom tempo e sente o cheiro da poeira esquentando. Olhei pra cima e percebi que no canto da sala, onde havia uma teia de aranha naquela manhã, tinha só um leve fio de fumaça. Foi estranho, mas eu tinha coisas mais importantes pra pensar. Assim que fiquei pronto, eu saí.
Perguntei o que ela queria fazer e ela me olhou como se eu fosse idiota. Nós íamos passear no parque, ela disse. Como se fosse a única coisa possível de se fazer. Claro que eu concordei. Ela era a pessoa mais estranha que eu já tinha conhecido, mas alguma coisa nisso me encantava. Então descemos até o Bolehill Park, o mais próximo do meu apartamento, e caminhamos.
Eu falei a maior parte do tempo, como era esperado. Agora eu nem lembro de metade das coisas que eu falei, só fiquei balbuciando pensamentos sem sentido, detalhes pessoais, anedotas. Fiquei com medo de estar deixando ela entediada, mas toda vez que eu olhava ela estava com aquela mesma expressão que até então eu tinha certeza de que era um sorriso. Nossos olhares se cruzavam e aquele sentimento tomava conta de mim. Ainda não sei bem como descrever, mas o que quer que fosse, era poderoso.
Nos sentamos em um banco enquanto o sol se punha, observando o céu ficar vermelho, e a Agnes me fez uma pergunta. Foi a primeira vez que ela disse algo mais do que algumas palavras desde que saímos do meu apartamento. Ela me perguntou se eu tinha um destino.
Nem preciso dizer que a pergunta me pegou desprevenido. Não sei se já ficou claro o bastante, mas sendo um cara solteiro de trinta e poucos anos que ainda trabalha na caixa registradora de um café em Sheffield, não vejo muito como eu poderia ter um destino. Merda, não sei nem se eu acredito em destino. Eu com certeza não acredito em Deus, e sinto que essas coisas estão meio que ligadas.
Então eu disse isso pra ela. Ela olhou pra mim com a mesma tristeza que eu já tinha visto em seu rosto antes. "Deve ser bom", ela disse e voltou a olhar pro pôr do sol.
Saímos várias vezes depois disso. Em todas as vezes ela aparecia na minha porta sem avisar e me dizia o que íamos fazer. Fomos ao parque mais algumas vezes, jantamos em um restaurante italiano onde ela não comeu nada. Nós até fomos assistir a um filme. Lembro que era "O Grande Truque", e quando perguntei o que ela tinha achado do filme, ela só disse que não tava assistindo. Meu Deus, ela era tão bizarra.
O último encontro foi em 23 de novembro de 2006. Era uma quinta-feira e o frio tinha chegado. Tava frio demais pra passar uma noite no parque, pra ser sincero, mas a Agnes decidiu que era isso que tínhamos que fazer, então foi o que fizemos. Ela nunca parecia sentir frio.
Caminhamos em silêncio por mais ou menos uma hora e começou a escurecer. Eu estava prestes a dizer pra nós irmos embora, já que geralmente fechavam o parque depois do anoitecer, quando ouvi a Agnes arfar. Eu me virei e vi ela segurando o peito como se estivesse com uma dor repentina, e ela disse que tínhamos que ir. Eu a segui enquanto ela cambaleava pra fora do parque em direção a uma cabine telefônica, onde ela ligou pra alguém em pânico.
Ela disse algo sobre uma árvore caindo e que eles tinham que terminar alguma coisa. Aí ela desligou. Ela se apoiou no meu braço enquanto caminhávamos de volta pro apartamento dela. Eu nunca tinha ido lá antes, mas claramente ela não conseguiria chegar lá sem ajuda.
O prédio era antigo, e o papel de parede do corredor tinha um padrão de lírios verdes desbotados, ocasionalmente marcado com buracos vívidos queimados nele. Quando nos aproximamos da porta dela, vi um pequeno grupo de pessoas reunidas ao redor, esperando. Reconheci a mulher com quem ela tinha conversado algumas semanas antes, mas as outras eram estranhas pra mim. Todos vestiam roupas de trabalho rústicas e tinham expressões sérias.
Um deles, um cara grande com a cabeça raspada, estava segurando uma lanterna apagada e falando com os outros em um idioma que eu acho que era espanhol ou português. Outro segurava um saco que parecia estar cheio de velas, enquanto um terceiro levava um recipiente de plástico transparente cheio de centenas de aranhas pequenininhas. Nenhum deles prestou atenção em mim e eu logo senti que estava me enfiando em algo que eu realmente não queria.
Agnes se virou pra mim e se desculpou. Me disse "adeus" e "obrigada". Aquilo pareceu tanto um encerramento que senti como se meu coração tivesse parado.
Eu deveria ter ido embora. Eu deveria ter me virado e voltado pelo caminho que tinha vindo e aceitado que nunca mais a veria de novo. Em vez disso, fiz a coisa mais idiota que eu já fiz na vida. Ali, envolvido em uma série de eventos que eu não entendia, mas que me aterrorizavam, e afogado em emoções que eu ainda não consigo explicar, perguntei se podia beijá-la.
Sem nenhum aviso, ela colocou uma mão de cada lado da minha cabeça. Percebi que era a primeira vez que nossas peles se tocavam e pude sentir o calor intenso e infernal que irradiava de dentro dela, mas já era tarde demais. Ela se inclinou e me beijou.
Não tenho palavras pra descrever a dor. Meu rosto irrompeu em uma agonia fervente quando senti minha pele começar a rachar e descascar, e o calor tomou conta de mim, apagando todos os pensamentos com um branco escaldante. Senti a gordura em minhas bochechas se liquefazer e borbulhar enquanto eu tentava gritar, mas meus lábios não se mexiam.
Eu caí no chão. A última lembrança que eu tenho antes de acordar no hospital é a de uma única lágrima caindo na minha mão. Uma pequena e escaldante pontada de tormento que ainda conseguiu escapar de algum jeito.
Quando acordei três dias depois no hospital, Agnes estava morta. A polícia veio e ouviu meu depoimento, mas eles já haviam decidido que tinha sido suicídio, e quando eu tentei contar a eles o que tinha acontecido, eles me olharam como se eu estivesse inventando tudo. Isso quando eles sequer conseguiam olhar pra mim.
Os médicos fizeram o que puderam e me disseram várias vezes que na verdade eu tive muita sorte, porque seja lá qual tenha sido o fogo onde eu enfiei a minha cara, poderia muito bem ter me cegado também. O que não foi exatamente reconfortante.
Perdi quase tudo depois disso. Eu nunca tive muitas coisas pra começo de conversa, e depois que fui demitido da cafeteria, não pude me dar ao luxo de manter minha casa. Eles nem tentaram fingir que não era porque meu rosto queimado assustaria os clientes. Acabei indo morar com meu pai de novo, que tem sido... compreensivo com a situação, apesar de nem ele conseguir me olhar nos olhos na maior parte do tempo.
A pior parte é que, olhando pra trás, ainda não tenho certeza do que eu teria feito diferente, ou se faria tudo de novo. Mesmo depois de tudo o que a polícia me contou sobre a morte dela e a mão, eu... eu não sei se eu teria conseguido resistir. Eu simplesmente não conseguiria evitar ser atraído como uma mariposa para a chama.
ARQUIVISTA
Fim do depoimento.
Uma visão bem diferente da mulher conhecida como Agnes Montague, ou Agnes Fielding, dependendo de quem você perguntar. Embora dificilmente seja um relato confiável, mergulhado em obsessões e confusões complicadas.
Ainda assim, se o careca com a lanterna é, como eu suspeito, Diego Molina, isso indicaria uma ligação entre sua notável obsessão por queimar coisas e Agnes, que aparentemente tinha habilidades consideráveis nessa área.
Não posso deixar de pensar se Arthur Nolan, o proprietário da Colmeia, era um dos outros membros daquele pequeno grupo. Não sei se eles têm um nome, mas dadas as evidências organizacionais e as indicações de adorações, comecei a me referir a eles nas minhas notas como o Culto da Chama Sem Luz. E acredito que eles também podem estar conectados ao círculo de ritual encontrado na Escócia por Jason North.
Ainda não consegui encontrar nenhum outro detalhe sobre eles com as informações que eu tenho.
A maioria das informações aqui já tinham sido abordadas seguindo o relato do tempo em que Agnes morou na Hill Top Road, mas o Martin conseguiu entrar em contato com o Sr. Barnabas por e-mail. Aparentemente, ele está muito melhor nos últimos anos desde que prestou seu depoimento, depois de fazer algumas cirurgias plásticas razoavelmente bem-sucedidas. Ele não conseguiu fornecer muito mais informações do que as já citadas, mas quando Martin perguntou se Agnes tinha mencionado alguma coisa sobre sua infância, ele se lembrou dela brevemente dando a entender que era adotada.
Tim também entrou em contato com Deliah Aconjo, que confirmou o que suspeitávamos: a mulher conhecida como Agnes Montague havia visitado a Cafeteria Canyon por uma década e meia, aparentemente sem envelhecer um dia.
Agora tô convencido de que essa é a mesma Agnes que cresceu na Hill Top Road, embora exatamente o que ela é ou por que ela aparentemente mantivesse sua juventude, continue sendo um mistério. Como todo o resto por aqui. Ainda assim, ela tá morta, assim como Diego Molina. Só espero que isso os impeça de continuar causando mais problemas.
Fim da gravação.
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ELIAS
John, não tem nada lá embaixo.
ARQUIVISTA
Não, isso não é verdade — eu te contei o que aconteceu.
Elias: Você me disse que vagou no escuro por horas a fio pouco depois de sofrer uma experiência incrivelmente traumática.
Arquivista: Então você tá dizendo que eu imaginei coisas.
Elias: É uma possiblidade. A outra possibilidade é que tem algo muito perigoso lá embaixo. Nenhuma das duas me deixa particularmente tentado a destrancá-lo.
Arquivista: Então o que você planeja fazer sobre isso? Enviar outra pessoa?
Elias: Nós realmente não temos o orçamento pra isso.
Arquivista: Então, nada. Você simplesmente vai deixar pra lá.
Elias: Por enquanto, eu acho que é melhor assim.
Arquivista: Por favor, Elias, eu preciso saber.
Elias: Você realmente acha que isso vai ajudar?
Arquivista: Sim. Sim, tá ficando cada vez mais difícil trabalhar lá sem ter certeza do que tem embaixo de mim. Então, ou você me dá a chave ou procura um Arquivista novo.
Elias: Ah, pelo amor de Deus, não seja tão dramático, John. Você sabe como seria difícil te substituir.
Arquivista: Não sei, na verdade. Mas... obrigado, eu acho.
Elias: Vou fazer uma cópia pra você com uma condição: tenha cuidado. Chega de aventuras subterrâneas imprudentes, entendido?
Arquivista: Claro, claro. Entendido.
Elias: E pelo amor de Deus, durma um pouco.
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arquivosmagnusbr · 1 year ago
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MAG066 — Retido Na Alfândega
Caso #0002202: Depoimento de Vincent Yang a respeito de seu suposto aprisionamento por Mikaele Salesa.
Ouvir em: Spotify | Youtube
Aviso de conteúdo: claustrofobia
Tradução: Lia
ARQUIVISTA
Depoimento de Vincent Yang a respeito de quando foi supostamente aprisionado por Mikaele Salesa.
Depoimento original prestado em 22 de fevereiro de 2000. Gravação de áudio por Jonathan Sims, arquivista chefe do Instituto Magnus, Londres.
Início do depoimento.
ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Ele me drogou. Ele obviamente me drogou, essa é a única explicação plausível. Era o único jeito de ele conseguir me colocar lá dentro, e as drogas podem afetar a forma como a gente enxerga as coisas, até mesmo o tempo.
É só que... pareceu tão real. Eu senti cada segundo daquilo, e eu olhava meu relógio e... mas eu já usei todo tipo de droga na minha vida, experimentei vários psicodélicos quando era jovem, e aquilo não foi como estar drogado. Parecia que eu tava sendo engolido. Não, não engolido... sepultado.
A culpa foi dele. Eu já trabalho na alfândega há bastante tempo e todo mundo lá sabe o que fazer — ele também deveria saber. Você barra os desleixados, barra aqueles que você acha que podem estar envolvidos com o que quer que os chefes estejam de olho naquele mês, mas a maioria dos contrabandistas são peixes pequenos. Se mantiver seus papéis em dia nós não vamos ficar no seu caminho, contanto que você também seja legal com a gente.
Eu sabia que Mikaele Salesa passava por Portsmouth o tempo todo. Eu nunca tratei com o cara diretamente, mas ele deveria ter deixado os documentos dele em ordem. Do jeito que tava, eu tive que barrar o carregamento dele. Não tínhamos motivos suficientes pra fazer uma revista completa na hora, deixei isso claro pra ele, mas se ele não colocasse os papéis em ordem logo, não teríamos outra opção.
Eu ainda lembro de como ele me encarou, parado naquele contêiner de carga cercado por maletas de transporte e caixas de metal lacradas. Aquele olhar intenso. Ele tava me avaliando como se eu fosse algum tipo de antiguidade. Como se ele estivesse curioso sobre qual seria o meu valor num leilão. Então seu rosto se contorceu numa expressão de irritação e ele gesticulou dramaticamente pra sua carga, me oferecendo a oportunidade de examiná-la, já que eu achava que ele era criminoso.
Sua voz era profunda, calma e contida, mas seus olhos carregavam uma raiva que me dava medo. Olhei em volta pro contêiner, não tanto para ver o que tinha lá, mas só pra desviar o olhar do dele.
Verdade seja dita, eu odiava meu trabalho. Você cansa de ser alguém que ninguém quer ver. Contrabandistas e traficantes me odeiam porque eu sou uma ameaça pros negócios, eu entendo isso — mas os operadores legítimos me olham exatamente do mesmo jeito porque sabem que um erro na lista de carga pode ser muito mais grave do que eles terem 2 quilos de heroína escondidos no porta-malas de um carro importado.
Comecei a andar por lá, examinando superficialmente a variedade de caixas diferentes ao redor de Salesa. Eu não abri nenhuma — eu não queria abrir. Eu só queria fazer uma pequena demonstração do fato de que eu poderia. Era 18 de janeiro, mais ou menos um mês atrás, e o contêiner tava congelando. Pra mexer com as fechaduras e travas eu precisaria tirar as luvas, e isso não aconteceria.
Salesa estava lá vestindo uma regata e uma camisa desabotoada, aparentemente alheio ao frio. Se ele tava tentando mostrar que era durão, então, pra ser sincero, tava funcionando. Eu não tinha interesse nenhum em entrar no caminho daquele homem.
Mas o mais importante ali era o fato de que antiguidades contrabandeadas estavam tão abaixo na lista de prioridades naquele momento que, do ponto de vista profissional, ficar me abaixando pra olhar uma mala de viagem cheia de cerâmicas incorretamente listadas era uma completa perda de tempo.
Suspirei, me levantei e, quando fiz isso, acabei me apoiando na borda de um caixote de madeira velho. Senti a tampa se mover ligeiramente com o puxão. Olhei um pouco mais de perto e não pude deixar de notar que ele não parecia ter parafusos ou travas e a tampa claramente não tinha sido pregada.
Eu me inclinei para tentar deslizá-la de volta pro lugar, mas minha mão enluvada escorregou e, quando tentei segurar, juro que eu mal toquei naquela coisa, mas a tampa de madeira deslizou mais, liberando uma nuvem de ar empoeirado que me fez ter uma crise de tosse. O ar era seco e quente de um jeito que parecia bem alarmante naquele contêiner gelado. O interior do caixote estava escuro, a luz da entrada não chegava até ali. Acendi minha lanterna e, pra minha surpresa, o caixote parecia estar completamente vazio. Não me lembrava de ele aparecer na lista de carga, mas se não levava nada dentro, não tinha necessariamente motivo pra estar lá.
Eu me virei pra encarar o Salesa e dei de ombros. Ele não parecia mais estar irritado. Em vez disso, seu rosto agora tinha um olhar de preocupação. Presumi que ele tivesse ficado preocupado de eu ter encontrado algo suspeito, mas balancei a cabeça e disse a ele que, se ele colocasse seus documentos em ordem até amanhã, poderia seguir caminho sem problemas. Caso contrário, ficaria mais complicado. A expressão no rosto dele não mudou.
Comecei a sair de lá, ainda tinha muito mais trabalho pra fazer naquele dia, quando ele agarrou meu braço. O aperto dele era tão forte quanto parecia e, por um segundo, de repente, fiquei com medo de que ele me matasse. Em vez disso, ele me olhou nos olhos por um longo momento antes de dizer baixinho: “não durma”.
Balancei a cabeça, assumindo que aquilo era pra ser algum tipo de ameaça, e lancei a ele um olhar tentando demonstrar que eu não tava com medo. Claro que eu tava, mas de qualquer forma ele não pareceu notar. Ele só olhou pra mim e repetiu o que tinha dito.
Eu fiquei compreensivelmente nervoso depois daquele pequeno encontro, mas moro num apartamento no térreo em uma área bem perigosa, então eu tenho várias fechaduras, uma porta resistente e grades na janela, todas as quais eu chequei três vezes antes de ir pra cama naquela noite. Tudo parecia estar em ordem, então tomei algumas doses de vodca pra acalmar os nervos e, bem, fui dormir.
Pensando nisso agora, a coisa que eu acho mais difícil de acreditar é o quão bem eu dormi. Foi uma noite de sono tranquila e eu não tive sonhos. A dor nas pernas foi o que me acordou. A cãibra me arrancou lentamente do sono e eu tentei colocar as pernas em uma posição mais confortável sob as cobertas.
Quando tentei, aos poucos percebi que não conseguia. Elas estavam pressionadas contra uma superfície dura. Meus olhos começaram a se abrir e percebi que, em vez do travesseiro, meu rosto estava pressionado contra algo áspero e rígido. Algo que, quando tentei me mexer, me cumprimentou com a rigidez de farpas pontiagudas.
Estava escuro. Abrir os olhos não fez muito pra mudar o que eu conseguia enxergar. Minhas mãos pressionaram a madeira sem verniz e senti o pânico crescer no fundo da minha mente. Acho que no fundo eu já sabia exatamente onde eu tava, mas eu ainda tentava — de forma constante, um de cada vez — mover cada membro do meu corpo, esperando desesperadamente que um deles encontrasse o ar livre e me tranquilizasse de que eu não tava preso dentro daquele pequeno cubo de madeira. Mas eu mal conseguia mover nenhum deles e logo ficou claro que minha prisão era, de fato, um caixote de madeira robusto.
Aí eu comecei a gritar por socorro. O som era desafinado, o eco abafado pelas paredes próximas, e meus gritos soavam incrivelmente altos pra mim. Eu gritei várias vezes, mas ninguém apareceu. Depois de alguns minutos, de repente me ocorreu o pensamento horrível de que talvez eu tivesse sido enterrado vivo e pudesse ter uma quantidade limitada de ar. Isso me fez calar a boca bem rápido e, em vez de gritar, comecei a ouvir atentamente, procurando qualquer som de movimento. Nada.
Sabe o que é estranho? Eu demorei bastante tempo pra fazer a conexão com o caixote que eu tinha mexido no contêiner do Salesa. Eu fiquei tão desorientado quando acordei que a ideia de que aquilo era obra dele levou um tempo surpreendentemente longo pra me ocorrer. Mas quando me toquei, comecei a sentir a raiva crescendo. Eu me lembrei da tampa que não tava bem fechada e, tirando um momento pra pensar direito, comecei a empurrar a madeira diretamente acima de mim.
Ela não se moveu nem um milímetro. Ou tinha sido pregada ou alguém tinha colocado alguma coisa pesada em cima dela, ou os dois. Comecei a me debater naquele momento, desesperado pra sair dali, mas isso só me rendeu mais farpas.
Acho que eu tive sorte por ser inverno. O pijama grosso que eu tinha usado pra dormir, que aparentemente eu ainda tava usando, me protegeu de muitas delas. Quando lembrei do inverno, comecei a notar o calor. Tava quente naquela cela minúscula, um calor abafado e asfixiante que fazia o suor escorrer suavemente pelo meu pescoço e minha garganta ficar gradualmente áspera e seca.
Eu não podia fazer nada além de ficar deitado ali, espremido e desesperado e sentindo aquele calor sufocante e opressivo ao meu redor.
Tudo naquilo era sufocante e opressivo. Eu nunca sofri de claustrofobia antes, mas não demorou muito pra ela tomar conta e, por um tempo, cedi ao pânico total, murmurando pra mim mesmo e hiperventilando com respirações curtas e entrecortadas naquele ar quente e pegajoso.
O que finalmente me tirou disso foi perceber que, se eu tava respirando com tanta dificuldade e por tanto tempo, mas ainda tava consciente, isso devia significar que havia um fluxo de ar e que eu não tava completamente enterrado vivo. Mas aquele súbito momento de alívio terminou abruptamente porque eu juro ter sentido a caixa ficar menor.
Foi um movimento leve, só um centímetro, mas eu senti com uma pontada de dor ao longo da minha perna. Como se o caixote quisesse me punir pelo meu momento de esperança. Depois de um tempo, as cãibras que no começo eram tão angustiantes começaram a desaparecer e reaparecer. Não é que tenha parado de doer, longe disso. Mas se tornou uma dor tão constante que eu conseguia ignorá-la por longos períodos de tempo antes que ela voltasse de repente, como se meus músculos estivessem gritando.
Foi em um desses momentos de clareza que eu percebi que conseguia ver meus braços. Tinha luz. Parecia estar se infiltrando através das pequenas frestas na madeira, mal o suficiente pra enxergar normalmente, mas meus olhos estavam muito acostumados com o escuro. Parecia a luz do sol. Eu devia estar do lado de fora, mas não fazia ideia de onde poderia estar.
Perto da minha cabeça, um espaço um pouco maior entre as ripas de madeira deixava entrar um fino feixe de luz solar. Eu me mexi, meu pescoço protestando contra o movimento, mas por um único momento eu senti ela no meu rosto. Aquela luz do sol, o sonho da liberdade. Então o caixote fechou a fresta com um tremor e me apertou um pouco mais por ousar fazer isso.
Ainda assim, eu sabia que estava do lado de fora e sabia que tinha ar, então tentei mais uma vez gritar por ajuda. Implorei, gritei, senti meus lábios secos se racharem com a força dos meus gritos. Continuei até que minha voz não passasse de um sussurro rouco e aí desabei de volta no desespero e terror.
Às 11:56 percebi que conseguia ver meu relógio. Eu não tinha o costume de tirá-lo quando ia me deitar, e a posição em que me colocaram o deixava quase visível na luz fraca. Era surpreendentemente pouco reconfortante, já que as horas que tinham passado num borrão de dor e medo agora passavam terrivelmente devagar.
Mesmo assim, ele me manteve ancorado, focado em algo real. Os minutos e horas passavam da mesma forma que passariam fora da caixa, e isso, mais do que qualquer outra coisa, me convenceu de que eu não tava sonhando ou ficando louco.
Às 9:45, a luz começou a desaparecer e eu fiquei na escuridão mais uma vez. Então eu dormi, agitado e com muita dor, e quando acordei e percebi que ainda tava preso lá, eu chorei. Mesmo enquanto chorava, no fundo da minha mente eu me odiava por desperdiçar toda a água que ainda tinha sobrado em mim.
Eu tava lá há quatro dias, pelo menos se a escuridão e a luz realmente significassem noite e dia. Eu costumava ser religioso e tentei rezar várias vezes, mas as palavras pareciam vazias em meus lábios secos e desesperados. Clamei a Deus, depois ao diabo e, finalmente, ao próprio Salesa. Nenhum deles respondeu.
Eu sabia que ia morrer ali, preso e sozinho. Fiquei me perguntando se algum dia me encontrariam. Será que eu estava em algum lugar onde o fedor da minha podridão poderia levar algum pobre coitado a investigar? Provavelmente não, já que meus gritos não podiam ser ouvidos, mas talvez alguém me encontrasse. Talvez ele se juntasse a mim, se a caixa ainda estivesse com fome.
Eram pensamentos como esses que passavam incessantemente pela minha cabeça, girando e girando como um carrossel febril e sedento. Então, de repente, tudo acabou. Acordei ouvindo os sons da madeira se mexendo acima de mim. Mal tive tempo de registrar o que tava acontecendo antes que o ar gelado tomasse conta de mim e a luz da lanterna brilhasse no meu rosto.
Pisquei com força começando a distinguir duas figuras acima de mim. Um era o Salesa, olhando pra mim com uma expressão de curiosidade. O outro eu não conhecia, embora o reconhecesse vagamente como um dos capitães que aportavam ali de vez em quando. Capitão Larell, talvez? Ou Lukas? Não lembro direito.
Ele olhou pra mim, depois pro Salesa, deu de ombros e entregou uma nota de 20 libras pra ele antes de se virar e sair do contêiner, onde eu vi que estava de novo.
Salesa me tirou delicadamente da caixa, e eu percebi que ele tomava cuidado pra não tocar nas laterais. Mover as pernas era como andar sobre facas, mas eu consegui sair cambaleando, eufórico com a minha liberdade. Senti o Salesa colocar alguns papéis nas minhas mãos. Uma lista de carga atualizada, ele disse, e me mandou embora.
Passei aquele dia tentando recuperar um pouco do sentido nos meus músculos torturados e atrofiados e bebendo água devagar. Ignorei completamente meu trabalho e terminei o dia entregando minha carta de demissão.
Você sabe qual era a data na minha carta de demissão? Dia 19 de janeiro — um dia depois de eu ter visto o Salesa pela primeira vez. Meu relógio não batia mais com o relógio da sala de descanso. Eu não sei por que a noite foi muito mais longa pra mim, ou por que o sol tinha me cozinhado no meio do inverno.
Eu devo ter sido drogado. O Salesa deve ter me drogado. É a única explicação racional. Mas eu sei que ele não fez isso.
ARQUIVISTA
Fim do depoimento.
Outra história do inacessível Mikaele Salesa lidando com todos os tipos de artefatos sem nenhuma medida de segurança decente. A menos que seja esse o ponto, é claro.
E, se eu não me engano, parece que ele pelo menos conhece o capitão Peter Lukas do Tundra. Seja qual for o esquema, o Salesa definitivamente tá envolvido. Eu só queria saber se ele é um participante ou um peão... ou algo completamente diferente.
Surpreendentemente, parece que os registros detalhados da remessa são mais difíceis pro Tim conseguir flertando do que os relatórios policiais, e a Sasha também teve problemas ao tentar acessar os registros eletrônicos. Se existir alguma documentação oficial dessa remessa em particular que possa confirmar a história do Sr. Yang, não conseguiremos obtê-la.
O Martin encontrou um problema diferente ao rastrear o próprio Sr. Yang. Aparentemente, ele tá aposentado agora e morando com os filhos, que foram surpreendentemente cooperativos ao permitir que o Martin falasse com ele. Ele também está nos estágios finais da doença de Alzheimer de início precoce. Ele não conseguiu dar nenhuma informação nova e útil, e o Martin foi embora depois que o Sr. Yang ficou muito angustiado com a menção de caixas.
Resumindo, um beco sem saída. Se essa fosse a primeira vez que Mikaele Salesa aparecesse nos nossos arquivos, eu definitivamente concordaria com a própria avaliação do Sr. Yang, mas agora tem muitos casos pra serem atribuídos a drogas.
Qualquer que seja o negócio do Salesa, eu suspeito que é infinitamente mais perigoso.
Fim da gravação.
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ARQUIVISTA
Complemento.
O notebook da Gertrude tem sido bastante... interessante. Infelizmente, nada parecido com "Meu Assassino.avi". Ela não tinha nenhum tipo de diário, pelo que eu posso ver. Na verdade, parece que ela não guardava muitos documentos. Algumas planilhas de orçamento e formulários de trabalho, mas tenho a sensação de que ela não era muito de anotar coisas.
O que chamou atenção na planilha de orçamento foi a quantia bem alta que ela solicitou pra viajar. O que é ainda mais estranho é que parece que o orçamento foi aprovado.
O histórico de internet e e-mails dela revelaram mais algumas informações pertinentes. Parece que ela viajou muito, pelo mundo todo, muito além do porão onde se esperaria que um arquivista ficasse. E nesses casos, ela pelo menos guardava os recibos e as informações de reservas. Nairobi, Wichita, Budapeste, Xangai – a lista continua. Não tem nenhum registro desde 1998, claro, mas dado o padrão, não acho que uma viagem a Alexandria tenha sido tão impossível.
Tem também a questão dos produtos que ela tava encomendando. Existem vários pedidos online de gasolina, fluido de isqueiro, pesticidas e lanternas de alta potência. Eles eram esporádicos mas notáveis, já que ela não dirigia, fumava ou trabalhava no controle de pragas. As lanternas fariam sentido se não fosse pelas quantidades que ela encomendou. Ela também fez pedidos de uma variedade impressionante de pastas de arquivamento, etiquetas e marcadores de índice de diferentes marcas, formatos e sistemas, a maioria dos quais encontrei de vários jeitos nos arquivos.
Já que a ideia de uma senhorinha caduca agora foi totalmente pro ralo, não posso deixar de pensar se existe uma razão pra ela ter mantido os arquivos em desordem. Acho que ela não aprovaria meus esforços pra organizá-los.
Parte de mim tá tentada a seguir o exemplo dela e suspender as minhas explorações, mas quanto mais eu descubro sobre a Gertrude, menos inclinado estou a confiar nela, e não acho que imitá-la seja a decisão mais sábia. Especialmente considerando as três compras mais preocupantes que encontrei no histórico dela.
Gertrude Robinson estava tentando comprar Leitners. Ver o nome da conta "gratadebiblioteca1818" me tirou uma risada particularmente sem humor. Fica óbvio quando você já tá procurando, eu acho.
Parece que ela conseguiu arranjar três livros: uma impressão especial de As Sete Lâmpadas da Arquitetura, de John Ruskin; aquela cópia bem duvidosa de A Chave de Salomão; e um panfleto de 1910 simplesmente intitulado "Um Desaparecimento". Tenho quase certeza de que nenhum deles tá nos arquivos e também não estavam no apartamento dela. Espero que ela os tenha destruído, principalmente porque A Chave de Salomão é um tipo de almanaque sobre demonologia, mas eu não sou tão sortudo assim.
Resumindo, o notebook me deu muitos motivos pra me preocupar e poucas evidências concretas. Quanto mais eu descubro sobre a Gertrude, mais respeito tenho por ela e mais me preocupo com seus objetivos.
Talvez eu esteja focando na pergunta errada, e o mais importante não é quem a matou, mas por quê.
Fim do complemento.
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arquivosmagnusbr · 1 year ago
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MAG065 — Binário
Caso #0170701: Depoimento de Tessa Winters, a respeito de um programa de computador estranho que ela baixou na Deep Web três meses atrás.
Ouvir em: Spotify | Youtube
Aviso de conteúdo: horror corporal, automutilação
Tradução: Lia
ARQUIVISTA
Você tá bem?
TESSA
Sim, é só... seu gravador. É velho.
Arquivista: Eu ouço muito isso.
Tessa: Quer dizer, eu estive pensando sobre o “analógico” e o “digital”... o que queremos dizer com isso?
Arquivista: No sentido da informação...?
Tessa: É. Usamos a palavra “digital” pra nos referirmos a uma forma específica de armazenar informações, valores de sinais discretos interpretados em níveis pré-estabelecidos. "Analógico" é só um jeito chique de dizer "todo o resto".
Arquivista: Eu, hum...
Tessa: Quase tudo no mundo é analógico, mas nós somos obcecados com o digital. Tentamos entregar tudo pra ele, fragmentar o mundo e deixar tudo o mais binário possível. Mas não é a mesma coisa. Eu trabalhava com programas de OCR, ensinando computadores a ler, a pegar a bagunça física da palavra escrita e convertê-la em algo que um computador consegue entender no formato digital.
Arquivista: Eu não sei o que isso tem a ver com o meu gravador.
Tessa: Fita magnética. Todo mundo acha que é analógico, mas é digital. Uma versão de tecnologia inferior à que usamos agora, mas as pessoas esquecem que ela era usada pra armazenar dados computadorizados por décadas. Talvez ela lembre as pessoas de um rolo de filme, ou talvez a nostalgia faça tudo ser analógico.
As pessoas sempre acham que o digital não tá mesmo presente, mas a verdade é que a informação tá sempre fisicamente presente. Ela não existe como uma forma vazia. Mesmo dentro dos sistemas de armazenamento mais avançados e minúsculos, as células de memória física mudam e se alteram pra renderizar essa informação em uma linguagem própria.
Acho que não dá pra chamar isso de linguagem, não de verdade, porque a linguagem como nós a usamos tá bem longe do digital. Podemos chamar de palavras, mas as unidades de dados com as quais um computador trabalha são, por natureza, discretas e definidas, enquanto as palavras que usamos são bagunçadas e vagas, sempre sujeitas ao capricho da interpretação e do tempo.
É meio óbvio dizer que um computador não pode sentir, mas é verdade. Uma sequência de uns e zeros não chega nem perto de replicar toda a complexidade química e, cê sabe, os nervos de um ser humano. Ou de qualquer outro animal, na real. Nada na humanidade é binário.
Arquivista: C-Certo... Então você trabalha com computadores.
Tessa: Desculpa, eu... já faz um tempo que não falo com ninguém pessoalmente. Tenho passado muito tempo na minha cabeça, sabe? Acabo só tagarelando quando tenho a chance. Eu tenho um blog, na verdade, mas não posto nada lá há quase um ano. Praticamente sinto vergonha pra fazer isso, agora... Considerando que eu não esteja ficando louca, claro.
Arquivista: Sim, eu ouço muito isso também.
Tessa: Bom, é isso que é assustador, né? Sua mente é tudo o que você é — não existe backup ou uma reiniciação caso alguma coisa dê errado. Não tô falando só da loucura como ela se manifesta externamente, mas também o que ela representa internamente. Do jeito que as pessoas falam é como se devêssemos pensar que nossa mente é tudo o que percebemos, tudo o que somos. Isso significaria que nós nunca saberíamos dizer se estivéssemos perdendo a cabeça. Mas eu não acho que seja assim.
Ou talvez, lá no fundo, em algum lugar, você entenda o que tá acontecendo com você e... não. Não sei qual opção me assusta mais.
Arquivista: Uh, olha, eu não quero te apressar...
Tessa: Tenho vários amigos que basicamente planejam se aposentar transferindo suas mentes pra um computador e viver pra sempre num mundo virtual. Eles têm tanta certeza de que isso tá logo aí. Nunca tive coragem de dizer pra eles que isso é impossível, que o cérebro humano é uma bagunça pegajosa de interpretações de sinais analógicos que estão bem longe das lógicas claras do processamento digital.
Nós nos enganamos pensando que computadores e pessoas têm alguma coisa em comum? Mas não importa o quão bem nós programemos eles pra fingirem pensar como nós, isso é o máximo que eles podem fazer. Cruzar a linha do que é feito de carne e produtos químicos pra sistemas puramente digitais é impossível. E todo o resto é só uma programação sofisticada e uma ilusão.
Arquivista: Bom, isso é fascinante, senhorita Winters, mas vou pedir com todo o respeito pra você começar o seu depoimento.
Tessa: O que você acha que eu tava fazendo?
Arquivista: Geralmente nós trabalhamos com os detalhes de incidentes sobrenaturais, suas origens e manifestações.
Tessa: Eu tô te dando contexto.
Arquivista: Certo... Nesse caso, eu ainda preciso fazer as observações oficiais. Depoimento de Tessa Winters, a respeito de um programa de computador estranho que ela baixou na Deep Web três meses atrás. É isso?
Tessa: Há. Bom, em primeiro lugar, eu não encontrei na “Deep Web”. Meu Deus, é como se eu estivesse falando com o meu avô. Deixa eu explicar uma coisa rapidinho: toda vez que alguém começa a falar sobre a "Deep Web", ou ainda melhor, a "darknet", é bem provável que essa pessoa não saiba nem o que é uma VPN. Não existe nenhum submundo secreto e sinistro na internet onde, com as senhas certas e palavras de duplo sentido, você pode se infiltrar num mercado negro de assassinos, chefes do tráfico e fóruns secretos. É só que em alguns sites nós precisamos ter um pouco mais de cuidado com a segurança, e você precisa usar o... você sabe, o software certo, pra não acabar sendo monitorado. Quer dizer, sim — tem coisas de drogas lá, mas na maioria dos casos são só nerds paranoicos que não querem ser pegos pirateando o Photoshop.
Arquivista: Anotado. Gravado diretamente da indivídua em 7 de janeiro de 2017. Início do depoimento.
TESSA (DEPOIMENTO)
Você já ouviu falar de Sergey Ushanka? Acho que não. Ele é uma das histórias de terror da internet menos conhecidas, e você não parece ser um usuário regular das comunidades sobre chatbot ou rede neural.
A história se passa em mais ou menos 1983, durante o primeiro boom dos computadores pessoais. Existia um programador chamado Sergey Ushanka — não sei se esse é o nome verdadeiro dele, provavelmente não... um ushanka é um tipo de chapéu russo peludo, e ele provavelmente nunca existiu, mas diziam que ele era um verdadeiro gênio digital.
Bom, de acordo com a história, ele... ele ficou doente. Na maioria das versões é câncer no cérebro, mas alguns dizem ter sido Alzheimer de início precoce ou algum tipo de infecção cerebral não diagnosticada. A questão é que isso estava matando ele e afetava seu cérebro.
Sergey não queria morrer, a ideia da morte o aterrorizava, e seja lá o que estivesse corroendo sua mente deu a ele a ideia de tentar salvar sua consciência, de fazer o upload de seu cérebro.
Bom, a próxima parte depende do quão macabra é a versão da história que te contam.
Em algumas versões, ele gasta uma fortuna e cada último segundo do seu último mês de vida tentando desesperadamente codificar sua própria mente no sistema e acaba morrendo em cima do teclado, com os dedos em decomposição ainda digitando os últimos pedaços de si mesmo.
Tem outras versões um pouco mais grotescas. Um código escrito com o próprio sangue dele alimentando a máquina. Eu até ouvi uma em que ele adotou uma abordagem mais direta, removeu a carcaça do computador, cortou o topo do crânio e, usando suas últimas forças, impossivelmente enfiou seu próprio cérebro morto diretamente nos circuitos.
Seja qual for a versão que você ouça, a história diz que realmente funcionou, e a polícia encontrou um monte de disquetes cheios de códigos impossíveis ao lado do corpo mutilado de Sergey Ushanka.
Com certeza você já adivinhou o que vem depois. Primeiro em disquetes, depois mais tarde em CDs, e eventualmente baixado diretamente. Sergey Ushanka é uma pegadinha pra pessoas que gostam de codificar analisadores de texto e chatbots. Ela não é tão diferente de vídeos de susto, só muito mais lenta e, idealmente, mais sutil.
Você cria um programa que parece ser uma janela de bate-papo com um estranho que se identifica como Sergey. As respostas precisam ser as mais naturais possíveis no começo, e nos melhores é difícil perceber que você tá conversando com um bot nos primeiros minutos.
Mas então as respostas começam a oscilar, ficando cada vez mais sinistras e falando sobre quanta dor o Sergey tá sentindo. Eventualmente, a única resposta que o bot continua te dando são gritos e pedidos pra ser libertado. A ideia é que o chatbot seja a mente de Sergey Ushanka e ele não goste tanto de estar no computador quanto esperava gostar. Se for bem-feito, pode ser realmente bem perturbador.
Mas os únicos dois detalhes que aparecem em todas as versões são uma imagem específica e bem pixelada de um rosto gritando e a frase “os ângulos me cortam quando eu tento pensar”, que marca o começo da loucura do bot. Bom, até onde eu sei, essas duas coisas têm aparecido desde as primeiras versões de Sergey Ushanka.
Como eu disse, é uma lenda bem nichada, mas dentro de certas comunidades todo mundo já tentou fazer um Sergey Ushanka pelo menos uma vez. Bom, até eu tentei já tentei fazer um algumas vezes e eu nem sou dessa área. Já fiz alguns projetos com redes neurais básicas, mas eu nunca tinha experimentado um chatbot e acabei desistindo depois de algumas horas. Eu amava. Essa história tinha exatamente tudo que eu gostava misturando terror e nerdices, e se eu ficasse vendo vídeos de fantasma no YouTube às 4:00 da manhã, geralmente eu acabava indo atrás de uma nova versão dele.
Então, quando eu recebi uma notificação do grupo de bots do qual eu participo e era só um link pra um arquivo chamado “Desespero de Ushanka.exe”, não pensei duas vezes. Eu baixei na mesma hora. Foi meio decepcionante ver que era um arquivo minúsculo com pouco mais de um megabyte. Isso era um sinal de que talvez o bot não fosse tão bom, mas eu ainda tava ansiosa pra testar mais tarde naquela noite, quando o ambiente estivesse mais no clima.
Olhei o post de novo e vi que embaixo tinham vários comentários avisando ao postador que ele tinha postado um link quebrado. Não liguei pra isso na hora, mas pensando agora, acho que eu provavelmente fui a primeira pessoa a clicar no link e a única pra quem ele funcionou. Só fui azarada, eu acho.
Acabei esquecendo dele por um tempo, mas não tinha nada programado pro dia seguinte, então passei a maior parte da noite bebendo e mexendo na internet. Era mais ou menos duas da manhã quando lembrei do que tinha me esperando nos meus downloads. Olhei pra rua escura e vazia lá embaixo e um arrepio agradável percorreu minha espinha. Decidi que tava no clima perfeito pra bater um papo com Sergey Ushanka.
Ao abrir o programa, uma janela de bate-papo apareceu. Não era como a maioria das outras que eu já tinha visto — parecia mais uma brincadeira de chat à moda antiga, só com uma linha piscando pra indicar onde digitar o texto, branco num fundo preto. Tirando isso, a janela estava vazia.
Eu não sabia muito bem o que fazer já que geralmente o bot mandava a primeira mensagem, então decidi começar com o básico: "olá". Não tinha como o bot não ter uma resposta programada pra isso.
Eu esperei, mas aparentemente ele não tinha nenhuma resposta. Não tinha problema. Muitas vezes essas coisas eram programadas com tempos de espera pra darem a impressão de estarem pensando ou digitando uma resposta. Depois de mais ou menos uns 15 segundos, eu já tava quase decidindo que ele não funcionava e o fechando quando a resposta veio.
Foi sem sentido — só uma confusão de símbolos e letras, como se estivesse usando os caracteres errados. Alguns deles nem eram ASCII. Mas eu não tive nem tempo de realmente processá-los porque eles estavam sendo gerados muito rápido e logo preencheram a tela inteira.
Eles também não ficavam parados — eles mudavam e se deslocavam, e isso vai soar estranho e foi só por um momento, mas eu poderia jurar que vi alguns dos símbolos se contorcendo? Como se estivessem sentindo dor?
Olhar aquilo estava fazendo meus olhos doerem e eu comecei a me sentir tonta, mas eu não conseguia desviar o olhar.
Mesmo assim, pensei que tava só olhando pra uma pegadinha de terror muito bem-feita, principalmente quando eu comecei a notar algumas palavras em inglês aparecendo na janela de texto frenética, uma ou duas por segundo. Uma delas dizia "ajudaajudaajuda", todas juntas, e outra, "despedaçando minha mente como facas".
Minha boca estava seca e minhas mãos tremiam mas, mesmo assim, tudo o que eu conseguia pensar era em como aquilo tava bom. Fiquei genuinamente impressionada com o quão perturbada ele tava me deixando.
Foi a ventoinha do notebook que finalmente me trouxe de volta à realidade. Aos poucos eu percebi que ela não estava mais emitindo seus zumbidos normais. Ela tinha mudado pra um som mais áspero, menos saudável, como se estivesse tentando desesperadamente expelir o ar. Parecia alguém expirando com pulmões doentes, empurrando e forçando e nunca parando pra inspirar nenhum ar de volta.
Foi só nesse momento que a possibilidade de aquilo ser um vírus me ocorreu. Eu não sabia como ele faria as ventoinhas do meu notebook soarem daquele jeito, mas meu computador não estava funcionando bem. Tentei sair do programa e, previsivelmente, ele não fechava. Então eu forcei o desligamento na intenção de dar uma olhada nele pelo modo de segurança.
Como esperado, as luzes apagaram e o barulho da ventoinha parou, mas o texto branco na tela não sumiu.
Agora, isso eu sabia que era impossível. Ou talvez tivesse algum jeito de manter aquilo congelado na tela quando o computador fosse desligado, mas fazer ele continuar mudando e se transformando quando claramente não tinha energia nenhuma passando por ele? Bom, se é possível, eu não sei como.
Mais palavras surgiam e sumiam: "você queria conversar" e "oioioioioi", de novo e de novo.
Então, de repente, a tela foi preenchida com uma imagem. Tinha um ruído, tipo o de uma webcam muito antiga, e a câmera parecia estar em cima de uma mesa apontando pra um homem careca. Ele parecia ter mais ou menos uns 30 anos, eu acho, e estava sem camisa, com o rosto congelado de dor ou angústia. Aí ele se mexeu e eu percebi que estava assistindo a um arquivo de vídeo.
O homem estava chorando. Não tinha som, mas eu pude ver grande soluços que faziam seu corpo todo estremecer. Ele olhava pro monitor de computador, cuja borda eu quase conseguia ver. Ele parecia estar sentado no escuro e seu rosto estava iluminado apenas pela tela à sua frente. Eu assisti com um pavor crescente enquanto o vídeo continuava. Ele se inclinou sobre o que eu presumi ser o teclado, mas ele não parecia estar digitando.
Em vez disso, houve um movimento brusco repentino e ele ergueu a mão pra revelar uma das teclas que aparentemente havia arrancado. Ele a levou até a boca e começou a comê-la. Eu quase conseguia distinguir o estalo da mandíbula dele enquanto o plástico duro se estilhaçava entre seus dentes. E quando ele estendeu a mão pra pegar a próxima, pude ver um fio de sangue escorrendo de seus lábios.
Bom, isso foi mais do que o suficiente para mim. Fechei o notebook com força e o empurrei. Decidi que o que quer que estivesse acontecendo poderia esperar até o dia amanhecer, acendi todas as luzes do meu quarto, me sentei em uma poltrona e bebi até desmaiar, tentando não pensar em Sergey Ushanka.
Não sei quanto tempo eu dormi, mas não deve ter passado mais de uma ou duas horas, já que ainda estava totalmente escuro quando fui acordada por um estalo estridente e crocante. Abri os olhos e vi a tela da minha TV ligada. Ela mostrava o mesmo vídeo, o azul granulado desbotado tornando os detalhes quase impossíveis de distinguir, mas agora tinha ruído vindo dos meus alto-falantes. Eu conseguia ouvir ele mastigando e engolindo as teclas enquanto as arrancava uma por uma.
Tentei pensar em como o programa poderia ter pulado do meu notebook pra minha TV, que não estavam conectados por fios nem pela rede. A única coisa que eles tinham em comum era o roteador e aquilo não fazia nenhum sentido, a menos que alguém estivesse pregando uma pegadinha muito elaborada e horrível exclusivamente em mim. E eu não sou a pessoa mais legal do mundo, mas... Eu nunca irritei ninguém tanto assim.
Durante o tempo que eu levei tentando entender aquilo, o vídeo continuava passando. A respiração do homem estava pesada e dolorosa, e ele falava, murmurava pra si mesmo, ou talvez pra mim. Não tinha como saber.
Eu não conseguia distinguir muita coisa com a bagunça que ele fazia na boca dele, e o que eu conseguia ouvir, eu não entendia. Ele falava algo do tipo "é como pensar através de uma fatia de queijo" e "não há sentimento, mas não sentir dói" e que "é frio sem sangue".
Ele falava muito isso. "Tá frio" e "isso dói".
Ele falava com um sotaque russo. Em um certo ponto, ele parou de puxar as teclas do teclado e estendeu a mão pra frente, pra onde o monitor estava. Houve um som de algo quebrando e ele puxou um caco de vidro. Eu nem preciso te dizer o que ele fez com ele. O pior era que, mesmo que isso significasse que a tela tinha sido quebrada, de alguma forma ela ainda iluminava o rosto dele.
Eu desliguei tudo — a TV, o roteador, os alto-falantes — tudo. Bom, isso aparentemente resolveu, pelo menos... pelo menos por um tempo. A essa altura eu tava bem mal e simplesmente saí e vaguei pelas ruas até o sol nascer. Eu não levei meu celular, só... bom, só por precaução.
Aquele vídeo tinha 17 horas de duração. Eu sei disso porque ele me perseguiu até eu assistir ele inteiro.
Toda vez que eu usava um computador, assistia TV ou olhava por muito tempo pra uma tela, lá estava ele. Não importava se o dispositivo era meu ou de outra pessoa — depois de alguns minutos, o que quer que eu estivesse assistindo sumia e ele voltava, continuando a devorar seu computador lenta e dolorosamente.
Tentei mostrar pra um amigo uma vez, mas ele só me olhou como se eu estivesse fazendo uma brincadeira esquisita. Só eu conseguia ver, aparentemente. Eu não quero estar ficando louca. Eu não acho que tô, mas... não tem como saber, né?
Depois de um mês disso, finalmente me sentei e assisti até o fim. Foi o dia mais longo da minha vida e, no final, eu tava sentindo tão mal que quase vomitei quando ele sorriu. Finalmente, ele se deitou na frente da câmera e disse:
"O labirinto é afiado na minha mente."
"Os ângulos me cortam quando eu tento pensar."
Aí ele parou de se mexer. Agora eu conseguia ver o topo da cabeça dele e a parte de trás parecia estar faltando.
A imagem ficou nisso por mais ou menos meia hora, e aí o vídeo acabou. Eu não o vi mais desde então.
Eu continuo pensando na ideia de transferir sua mente pra um computador. Eu disse que isso era impossível. Eu ainda acho que é impossível do jeito que a gente quer que seja. Mas não consigo parar de me perguntar como deve ser tentar ter pensamentos — pensamentos humanos confusos — presos nos rígidos processos digitais de um computador.
Deve doer. Apesar de não ser um tipo de dor que nós possamos entender.
É o bastante? Você tem o que precisa?
Arquivista: Eu acho que... sim, acho que sim.
Tessa: Pelo jeito que você tá me olhando, vou presumir que você não saiba mais sobre isso do que eu.
Arquivista: Na verdade não, eu acho. Posso te falar um pouco sobre alguns outros encontros com computadores supostamente assombrados que recebemos, e acho que um dos nossos alunos da pós-graduação tá trabalhando em algo sobre manifestações sobrenaturais na tecnologia, mas acho que não temos mais nada assim.
Tessa: É, eu imaginei. Eu só vi seu post e pensei, por que não? E é bom falar sobre isso, sabe?
Arquivista: Sim, eu entendo muito bem. Ah, enquanto você tá aqui...
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ARQUIVISTA
Complemento.
Parece que minha postagem em alguns dos fóruns mais experientes de tecnologia pedindo depoimentos funcionou.
Embora o incidente em si pareça extremamente inconsequente, consegui convencer a Tessa a dar uma olhada no notebook da Gertrude alegando ter me trancado pra fora sem querer. Não sei o que ela fez — algo sobre “linhas de comando” e “privilégios administrativos” — mas agora eu tenho acesso.
Eu tô quase com medo de...
TIM
Ei, onde você colocou o... Ah, desculpa, não queria te incomodar enquanto você tá sendo suspeito.
Arquivista: Tá tudo bem.
Tim: Não, não, eu... falo com você quando você não estiver tramando.
Arquivista: Não precisa falar assim.
Tim: Quê?
Arquivista: Nada. Vejo você mais tarde.
Tim: Não, o que você disse?
Arquivista: Eu disse que não precisa agir assim, eu sei que as coisas têm sido difíceis, mas...
Tim: Ah, elas têm mesmo, não têm? "As coisas têm sido difíceis!" Você passou um mês assistindo àquela filmagem, verificando várias vezes cada momento, cronometrando cada pausa pro chá, olhando pra mim como se eu estivesse encenado de alguma forma, mas não, você tá certo. "As coisas têm sido difíceis."
Arquivista: Só parece ser um pouco conveniente demais.
Tim: Como é?
Arquivista: Quer dizer, as filmagens estavam tão corrompidas que a polícia não conseguiu simplesmente usar elas logo de cara, mas aí eles terminam de restaurá-las bem quando eu começo a investigar o assassinato? E se era uma opção, por que não olharam elas quando ela desapareceu? E nem me fale sobre a falta de câmeras nos Arquivos.
Sim, eu sei, conheço todo o discurso do Elias sobre a degradação do sinal e problemas de instalação, mas eu não acredito nisso. Quer dizer, ele instalou o sistema de CO2 com bastante facilidade—
Tim: Cala a boca.
Arquivista: Quê?
Tim: Cala a boca! Só para de falar, eu tô cansado disso — tô cansado de você. Nós não matamos a Gertrude e ninguém quer te matar, seu idiota arrogante.
Arquivista: Escuta aqui—
Tim: Não, não, você escuta aqui dessa vez. Eu tava bem na área de pesquisa. Feliz. Aí você pediu pra eu ser transferido pra cá e de repente tudo são monstros e assassinos e passagens secretas — meu Deus! E o pior, o pior mesmo, é que ninguém aqui tá do meu lado. Em nada! O Elias não tá nem aí, o Martin só quer uma festa do chá, e a Sasha... e você — você me trata como se eu fosse o culpado por tudo de alguma forma, como se eu não tivesse passado pelo pior com você.
Arquivista: Bom, desculpa se as minhas experiências me fizeram...
Tim: Suas experiências? Vai se foder, eu fui comido por vermes por sua causa!
Arquivista: Bom, o que você quer? Você quer simpatia?
Tim: Quer saber? Sim! Um pouco do básico de simpatia seria bom!
Arquivista: Jane Prentiss não foi culpa minha, eu não trouxe ela pros arquivos—
Tim: Ah, mas você foi pro fundo do poço depois, não foi? Foi tudo pro inferno. Quando você realmente precisava estar no comando, você só se escondia aqui e brincava com o seu gravador.
Arquivista: Bom, o que você queria que eu fizesse?
Tim: Qualquer coisa! Qualquer coisa que não fosse virar um lunático paranoico já seria bom! Qualquer coisa que mostrasse que você realmente tava apto pra fazer o seu trabalho!
Arquivista: Bom, o Elias—
Tim: O Elias deveria ter te demitido semanas atrás.
Arquivista: Quê?
Tim: Depois de tudo o que você fez, você deveria ter ido embora. Mas não! Em vez disso, todos nós conversamos sobre como você tá se sentindo porque estamos preocupados com o nosso chefe stalker. Eu não aguento mais fazer isso!
Arquivista: Então se demite. Se você odeia tanto, larga o seu emprego nos Arquivos. Permanentemente.
Tim: Você tá me demitindo?
Arquivista: Eu tô te oferecendo uma chance de sair. Sem aviso prévio, vou até garantir que você receba o resto do salário do mês.
Só diga as palavras.
Tim: Eu quero...
Arquivista: Então, diga.
Tim: Eu... não consigo.
Arquivista: Por que não?
Tim: Eu... eu... não consigo! Eu não sei — por que eu não consigo me demitir?
Arquivista: Eu não sei, mas acho que eu também não consigo te demitir.
Tim: Quê?
Arquivista: É esse lugar.
Tim: Eu não entendo.
Arquivista: Nem eu. Tô tentando descobrir, eu tenho uma ideia, mas... Desculpa, Tim. De verdade. Mas eu não posso e não vou confiar em você. Esse lugar não tá certo, agora você vê isso. Eu não sei como ou por que, mas tem alguma coisa muito errada com os Arquivos. E eu não sei quem aqui é uma vítima dele... e quem é um agente.
Tim: Então, o que faremos?
Arquivista: Por enquanto? Acho que só... fazemos os nossos trabalhos.
Tim: Eu não quero.
Arquivista: Não.
Tim: Eu... acho que vejo você mais tarde.
Arquivista: Acho que sim.
Fim do complemento.
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7 notes · View notes
arquivosmagnusbr · 1 year ago
Text
MAG064 — Rituais Fúnebres
Caso #0152005: Depoimento de Donna Gwynne, a respeito de uma escavação arqueológica não licenciada perto do Mar Vermelho, no Egito.
Ouvir em: Spotify | Youtube
Aviso de conteúdo: horror corporal
Tradução: Lia
ARQUIVISTA
Depoimento de Donna Gwynne, a respeito de uma escavação arqueológica não licenciada perto do Mar Vermelho, no Egito. Depoimento original prestado em 20 de maio de 2015. Gravação de áudio por Jonathan Sims, arquivista chefe do Instituto Magnus, Londres.
Início do depoimento.
ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Perdão se os detalhes ficarem muito vagos — eles tem que ser. O trabalho que eu fazia naquela época tava muito longe de ser legal, e mesmo que os tribunais nunca conseguissem provar isso, digamos que as pessoas pra quem eu trabalhava levavam a privacidade muito a sério. Todos os nomes que eu der aqui, tirando o meu, são pseudônimos.
É difícil conseguir um emprego em arqueologia hoje em dia. Quer dizer, acho que sempre foi, mas o financiamento da educação tá ficando cada vez mais curto e o fato é que a maioria dos cargos mais altos da área tendem a abrir vagas só quando o ocupante anterior morre.
É triste, mas se você olhar pra uma sala de aula completa no curso de arqueologia de qualquer universidade grande, pode ter certeza de que nenhuma das pessoas que você tá vendo vai acabar ganhando a vida com isso. Alguns podem até conseguir cargos de assistente em um ou dois projetos, mas as longas e ingratas horas e o trabalho interminável pra subir uma escada já cheia de homens velhos e esnobes provavelmente vão fazer eles mudarem de ideia.
Acho que o que eu tô querendo dizer é que eu nunca seria uma arqueóloga de verdade. Então, quando tive a oportunidade de fazer um... trabalho não licenciado, pensei que era isso ou estudar pra ser professora. E eu odeio crianças.
Olha, o negócio é que: tem um monte de coisas muito valiosas no chão. Artefatos antigos, conhecimento esquecido, todas essas coisas legais... mas adquirir isso leva muito tempo, muito dinheiro e muitas licenças e permissões complicadas. Sem contar que o governo pode ser bem ganancioso quando se trata dos valores de antiguidades. Você não consegue dar três passos nesse negócio sem que algum metido a Indiana Jones venha dizer que tal coisa “pertence a um museu”. Mas os museus tem orçamentos muito limitados, enquanto o mercado privado tem um apetite inesgotável por tesouros antigos valiosos.
Então você tem minha indústria, que é tipo a arqueologia normal, mas um pouco mais... liberal. Gosto de me considerar uma arqueóloga trapaceira, mas acho que a maioria das pessoas só me chamaria de ladra de sepulturas. O que é bobagem porque na metade das vezes nem são sepulturas que entramos. Mas isso faz surpreendentemente pouca diferença em termos de legalidade.
Eu trabalhei pra um cara chamado Stavo. Talvez eu ainda trabalhe, não tenho certeza. Ele não entra em contato quando não temos trabalho, e aquele terminou tão mal que não tenho certeza se ainda vou receber outra ligação. Espero que sim. Eu realmente não quero ser professora...
Ele me contatou pela primeira vez três anos atrás, depois que o financiamento do meu segundo doutorado não deu certo, e as disputas profissionais fizeram com que as chances de minha carreira continuar estivessem em algum lugar entre “zero” e “não”.
Ele foi muito direto comigo, explicando imediatamente que organizava escavações ilegais improvisadas, pegando todos os achados valiosos que pudessem ser transportados e os vendendo pra colecionadores particulares. Ele tinha bastante mão de obra, segurança e apoio organizacional, mas precisava de alguém na equipe pra identificar e avaliar rapidamente artefatos ou outras descobertas. Ele já havia tido um professor de antropologia de Harvard que tava desempregado, mas aparentemente ele foi pego contrabandeando alguns extras pela alfândega na China e não estava mais disponível.
Stavo disse que eu era a escolha perfeita pra preencher a posição. Eu concordei na hora. Nunca lidei muito bem com os aspectos éticos da minha área. Eu amo a caça, a pesquisa e a descoberta — mas, pra ser sincera, expandir o conhecimento da humanidade ou ajudar uma cultura a se conectar com suas raízes nunca esteve no topo da minha lista de prioridades. Com certeza não tão no topo quanto o dinheiro.
Então, nos anos seguintes, viajei pelo mundo com Stavo e sua equipe. Tinha um geólogo que chamarei de Grigori; Norman, que era intermediário de vários negociantes de antiguidades, casas de leilão e museus menos respeitáveis; e dois albaneses quietos, Barry e Paul, que eram nossos braços. Bom, eles faziam a maior parte das coisas, mas o Stavo não gostava quando as pessoas ficavam de mãos abanando durante um trabalho, então eu, Grigori e Norman passávamos a maior parte do tempo com uma pá ao lado deles, já que a nossa experiência geralmente só era útil na outra parte da escavação.
Gosto de pensar que eu fazia por merecer. Claro que tiveram muitas ocasiões onde o Barry quase jogou fora algum tesouro inestimável porque achava que era só lixo empoeirado. E o Stavo nunca reclamava.
Essa última escavação era de alto risco. Stavo e Norman tinham ouvidos em escritórios convenientes da maioria das universidades e museus, então ele recebeu a notícia de que o governo egípcio tinha negado permissão à Universidade da Pensilvânia pra investigar um possível complexo de tumbas localizado entre o Cairo e o Mar Vermelho. De novo, não vou entrar em detalhes, mas era bem no meio do Deserto Oriental, a mais ou menos 50 ou 60 quilômetros de distancia da pirâmide ou tumba já explorada mais próxima. Se os investigadores da universidade estivessem certos, aquele lugar poderia ser uma descoberta significativa e — mais importante pra nós — completamente intocado.
Mas era perigoso. Quando um governo negava uma permissão assim, não tem como termos certeza de que eles não enviariam seus próprios funcionários, e o Stavo tinha muitas histórias de ex-colegas que foram presos inesperadamente quando os militares apareceram do nada pra proteger um local de escavação.
Ainda assim, a oportunidade era boa demais pra deixar passar, e o Stavo tinha alguns contatos dentro da polícia do Cairo, e assim ele conseguiu que dois policiais bem subornados ficassem por perto pra nos darem pelo menos um ar de respeitabilidade pra qualquer civil que passasse por nós.
Então, lá fui eu pro Egito, sonhando em encontrar uma pirâmide nova. Sei que parece loucura, mas a maioria das pirâmides não é tão grande, óbvia ou intacta quanto aquelas em Gizé. Depois de quatro ou cinco mil anos, a maioria parecem ser só colinas ou às vezes dunas, e podem ter várias delas esperando serem descobertas sob a terra egípcia.
Fiquei surpresa com o quão fácil a encontramos. O Stavo conseguiu a localização a partir do requerimento da universidade e Grigori rapidamente localizou uma provável formação geológica nas imagens de satélite. Menos de quatorze horas depois de receber a ligação eu tava de pé, com uma pá na mão, no meio do Deserto Oriental, abrindo caminho por uma tumba que tava fechada há milênios. Foi emocionante.
Grigori tinha feito alguns trabalhos pra garantir que estávamos cavando o que ele acreditava ser a entrada, e levamos apenas um dia pra desenterrar a laje de calcário que a cobria. Eu podia ver hieróglifos gravados na superfície, mas eles estavam desgastados demais pra ler. Na pedra, o laço fechado de um anel shen grande estava esculpido, o símbolo do infinito.
Isso me pareceu estranho, já que apenas com base na entrada, eu tinha certeza de que essa tumba era pelo menos da Quarta Dinastia, e o anel shen era geralmente usado para designar um local de sepultamento real. Mas não tinha cártulas entre os hieróglifos na entrada, o que eu esperava que tivesse se o túmulo fosse da realeza.
Era uma pirâmide subterrânea, agora eu tinha certeza, mas se guardasse os restos mortais de um faraó, o nome dele não teria sido protegido após a morte.
Barry e Paul não perderam tempo em içar a laje de calcário da entrada, revelando uma passagem escura e escancarada. No calor do sol, eu conseguia sentir muito bem a corrente de ar frio que saía pela abertura.
Stavo deu uma olhada e perguntou se tinha alguma coisa que pudéssemos salvar dos hieróglifos. Instruí ele a retirar o anel Shen e fotografar o resto das coisas pra estudo posterior. Antes que você pergunte, eu não tenho acesso a essas fotos, o Stavo ainda ficou com a câmera.
Sabe, na pressa de ter certeza que tudo estava correndo bem, eu não tinha realmente percebido o que havíamos encontrado até aquele momento, enquanto eu estava de pé na soleira respirando o ar de quatro mil anos atrás. Era seco e cheirava levemente a cedro. Eu tinha acabado de ajudar a descobrir uma tumba intocada da Quarta Dinastia.
Nós pegamos nossas malas, picaretas e lanternas e nos dirigimos para a escuridão. Duas coisas me impressionaram assim que entramos. A primeira era o tamanho do lugar. As passagens eram muito mais largas do que eu tinha imaginado baseada na minha pesquisa sobre tumbas similares. A segunda era que também tinha significativamente menos ornamentações. E por menos, quero dizer nenhuma. As paredes estavam vazias, sem pintura, e por um segundo pensei que poderiam já ter saqueado o lugar.
Stavo pensou a mesma coisa, mas Grigori nos garantiu que a condição da entrada indicava que ela não havia sido aberta desde que foi originalmente selada. A tumba não havia sido roubada — só estava vazia.
À medida que adentrávamos mais, comecei a notar passagens se ramificando pelo caminho. Em cada caso, elas pareciam levar mais ou menos de volta pro lugar de onde viemos.
Parei no meio do caminho e eu e o Stavo levamos alguns minutos pra explorar uma delas. A princípio, elas pareciam levar de volta à superfície, mas outros corredores se ramificavam, até que finalmente chegamos a um beco sem saída. E depois outro, e mais outro.
Demorou mais do que eu gostaria pra encontrarmos os outros de novo.
Era um labirinto, não muito diferente do encontrado em Hauara. Mas o mais importante é que ele só parecia assumir aquela forma enganosa e labiríntica quando estávamos tentando voltar pra entrada. Quando estávamos indo mais pra dentro, ele era bem direto.
Comentei isso com o Stavo e ele imediatamente saiu e voltou carregando o cabo do guincho do jipe. Tinha 45 metros no total, e ele decidiu que, se a tumba acabasse indo mais fundo do que isso, provavelmente deveríamos reconsiderar totalmente a nossa abordagem.
Deu pra ver que ele estava ficando irritado com esses atrasos e a falta de artefatos obviamente valiosos. Não tinha como culpá-lo por isso. Eu mesma estava começando a me sentir bem nervosa.
No final das contas, o cabo do guincho acabou bem quando avistamos a câmara central, então amarramos uma lanterna no final dele e entramos.
Como o resto, essa sala era simples e modesta, construída com pedra calcária áspera. Estava completamente vazia, exceto por um palanque elevado no centro, a mais ou menos um metro do chão. Em cima dele estavam os restos de um sarcófago de madeira sem pintura. Já tinha apodrecido há muito tempo, apesar de as tiras estranhas de cobre que o envolviam ainda parecerem estar em boas condições.
Entre os escombros, pude ver o tecido pálido que embrulhava o cadáver, amarrado de um jeito que me lembrou perturbadoramente de uma camisa de força. Várias partes estavam desgastadas, até mesmo com a carne da própria múmia à mostra, preta, escura e quase brilhante à luz das lanternas.
Não tinha mais nada lá. Nenhum tesouro e nenhuma outra saída.
Foi aí que o Stavo perdeu um pouco a paciência. Ele tinha gastado muito dinheiro naquela expedição e descobrir que não tinha nada lá além de um cadáver velho e alguns pedaços de madeira era um grande problema pra ele. Quer dizer, as implicações arquitetônicas do lugar em termos de práticas de construções da metade ao final da Quarta Dinastia eram incríveis, mas não achei que isso era algo que ele queria ouvir naquele momento, então fiquei quieta. Todos nós ficamos. Quando Stavo ficava com raiva, era melhor só deixar ele ficar na dele ao invés de tentar acalmá-lo e atrair a raiva pra você.
Me ocupei em dar outra olhada pela sala pra caso tivesse alguma entrada secreta que eu não tivesse visto, enquanto ele continuou xingando atrás de mim.
Mas encontrei algo no canto da sala: mais ou menos meia dúzia de ossos pequenos com entalhes em cada face. Dados. Eu sabia que os jogos de dados vieram um pouco antes do Reino Antigo, e aqueles eram de excelente qualidade.
Decidi esperar o Stavo terminar de reclamar antes de chamar sua atenção para eles. Me virei e o vi inclinado sobre o cadáver com uma expressão de raiva no rosto, como se de alguma forma fosse culpa daquele egípcio morto que a viagem tivesse sido um fracasso. Tive que conter uma risada até perceber que ele realmente poderia socar aquela coisa. A múmia era a única coisa naquele lugar, além dos dados, que tínhamos alguma chance de vender, e eu não podia deixar que ele a danificasse.
Eu gritei pra ele parar e seus olhos se fixaram em mim queimando em ódio. Expliquei a ele com calma que o corpo mumificado diante dele poderia valer muito dinheiro. Isso pareceu acalmá-lo um pouco e ele ia começar a se desculpar pelo surto quando ficou completamente imóvel.
Seus olhos estavam arregalados e ele ficou pálido que nem papel. Eu me aproximei um pouco mais e, quando minha lanterna desceu de seu rosto ao longo de seu braço, eu vi. Uma mão enegrecida e ressecada agarrando o pulso dele, os dedos finos o apertando com força.
Ela estava se movendo.
Ela estava viva.
Ela abriu os olhos, mas sob as pálpebras quebradiças havia fendas vazias onde já tinham apodrecido há muito tempo. Ela abriu a boca como se quisesse gritar, mas não saiu nenhum som.
Lembro de ter pensado: "é claro que ela não pode gritar — ela não tem pulmões". A falta de potes significava que aquela tinha sido uma mumificação mais barata e que teriam liquefeito todos os órgãos ao longo de setenta dias.
Será que aquela coisa tava viva quando isso aconteceu?
Será que tinha ficado enterrada no sal por setenta dias sentindo o óleo de cedro derretendo lentamente suas entranhas?
Esses pensamentos passaram rapidamente pela minha cabeça enquanto eu tava lá, congelada pelo terror.
O som da pistola do Stavo me arrancou da minha paralisia. Ele sempre carregava uma arma quando fazia um trabalho perigoso e estava usando todas as suas balas na carne brilhante da múmia à sua frente. Cada tiro fazia voar fragmentos de pele seca e ossos empoeirados.
Mas ela não parou de se mover, nem mesmo quando ele enfiou a arma na boca do cadáver e explodiu a parte de trás de seu crânio.
Agora ela tinha soltado ele, e quando Stavo se virou viu que os outros já tinham fugido da câmara, correndo em direção à superfície seguindo o cabo de volta. A criatura esquisita e meio morta agora tinha saído da plataforma elevada, caindo no chão e ficando entre mim, Stavo e a porta.
Ele me lançou um olhar de desculpas e depois correu, me deixando sozinha com aquela coisa.
A múmia despedaçada e trêmula começou a se arrastar em minha direção. Ela ainda estava parcialmente presa no pano fúnebre apertado, mas isso não a impediu de avançar meticulosamente pelo chão empoeirado. Tinha muito espaço pra eu correr em volta dela — ela nem era tão rápida — mas as minhas pernas simplesmente não funcionavam à medida que ela se aproximava mais e mais. Sua boca abria e fechava rigidamente, poeira marrom-escura caindo dela sem parar.
Eu não faço ideia de como ela sabia que eu tava lá. Ela não tinha olhos e nem nariz. Ela não deveria ser capaz de me detectar, mas ela sabia, e rastejava diretamente em minha direção.
Consegui alcançar meu quadril e puxar minha própria arma, uma faca grande de caça que eu tinha pegado na nossa última viagem à América do Norte — mais porque o peso dela me dava uma sensação de segurança do que porque eu sabia como usá-la. Balancei ela pro cadáver que se aproximava, mas não obtive nenhuma reação.
Quando senti os dedos frios e duros agarrarem minha canela, foi como se o pânico tivesse levado minha mente tão longe que de repente ela voltou ao lugar. Agarrei a faca com as duas mãos, me inclinei pra frente e a enfiei na garganta da coisa.
A lâmina afundou com um som seco e rangente, e os braços da múmia se ergueram para agarrá-la. Eu quase vomitei com a sensação das mãos escuras e mortas nas minhas, mas ela era incrivelmente forte. Se contraindo, ela puxou minhas mãos, arrancando a faca de sua garganta e movendo meu braço para baixo, posicionando a ponta da lâmina em seu peito onde o coração deveria estar. Aí ela me fez empurrar a faca.
A pobre criatura ficou ali parada por um segundo, depois puxou a faca e me fez esfaqueá-la de novo. Ela me fez fazer isso de novo e de novo enquanto seu tronco tremia e convulsionava.
Quase parecia que ela estava chorando, mas sem canais lacrimais ou pulmões, não tinha como saber.
Depois da quinta vez que me fez esfaqueá-la, ela afrouxou o aperto na minha mão o suficiente para que eu pudesse soltar a faca. Com uma explosão de adrenalina, me levantei e fugi.
Por sorte o Stavo ainda não tinha puxado o cabo do guincho do jipe, ou então só Deus sabe quanto tempo eu teria ficado presa lá embaixo. Principalmente porque, quando emergi sob a intensa luz solar do deserto, encontrei Paul e Barry discutindo qual seria melhor maneira de recolocar a laje sobre a entrada.
Demorou muitas horas para enterrá-la completamente, mas quando terminamos, era como se ninguém nunca tivesse estado lá.
Stavo não disse uma palavra enquanto dirigíamos pra longe.
No antigo Egito, morrer era a coisa mais importante que uma pessoa realizaria. Toda a sua vida era uma preparação pra isso: se planejar e adquirir o que você precisaria para a jornada. Na época em que o Nilo era a fonte de tudo o que te mantinha vivo — a terra dos vivos. Mas à medida que você se afastava disso, a própria terra se tornava hostil a você, incapaz de sustentar qualquer tipo de vida. Foi lá, nos arredores — no limite da própria vida — que eles construíram os seus túmulos e pirâmides.
Não consigo imaginar o que eles pensariam de uma pessoa que não pudesse morrer.
Mas consigo imaginar o que eles teriam feito com ela.
ARQUIVISTA
Fim do depoimento.
Se tem uma coisa que eu odeio mais do que depoimentos que só podem ser investigados entrando em contato com agências estrangeiras que não cooperam, são depoimentos em que todos os envolvidos são criminosos que não podem ser rastreados ou não estão dispostos a discutir suas atividades de forma alguma. Esse depoimento consegue combinar perfeitamente os dois de tal forma que qualquer investigação ou acompanhamento se tornou totalmente impossível.
A única coisa que descobri é que a senhorita Gwynne agora está estudando pra se tornar professora. Não posso negar que sinto uma certa... satisfação cruel por esse fato. Sinto que qualquer um que me traga um depoimento sobre múmias merece tudo o que recebe.
Fim da gravação.
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BASIRA
Você não pode simplesmente vir até a delegacia pedindo pra—
ARQUIVISTA
Desculpa, eu não pensei.
Basira: Não. Não pensou. Agora tem um monte de gente me fazendo perguntas. Eles tão me vigiando no trabalho.
Arquivista: Eu só queria ver—
Basira: Sua próxima fita. Sim, eu sei, mas agora não posso fazer nada sobre isso, porque sinto que eles estão me observando o tempo todo.
Arquivista: Bom, se for esse o caso, você deveria sequer ter vindo até aqui?
Basira: Tá tudo bem, é só trabalho. Mas se tem uma coisa que eu aprendi é que você e eu? Nós somos horríveis nessa coisa toda de espionagem. Preciso esperar as coisas se acalmarem um pouco.
Arquivista: Bom… Me mantenha informado, eu acho.
Basira: É, se eu conseguir. Se cuida.
Arquivista: Droga.
Fim do complemento.
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arquivosmagnusbr · 1 year ago
Text
MAG063 — Fim do Túnel
Caso #0143103: Depoimento de Erin Gallagher-Nelson, a respeito de uma viagem de exploração urbana sob a Igreja de São Paulo, em West Hackney.
Ouvir em: Spotify | Youtube
Aviso de conteúdo: nictofobia, claustrofobia
Tradução: Lia
ARQUIVISTA
Depoimento de Erin Gallagher-Nelson, a respeito de uma viagem de exploração urbana sob a Igreja de São Paulo, em West Hackney. Depoimento original prestado em 31 de março de 2014. Gravação de áudio por Jonathan Sims, arquivista chefe do Instituto Magnus, Londres.
Início do depoimento.
ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Imagino que você saiba o que é uma exploração urbana. Aposto que você já viu muitos amadores idiotas por aqui que dizem terem esbarrado num fantasma em alguma fábrica velha, então vou te poupar de explicar como funciona. E se você não sabe o que é, bom, a Internet existe. Pesquisa lá.
Eu sou o mais próximo do que você pode chamar de profissional nesse negócio, que é basicamente invadir lugares por esporte. Eu trabalho como fotógrafa, e se eu fizer tudo direitinho, consigo ganhar mais dinheiro com uma estação de bombeamento abandonada do que fotografando uma Barbie humana mimada pra "Revista Odeie-se" ou qualquer coisa assim. Sempre fomos eu e Luke Nelson. Ele era irmão da minha esposa e fazia toda a iluminação dos nossos ensaios. Pelo menos até ele ser... comido pela escuridão na semana passada.
É por isso que eu tô aqui: porque eu não sonhei com aquilo. Aconteceu. Eu não ligo pro que a Steph diz — eu não preciso falar com um psiquiatra, eu preciso falar com vocês.
Nós estávamos embaixo da Igreja de São Paulo, em West Hackney. Um edifício horrível e quadrado que realmente faz você pensar sobre os padrões dos templos de Deus. Quer dizer, só tô dizendo que se fosse minha casa eu ficaria bem irritada. Ainda assim, acho que se ele não quisesse aquilo, deveria ter protegido seu antecessor das bombas nazistas, porque a Igreja de São Paulo costumava ser de São Tiago antes de ser bombardeada até só sobrarem os escombros.
Todo mundo sempre esquece o quanto de Londres existe embaixo de Londres. Quer dizer, aqui não é tão ruim quanto em alguns outros lugares, tipo Edimburgo, onde literalmente enterraram metade da cidade e construíram uma nova em cima — mas alguns lugares não são tão diferentes disso. Eu andava fazendo várias pesquisas sobre a São Paulo que costumava ser a São Tiago, porque aparentemente poderia ser exatamente um desses lugares.
Os projetos de esgoto e subsolo do bairro pareciam indicar que havia uma grande área subterrânea diretamente abaixo da São Paulo que parecia ser evitada por todas as obras públicas — mas os projetos da igreja moderna não mostravam nada abaixo do nível do solo.
Isso queria dizer que a antiga Igreja de São Tiago provavelmente tinha uma presença considerável no subsolo que não tinha sido completamente destruída pelas bombas, e que sua herdeira não ocupou aquele espaço.
Abóbadas vitorianas de meados do século XIX, intactas por 70 anos? Era exatamente o tipo de coisa que tá na moda agora em certas revistas de arte, e eu tinha certeza de que poderia vender algumas para o Getty e vários outros sites de banco de imagens. E ei, não era como se eu já não tivesse invadido uma igreja antes.
Felizmente, a São Paulo de West Hackney era uma igreja anglicana, o que significa que eles não a trancavam tão bem quanto alguns outros lugares. As igrejas católicas podem ser uma verdadeira dor de cabeça, pois elas realmente têm alguns objetos de valor dentro que precisam ser protegidos. Mas essa, assim como a maioria das igrejas cristãs, era simples e sem adornos por dentro. Então, embora tomassem muito cuidado com os escritórios, eles não eram tão cuidadosos em trancar o prédio principal da igreja, porque, sinceramente, não tinha nada pra roubar lá — a menos que você gostasse de hinários.
Eu e o Luke levamos menos de um minuto pra conseguir entrar. Foi na última terça-feira, dia 25. Acho que tecnicamente era quarta-feira, dia 26, já que já tinha passado da meia-noite quando começamos a agir. Assim que entramos, mantivemos nossas lanternas baixas, guardamos nosso equipamento e fomos procurar qualquer coisa que pudesse nos levar pra mais baixo.
A princípio parecia que estávamos enganados e não tinha como descer. Mas aí o Luke avistou o que parecia ser um painel removível no chão, logo à direita do que parecia ser um pódio. Era mais pesado do que parecia, mas depois de um pouco de esforço com o pé de cabra, ele saiu.
Parecia que não era removido há décadas — talvez desde que a igreja nova foi construída. Mas o que me surpreendeu foi o ar que saiu lá de dentro quando abrimos. Ele sibilou, como um suspiro que estava preso há muito tempo, e o ar que subiu daquele buraco era gelado e úmido. Não foi inesperado, mas o que me surpreendeu foi como o cheiro era fresco. Como uma noite de outono depois da chuva.
Não tinha nenhuma escada pra baixo, mas trouxemos bastante corda, então descemos. A escuridão parecia nos engolir. Eu podia jurar que às vezes eu conseguia sentir ela se pressionando fisicamente contra o meu corpo.
No final das contas, faltavam só alguns metros até o chão do túnel subterrâneo, e nossas lanternas mostraram exatamente o que eu já esperava: uma antiga alvenaria vitoriana.
A passagem que se estendia à nossa frente em ambas as direções era absolutamente perfeita, e eu não perdi tempo pra tirar algumas fotos enquanto o Luke preparava os equipamentos de iluminação. Lá embaixo, os flashes eram ofuscantes, mas eu tinha certeza de que estava tirando umas fotos ótimas. Mas quando dei uma olhadinha rápida nelas pela tela da minha câmera, eu comecei a ficar irritada. O Luke estava claramente parado na frente da luz quando comecei a tirar as fotos.
Em cada foto onde a parede oposta estava iluminada pelas luzes fortes era possível ver a forma nítida da sombra de uma pessoa.
Tive uma baita discussão com o Luke sobre isso. Ele insistiu que nunca cometeria um erro tão amador. Eu respondi que ele até podia discutir comigo, mas não com a câmera. No fim, ele saiu furioso pra explorar mais adiante.
Tirei mais uma foto antes de começar a ir atrás dele. A sombra ainda tava lá e parecia estar um pouco mais perto.
Eu não sei por que ignorei aquilo. A mente humana é incrivelmente hábil em ignorar coisas que não fazem sentido — coisas que ela não quer ver. Eu convenci a mim mesma de que aquilo era uma peculiaridade dos ângulos daquele lugar. Eu nem me permiti pensar que poderia ser um problema com a minha câmera extremamente cara, então eu definitivamente não considerei a possibilidade de aquilo ter uma explicação sobrenatural.
Segui o Luke mais adiante até que, depois de mais ou menos uns 20 minutos, chegamos às ruínas de algum tipo de câmara. O telhado tinha desabada, provavelmente por causa do bombardeio que destruiu a Igreja de São Tiago, e os escombros bloqueavam a maior parte dela. Parecia que já tinha sido uma sala redonda, e de cada lado da entrada eu podia ver portas bloqueadas com pedras caídas.
Não tínhamos como mover os detritos suficientemente pra acessá-las, mas era estranho: enquanto as luzes das lanternas passavam por elas, mesmo com a maioria delas completamente cobertas pela alvenaria desmoronada, elas ainda não pareciam tão escuras quanto o corredor de onde nós viemos.
Eu tirei algumas fotos. A composição do lugar era excelente e as portas bloqueadas tinham um tipo estranho de grandeza absoluta. Elas com certeza seriam lindas se tivessem conseguido sobreviver ao que parecia ter sido um ataque direto de uma bomba alemã. Verifiquei as fotos e não tinha nenhuma sombra, o que foi um alívio.
Nós voltamos para o outro lado. Quando chegamos às cordas penduradas no buraco acima de nós, o Luke começou a ficar preocupado. Bom, com preocupado eu quero dizer: ele queria sair dali. Ele queria que guardássemos as coisas, subíssemos de volta e fossemos embora, me dizendo que estava sentindo umas vibes estranhas naquele lugar e tentava me convencer de que já tínhamos visto o suficiente. Olhando para aquele quadrado convidativamente iluminado pelo brilho da lua nas janelas da igreja, fiquei meio tentada a concordar com ele.
O problema era que, devido aos contratempos com as primeiras fotos, eu tinha uma, talvez duas fotos com uma qualidade que eu poderia usar, e isso não era o suficiente. Eu disse a ele sem rodeios que não tinha o suficiente e se eu não fosse paga, ele não seria pago. Eu vi o conflito estampado em seu rosto: ele queria sair de lá, claro, mas aparentemente não tanto quanto queria pagar o aluguel.
Então... continuamos, mais pra dentro do túnel. Não sei o quão longe fomos. Eu parava a cada 10 metros ou mais pra me preparar e tentar tirar uma foto boa, mas as sombras estavam de volta e piores do que antes. Agora apareciam duas ou três sombras em algumas fotos. Não parecia ser tão claramente uma silhueta humana, então eu consegui dizer a mim mesma que devia ser uma peculiaridade de como o túnel refletia a luz — mas, pensando agora, isso não fazia o menor sentido.
Mesmo assim, eu continuava — na esperança de encontrar algum lugar onde conseguisse tirar algumas fotos daquele túnel austero e sombrio, com tijolos tão pretos que quase pareciam carvão. Nós avançávamos, montávamos os equipamentos, tirávamos as fotos, verificávamos e aí eu xingava minha câmera. Não sei quantas vezes fizemos isso. Luke ficava cada vez mais nervoso o caminho todo.
Parecia que não estávamos muito mais do que 10 minutos fazendo aquilo, mas quando olhei meu relógio, estávamos lá embaixo há quase duas horas. A gente tinha finalmente chegado no fim do caminho, e era só isso: um fim. Uma parede de tijolos vazia indicando a parada do túnel que parecia passar por baixo de uma boa parte de Hackney.
Nesse ponto, eu finalmente decidi deixar tudo de lado e voltar. Quando virei pro Luke pra dizer isso, minha lanterna apagou. Ela não fez alarde, só piscou por um segundo e depois apagou com um leve estalo.  Olhei pro Luke prestes a pedir pra ele me passar as pilhas reservas... até ver seu rosto. Acho que nunca vi ninguém tão assustado quanto ele naquele momento. Aí a lanterna dele também apagou e não sobrou nada além da escuridão.
Eu podia ouvir ele tateando por alguma coisa que eu presumi ser as luzes da câmera, e um segundo depois ouvi o clique... clique... clique dele tentando ligá-las. Nada aconteceu. Ele continuou apertando os botões, de novo e de novo, e eu conseguia sentir o desespero dele, mas ainda estávamos presos na escuridão total.
Eventualmente, ele parou, e nós só ficamos lá. Eu queria dizer alguma coisa tranquilizadora, estender a mão e avisar que eu ainda tava lá, mas eu tava com medo de quebrar o silêncio. Eu ouvia só a respiração dele, pesada e assustada. Eu percebi a minha própria respiração: rápida e entregando o pânico que tentava fingir que não tava sentindo.
E aí eu ouvi: a terceira respiração. Era baixa no começo — longa e lenta e muito deliberada. Quanto mais eu ouvia, mais alta ela parecia ficar, como se quem quer que estivesse lá com a gente fizesse questão de que pudéssemos ouvi-la. E aí uma quarta respiração se juntou a ela, profunda e gutural. E uma quinta, uma sexta, e depois mais. Estávamos cercados por todos os lados pelos sons das respirações, ficando mais altas, mais próximas.
Luke soltou um pequeno gemido e, ao mesmo tempo, todas pararam. No lugar delas veio um barulho de raspagem, algo de metal que parecia estar sendo arrastado pelos tijolos bem atrás de nós, mas chegando mais perto, e rápido. Então, vieram passos pesados e fortes — passos vindo em nossa direção, rítmicos e sem pressa.
Quase pensei que poderiam ser as batidas do meu coração latejando nos meus ouvidos — mas o eco me garantiu que vinha do fundo do túnel. Aí o raspar começou de novo, agora vindo da outra direção, e eu caí no chão, apertando minha câmera contra o peito como uma espécie de talismã protetor.
Aí, o silêncio, mais uma vez.
O barulho que quebrou o silêncio dessa vez é o que ainda ressoa em meus ouvidos. Foi muito mais horrível do que os outros por conta do quão familiar era — embora eu nunca tivesse o ouvido daquele jeito antes. Era a voz do Luke, e ele gritava de agonia — um grito estridente e angustiante de dor e medo que varreu todos os meus pensamentos em um segundo e os substituiu por puro pânico. Eu queria correr, mas minhas pernas estavam paralisadas.
Em algum lugar da minha mente eu lembrei do flash da minha câmera e meus dedos instintivamente apertaram o botão.
Quando apertei o botão a gritaria parou com um estalo molhado, e no pior segundo da minha vida, uma explosão de luz atravessou a escuridão.
Eu vi o Luke pairando no ar. Não tinha ninguém ao redor dele, mas na parede, em contornos escuros e nítidos, vi duas sombras longas e finas paradas ao seu lado. Uma delas segurava, com braços esguios, a sombra dele pelos ombros, enquanto a outra segurava a sombra de sua cabeça decepada.
Na minha frente, a verdadeira cabeça pairava ali, suspensa como se estivesse pendurada por algum fio invisível, o sangue escorrendo pelo corpo abaixo dela. Os olhos dele me olhavam como se estivessem implorando para que o flash da minha câmera frágil o salvasse. Eu gritei.
A próxima coisa que eu me lembro foi da luz dolorosamente brilhante de uma dúzia de lanternas no meu rosto. Era o reitor da Igreja de São Paulo e um pequeno grupo do que presumi serem paroquianos. Ele não disse uma palavra enquanto gentilmente me levava de volta pra entrada. Olhei em volta para ver se o corpo do Luke tava lá, mas no fundo eu sabia que a escuridão tinha engolido ele. Ele se foi.
O reitor foi muito compreensivo, apesar de eu não estar falando nada com nada. Ele me tranquilizou com palavras suaves, me trouxe pro azul pálido do amanhecer e chamou uma ambulância pra me examinar. Eu não sei o nome dele, e foi só depois de chegar ao hospital que percebi que ele tinha levado minha câmera.
Desde então, estou sob observação do hospital. Ninguém ouve minha história e o Luke foi oficialmente dado como desaparecido. A Steph tem me apoiado muito, mas consigo ver a dor nos olhos dela. Ela sabe que eu fui a última pessoa a ver o irmão dela e isso tá consumindo ela. Eu realmente não sei o que fazer agora... além de deixar as luzes acesas.
ARQUIVISTA
Fim do depoimento.
Não deveria ser surpresa pra mim, nessa altura do campeonato, que a pedra fundamental da Igreja original de São Tiago, em West Hackney, foi colocada em 17 de novembro de 1821 por Sir Robert Smirke. Mesmo assim, eu esperava encontrar pelo menos uma esquisitice arquitetônica escondida sob as ruas de Londres que não carregasse a marca dele ou de seus alunos.
Esse encontro em particular não parece ter muito em comum com outras manifestações em prédios semelhantes. Nós vemos uma espécie de padrão dele e da laia dele: sepultamentos com teias de aranha, dificuldade de navegação e agora uma escuridão violenta e assassina. Meu primeiro pensamento foi a Igreja do Povo da Hóstia Divina, já que eles parecem ter uma afinidade com a escuridão, mas não consigo encontrar nenhuma conexão de qualquer tipo entre eles e a Igreja de West Hackney.
Não que algum dos funcionários de lá tenha sido muito útil. Cada um deles afirma não se lembrar de ter encontrado a senhorita Gallagher-Nelson, apesar dos registros de internação hospitalar mostrarem claramente que ela foi resgatada de lá na manhã de 26 de março de 2014. O Tim tem certeza de que pelo menos alguns deles estão mentindo, mas não tem muito que possamos fazer pra conseguir qualquer informação que eles não queiram nos dar voluntariamente.
Não conseguimos falar com a Srta. Gallagher-Nelson. Todas as tentativas de entrar em contato foram impedidas por sua esposa, Stephanie Gallagher-Nelson, que deixou bem claro que não somos bem-vindos e não devemos tentar mais nenhum contato.
Luke Nelson continua desaparecido.
Fim da gravação.
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ARQUIVISTA
Complemento.
Estou tentando acessar o laptop da Gertrude, mas até agora não tive sorte. Nenhuma das senhas óbvias que eu tentei deram certo e eu não sei quem consegue me ajudar e ser discreto. Pode ser que tenham mais pistas nas outras fitas, mas até agora não tive nenhuma notícia da Basira. Eu tô tão perto de encontrar alguma coisa, talvez eu devesse só ir até lá—
MELANIE
Com licença, você tem um minuto?
Arquivista: Srta. King, uh, como você entrou aqui...?
Melanie: A garota nova me deixou entrar. Você tá bem?
Arquivista: Hum? Como?
Melanie: Você tá horrível.
Arquivista: Tem sido meses difíceis. Olha, posso te ajudar? Porque se você só tá aqui atrás de outra discussão—
Melanie: Não! Eu, hum... eu realmente preciso da sua ajuda.
Arquivista: Hum. Interessante.
Melanie: Tá, será que você pode não ser um babaca sobre isso? Eu só preciso de acesso à sua biblioteca.
Arquivista: Então fale com a Diana, ela que administra o lugar.
Melanie: Sim, eu não tenho exatamente as credenciais acadêmicas que vocês exigem, então aparentemente eu preciso de alguém para atestar em meu nome e você é basicamente a coisa mais próxima que eu tenho de um amigo aqui.
Arquivista: Nós conversamos uma vez e acabamos gritando um com o outro.
Melanie: Sim. E isso é mais do que eu tenho com qualquer outra pessoa daqui. Além disso, a Georgie me falou algumas coisas boas sobre você. Isso foi uma surpresa. Você nem me disse que conhecia ela.
Arquivista: Eu... isso foi muito tempo atrás. Antes de ela começar a fazer o "What the Ghost". É uma surpresa pra mim também, pra ser sincero. Nós não terminamos exatamente nos melhores termos... Pra quê exatamente você precisa de nós, afinal? Seus amigos de espetáculo não podem te ajudar?
Melanie: Não, eu, hum... a maioria deles não fala mais comigo.
Arquivista: O que aconteceu? Correu a notícia de que você prestou um depoimento pra gente? Como era mesmo? “Idiotas ingênuos?”
Melanie: Não exatamente. Olha, no meu negócio, sua reputação é tudo o que você tem. A indústria é praticamente composta por céticos que fingem acreditar, que fingem ser céticos—
Arquivista: Acho que a palavra que você tá procurando é "charlatões".
Melanie: Dá pra você parar? Por favor? Eu tô tentando... olha, os Caça Fantasmas de UK se separaram. Quer dizer, não formalmente, mas bom, você sabe, o Pete sempre foi um idiota pra começar e os outros simplesmente se afastaram...
Arquivista: Sinto muito por isso. Eu percebi que vocês não estavam postando mais nada.
Melanie: Eu tentei arrumar uma equipe nova, mas foi difícil. Eu comecei a fazer expedições sozinha, mas eu realmente não tenho habilidade pra gravação. Eu vi umas coisas estranhas. Aí eu... aí eu fui presa.
Arquivista: Continue.
Melanie: Sim, eu... eu invadi o cemitério de trens perto de Rotherham. Fui pega pelos seguranças, e eu... eu não tava muito bem. Quando eu tava sendo expulsa, um cara passeando com o cachorro de noite gravou um vídeo meu gritando com eles sobre  fantasmas. Quando aquilo foi parar na internet...
Arquivista: Sua super importante reputação profissional foi junto.
Melanie: Sim. Olha, eu tenho pistas que realmente preciso seguir, mas, no que diz respeito aos meus colegas, hoje em dia o fantasma sou eu.
Arquivista: Bom, se serve de consolo, eu sinto muito. Eu sei o que é não ter o respeito dos seus colegas. Vou falar com a Diana, vejo se consigo te deixar entrar na biblioteca.
Melanie: Obrigada. De verdade. Enfim, como eu saio desse lugar?
Arquivista: Ah. A Sasha pode te mostrar a saída.
Melanie: A Sasha?
Arquivista: Sim. Ela deve estar em algum lugar por aqui.
Melanie: Ah. Certo... Bom, me avisa sobre a biblioteca, ok?
Arquivista: Pode deixar.
...Que mulher esquisita.
Fim do complemento.
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arquivosmagnusbr · 1 year ago
Text
MAG062 — Primeira Edição
Caso #0080307: Depoimento de Mary Keay, gravado em 3 de julho de 2008. A respeito de seu primeiro Leitner.
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Aviso de conteúdo: menção a suicídio
Tradução: Lia
GERTRUDE
Então?
MARY
Não precisa me apressar, Gertrude. Tenho certeza de que temos todo o tempo do mundo. Além disso, olha pra essa coisa velha e empoeirada. Acho que precisa de um tempo pra aquecer. Você não usa ele muito mais, né?
Gertrude: Chá?
Mary: Por Deus, não. Odeio essa coisa.
Gertrude: Por que você está aqui?
Mary: Pra prestar meu depoimento, é claro. Eu sei que o Instituto e eu nem sempre concordamos, por assim dizer, mas achei que era o mínimo que eu podia fazer.
Gertrude: Por que agora?
Mary: Por que não? Grandes mudanças estão chegando, Gertrude! E eu preciso pensar em deixar algo pra posteridade.
Gertrude: Tá. A indivídua é Mary Keay, gravada em 3 de julho de 2008. Sobre o que é?
Mary: Que pergunta! Deixa eu pensar... Tem opções de sobra, eu acho.
Gertrude: Fique à vontade.
Mary: Já te contei sobre o meu primeiro Leitner? Claro, isso foi antes de ele começar a colecioná-los, então naquela época era só um livro estranho. E pensar que houve um tempo antes de ele ter carimbado sua marca neles. Sinto que tínhamos dado um nome pra eles. Será que nós sequer sabíamos quantos eram? Ou nós só pensávamos em cada um como algo único?
Gertrude: Não. Eu não lembro.
Mary: Eu encontrei com ele algumas vezes, sabia? Deve ter sido há uns quinze anos. Não muito tempo antes da biblioteca dele pegar fogo. Ele nem era tão impressionante assim, pra falar a verdade. Mais baixo do que eu esperava e mais devagar, de alguma forma. Eu esperava um turbilhão intenso de energia, mas ele era gentil, metódico e extremamente agradável de se conversar.
Jurgen Leitner me entediava. Sempre que ele vinha olhar as minhas coisas, ficava quase um minuto inteiro olhando cada livro, só observando, examinando as páginas, e metade das vezes saía sem comprar nada. Já vai tarde, se quer saber!
Gertrude: Eu não saberia dizer. Acho que nunca nos encontramos.
Mary: Acho que não. Você não costuma sair e procurar as coisas por si mesma, não é? Só fica esperando aqui pelas migalhas dos pesquisadores.
Gertrude: Não é tão ruim assim.  Às vezes alguém aparece e insiste em me prestar um depoimento diretamente, apesar de eu não ver sentido nisso.
Mary: Hum. Bem... Eles não entendem lá em cima. Eles não sabem o que esse lugar é. Mas você sabe, não sabe? Nós estamos do mesmo lado, na verdade. Mesmo que o Elias discorde.
Gertrude: Se você diz. Acredito que você estava me contando sobre o seu primeiro encontro com um dos livros.
Mary: Ah, claro. Eu era muito jovem, mas ainda me lembro claramente.
MARY (DEPOIMENTO)
Eu tinha nove anos na época, então foi em... 1955? Foi logo depois que o idiota do meu pai foi morto, e minha mãe ainda estava trabalhando para o seu Instituto. Estávamos morando em Whitechapel naquela época, perto da Turner Street. Não era muito, só alguns quartos e um fogão, mas era o suficiente para nós.
Minha mãe trabalhava muitas horas, pois mesmo naquela época o Instituto não pagava bem seus pesquisadores. E ela complementava nossa renda escassa trabalhando até tarde em uma fábrica na Grove Road. Fazia roupões. Na maioria das vezes, eu era deixada por conta própria. Se ela tivesse algum bom senso, minha mãe teria largado vocês e ido trabalhar na fábrica em tempo integral. Ela teria aprendido muito mais.
Ainda assim, ela acreditava no trabalho. E a única coisa que ela nunca negligenciava era o que ela chamava de meus "estudos verdadeiros". Sou grata a ela, é claro. Eu só queria que ela tivesse superado aquela devoção exagerada por vocês e seu patrono.
Gertrude: Bom, você faz muitas suposições, Mary. E eu pensei que nós estávamos "do mesmo lado".
Mary: Hum, sim. Acho que você tem razão. Eu só gosto de diversificar um pouco o meu portfólio, por assim dizer.
Muitas vezes, durante meus estudos, minha mãe falava comigo sobre as incríveis relíquias arcanas do seu Instituto. Acho de que você pode imaginar minha decepção quando finalmente dei uma olhada na coleção de mediocridades que você chama de "armazém de artefatos".
Mas muito antes disso, a ideia de existirem itens poderosos, sombrios e assustadores já havia se enraizado em minha jovem mente. Eu costumava passar as tardes caçando coisas em lojas de antiguidades e sucata. Existiam várias, naquela época. Procurando por algo estranho, caçando aquela coisa que me chamaria com uma voz sombria e secreta. Eu nunca encontrei, é claro. Não naquela época.
Mas quando vi a Dra. Margaret Tellison se mudando para o outro lado da rua, soube imediatamente que havia algo diferente nela. Ela era alta e magra, com longos cabelos escuros presos num coque apertado. Ela usava um vestido de lã azul-escuro e carregava uma pasta de couro velha que parecia constantemente prestes a se rasgar, embora ela a carregasse com facilidade. Não sei exatamente o que tinha nela que me chamava a atenção, mas assim que a vi, soube que ela era aquilo de que minha mãe sempre falava. Ela era tocada por poderes como aqueles que cuidavam da nossa família.
Ela tinha um pequeno consultório médico na Nelson Street, não muito longe do Hospital Real de Londres. Naquela época, Whitechapel era um bairro majoritariamente judeu, e não tinha muitos médicos não judeus por lá, então a Dra. Tellison não demorou muito pra arranjar uma lista de clientes fiéis.
Eu comecei a observá-la. Sempre que minha mãe estava no trabalho, eu me sentava nos degraus em frente ao consultório dela e observava o fluxo constante de pacientes.
Ao longo das semanas, comecei a notar uma coisa. A primeira vez que uma ambulância foi chamada para levar um de seus pacientes ao hospital, eu não dei muita atenção pra isso. Mas quando outra veio no dia seguinte, e outra três dias depois, começou a me ocorrer que havia alguma coisa dentro daquelas paredes que eu não sabia. Decidi que tinha que ver por mim mesma.
Não passou despercebido por mim que muitos dos clientes da Dra. Tellison não se preocupavam em bater na porta da frente, simplesmente entravam anunciando suavemente sua chegada. Deixar a porta da frente de seu consultório destrancada era sem dúvida bom para seus clientes, mas também me proporcionou fácil acesso quando finalmente superei meu receio.
Eu prestei muita atenção em quão alto era o barulho da porta e sincronizei minha entrada com a passagem de um caminhão de açougue, o rugido do motor abafando o som da porta. E então, fácil assim, eu estava dentro. Me xinguei por não ter passado mais tempo tentando ter uma noção do interior do prédio, pois não esperava que a sala de espera fosse tão grande. Havia três cadeiras de madeira que pareciam desconfortáveis, diversas estantes cheias de livros que pareciam antigos e uma lâmpada fraca numa gaiola de arame. Havia apenas uma única porta que dava para dentro do prédio, com uma camada de tinta branca lisa descascada. Meu plano era encontrar um lugar pra me esconder, mas não parecia ter nenhum lugar pra isso.
Lembro de estar parada lá, ainda pensando no que fazer, quando ouvi passos pesados se aproximando por trás da porta. Eu congelei, olhando em volta desesperadamente em busca de um lugar pra me esconder à medida que os passos se aproximavam. Eu tinha acabado de tomar a decisão de fugir pelo mesmo lugar que entrei quando a porta se abriu. Um homem baixo com um bigode eriçado saiu segurando um pedaço de papel que parecia ser uma receita. Ele acenou pra mim brevemente enquanto passava e saiu pela porta da frente sem dizer uma palavra.
Soltei um suspiro de alívio e olhei pelo corredor de onde ele tinha vindo. Estava mais escuro do que eu esperava. A lâmpada estava queimada ou desligada, e não parecia ter nenhuma janela que deixasse entrar o brilho fraco da luz do dia. Havia uma escada de um lado, em frente a uma porta marcada com o nome da Dra. Tellison, que presumi ser o escritório dela.
Ao me aproximar, notei uma rachadura considerável na madeira abaixo da escada e, olhando mais de perto, vi uma pequena porta para um depósito embaixo da escada. Abrindo a porta o mais silenciosamente possível, vi que estava vazio e, a julgar pela poeira, não parecia ter sido usado algum dia. Rastejei pra dentro e fechei a porta atrás de mim, feliz por descobrir que minhas suspeitas estavam certas. Através da rachadura na madeira, eu tinha uma visão clara da porta da doutora e esperava conseguir ver o que estava por trás dela.
Não precisei esperar muito pra descobrir. Poucos minutos depois de me ajeitar em meu esconderijo, vi a porta do escritório se abrir e a Dra. Tellison sair. Ela entrou rapidamente na sala de espera e, depois de alguns segundos de conversa abafada, levou um homem idoso de volta ao seu escritório. Ela entrou primeiro, deixando o paciente fechar a porta atrás deles. Ele não a fechou, e eu tive uma boa visão do local de trabalho dela. Era ladrilhada, limpa e brilhante, com uma grande mesa de exame de couro marrom sobre a qual o velho se empoleirava enquanto ela pairava ao seu redor, o cutucando, medindo e fazendo perguntas que eu não conseguia ouvir.
Havia uma escrivaninha pequena e vazia em um canto, um armário afixado na parede que presumi guardar os remédios e equipamentos dela, e no chão eu pude ver um cofre baixo de ferro. Eu imediatamente soube que quaisquer segredos terríveis que me atraíssem para aquela médica estariam guardados naquele cofre.
Não vi nada de importante naquele dia, nem no dia seguinte, quando voltei para o mesmo lugar. Me esgueirei na escuridão estreita sob aquela escada por quase uma semana antes de aquilo acontecer.
Sempre tive o cuidado de estar em casa quando minha mãe chegasse lá, mas isso não era difícil, e a Dra. Tellison nunca parecia trancar a porta de seu consultório. Lembro que era domingo e o verão estava deixando meu esconderijo insuportavelmente quente. Devia estar quase tão quente no consultório, já que a doutora deixava a porta aberta quase o dia todo para permitir que qualquer corrente de ar soprasse pelo cômodo. Eu a vi inspecionar e tratar quase uma dúzia de estranhos ao longo da manhã, mas ainda assim não havia nenhum indício de nada desagradável.
Mas pouco antes de encerrar o dia, uma mulher baixa e elegante apareceu. Ela tinha cabelos castanhos encaracolados, parecia estar com a saúde perfeita e sorria como uma idiota enquanto entrava no consultório da Dra. Tellison. A doutora a cumprimentou de forma bastante simpática, mas quando o check-up começou, tive um breve vislumbre de algo cruel em seus olhos. Um olhar predatório.
Depois de mais ou menos dez minutos de consulta, a Dra. Tellison foi até um armário e pegou uma pequena seringa. Ela conversava amigavelmente com a paciente enquanto esterilizava a veia e empurrava a agulha para dentro. Ela continuou conversando enquanto o êmbolo descia. Ela continuou falando aquele murmúrio alto e amigável até quando a mulher com o cabelo castanho encaracolado começou a convulsionar violentamente.
Uma vez. Duas vezes. E aí ela morreu.
Enquanto eu observava isso, meu coração estava acelerado. Eu poderia mentir e dizer que o que eu vi me deixou com medo, mas acho que nós duas sabemos que a emoção de assistir a esse assassinato inspirou um sentimento muito diferente dentro de mim. Uma coisa sombria e cruel que até hoje não consigo nomear exatamente. Mas era lindo e estranho.
Apesar de que o que aconteceu depois foi ainda mais estranho. A Dra. Tellison ergueu o corpo ainda quente de sua paciente totalmente sobre a mesa antes de cortar o tecido do vestido com um par de tesouras, expondo uma extensão de pele nas costas da mulher.
Então, ela abriu o cofre. 24-18-3-50 e depois a chave. Eu só precisei assisti-la fazendo isso uma vez. Lá dentro, vi dois livros — um pequeno e encadernado em couro, o outro grande e disforme.
Ao pegar o maior dos dois, ela afastou o que parecia ser uma pequena pilha de ossos de animais e pegou uma caneta-tinteiro que parecia ser perversamente afiada. Ela se inclinou sobre o corpo imóvel sobre a mesa e começou a escrever — não no livro, mas na carne da mulher que havia matado. Mesmo do meu esconderijo, eu conseguia ver que a caligrafia dela era confusa e apertada, deixando um pouco da tinta azul escorrer pela mulher como sangue.
Depois de quase vinte minutos escrevendo apressadamente, ela deu um passo para trás, parecendo esperar a tinta secar. Ela então pegou um bisturi limpo de seu armário e, com um cuidado que não teve ao escrever, começou a cortar as costas da mulher morta, arrancando a pele sobre a qual ela havia escrito e deixando para trás um pequeno pedaço de carne esfolada. Ela a pendurou, ainda pingando, em um gancho que eu não havia percebido na parede, depois se aproximou do telefone e fez uma ligação.
A ambulância chegou tão rápido que me perguntei se estavam esperando por ela. Três homens uniformizados do Serviço de Ambulâncias de Londres entraram. Eles exibiam expressões mal-humoradas e amargas e não trocaram palavras com a Dra. Tellison enquanto embrulhavam a mulher em um saco de cadáveres e a levavam para fora.
A doutora entregou ao mais velho deles um envelope que eu só posso presumir que continha uma grande quantidade de dinheiro e eles foram embora. Tenho certeza de que eles nunca nem chegaram perto do hospital.
Agora estava escuro lá fora e eu sabia que minha mãe ficaria preocupada, mas eu não tinha como sair dali sem ser vista. E eu nem queria, enquanto ainda tinha chances de assistir mais daquele ritual estranho.
À medida que a pele do gancho secava, a doutora abriu o grande livro e vi que suas páginas espessas estavam grosseiramente costuradas na lombada com uma linha grossa. Ao folhear aquelas páginas, elas caíam com uma suavidade inconfundível.
Ela parou em uma página aparentemente aleatória perto do final do livro e começou a ler em voz alta, seu dedo fino traçando as linhas do texto que eu não conseguia ver.
Enquanto ela falava, senti o ar ficar denso e pesado, um cheiro de terra molhada rolando pelo prédio e se instalando em meu peito. Eu não sei exatamente quando ele apareceu. Na verdade, mesmo agora, ainda não consigo identificar o momento em que eles chegam — foi como adormecer, simplesmente aconteceu.
O velho que agora estava diante da Dra. Tellison era familiar para mim, apesar de eu não saber o nome dele. Lembrei que era um de seus pacientes que havia sido levado em uma ambulância cerca de três semanas antes. Lá estava ele, curvado e encolhido. Ele falou com a voz embargada, implorando para que ela o soltasse, exigindo saber o que estava acontecendo. Em troca, ela o questionava sobre seu testamento, sobre seus dados bancários ou onde ele escondia dinheiro.
Eu não podia acreditar — um poder como esse e ela estava usando para tentar ganhar dinheiro. Isso me enojou. Ainda enoja.
Eu soube então que ela não merecia o livro.
Depois de dispensar o velho, ela desabou na cadeira da mesa, exausta, e adormeceu.
Eu peguei a navalha do meu pai do bolso. Era meu bem mais precioso e tudo o que tinha me restado dele depois que ele a usou para cortar a própria garganta. A única decisão sensata que ele algum dia tomou.
Eu rastejei pra fora do meu esconderijo tão lenta e silenciosamente que ela mal se mexeu quando a lâmina deslizou por sua traqueia. Eu nunca tinha matado ninguém antes. Eu particularmente não gostei. Minhas inclinações, previsivelmente, eram mais pra observar do que fazer aquilo eu mesma.
Ainda assim, senti uma satisfação no final. Eu tentei amarrá-la, mas não deu certo, e a página dela ficou uma bagunça horrível. Imagino que ela não goste de lá. Precisei de muito mais prática pra acertar — isso sem contar ter que aprender sânscrito — mas eu consegui, no final.
Depois de uma vida inteira, conheço todos os segredos, menos um. E eu tenho uma boa ideia de como encontrar ele.
Gertrude: Isso explica por que você rompeu com o Instituto. De quem vem o livro?
Mary: O Fim, é claro. Eu nunca conseguiria servi-lo realmente — simplesmente não acho a morte tão interessante. Mas sempre achei que ter uma única devoção fosse restritivo demais. Basta perguntar ao Eric. Ou o que restou dele.
Gertrude: E quanto ao outro livro? O menor.
Mary: Só um pouco de vísceras. Poemas sobre animais moribundos, também em sânscrito. Solta muitos ossos. Eu acho que nem tem um título de verdade. Inútil, mesmo. Acabei vendendo pro Leitner, embora ele tenha voltado pra mim depois do ataque.
Gertrude: Eu realmente deveria contar isso pro Elias.
Mary: Com certeza! Mas ele não é muito bom entrando em ação, não é? Ele só vai ficar feliz por eu ter prestado um depoimento.
Gertrude: E você tem alguma prova disso? Do seu "livro mágico".
Mary: Aqui, você pode ficar com essa página. Eu me certifiquei de que estivesse em inglês.
Gertrude: Quem... Quem é?
Mary: Uma surpresa, querida! Só certifique-se de estar sozinha quando for ler. Adeus, Gertrude. Me deseje sorte.
Gertrude: Bem... Eu não sei muito bem o que acrescentar a isso. Se o que ela diz for verdade, devo pensar cuidadosamente antes de ler essa página em voz alta. Eu provavelmente deveria destruí-la... mas eu odeio o cheiro de pele queimada.
Enfim, essa é uma decisão pra outro dia.
Eu preferiria tomar uma xícara de chá, eu acho.
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ARQUIVISTA
Tem muita coisa aqui. De muitas maneiras, o contexto que isso dá à estranha relação de Mary Keay com a morte é a parte menos interessante disso. Eu sabia que a família dela estava ligada a Jonah Magnus e ao Instituto de alguma forma, mas não fazia ideia de que Gertrude estava envolvida. Mesmo que não gostassem uma da outra. Talvez eu já devesse saber disso.
Elias pode não ter matado ela, mas tem muita coisa que ele não tá me contando. Mas tenho medo de perguntar. O Instituto Magnus não é o que parece ser, e até eu descobrir o que ele é e para que serve, não posso deixar o Elias descobrir o quanto eu já sei.
Mas, apesar de tudo isso, eu tô estranhamente animado. Porque o que mais me chama a atenção, mais do que qualquer outra coisa naquela fita, é o barulho da tábua do chão muito distinto no final. Algo que não mudou nos oito anos desde que esse depoimento foi prestado. Nunca tive qualquer motivo pra olhar com cuidado uma parte aleatória do chão. Essa parte nem sequer foi violada pelos vermes... porque tinha o compartimento escondido da Gertrude embaixo dela.
Hum. Nenhuma página estranha feita de pele. Mas tem um computador e uma chave. Eu me pergunto o que ela abre. Fim do complemento.
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arquivosmagnusbr · 1 year ago
Text
MAG061 — Acostamento
Caso #0160112: Depoimento da detetive Alice “Daisy” Tonner, a respeito da abordagem de trânsito de uma van de entrega na M6 perto de Preston na tarde de 24 de julho de 2002.
Ouvir em: Spotify | Youtube
Aviso de conteúdo: brutalidade policial
Tradução: Lia
ARQUIVISTA
Você não se importa se eu gravar isso, né?
Daisy: Fique à vontade.
Arquivista: Certo.
Daisy: Claro que se mais alguém ouvir...
Arquivista: Você vai me prender.
Daisy: Ha. Não.
Arquivista: Certo. Hum, então, você veio entregar uma das fitas? Da Basira? As, uh, as fitas de áudio. Então... Posso ver? Por favor?
Daisy: Tô pensando.
Arquivista: Certo. Pensei que você precisava que eu olhasse elas?
Daisy: Você não sabe, né?
Arquivista: Não sei se entendi.
Daisy: As fitas. Por que ela tava entregando elas pra você?
Arquivista: Ela... ela queria minha ajuda. Vocês não tinham um toca-fitas na delegacia.
Daisy: Ela pensou que tinha sido você.
Arquivista: Quê?
Daisy: Nós duas pensamos.
Arquivista: Espera, vocês achavam que eu tinha matado a Gertrude?!
Daisy: Sim.
Arquivista: Quê, hã, por quê?
Daisy: Olha pra você: você tá obcecado com isso, nervoso pra caramba e é a única pessoa que se beneficiou da morte dela.
Arquivista: Bom, eu... Quer dizer... Não fui eu.
Daisy: É. Eu sei. O pessoal do TI finalmente terminou de repassar as filmagens da semana em que ela desapareceu. Não tem câmera no arquivo, mas temos várias filmagens suas. Observei seus movimentos durante a semana toda. Você não matou ela.
Arquivista: Eu não... o que isso tem a ver com as fitas?
Daisy: Não tínhamos o suficiente pra te prender. A Basira tava com medo de você fugir.
Arquivista: Então, o quê? Vocês me deram algumas fitas pra me manter por perto?
Daisy: É.
Arquivista: E agora que vocês sabem que eu sou inocente...?
Daisy: Hum. Eu acho que deveríamos te cortar, mas a Basira é mole. Ela gosta de você. Não faço ideia do porquê. Talvez ela continue te entregando as fitas, o que não me envolve — eu não pretendo ver ou ouvir mais nada sobre isso.
Arquivista: Bom... obrigado, detetive Tonner.
Daisy: Daisy.
Arquivista: Obrigado, Daisy.
Daisy: Claro.
Arquivista: Se você não se importa que eu pergunte, há quanto tempo você foi mandada pra seção...
Daisy: Eu me importo sim. 14 anos.
Arquivista: Acho que você não gostaria de prestar um depoimento?
Daisy: Sobre oquê?
Arquivista: Sobre o que você quiser. 14 anos — você deve ter visto um monte de coisas paranormais.
Daisy: E você quer que eu te conte sobre elas.
Arquivista: Uh, eu...
Daisy: Tá bom.
Arquivista: Quê?
Daisy: Tá bom. Vou te dar um depoimento sobre como consegui a minha primeira Seção 31. Você parece surpreso.
Arquivista: Quer dizer, eu tinha perguntado mais como uma formalidade, a Basira não me passou a impressão de que você era do tipo de pessoa que compartilha coisas.
Daisy: Talvez você tenha me pegado de bom humor.
Arquivista: Certo, então... que bom. Você precisa que eu repasse a nossa política de privacidade?
Daisy: Não, desde que você entenda a minha política: se isso vazar, eu vou quebrar todos os ossos do seu corpo.
Arquivista: Tem coisas piores que poderiam acontecer com eles...
Daisy: Quê?
Arquivista: É... nada. Depoimento da detetive Alice “Daisy” Tonner, da Polícia Metropolitana de Londres. Qual é o assunto?
Daisy: Abordagem de trânsito de uma van de entrega na M6 perto de Preston na tarde de… 24 de julho de 2002.
Arquivista: Gravado diretamente do indivíduo em 1º de dezembro de 2016.
Início do depoimento.
DAISY (DEPOIMENTO)
Isso aconteceu muito tempo atrás. Eu já era policial há dois anos. Eu nem tava com o Met ainda naquela época. Eu atuava em Lancashire em uma unidade de policiamento rodoviário. Isso foi antes da agência de rodovias assumir a maior parte do trabalho pesado, então tínhamos muitas coisas pra fazer. Não era muito divertido, mas precisava ser feito. Abordar motoristas bêbados era o meu favorito. Eu sempre torcia pra eles recusarem o bafômetro ou talvez até me atacarem. Nada mais engraçado do que um babaca bêbado tentando evitar ser preso.
Eu geralmente rodava com Isaac Masters. Ele trabalhava com a PRF há muito mais tempo do que eu e era ainda mais duro do que eu. Mas eu sei por quê. Ele tentava ser um bom policial, dar uma chance pra todo mundo, mas nós víamos muitos acidentes — não tem muita coisa no mundo que seja pior do que um acidente de carro realmente grave. Isso te afeta. Você endurece com as pessoas que não respeitam a estrada, e tem muita gente assim por aí.
Estava chovendo naquela noite — aquela chuva pesada e forte onde você não consegue ouvir mais porcaria nenhuma. Aquela que bate no telhado como se alguém estivesse pulando nele. Eu e o Zack estávamos parados no acostamento, observando o trânsito e tentando beber café. Tínhamos pegado em um posto de gasolina a alguns quilômetros de distância, mas era um daqueles copos de isopor abertos. Quando voltamos pro carro, a chuva já tinha molhado tudo e nós ficamos com dois copos de uma lama fria.
Então nós dois estávamos bem de mau humor. Talvez fosse uma hora da tarde, mas não dava pra saber. As nuvens não deixavam passar nenhum sol e tudo parecia cinza, úmido e sem vida. Não conseguíamos nem conversar por causa do barulho da chuva batendo no teto, então ficamos ali sentados em silêncio, bebendo lama morna.
A rodovia estava mais silenciosa que o normal. Uma tarde de quarta-feira não tem muito trânsito, mas a chuva costuma trazer mais carros. Naquele dia estava bem vazio. Todo mundo parecia estar dirigindo com cuidado por causa da chuva, o que também não era normal, e eu fiquei dividida. Parte de mim queria achar algum idiota em quem eu pudesse descontar meu mau humor, e a outra parte de mim não queria ficar mais molhada do que eu já tava.
Parecia que eu não teria escolha, de qualquer jeito — pelo menos não até eu ver a van. Era um velho Citroën C15 surrado. Havia alguma coisa escrita na lateral, mas eu não conseguia ver direito através da chuva. Estava muito suja ou era pintada de um tom desagradável de branco acinzentado.
Mais importante ainda, estava dirigindo a mais ou menos 40 quilômetros por hora. O limite é 120. Tecnicamente, não existe velocidade mínima pra andar em uma rodovia, mas a van não parecia estar acelerando e aquilo era meio estranho. Tínhamos motivos suficientes para pará-los, se quiséssemos. Eu não tinha certeza se deveria deixar passar ou não, mas o Zack claramente já tinha se decidido. Ele estava no volante e acendeu as luzes enquanto dirigíamos atrás deles.
A van parou no acostamento ao lado da estrada e ficou ali parada. Os faróis, que estavam acesos por causa da chuva, se apagaram. Aí eles só ficaram esperando.
O Zack saiu primeiro. A chuva estava tão densa que ele teve que pegar a lanterna pra enxergar direito. A luz passou pela van e pude ver ferrugem rastejando pelas bordas dos painéis.
Caminhamos até o lado do motorista. Eu conseguia ver formas escuras lá dentro, mas elas não estavam se mexendo. De perto, consegui ler o nome escrito ao lado: "Entregas de Breekon e Hope". Estava coberto por uma camada espessa de sujeira que a chuva não conseguia lavar.
Zack bateu na porta e ela se abriu. O homem que saiu parecia normal — tão normal que hoje em dia nem consigo lembrar do rosto dele. Ele disse que seu nome era Tom. Não fui eu que olhei a carteira de motorista dele, então não sei o sobrenome.
Dois homens saíram do outro lado. Eles eram enormes. Rostos duros parecendo um par de estátuas velhas de pedra vestidos com macacões e bonés. Eles perguntaram o que tava acontecendo, falando alternadamente com um sotaque caipira tão forte que soava tão falso que eu até pensei que eles estavam de brincadeira. Eu tava pronta pra dar uma dura neles quando um barulho me interrompeu.
Zack estava conversando com o “Tom”, que dava uma explicação qualquer pra direção lenta — cautela, chuva forte, estrada vazia, essa porcaria toda. Eles também ouviram, e ele parou no meio da frase pra olhar pra mim.
Da parte de trás da van veio um som de gemidos. Parecia um gemido de dor, mas longo e arrastado. Continuou por quase um minuto inteiro e foi quase, sei lá, meio melódico. Olhei pro Tom e pros falsos passageiros caipiras, mas seus rostos estavam ilegíveis.
Zack agarrou Tom com força pelo braço e o levou até as portas traseiras da van, exigindo que ele as abrisse. Ele não tentou resistir, simplesmente assentiu e pegou um molho de chaves. Ele colocou uma na porta, girou e a van se abriu.
Eu vi que os dois marmanjos tinham se aproximado de nós, então eu já tava me preparando pra brigar, mas não tinha como eu ter adivinhado o que tinha ali.
Era um caixão. Um caixão velho de madeira. Áspero, sem verniz. Eu conseguia ver as lascas onde os pregos tinham sido martelados de qualquer jeito. Tinha uma grossa corrente de metal enrolada ao redor dele e trancada com um cadeado pesado. Aquele gemido estranho tava vindo de dentro dele. Era o único som que atravessava a chuva forte.
Fiquei tensa e peguei meu cassetete — se aquelas pessoas fossem sequestradores ou algo pior, nós estaríamos em apuros. Eu tava pronta pra uma briga, mas eles só ficaram parados lá, sem se mexer, olhando pra nós. Tudo naquela situação parecia errado.
Olhei pro Zack e ele parecia estar pensando a mesma coisa. Ele olhou para os dois homens de macacão e os mandou pegarem o caixão, depois olhou pro Tom e perguntou se ele tinha a chave do cadeado. Enfiando a mão na jaqueta, o homem que se chamava de Tom pegou uma chave grande de ferro e a entregou ao meu parceiro. Ela não se parecia com as outras chaves.
Eu queria voltar para o carro e chamar alguns reforços, mas Zack era um oficial superior, e se ele achava que deveríamos abrir o caixão primeiro... eu apoiaria sua escolha.
Zack pegou a chave e caminhou em direção ao caixão, que agora estava na pista molhada, iluminado apenas pelos faróis do nosso carro. O gemido tava mais alto agora, quase abafando o som da chuva forte. A água tinha começado a escorrer da madeira, mas todo o resto do caixão ainda permanecia imóvel.
À medida que nos aproximamos, pude ver as palavras "Não Abra" riscadas na superfície da madeira. Mas não parecia que meu parceiro tinha ligado pra isso — ele colocou a chave na fechadura gentilmente, estremecendo ligeiramente ao tocar o metal e a girou.
As correntes se soltaram como se fossem acionadas por uma mola. Eles se viraram violentamente e Zack deu um pulo pra trás, escorregando e caindo de costas. Preparei meu cassetete para o caso de os estranhos fazerem algum movimento, mas eles estavam... imóveis.
O gemido tinha parado. O único som era o ranger das dobradiças quando a tampa do caixão começou a se mover. Foi devagar, primeiro abrindo apenas uma fresta antes de finalmente se abrir completamente. Tava escuro demais pra ver o que tinha lá dentro no começo, mas quando apontei minha lanterna pra lá, ouvi Zack arfar. Acho que eu também arfei.
Dentro daquele caixão de madeira havia uma escada. Ela descia aparentemente até além do chão, e parecia ir mais fundo do que era possível ver. Ela era íngreme, escavada no que parecia ser pedra sólida, e a rocha que compunha as paredes não combinava com o asfalto molhado ao nosso redor nem com toda a terra que estaria por baixo dele. Era completamente impossível.
Tentei perguntar ao Tom ou aos seus colegas o que era aquilo, gritei com eles pra explicarem o que diabos tava acontecendo, mas eles só ficaram parados ali encarando ela. Então eu bati em um deles com o meu cassetete.
Foi em um dos homens grandes de macacão, não tenha certeza de qual deles. Foi como bater em madeira maciça, e o golpe sacudiu meu braço, me fazendo derrubar a única arma que eu tinha. Mesmo assim, ele só ficou lá, encarando o caixão. Ouvi um som de algo se movendo atrás de mim. Eu me virei e vi o Zack entrando no caixão, sua lanterna iluminando o buraco abaixo. Ele já tinha desaparecido até a cintura e estava com uma expressão no rosto que eu nunca tinha visto antes — relaxado, como se ele estivesse dormindo.
Eu gritei com ele, comecei a correr mas senti uma mão enorme segurar meu ombro. Agarrei a mão com o meu braço livre, tentei escapar dela, mas o aperto era muito forte. A textura da carne era como a de uma borracha dura. Tudo o que eu consegui fazer foi observar meu parceiro adentrar a terra, descendo por escadas que nem poderiam estar ali. Depois de alguns segundos ele desapareceu completamente de vista.
Eu esperava ouvir alguma coisa — gritos, um pedido de socorro, alguma coisa — mas eu ainda só ouvia a chuva. A tampa se fechou bem devagar, e aí ele se foi. Só um caixão deitado no acostamento da M6.
A mão largou meu ombro quando os dois homens de macacão começaram a se aproximar e calmamente enrolaram as correntes de volta.
Tive uma súbita explosão de raiva e peguei meu cassetete. Eu investi contra eles, mas o que tava mais próximo de mim se moveu mais rápido do que eu imaginava ser possível. O punho dele acertou meu peito como uma bala de canhão e eu senti algumas costelas quebrarem. Desabei no chão e só fiquei deitada lá enquanto Tom e os dois homens trancavam o caixão, o colocavam de volta na van e iam embora. Eu nunca mais vi Isaac Masters.
Quando chamei ajuda, eu esperava uma perseguição, uma investigação — algum tipo de justiça. Não era como se não tivéssemos um monte de pistas. Em vez disso, recebi um formulário que eu não reconheci, me mandaram assinar e depois fui transferida pro Met. Desde então, tem sido uma história de fantasma atrás da outra.
Arquivista: Certo. Obrigado. Você tá bem?
Daisy: Não. Nunca contei essa história pra ninguém além do meu antigo sargento.
Arquivista: Eu... não sei se eu...
Daisy: Eu tenho que ir.
Arquivista: Sim, claro, eu te acompanho até a saída. Uh, tem mais uma coisa — eu tava querendo perguntar pra Basira, mas você deve saber mais...
Daisy: Eu terminei.
Arquivista: Ah, sim, é só que... você sabe alguma coisa sobre vampiros?
Daisy: Sim.
Arquivista: Ah! Ah, é só que...
Daisy: Um tempo atrás tivemos alguns problemas. Irregularidades em apreensões em casos de pessoas desaparecidas. Suspeitos sendo liberados sem o devido interrogatório. As gravações das entrevistas mostravam que os sujeitos não diziam uma palavra, mas os policiais que os entrevistavam deixavam eles irem mesmo assim. Não sei os detalhes da investigação, mas agora temos um novo procedimento de operação.
Arquivista: Que seria...?
Daisy: Os casos que correspondem a determinados parâmetros devem ser monitorados por outro oficial fora da sala por vídeo. Na circunstância muito específica em que o suspeito não diz nada, mas o oficial interrogador age como se tivesse dito, ele é imediatamente tirado da sala. Aí eles ligam pra mim.
Arquivista: Só pra você?
Daisy: Tem alguns outros por aí que também fazem isso, mas eu cuido de mais ou menos uma dúzia de delegacias. Algemo as mãos e as pernas do suspeito, levo ele pro meio da Floresta de Epping e o queimo até só sobrar as cinzas. Nunca sobra nada pra dar problema. Eu não sei se eles são exatamente vampiros, mas é assim que os chamamos.
Arquivista: Meu Deus. De quantos você já... cuidou?
Daisy: Hum... cinco nos últimos nove anos.
Arquivista: Entendi...
Daisy: Não conta pra Basira. Ela não sabe sobre esse procedimento. Eu não sei se ela entenderia, ela... ela não tá... preparada pra esse tipo de trabalho.
Arquivista: Claro que não.
Daisy: Não fala nada pra ela, ok? Eu nunca estive aqui. Se ela quiser te dar mais fitas o problema é dela, mas você fica quieto sobre essa visita. Entendeu?
Arquivista: Claro!
Daisy: Bom.
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ARQUIVISTA
Complemento.
Essa foi... uma entrevista interessante. Parece que ainda não terminamos com os caixões sinistros. O conteúdo foi surpreendente, no mínimo, mas não nos dá nenhuma pista real sobre sua origem, propósito ou até mesmo sua relação com Breekon e Hope. Será que eles são simplesmente entregadores? Guardiões? Reféns?
Pelo menos eu também tenho a confirmação de que os vampiros que Trevor Herbert descreveu não são só invenções de uma mente viciada em drogas. Eu provavelmente não deveria ficaria tão feliz em descobrir que tem caçadores ainda mais violentos nos perseguindo durante a noite, mas aí está.
Vou admitir que me sinto um pouco magoado pelas verdadeiras motivações da Basira. Acho que não é muito surpreendente, não tenho estado muito... estável nos últimos meses. De qualquer forma, não vou falar sobre isso.
Mesmo se eu não estivesse realmente com medo da detetive Tonner, falar disso só prejudicaria nosso relacionamento, e eu preciso dessas fitas. Não posso me dar ao luxo de deixar o tempo que a Gertrude passou no Instituto desaparecer no esquecimento.
Vou ouvir a que eu recebi e esperar por notícias da Basira. Ou talvez eu deva tentar entrar em contato? Eu realmente deveria ter pegado o número dela ou algo assim. Bom, isso é um problema pra depois. Preciso ir pra casa. Tentar dormir um pouco.
Eu só queria que não estivesse chovendo.
Fim do complemento.
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arquivosmagnusbr · 1 year ago
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MAG060 — Efeito do Observador
Caso #9721207: Depoimento de Rosa Meyer, a respeito de uma sensação persistente de estar sendo observada.
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Aviso de conteúdo: paranoia, escopofobia
Tradução: Lia
ARQUIVISTA
Depoimento de Rosa Meyer, a respeito de uma sensação persistente de estar sendo observada. Depoimento original prestado em 12 de julho de 1972. Gravação de áudio por Jonathan Sims, arquivista chefe do Instituto Magnus, Londres.
Início do depoimento.
ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Aquilo ainda tá lá — ainda tá me observando. Não tem nenhum lugar pra onde eu possa ir, nenhum lugar que eu possa me esconder onde aquilo não vai continuar me olhando. Eu não sei por quê. Não faço ideia do que ele quer de mim, ou se ele já planejou alguma coisa além de só ficar me encarando de onde quer que ele esteja se escondendo. Não consigo comer, não consigo dormir — já faz meses e ele ainda tá lá.
Você não consegue ver ele, eu sei. Eu também não consigo ver, mas isso não importa, porque ele consegue me ver. E é isso que importa. Eu consigo sentir o olhar dele queimando a minha nuca. Será que ele me odeia? Será que ele só quer que eu continue vivendo com medo? Eu não sei por que isso tá acontecendo comigo.
No começo, eu pensei que era uma pessoa, algum stalker se escondendo. Eu tinha essa ideia de que se eu continuava sentindo que alguma coisa tava me observando, então devia ser uma pessoa fazendo isso. Devia ter alguém me seguindo. Não é como se eu nunca tivesse tido stalkers antes.
Comecei a examinar os rostos de todos por quem eu passava, tentando ver se eu os reconheceria, se tinha os visto antes em algum lugar. Será que eu reconheci o homem de sobretudo verde no ônibus hoje de manhã? Aquele cara na bicicleta deu meia volta na estrada e passou por mim de novo? Não. Não eram eles. Não era. Ninguém estava me seguindo, mas alguma coisa estava me observando. Ainda está.
O estranho é que é uma sensação com a qual eu deveria estar acostumada. Tenho sido assistida por pessoas há anos. Eu apresento o quadro "Look East" pra BBC News quase todos os dias — bom, eu costumava apresentar. E do outro lado da câmera havia dezenas de milhares de pessoas, mas eu nunca senti isso vindo delas. Às vezes, enquanto mantinha os olhos fixos naquela câmera, falando sobre os últimos assaltos que tinham acontecido, eu tentava sentir — tentava imaginar todas as pessoas me vendo, me assistindo. Mesmo assim, mesmo quando eu tentava, nunca passava de uma lente vazia e sem vida. Talvez seja bom que eu nunca tenha sentido isso antes.
Perdi meu emprego em duas semanas. Essa sensação tomou conta de mim, eu não conseguia me concentrar, não conseguia olhar pra câmera, não conseguia ler as palavras vazias e sem vida na página. Acabei tendo meio que um colapso ao vivo. Ainda bem que você morar em Londres, senão, poderia ter visto.
Eu sei quando isso começou. Olhando agora, tudo parece tão claro, como se um botão tivesse sido apertado bruscamente e, de repente, minha vida foi destruída. Foi três meses atrás, em abril. Eu estava fazendo o inventário de alguns bens do meu irmão, e cabia em grande parte a mim cuidar disso depois da morte dele. Meus pais estavam sofrendo muito e não estavam com cabeça para viajar até a pequena casa dele em Southampton pra tentar organizar os poucos pertences dele.
Acho que eu não tava com a cabeça muito boa, pra começo de conversa. Ninguém deveria ter um derrame e morrer tão jovem. Quer dizer, ele só tinha 38 anos e não era exatamente super saudável, mas pareceu ser tão... do nada. Sempre fui bastante religiosa e acreditava que as coisas aconteciam por uma razão, que as bênçãos finalmente chegariam aos honestos e a desgraça aos ímpios, mas agora não sei.
Talvez dê pra dizer que a minha curiosidade foi o que trouxe isso até mim? Mas não abri a caixa porque tava curiosa, eu abri porque eu precisava pra fazer o inventário completo dos pertences do meu irmão morto. Eu sinceramente não acho que isso seja uma transgressão. Ela nem sequer tava marcada como especial — não era lá um baú de carvalho ou um caixote de latão com três fechaduras —, era só mais uma caixa de papelão marrom como qualquer outra.
Eu nem acho que alguma coisa nela me pareceu especial. Pensando agora, sinto que ela era marcante por si só, que chamava a minha atenção e eu ficava olhando pra ela por mais tempo do que pras outras caixas empilhadas ao redor da casa. O lugar tava tão silencioso... era um testemunho solitário do isolamento do Christopher. Ele nunca se casou, e parecia não ter nada naquela casa sombria que mostrasse que ele tinha amigos com quem conversar.
De muitas maneiras, aquilo me lembrava da minha própria vida. Tenho vários amigos em Norwich, mas nenhuma família além do Christopher e meus pais, embora eu tenha os meus motivos. Ainda assim, mexer nas coisas do meu falecido irmão me levou a algumas reflexões que me deixam desconfortável, e eu tava bebendo mais do que bebia normalmente.
Foi no meu segundo dia lá embaixo que eu abri a caixa. Eu estava vasculhando todas as caixas de documentos antigos dele, e tinha muitas. O Christopher tinha trabalhado pro departamento de história da Universidade de Southampton. Não sei no que ele se especializou — nós nunca conversávamos sobre o trabalho dele — mas, com base no que eu encontrei de seus estudos, ele escreveu alguns livros sobre mitos e fetiches antigos, sobre aqueles objetos que várias culturas acreditavam ter poder sobrenatural ou religioso imbuído neles.
Seu primeiro livro foi sobre a santa cruz do cristianismo e como ela funciona como um fetiche na nossa cultura. Isso me ofendeu um pouco — fiquei preocupada que ele estivesse banalizando uma fé que, até onde eu sabia, ele compartilhava comigo. Ainda assim, tentei ler um capítulo sobre a utilização da cruz em mitos de vampiros, mas era muito rebuscado e, sinceramente, um pouco chato. A maioria das caixas eram parecidas, cheias de anotações, recortes e pesquisas que não significavam absolutamente nada pra mim. Deixei essas de lado pra verificar com Angus Cartwright, um dos colegas de Christopher que eu contatei pra dar uma olhada nos documentos dele que eu não conseguia entender.
Algumas das caixas, no entanto, continham o que eu só consegui presumir serem pesquisas práticas: objetos de fetiche e totens de todo o mundo, pequenas figuras de animais esculpidas em ossos, cordões de contas de vidro amarradas em padrões intrincados com nós, estatuetas grotescas quase humanas feitas de madeira e couro velho. Alguns deles eram mais do que um pouco perturbadores, mas só um conseguiu me mandar pra paranoia que eu tô agora.
Como eu disse, foi uma das últimas caixas que eu abri no segundo dia. Já tava tarde, e eu já tinha esvaziado a maior parte de uma garrafa de vinho. Quanto mais eu penso nisso, mais eu acho que abrir aquela caixa não foi diferente de nenhuma das outras. Não senti nada estranho, nenhum cheiro... nada. Era apenas uma caixa quase vazia, se não fosse por uma única nota datilografada e um espelho de mão velho.
Eles estavam lá dentro, totalmente inofensivos. Se era uma armadilha, não tinha como saber.
Peguei o bilhete primeiro. A digitação era perfeita — conseguiram deixá-la completamente centralizada, apesar de o pedaço de papel parecer ter sido arrancado de um pedaço maior. Estava escrito, com todas as letras maiúsculas:
"ATRÁS DE VOCÊ."
Acho que não preciso nem dizer o quão perturbador aquilo foi. Eu me virei e olhei pra trás quase antes de entender direito o que eu tinha lido. Havia uma janela atrás de mim com vista para a rua abaixo do escritório do meu irmão e para o céu escuro acima dela. Mas não tinha nada lá — ninguém andando pela rua, nenhum carro passando, nada que parecesse fora do lugar de alguma forma.
Olhei de volta pro bilhete, dei de ombros e estendi a mão pra pegar o espelho. Era um pouco mais pesado do que eu esperava e, sob uma espessa camada de poeira, a moldura parecia dourada, ou pelo menos folheada a ouro. O vidro em si estava um pouco sujo, mas ainda parecia estar intacto. Não faço ideia de quantos anos tinha ou em que época pode ter sido feito. Embora eu tenha revistado a caixa cuidadosamente, não consegui encontrar nada que pudesse explicar onde Christopher conseguiu aquilo.
Olhei no espelho. Eu estava uma bagunça. Cabelos sujos, olhos vermelhos de tanto chorar, lábios manchados de roxo pelo vinho. Eu não havia tido tempo nenhum pra me cuidar ou sequer olhar pra mim mesma desde que tinha chegado à casa do Christopher, e aquele espelho de mão antigo realmente me mostrou isso.
Suspirei, balancei a cabeça e me preparei pra abrir a próxima caixa quando o ângulo do espelho mudou ligeiramente na minha mão e eu gritei. Agora ele refletia a janela atrás de mim e eu vi um rosto olhando pra dentro. Estava escuro lá fora e ele estava quase inteiramente escondido nas sombras, então não consegui ver muito bem os detalhes, mas ele era enorme... parecia ocupar a maior parte da janela atrás de mim. A única coisa que eu conseguia ver com muita clareza eram os olhos — olhos brilhantes, ofuscantes e esbugalhados, com pupilas tão escuras que fizeram eu me sentir enjoada, absorvendo tudo, observando com uma intensidade gananciosa. Eu podia sentir o olhar dele queimando a minha nuca — sentir os olhos que nem piscavam.
Meus músculos travaram em terror, e o espelho caiu da minha mão, girando só uma vez antes de cair no chão e se quebrar em mil pedacinhos.
Sete anos de azar, né? Talvez seja isso. Talvez eu tenha que sentir esse pânico horrível dos olhos que eu sei que estão me seguindo por sete anos antes de eles finalmente irem embora. Eu espero que não. Mas talvez até isso seja pensar positivo. Talvez agora essa seja a minha vida pra sempre, e isso nunca, nunca vai parar.
Tentei pensar se eu seria capaz de continuar, se fosse esse o caso. Acho que tentaria, pelo menos até meus pais falecerem. Eu não suporto a ideia de eles perderem os dois filhos.
Obviamente, foi aí que meus problemas de verdade começaram. Eu poderia descrever o rosto como uma alucinação rápida e horrível, mas a sensação de estar sob constante escrutínio e observação não é algo que eu consigo explicar muito bem. Considerei a possibilidade de só estar enlouquecendo. Ser observado não é um sintoma incomum de psicose ou esquizofrenia e tenho estado atenta a outros sintomas, mas em todos os outros aspectos, eu me sinto bem. Claro que eu tô tendo dificuldade pra me concentrar, mas é só porque eu não consigo dormir porque eles estão me observando. Aqueles olhos invisíveis que se escondem por toda parte e não me deixam descansar.
Eu não tô louca. Tenho certeza que não tô. Ainda tenho o que sobrou do espelho. Agora é só uma moldura de ouro amassada. Tentei colocar um vidro novo nela, mas os únicos olhos que ela mostra são os meus.
Mas eu conversei com o Angus. Ele parecia um pouco nervoso com os questionamentos que eu tava fazendo — ou talvez era só a intensidade com a qual eu fazia as perguntas — mas ele me respondeu. Ele não reconheceu o espelho, mas alguns anos atrás, Christopher estava pensando em escrever um livro sobre os totens do que ele chamava de "cultos externos" — pequenos grupos organizados de adoradores cujas crenças não eram simplesmente desvios do paganismo ou de outras grandes religiões, mas pareciam se concentrar em seres sagrados ou conceitos completamente à parte do que seria considerado uma prática religiosa normal. Alguns pareciam ter mais em comum com o xamanismo antigo do que com uma adoração hierarquicamente organizada, e todos eram altamente secretos.
O Christopher aparentemente tinha coletado vários artefatos que eram considerados sagrados por algumas dessas seitas, embora eu não tivesse encontrado nenhum detalhe sobre isso nos documentos dele. Angus não tinha certeza, mas ele acreditava que o espelho poderia ser um desses objetos. Aparentemente, Christopher abandonou o projeto cerca de um ano antes de sua morte, optando, em vez disso, por seguir uma linha de pesquisa sobre esculturas cerimoniais inuítes.
E é aqui que finalmente chegamos ao motivo pelo qual estou aqui. Porque o Angus me disse que meu irmão não estava fazendo aquela pesquisa sozinho.
Aparentemente, ele havia feito várias viagens a Londres para consultar o seu Instituto. Não sei por que ou sobre o quê, e ninguém aqui parece ser capaz ou disposto a me ajudar a descobrir, mas ele esteve aqui. Eu não vou descansar até descobrir o porquê. Não que eu conseguisse descansar, de qualquer forma.
Aqueles olhos ainda assombram os meus sonhos e me seguem pelo mundo real, mesmo aqui. Especialmente aqui.
ARQUIVISTA
Fim do depoimento.
Meio estranho esse aqui. O final do século XX parece estar um pouco mais bem arquivado do que a maioria dos arquivos, por isso não vimos tantos depoimentos falsos surgindo desse período.
A maioria dos detalhes do depoimento da Srta. Meyer parece se comprovar — a Sasha recebeu uma confirmação da BBC de que ela realmente foi uma das âncoras do Look East Evening News entre 1970 e 72, até sofrer um colapso nervoso e danificar várias câmeras em seu estúdio em Norwich.
A verificação do Martin com a Universidade de Southampton também parece confirmar os detalhes da vida e morte de Christopher Meyer. Até tentei ler um ou dois dos livros dele, mas eles eram um pouco rebuscados demais até pra mim, e não pareciam ter nenhuma relevância em particular pro caso.
Não consegui localizar nenhuma evidência de que ele fez uso da biblioteca ou dos serviços de consulta do Instituto, mas mesmo hoje em dia esses registros não são mantidos tão minuciosamente quanto deveriam, então isso não significa necessariamente que ele não esteve aqui.
O mais interessante foi o que o Tim descobriu sobre as duas últimas décadas da vida da Srta. Meyer, antes de ela morrer na prisão em 1993. Depois do depoimento, ela aparentemente passou quase 12 anos trabalhando em empregos de baixo nível, até que sua mãe e seu pai faleceram de câncer e doenças cardíacas, respectivamente.
Não tem nada de interessante sobre esse período em nenhum registro oficial, mas em 24 de outubro de 1984 ela assassinou um motorista de van de entregas chamado Danilo Costich.
Ela descarregou a carga original da van, que era composta por papéis de arquivo e envelopes, antes de enchê-la com vários barris de gasolina. Ela foi detida ao sul da ponte Vauxhall depois de ultrapassar um sinal vermelho e colidir com outro carro. Por sorte a gasolina não pegou fogo e ela foi detida pela polícia enquanto tentava fugir do local.
Originalmente acusada de direção imprudente, não demorou muito pra ligarem ela ao assassinato do Sr. Costich, e ela recebeu uma sentença de 17 anos na Penitenciária Feminina de Holloway. Ela morreu de pneumonia nove anos depois.
Um crime bizarro e aparentemente sem motivo. O único detalhe que ainda me incomoda é que a empresa para a qual Danilo Costich trabalhava, a Paper Run Limited, é a mesma empresa que na época fornecia a maior parte dos artigos de papelaria para o Instituto Magnus. Tenho um mau pressentimento sobre pra onde exatamente ela tava levando aquela gasolina.
Fim da gravação.
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Arquivista: Vocês não se importam se eu gravar isso, né?
Elias: Bem, pra falar a verdade...
Tim: Essa é uma das coisas sobre as quais queríamos conversar.
Martin: Isso aqui é uma intervenção.
Arquivista: Como é?
Elias: Se você quiser que essa seja uma audiência disciplinar oficial, John, podemos providenciar.
Arquivista: Tá. Podem falar.
Sasha: Nós nos preocupamos com você, John, e você tem estado bastante instável desde o incidente com a Prentiss.
Martin: E nós gostaríamos muito...
Elias: De não ter que te demitir.
Martin: De ter certeza que você tá bem.
Arquivista: Olha, eu entendo que estive um pouco... distante recentemente.
Tim: Você tava vigiando a minha casa.
Sasha: Você me seguiu durante meu horário de almoço e revistou a minha mesa.
Martin: Você disse que eu menti sobre um assassinato!
Arquivista: Eu... Eu... Isso foi porque...
Sasha: Você acha que nós matamos a Gertrude?
Arquivista: Não! É que... Talvez. Talvez tenham matado, eu não sei.
Elias: John, isso é um absurdo. Isso vai muito além de um ambiente de trabalho tóxico. Admito que parte disso é minha culpa por ter deixado as coisas chegarem a esse ponto, eu deveria ter intervido mais cedo.
Tim: Você ainda não acredita na gente, né?
Arquivista: Não é que eu não acredite em vocês, é só que... quer dizer, vocês podem ter matado ela!
Tim: Sério, escuta o que você tá falando.
Martin: Você tá errado!
Arquivista: Nós já estamos muito além do que é certo e errado, Martin — tem monstros lá fora, e eu não sei quem ou onde eles estão ou se algum de vocês... Se vocês querem que eu confie em vocês, então me desculpem, mas eu preciso de provas.
Elias: Aqui.
Arquivista: E o que é isso?
Elias: Uma cópia de todas as filmagens das câmeras da semana em que Gertrude desapareceu. A polícia finalmente terminou de limpá-las e examiná-las e nos deu uma cópia.
Arquivista: Não tem câmera no Arquivo.
Elias: Mas tem em todos os outros lugares. Incluindo em todas as entradas do Arquivo. E todos os vídeos mostram um relato notavelmente detalhado de todos os nossos movimentos durante aquela semana. Até os seus.
Arquivista: E você acha que isso dá um álibi pra todo mundo?
Elias: A polícia com certeza acha, mas fique à vontade pra confirmar você mesmo.
Arquivista: Obrigado. Eu vou.
Sasha: E não vamos mais ficar com essa paranoia.
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ARQUIVISTA
Estive assistindo às filmagens das câmeras que o Elias me deu. Elas realmente parecem dar um álibi consistente pra todo mundo, e ninguém é visto entrando ou saindo dos arquivos além da Gertrude. Pelo menos não até o Elias descer lá e encontrar o sangue.
Os próprios movimentos da Gertrude são um tanto instáveis e ela parece entrar e sair dos Arquivos a qualquer hora do dia e da noite, em alguns momentos aparecendo bem bagunçada.
Isso pode ser examinado com mais atenção mais tarde, mas por enquanto eu… Não consigo decidir se essa inocentação dos meus colegas é mais um alívio ou uma frustração.
No mínimo, parece que eu venho sendo... Venho sendo bastante injusto com eles.
Só espero que eles não tenham perdido totalmente o respeito por mim.
Mas uma coisa que não me tranquiliza em nada é o novo significado que isso dá aos túneis embaixo do Arquivo, porque parece cada vez mais provável que quem ou o que quer que esteja vivendo lá embaixo seja a mesma coisa que matou a Gertrude.
Fim do complemento.
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arquivosmagnusbr · 1 year ago
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MAG059 — Recluso
Caso #0052911: Depoimento de Ronald Sinclair, a respeito dos anos que passou em uma casa de recuperação para adolescentes na Hill Top Road, em Oxford.
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Aviso de conteúdo: insetos, aranhas
Tradução: Lia
ARQUIVISTA
Depoimento de Ronald Sinclair, a respeito dos anos que passou em uma casa de recuperação para adolescentes na Hill Top Road, em Oxford. Depoimento original prestado em 29 de novembro de 2005. Gravação de áudio por Jonathan Sims, arquivista chefe do Instituto Magnus, Londres.
Início do depoimento.
ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Eu deveria ter vindo contar isso pra vocês antes, na verdade. Ouvi falar do seu instituto nos anos 80 e pensei: "Devo contar a eles?" Mas não vim. Pensei que vocês se interessariam mais por castelos e marcos antigos e não tivessem tempo pra acontecimentos estranhos em uma casa suburbana em Oxford. E vocês também são acadêmicos, então provavelmente têm padrões mais altos do que a história de terror de um maluco.
Mesmo assim, vi na semana passada que eles estavam planejando construir novamente naquele terreno. Outra casa onde ficava a antiga casa dos Fielding. Eu não sei, não é como se vocês tivessem poder pra parar a construção, mas eu só... Eu precisava contar isso pra alguém. E era menos provável vocês me expulsarem do que o Departamento de Planejamento da Câmara Municipal de Oxford.
Olha, morei com Raymond Fielding por quase três anos e pode acreditar em mim quando eu digo que não tem nada de bom em perturbar aquele lugar horrível. 
Eu era uma criança ruim. Eu melhorei muito nos últimos 40 anos desde então, mas naquela época eu era um bandidinho. A culpa não era totalmente minha — eu vim de uma família ruim. Meu pai foi embora antes de eu nascer, e não sei se você sabe como era ser mãe solteira no final dos anos 40, mas era difícil o suficiente pra minha mãe acabar tendo um problema sério com álcool.
Não vou falar dos detalhes podres da minha infância, mas digamos que não é surpresa que eu tenha saído da escola e entrado no sistema antes do meu aniversário de 13 anos. Eles tentaram alguns lugares pra me endireitar. Naquela época, esses tipos de lugares não eram tão prestigiados, e a única lição de vida que eu aprendi que valeu a pena foi a de como levar uma surra.
Finalmente, quando eu tinha 15 anos, depois que o sistema judiciário terminou os trabalhos comigo pela terceira vez, tive a oportunidade de reingressar na sociedade e me ofereceram um lugar em uma casa de recuperação na Hill Top Road.
É estranho. Tentei conseguir informações sobre ela várias vezes desde então, mas não tem nada lá. É como se nunca tivesse existido. Quer dizer, isso foi bem antes da era digital e muitos arquivos se perderam, mas isso ainda me incomoda. Foi a coisa mais traumática que já aconteceu comigo e, no que diz respeito a qualquer registro oficial, não tinha nem como eu estar lá.
Raymond Fielding era mais jovem do que eu esperava. Em todos os outros lugares os responsáveis eram velhos moralistas e grossos, carrancudos com calos nos dedos. Um monte de ex-militares que discursavam por horas sobre como suas vidas desperdiçadas haviam sido salvas pela disciplina do exército e faziam o possível pra impor isso a nós.
Ray, como ele insistia que o chamássemos, era diferente. Ele não tinha muito mais do que 30 anos e deixava seu cabelo castanho crescer longo — não pelos padrões de hoje, eu acho, mas teria deixado qualquer um daqueles autoritários com corte militar enfurecido. Ele era amigável e acessível, mas não parecia estar tentando ser nosso amigo. Ele era tranquilo e sorria bastante. Mas tinha alguma coisa em seus olhos que me deixou com receio de tentar tirar vantagem dele.
Eu não gostei dele desde o começo. Os outros adultos que conheci na minha jornada pela delinquência eram horríveis e variavam de benfeitores arrogantes e condescendentes a bandidos agressivos, mas eu sempre sabia. Eu sabia o que eles eram e qual era o meu lugar perto deles. Ray era um mistério, e isso me perturbava. Ainda assim, ele não era muito rigoroso com as nossas idas e vindas e as outras crianças que viviam lá pareciam bem.
A única coisa que me surpreendeu foi como era raro ver alguém voltar. Na maioria das outras casas de recuperação em que fiquei sempre tinha alguns moradores mais velhos, aqueles que acabavam arrumando companhias criminosas ainda piores e voltavam ocasionalmente, geralmente pra vender drogas ou recrutar alguém.
As anfetaminas eram a moda no início dos anos 60, então fiquei surpreso quando me mudei para Hill Top Road e não vi nenhum rebite ou cristal por lá. Parecia que nenhum ex-aluno da familiazinha do Ray voltava lá pra visitar.
Na época, eu só presumi que aquele bairro era muito bom, então provavelmente não era o tipo de lugar que pessoas do meu tipo — como eu pensava naquela época — costumavam visitar. Eu não tava errado. Os moradores locais nos odiavam. Nunca tivemos nenhum problema sério, mas os olhares que recebíamos só por fumar na rua me faziam querer quebrar uma janela às vezes.
Mas eu nunca fiz isso. Eu não sei muito bem por que não fiz, pra ser sincero. Antes de conhecer o Ray, eu teria feito. Já tinha quebrado muitas janelas no passado. Mas tinha alguma coisa em morar naquele lugar que entorpecia aquela vontade.
Minhas memórias de grande parte do meu tempo lá são... bem, não exatamente confusas, mas eu sinto quase como se estivesse observando as memórias de outra pessoa. Lembro que às vezes parecia que eu fazia coisas sem realmente querer fazê-las. Como se fosse só a memória muscular me movendo, ou uma corda me guiando suavemente.
Nunca foram coisas ruins ou perigosas, só... coisas que eu normalmente não teria feito, como escovar os dentes. Fico feliz por isso agora que passei dos 60 anos e os meus dentes são algo que eu valorizo. Mas aos 15 anos esse pensamento nem passava pela minha cabeça. Mas quando eu morava na Hill Top Road, eu os escovava todas as noites, pra cima e pra baixo e de um lado pro outro, meu braço se movendo como se eu nem precisasse pensar naquilo.
As outras crianças que moravam lá faziam o mesmo. Pelo menos eu acho que faziam. Lembro de eles serem meio tediosos — não é que fossem chatos, exatamente; passávamos tempo juntos, fumávamos e brincávamos e tal. Mas tinha alguma coisa neles. Como se algumas coisas que eles diziam e faziam não tivessem nenhuma intenção por trás.
De vem em quando dava pra ver um lampejo de alguma coisa. Tipo naquela vez em que eu e Dick Barrowdale fugimos depois de escurecer e colocamos fogo nas latas de lixo do Sr. Hainsley. Mas na maior parte do tempo eles ficavam quietos, quase tranquilos. Com certeza eles diriam a mesma coisa sobre mim e, na época, não parecia ter nada de errado. Eu fazia o que eu fazia porque era o que eu tinha que fazer. Eu nem sequer pensava em me questionar. Não sei se realmente reconheço quem eu me tornei enquanto morava naquela casa.
Mas eu comecei a ler. Havia uma loja em Cowley que tinha um balde de revistas velhas com que custavam 6 centavos porque não eram a edição mais recente. Eu costumava gastar todo o dinheiro que tinha lá e depois sentava debaixo da árvore no jardim dos fundos e as lia várias vezes, de cabo a rabo. Elas eram idiotas, na real, mas eu amava. No verão, com as folhas fazendo sombra suficiente pra me refrescar, eu diria que ficava mais feliz do que nunca.
Na maior parte do tempo, o Ray parecia contente em ficar longe da gente e nos deixar por conta própria. Ele tinha seu próprio escritório no porão onde passava a maior parte do tempo, e geralmente confiava em um de nós para ir ao mercado comprar comida e coisas pra casa. Além da igreja, que ele nos fazia frequentar com ele todos os domingos, ele raramente saía da casa. De vez em quando um ou outro morador do bairro superava a aversão por nós por tempo suficiente pra  perguntar a Ray como estavam as coisas e se ele estava bem.
Com o passar do tempo, comecei a ter a sensação de que, com exceção dos adolescentes que ficavam em sua casa, Raymond Fielding era tipo um recluso. Um recluso bem querido, com certeza, mas ver ele sair de casa em qualquer dia que não fosse domingo era uma coisa bastante significativa.
Além da igreja, tinha uma outra atividade corriqueira que ele sempre insistia que participássemos. Geralmente fazíamos nossas refeições na sala de jantar — que às vezes era um pouco apertada pois, quando a casa estava cheia, éramos em oito além do Ray, e mal cabíamos na mesa.
Nas noites de domingo, no entanto, todos nos reuníamos para o jantar e, antes de nos sentarmos para comer, ele tirava a toalha de mesa branca e brilhante que a cobria e nos reuníamos ao redor da madeira escura. Lembro que ela era esculpida com vários tipos de desenhos e padrões estranhos e rodopiantes. Parecia que se você escolhesse uma linha — qualquer linha —, poderia segui-la até o centro, até alguma verdade profunda, caso seu olho conseguisse acompanhar os traços que tivessem te chamado a atenção.
O centro da mesa parecia, a princípio, simplesmente parte do tampo de madeira, mas se você olhasse de perto, como eu fazia com bastante frequência, você conseguiria ver uma linha marcando bem o meio como se fosse uma caixinha quadrada esculpida com padrões parecidos com os outros que se espalhavam sobre o resto da mesa. Não lembro quanto tempo ficávamos sentados à mesa naquelas noites, e também não faço ideia do que costumávamos comer.
Então eu passei alguns anos relativamente em paz. Eu estudei pra valer, fiquei longe de problemas e, à medida que meu aniversário de 18 anos se aproximava, parecia que eu conseguiria encontrar alguém que me ensinasse um ofício decente. Naquela época, eu fui o mais velho da casa por alguns meses, já que os outros saíram de casa quando cada um completou 18 anos. Um homem de terno aparecia — quase sempre era um diferente —, Ray assinava alguns papéis e meu ex-irmão saía pela porta e ia embora pro mundão. Eu não os via depois disso, mas na época eu não pensava muito sobre disso. Presumia que eles estavam muito ocupados tentando sobreviver em um mundo que eu sempre considerei extremamente hostil.
Agnes chegou na casa dois meses antes do meu aniversário, no meio do inverno. Ray nunca tinha falado dela — nunca fez uma daquelas pequenas reuniões dele para apresentá-la. Um dia, ela apareceu de repente em casa e ninguém nem pensou em questionar isso. Ela era mais nova do que as outras crianças, talvez dez ou onze anos de idade. Ela não falava muito. Ela tinha um rosto pequeno e fino e longos cabelos castanhos, sempre amarrados em duas tranças apertadas que ela enrolava nos dedos sempre que você tentava falar com ela. Admito que ela era um pouco assustadora, pensando agora, mas pra ser sincero na época eu nunca questionei isso, do mesmo jeito que nunca questionei nada daquilo.
Mas ela nunca ia à igreja. Nunca se sentava à mesa de jantar quando ela estava descoberta. Sempre que Ray entrava na sala e ela estava lá, ele geralmente só se virava e saía. E teve uma vez que eu podia jurar que ele olhou pra ela com algo nos olhos que, mesmo no meu estado entorpecido, percebi ser medo.
Eu tava tão focado na minha liberdade iminente que nem prestei muita atenção a esses acontecimentos, e não tenho muito mais o que dizer sobre a Agnes ou o que ela fez durante o tempo que passou na casa. Tudo o que eu sei é que, quando o homem do Comitê Infantil apareceu com os papéis pro Ray assinar, ela estava parada no pé da escada, me observando com uma expressão que parecia quase divertida.
Ray assinou os documentos pra me devolver totalmente à custódia do Estado. A maioridade naquela época era de vinte e um anos, mas a partir dos dezoito eu deveria encontrar trabalho e moradia por conta própria. Era tudo meio surreal — ver canetas marcando minha vida em seus diferentes estágios sem que eu mesmo segurasse nenhuma delas.
Quando o homem de terno me disse para segui-lo com um sotaque vindo direto da BBC, a Agnes se aproximou e gesticulou para que eu abaixasse para ouvi-la. Eu fiz isso, mas em vez de um sussurro conspiratório, ela só me deu um beijo rápido na bochecha e saiu correndo pelo corredor. Fiquei parado ali por um momento, confuso, antes que meu guardião temporário mais uma vez me mandasse segui-lo.
Eu o segui, e o ar frio do lado de fora me atingiu como um tapa na cara. Caminhamos por alguns minutos até o fim da estrada e parecia que minha pequena mala estava quase congelando em minha mão. Ele me disse para esperar lá enquanto ele ia buscar o carro, depois desapareceu em uma rua lateral.
Fiquei lá enquanto o vento cortante atravessava meu casaco fino. O sol estava brilhando, mas não ajudava muito a suavizar a intensidade do ar de fevereiro enquanto eu esperava.
Então, de repente, eu não estava mais esperando. Eu me virei, larguei minha mala no chão e comecei a caminhar de volta para a casa de Raymond Fielding. Eu não queria voltar. Eu não tinha motivos pra voltar, mas aparentemente decidi voltar mesmo assim, porque eu sabia que era pra lá que eu estava indo.
Depois de dois anos e meio eu já estava bastante acostumado com aquele sentimento, mas dessa vez tinha mais alguma coisa ali. Alguma coisa no fundo da minha mente, um terror frenético e devastador. Mas não adiantou nada. Eu tava voltando pra Hill Top Road, e não importava o que eu sentia sobre isso. A minha vontade nem fazia diferença ali.
A porta estava destrancada quando eu voltei e a casa estava silenciosa. Meus olhos dispararam ao redor, procurando por alguém que pudesse me dizer o que estava acontecendo — por que os finos fios que me guiavam pela vida me arrastaram de volta pra lá — mas eu tava sozinho. Caminhei até a porta que descia pro porão, pro escritório do Ray, e de repente fiquei chocado ao perceber que ninguém além dele nunca entrava ali. Pelo menos, não que eu saiba.
Mesmo assim, estendi a mão e girei a maçaneta silenciosamente, e a porta se abriu revelando um lance de escadas que levava para baixo. Lâmpadas em abajures esféricos iluminavam o caminho, e me ocorreu que, dado o tempo que Ray passava lá embaixo, era surpreendente a quantidade de teias de aranha ali. Elas cobriam todos os cantos e revestiam parcialmente as paredes. Ao descer as escadas, fechando a porta atrás de mim, vi ainda mais teias e cheguei à inquietante conclusão de que o que cobria as lâmpadas nuas não eram mesmo abajures, mas sim grossos aglomerados de teias de aranha.
A cena que eu encontrei quando finalmente cheguei ao pé da escada estava bem longe do que eu esperava encontrar. Em vez de um escritório cheio de livros, papéis, mesas e coisas assim, a sala era grande e estava quase vazia. As paredes e o teto eram de terra e aquilo parecia mais uma toca do que qualquer outra coisa.
No meio da sala estava aquela mesa hipnótica estranha, embora a forma como ele havia trazido aquela coisa pesada de madeira pra lá estivesse além da minha compreensão. O lugar inteiro estava coberto por uma espessa teia de aranha, e nos aglomerados grossos ao redor dos cantos da câmara eu vi formas que reconheci.
Doris Hardy. Dick Barrowdale. Greg Montgomery. Os mais velhos que saíram da casa antes de mim.
Eles estavam imóveis agora, envoltos em seus casulos pegajosos. Seus corpos pareciam deformados e inchados de um jeito que eu não entendia. Mas isso é só porque naquele momento da minha vida eu ainda nunca tinha visto um saco de ovos de aranha.
Raymond Fielding estava sentado na cadeira. Ele parecia o mesmo de sempre, aquele sorriso sereno e indecifrável ainda no rosto. Seu casaco de couro marrom parecia se mover ao redor de seu corpo. A textura na luz fraca parecia mais ser uma pele grossa.
Ele não disse nada, só observou enquanto eu continuava caminhando em direção à mesa. Apesar de todo o terror que estrangulava meu coração naquele momento ao descobrir o destino grotesco dos meus amigos, eu ainda conseguia sentir a expressão plácida e indiferente em meu rosto, e me vi diante da mesa como se não tivesse nada de errado.
Estendi a mão e puxei o quadrado de madeira do centro da mesa. Por si só, parecia ser uma pequena caixa de madeira, e a tampa abriu suavemente enquanto minhas mãos se moviam num movimento ensaiado. Dentro havia uma maçã — verde, fresca e ainda molhada com o orvalho da manhã.
Eu sabia que eu ia come-la. Eu podia sentir as lágrimas tentando desesperadamente escorrer dos meus olhos, mas em vez disso decidi não chorar. Coloquei a caixa na mesa, estendi a mão e peguei a maçã.
De repente, senti uma explosão de dor na bochecha. Foi como se alguém tivesse pressionado um ferro em brasa em meu rosto, e eu poderia jurar que ouvi a carne chiar quando soltei um grito e caí de joelhos.
Levei as mãos ao rosto e percebi duas coisas muito importantes naquele momento. A primeira foi que meu rosto parecia estar intacto; eu não conseguia sentir nenhum ferimento ou queimadura. A segunda foi que levantar a mão foi um ato verdadeiramente voluntário. Eu mesmo quis fazer aquilo, e qualquer que fosse o poder que estivesse me dominando, me puxando pra sua teia, eu estava livre dele.
Olhei para Raymond Fielding, cujo rosto finalmente mostrava uma expressão real — confusão e raiva. Quando ele se levantou, vi pequenas formas se contraindo e caindo de sua jaqueta, e eu corri. Subi correndo aquelas escadas, saí pela porta e fugi para a noite. Não olhei pra trás e até hoje rezo todas as noites para que os outros naquele porão já estivessem mortos.
É isso mesmo. Em duas horas eu estava fora de Oxford, dentro do primeiro trem que consegui pegar. Pulei fora em Birmingham pra evitar um fiscal de passagem. E foi lá que eu passei os anos seguintes. Levando em conta o começo da minha vida, até que me saí muito bem. Agora tenho conforto, educação e dinheiro. Tento pensar que deixei meu passado pra trás, mas esse tipo de negação não me ajuda a dormir. Só tive minha primeira noite verdadeiramente tranquila desde aquele dia depois de ler sobre o incêndio que queimou a casa.
Mas agora eles estão construindo lá. Eles estão revivendo um terreno que deveria ser deixado queimado e vazio. E eu comecei a sonhar de novo.
ARQUIVISTA
Fim do depoimento. 
O Sr. Sinclair não estava exagerando quando descreveu as dificuldades de rastrear informações sobre qualquer casa de recuperação para adolescentes na Hill Top Road. Ou sobre Raymond Fielding, no geral.
Embora eu esteja naturalmente propenso a suspeitar de alguma conspiração, o Martin me informou que as lacunas são parecidas com as de outros arquivos perdidos ou danificados. Faltam muitos registros desse período, não só relacionados a Fielding, mas a muitas outras instituições semelhantes na área. Também não existe nenhuma tentativa de encobri-los ou redirecioná-los. Parece que o armário que guardava esses registros foi perdido ou danificado nos anos seguintes.
Fiz o que pude pra evitar que Martin lesse esse depoimento com muitos detalhes. Não estou interessado em ter outra discussão sobre aranhas. Na verdade, depois de ler esse depoimento, não tenho interesse em pensar em aranhas nenhum pouco a mais do que me é exigido profissionalmente.
Isso levanta mais questões sobre a relação entre Raymond Fielding e essa tal Agnes. Só posso esperar que algumas respostas estejam em outro lugar nos Arquivos. Eu não ficaria surpreso. Entre Ronald Sinclair, Ivo Lensik e o Padre Burroughs, parece que ainda tenho muito a descobrir sobre a Hill Top Road. 
Fim da gravação.
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ARQUIVISTA
Complemento.
Todo mundo tá me evitando. Eles começaram a trabalhar mais longe de mim do que o normal e, quando eu chamo eles por qualquer motivo, eles estão sempre ansiosos pra sair daqui o mais rápido possível. Eles trocam olhares furtivos quando pensam que eu não tô olhando.
Eu não gosto disso. Sinto que eles estão planejando alguma coisa.
Fim do complemento.
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arquivosmagnusbr · 1 year ago
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MAG058 — Comida Para Viagem
Caso #8450512: Depoimento sem assinatura a respeito de um possível canibalismo ao tentar cruzar a Trilha do Oregon.
Ouvir em: Spotify | Youtube
Aviso de conteúdo: canibalismo
Tradução: Lia
ARQUIVISTA
Depoimento sem assinatura a respeito de um possível  canibalismo ao tentar percorrer a Trilha do Oregon. Carta original datada de 10 de novembro de 1845. Gravação de áudio por Jonathan Sims, arquivista chefe do Instituto Magnus, Londres.
Início do depoimento. 
ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Já aceitei que não vou sobreviver a isso. O frio arranha a minha pele e parece cortar até minha própria alma, e eu estou com tanta fome que mal consigo ficar de pé. Mas eu não vou ceder. Ainda consigo ouvi-lo me provocando. Me tentando. Mas prefiro morrer a participar de uma refeição tão profana. Tampouco tirarei minha própria vida, não importa qual seja o tamanho de meu sofrimento. Tenho certeza de que minha recompensa final chegará em breve, e receberei meu salvador com a consciência limpa e o coração cheio de fé. O pastor Lawrence me disse uma vez que não existem barrigas vazias no céu, e tenho certeza de que ele está certo.
Me pergunto se verei Benjamin lá. Espero que sim, apesar de todos os seus defeitos e sua tagarelice incessante. E ao lado de todos aqueles que perdemos, tenho certeza de que olharemos para a perdição e veremos Eustace Wick se contorcendo em agonia entre as chamas que ele merece.
Falando em chamas, devo pedir desculpas a quem tiver encontrado essa mensagem pelo estado do papel. Estou tendo que escrever isso perto do fogo que tenho, tanto para ter luz quanto para impedir que a tinta congele. Provavelmente haverá alguma queimadura, mas espero que fique legível.
Nunca deveríamos ter tentado cruzar a Trilha do Oregon. Sei disso agora. Eu deveria ter ficado em Savannah e construído a vida que podia — talvez aceitado me casar com Adam Hawthorne. Ele era uma década mais velho que eu, mas não ouvi nenhuma reclamação de sua esposa anterior enquanto ela era viva, e teria sido um destino melhor do que congelar até a morte nessas montanhas, ouvindo as provocações incessantes de Benjamin.
Mas minha vida anteriormente era repleta de provações e viagens, e havia uma parte da minha alma que sentia que este era simplesmente o meu destino. Então, quando meu pai se juntou à minha mãe no Céu, três anos depois de nos mudarmos para a pequena cidade de Savannah, em Missouri, parecia que me mudar novamente era o que o nosso bom Senhor planejava para mim.
Foi então, quando tive que escolher entre tentar ganhar a vida com 20 acres de solo do Missouri que meu pai havia deixado para mim ou construir uma vida por conta própria, que Benjamin Carlisle gentilmente pediu permissão para consertar sua carroça em minhas terras. Não vou negar que ele era um homem bonito. Mesmo agora, o frio preservou aquela expressão agradável de seu rosto, por mais magro que ele possa estar. Fiquei um tanto encantada por ele, mas não pensei mais sobre isso, já que eu mesma era uma mulher de aparência simples. Fiquei bastante surpresa quando levei uma jarra de água para sua lareira naquela noite e ele me perguntou diretamente se havia algum lugar na cidade de Savannah onde ele pudesse encontrar uma esposa.
Bem, este me pareceu um pedido um tanto estranho, embora eu mesmo soubesse pouco sobre cortejo. Benjamin explicou que estava saindo da casa de um tal de José e viajando ao longo da trilha do Oregon em direção ao Vale do Willamette, um paraíso exuberante na fronteira. Disse ele que os colonos da região do Oregon ofereceram terras para aqueles que os seguissem. 320 acres de terra para os solteiros, segundo ele, mas um colono casado poderia reivindicar 640 acres. Isso, e a perspectiva de mais um par de mãos para ajudar no trabalho agrícola, era um grande incentivo.
No geral, ele disse que se conseguisse encontrar uma esposa antes de chegar ao interior do Oregon, ele pretendia se casar. Bem, depois que ele me contou isso, expliquei minha situação a ele e o pastor Lawrence nos casou no dia seguinte. Mesmo agora, não consigo me arrepender totalmente dessa parte dos eventos que me trouxeram até aqui, e se tivéssemos chegado ao Vale do Willamette como havíamos planejado, acredito que teríamos sido muito mais felizes do que a maioria das pessoas.
Eu tinha poucos bens para embalar e pouca comida sobrando, mas levei o que pude para a carroça de Benjamin. Era final de maio quando iniciamos nossa viagem, e se eu conhecesse melhor a rota que iríamos seguir, saberia que era perigosamente tarde para iniciar aquela viagem. Mas eu não a conhecia. 
Em muitos aspectos, Benjamin foi tão impulsivo ao planejar a viagem quanto foi ao escolher uma esposa, e só depois de algum tempo na estrada percebi o quão mal preparado ele estava para as muitas dificuldades da estrada. Eu nunca perguntei exatamente de onde ele era ou por que ele queria se estabelecer no Oregon. Nas poucas vezes em que toquei no assunto, ele sempre encontrava um jeito de desconversar, e eu tive a impressão de que ele estava fugindo de problemas no leste. Eu nunca insisti no assunto. Eu era muito grata a ele por me levar junto, por compartilhar sua comida e cama comigo e por ter me resgatado, a meu ver, de uma vida de tristeza e sujeira no Missouri.
Tornou-se evidente, à medida que viajávamos, que as bênçãos não eram totalmente unilaterais. No fim das contas, eu era muito mais ágil para lidar com as dificuldades do caminho do que ele, e bem mais hábil para manter a carroça em movimento. Cuidei dele quando teve febre enquanto atravessamos o Colorado, e mais de uma vez consegui evitar um ataque de nativos, prendendo a carroça em uma pequena ravina até que o grupo de guerreiros passasse. No fim das contas, sinto que mais do que fiz por merecer.
Ainda me lembro da primeira vez que Benjamin viu os crânios daqueles viajantes que nos precederam e que não se saíram tão bem quanto nós perto de nosso acampamento. O pobre homem quase desmaiou. E não pude deixar de pensar que, se não fosse por mim, ele provavelmente teria se juntado àquelas pobres almas que partiram. Decidi não compartilhar esse pensamento em particular.
Chegamos ao Rio Laramie e à Fortaleza John em outubro. Era um pequeno e miserável entreposto comercial de peles no Wyoming, com paredes grossas de madeira, sólidas o suficiente para impedir a entrada de guerreiros nativos, e havia vários sinais de que muitas pessoas haviam passado recentemente pelo local.
O gerente, um homem enxerido que se apresentou como Bruce, nos disse que havíamos perdido a oportunidade de cruzar as Montanhas Rochosas com segurança e que as passagens ficariam cobertas de neve dentro de um mês. Ele disse que poderíamos passar o inverno na Fortaleza John se tivéssemos comida e dinheiro para isso ou poderíamos dar meia volta e ir embora. Pelo seu tom de voz, parecia que ele não se importava muito com qual das opções escolheríamos.
É claro que ficamos arrasados e passamos vários dias discutindo nossas opções e tentando tomar uma decisão sobre o curso de ação mais sábio, embora soubéssemos que, para cada hora que passávamos em tal conferência, nossas escolhas se tornavam menores e as consequências mais penosas.
Foi nesse momento que fomos abordados por um homem que se apresentou como Eustace Wick. Ele era uma figura baixa e gorducha, de ombros largos e com a pele áspera e escura de alguém que passou a maior parte da vida sob o brilho implacável do sol. Sua barba longa e desgrenhada era grisalha, mas seus olhos brilhavam com uma astúcia e uma inteligência que eu não esperaria ver em um rosto tão desleixado. Ele também possuía outro atributo que me surpreendeu, embora seja algo muito mais sinistro, pensando agora: ele tinha em sua boca um conjunto completo e saudável de dentes.
Então, o Sr. Eustace Wick perguntou sobre nosso propósito na Fortaleza John e, dando muito mais detalhes do que me deixava confortável, Benjamin explicou a ele nossa jornada e nosso dilema. Mas com a menção das palavras Vale do Willamette, os olhos do baixinho se iluminaram e um sorriso praticamente dividiu seu rosto em dois, pois ele era, segundo ele, o melhor guia desde Sacagawea e poderia nos levar pelas Montanhas Rochosas muito antes das neves atingirem com força... por um preço.
Ao dizer isso, ele sorriu, e todos os dentes quadrados e brilhantes em sua boca pareceram refletir a luz.
Fiquei hesitante por já ter conhecido muitos vendedores ambulantes e bandidos que queriam se passar por guias e, enquanto Benjamin pechinchava o preço, minhas dúvidas aumentaram, pois Eustace Wick não oferecia muita resistência e acabamos conseguindo seus serviços por apenas vinte dólares. Era muito dinheiro, com certeza, mas pelos serviços que ele estava oferecendo e pelos perigos envolvidos, não era praticamente nada.
Infelizmente, apesar de toda a minha hesitação, logo ficou claro que Benjamin estava decidido a contratar o homem. Para ser justo com ele, nós não tínhamos recursos para passar o inverno na Fortaleza John e, se tentássemos voltar, havia todas as possibilidades de que o clima ainda se tornasse mortal para nós. Estávamos presos entre a cruz e a espada, e Benjamin determinou que, guiados por Eustace Wick, tentaríamos seguir. O pobre tolo não tinha ideia de que era o próprio diabo quem nos conduzia para a espada.
Ninguém tentou nos impedir de partir, embora ficasse claro pelos olhares que acreditavam que já estávamos mortos. Minhas próprias esperanças não eram muito maiores, mas o homenzinho agora cavalgava na carroceria e brincava enquanto viajávamos, mantendo Benjamin mais animado do que eu o via há meses. Isso começou a desaparecer quando o ar frio começou a nos atingir e os caminhos através das rochas se tornaram mais íngremes e estreitos. A jornada era difícil, mas seguimos em frente por quase uma semana
Eustace Wick parecia ser tão bom quanto havia prometido, mantendo-nos nas trilhas por onde a carroça poderia passar sem muito perigo. O frio, porém, roubou-nos o sono e, depois daqueles primeiros dias, as outrora belas vistas e os picos ondulados das montanhas pareciam transformar-se em costelas irregulares e vis que se projetavam da carcaça do mundo e eram consumidas pelos abutres.
Benjamin ficou quieto. Eu fiquei mal-humorada. Eustace Wick ficou ainda mais animado do que antes, e quando os primeiros flocos de neve começaram a cair, ele estava praticamente gritando de alegria. Minhas suspeitas sobre suas motivações começaram a congelar como um bloco de gelo dentro de meu peito, duro e pesado.
Quando acordamos uma manhã, depois de uma semana e meia de viagem, e encontramos as rodas de uma de nossas carroças quebradas e destruídas sem possibilidade de reparo, não consegui me surpreender. A neve estava caindo espessa a essa altura. Já havíamos usado todas as nossas rodas de reposição ao longo dos muitos meses de jornada. Estávamos presos lá e certamente morreríamos.
Foi então que Eustace Wick apareceu de pé em uma rocha próxima com o mesmo grande sorriso no rosto. Ele nos disse que parecia haver uma tempestade de neve chegando, mas ele havia encontrado uma caverna próxima onde poderíamos nos abrigar. Ele nem sequer fingiu preocupação com o estado da carroça. Benjamin e eu o seguimos, e como o esperado, lá na encosta da montanha havia uma caverna rasa, mas bem escondida.
É difícil dizer exatamente em que momento específico eu percebi que Eustace Wick estava planejando nos comer. Pode ter sido quando ele não fez nenhuma menção de recuperar qualquer alimento da carroça quando nos levou ao seu covil. Poderiam ter sido as pilhas de lenha já cuidadosamente empilhadas contra a parede oposta, cortadas em troncos. Pode ter sido apenas o jeito que ele olhou para Benjamin com aqueles dentes brancos e quadrados, exibindo um sorriso sobrenatural.
Mas em algum ponto entre a carroça e a caverna tive a certeza de que nosso suposto guia nos atraiu até ali com a única intenção de nos matar e comer nossa carne. Não tive tempo de comunicar esse pensamento ao meu marido, que ainda parecia terrivelmente alheio à situação, e uma vez dentro da pequena caverna não havia privacidade para discutir o assunto.
Então eu só pude sentar ali, observando Eustace Wick acender uma fogueira enquanto Benjamin tentava se esquentar e conversar com o homem que ele ainda não havia percebido ter mudado de nosso guia para nosso sequestrador. Eu simplesmente esperei e observei enquanto a tempestade começava a cair lá fora, e o calor do fogo foi rapidamente abatido pelo vento frio e gelado.
A noite começou a cair. O fogo era a única luz que projetava sombras dançantes nas paredes atrás de nós. Eu podia sentir fome me corroendo e tinha certeza de que não era a única, mas tive um pensamento estranho de que o homem barbudo agachado do outro lado das chamas estava esperando que alguém mencionasse o assunto, então me recusei a falar. É claro que meu marido não era tão discreto e começou a lamentar nosso esquecimento ao deixar a pouca comida que ainda tínhamos na carroça.
Com isso, o sorriso de Eustace Wick ficou ainda mais largo, se é que isso era possível, e ele disse que tínhamos toda a comida que precisávamos. Ele olhou para o fogo e começou a murmurar algo. Parecia uma oração. Acho que ele estava agradecendo, do jeito lunático dele.
Lembro exatamente das palavras. Ele fixou os olhos em Benjamin e disse: "Venha, carne. Sê a minha convidada, e tudo que me dás, me seja abençoado."
Quando ele disse isso, um silêncio caiu sobre a caverna. O vento cessou e as sombras na parede pararam de se mover, como se estivessem observando a cena com muita atenção. Eustace Wick desembainhou uma faca longa e afiada e foi até Benjamin, que não fez nenhum movimento para se defender. Seus olhos estavam arregalados, olhando para o canibal louco que se aproximava dele com uma expressão de medo e êxtase. A cena toda era tão irreal que levei quase um segundo inteiro para me lembrar de sacar minha arma.
Durante toda a viagem mantive a pistola do meu pai escondida dentro de minha crinolina. Benjamin sabia disso, é claro, mas obviamente nunca mencionou isso a Eustace. Se eu conseguisse recarregá-la, poderia tê-la sacado antes, mas com apenas um tiro e sendo uma atiradora inexperiente sabia que precisava esperar o momento certo.
No fim, acabei esperando demais, pois no momento em que coloquei o cano na têmpora do assassino asqueroso e puxei o gatilho, ele passou a lâmina pela garganta de meu marido. Houve um estrondo terrível, um esguicho de cérebro e um jato de sangue. Os dois homens caíram mortos no chão e eu me vi sozinha no silêncio da noite gelada. Acredito que não preciso contar as lágrimas que derramei naquela noite. Lágrimas que viravam gelo antes mesmo de tocarem o chão. Chorei por meu belo e estúpido Benjamin e chorei por minha própria vida, agora certamente perdida no frio, na neve e na fome.
Foi quando esse último pensamento passou espontaneamente pela minha mente que eu ouvi. Muito tênue, chamando suavemente. O som da voz de Benjamin.
Chamei por ele, por um segundo muito feliz pela possibilidade de ele estar vivo, mas assim que toquei sua pele gelada que já começava a ficar azul, percebi que não poderia ser verdade. Apesar disso, sua cabeça começou a se virar em minha direção e seus olhos congelados se abriram. Seus lábios se separaram bem acima do corte vermelho escancarado em sua garganta e ele falou.
"Coma-me", disse ele.
Dei um pulo para trás, balançando a cabeça, rezando para que o Senhor me livrasse dessas visões horríveis, mas a voz dele veio mais uma vez, mais alta e mais clara, desta vez me implorando para comê-lo. Ele me disse o quão gostoso ele seria, melhor do que qualquer carne de porco salgada. Eu poderia cozinhá-lo no fogo, disse ele, e o frio o manteria fresco pelo tempo que eu precisasse. Gritei com ele — gritei para ele ficar quieto, para que o demônio que havia se infiltrado lá dentro voltasse para o inferno, mas não fez diferença. Ainda assim, ele implorou para ser comido.
Já se passaram cinco dias e Benjamin continua implorando. Ele me insulta e me amaldiçoa, me chama de covarde e diz que eu prefiro morrer a fazer parte de algo maior do que eu. A entrada da caverna está praticamente bloqueada pela neve e mesmo que eu cavasse para sair, não teria para onde ir. Eu nem sei onde estaria o que sobrou da carroça. Mas acho que posso tentar agora que terminei este relato dos eventos que me levaram ao meu destino.
Espero que quem encontrar isso não nos julgue muito duramente. Estávamos simplesmente buscando uma vida melhor. Deixo isso aqui no casaco de Eustace Wick na esperança de que possa ser protegido das depredações do inverno. Quanto a mim, tentarei cavar uma saída e chegar o mais longe que puder.
Não vou sobreviver, mas espero que o Senhor entenda que não é suicídio. Acontece simplesmente que não aguento mais ficar presa aqui, onde o cadáver do meu marido me implora para comer sua carne.
ARQUIVISTA
Fim do depoimento. 
Certamente uma história grotesca, mas não tenho acesso ao tipo de informação necessária para verificar nenhum dos detalhes fornecidos pela anônima Sra. Carlisle. Não consegui encontrar registros de nenhum Eustace Wick. Há um Benjamin Carlisle mencionado no censo de 1838 do condado de Burke, na Carolina do Norte, mas é só isso.
A oração aparentemente proferida pelo Sr. Wick é um desvirtuamento da antiga graça luterana: "Vem, Senhor Jesus, sê o nosso convidado, e tudo que nos dás, nos seja abençoado". Houve um notável pregador luterano chamado Horatio Wick que é mencionado brevemente em várias histórias de Massachusetts como tendo se desentendido violentamente com seus colegas da igreja, o Sacramento da Eucaristia, mas, aparentemente, ele se afogou em 1832.
O que mais me interessa é como esta carta não assinada, se é que podemos acreditar nisso, chegou de uma caverna congelada no Wyoming ou Idaho até a coleção pessoal de Jonah Magnus.
Fim da gravação.
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Tim: Olha, eu tentei falar com o Elias sobre isso. Ele não parece estar muito bem.
Martin: Ele tá sobrecarregado. Você sabe como ele tá confuso desde a Prentiss.
Tim: Como ele tá confuso!?
Martin: Ah, desculpa, desculpa, eu não quis dizer que você também não tá, só que…
Tim: Não! Porque eu não comecei a perseguir meus colegas de trabalho!
Martin: Talvez se você tentasse falar com ele...
Tim: Claro, como se ele já não me olhasse como se eu fosse um assassino.
Martin: Olha, a gente só tem que deixar ele passar por essa fase. Eu sugeri a terapia, mas ele só se nega.
Tim: Bom, nós temos que fazer alguma coisa.
Martin: É, talvez.
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ARQUIVISTA
A conversa anterior foi ouvida por acaso no dia 19 de novembro de 2016. Isso reafirma minhas preocupações atuais sobre o Tim, embora de alguma forma me assegure de que é improvável que Martin seja o culpado, ainda mais depois da nossa última conversa.
Eu preciso ter mais cuidado.
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arquivosmagnusbr · 2 years ago
Text
MAG057 — Espaço Pessoal
Caso #0090404: Depoimento de Carter Chilcott a respeito do tempo que passou isolado a bordo da estação espacial Dédalo em setembro de 2007.
Ouvir em: Spotify | Youtube
Aviso de conteúdo: isolamento, paranóia, tentativa de suicídio
Tradução: Lia
ARQUIVISTA
Depoimento de Carter Chilcott, a respeito do tempo que passou em isolamento a bordo da estação espacial Dédalo em setembro de 2007.
Depoimento original prestado em 4 de abril de 2009. Gravação de áudio por Jonathan Sims, arquivista chefe do Instituto Magnus, Londres.
Início do depoimento.
ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Estamos sozinhos lá fora.
Eu conheço as estatísticas. O tamanho do universo, as probabilidades e proximidades e as promessas de outros seres existindo lá fora entre as estrelas, mas eu já estive lá. Não tem nada. Nada além de um limbo vazio e apático entrelaçando planetas mortos e estrelas mortas, todos juntos como uma tapeçaria de solidão sem sentido.
Os humanos existiram por uma fração de segundo na existência do universo, e seremos extintos com a mesma rapidez. E quando finalmente partirmos eternamente para o vazio silencioso da morte, não restará nada além do universo frio.
E nada marcará nossa passagem aqui porque existe nada que possa fazer isso.
Pode me mandar embora, se quiser. Se contente com suas fantasias ilusórias de alienígenas e visitantes de outros mundos, mas não tem nenhuma prova que eu possa te dar além do testemunho de alguém que passou tanto tempo olhando pra aquela infinidade escura e vazia e sabendo — realmente sabendo — o que significa estar flutuando abandonado em um universo vazio.
Eu sabia que os experimentos de isolamento poderiam ser difíceis quando me inscrevi. Não sou um idiota ingênuo que pensou que aguentaria alguns efeitos colaterais peculiares pelo bem da ciência. Não — eu sou astronauta, então sei pesquisar. Quando fui escolhido para o projeto — um estudo do isolamento a longo prazo estabelecido nas condições da órbita terrestre baixa — li o máximo que pude sobre casos anteriores e experimentos semelhantes nos últimos 30 anos, me familiarizando com os efeitos colaterais e prováveis problemas psicológicos.
Era assustador, pra dizer o mínimo. Eu não tava ansioso pra experimentar o que os testes anteriores prometiam que aconteceria com a minha cabeça, mas acho que eu não tinha muita escolha. A minha inscrição na Estação Espacial Internacional ficou flutuando no limbo por tanto tempo que, quando uma instituição privada me contatou dizendo que haviam lançado o Dédalo recentemente, que era um pequeno satélite tripulado, e precisavam de membros qualificados pra tripulação, aproveitei a chance de finalmente poder ir pro espaço.
Eu deveria ter percebido que o que eles queriam dizer com "membro da tripulação" era "rato de laboratório". Mas, pra ser sincero, mesmo depois de ter descoberto isso, minha animação pelo projeto não diminuiu. Eu ia pro espaço.
Tecnicamente, havia duas outras pessoas na tripulação. Digo tecnicamente porque nunca passei nenhum tempo com eles além da viagem até o Dédalo. Os nomes deles eram Yan Kilbride e Manuela Dominguez. Tenho certeza de que eles provavelmente cuidaram muito mais da estação do que eu, mas até onde eu sei, eu era o único lá em cima.
Pelas conversas que eu ouvi antes da missão começar, cada um de nós tinha um experimento individual pra cuidar, mas eles também estavam lá de reserva pro caso de algo dar muito errado com o meu, já que os cientistas que nos observavam não podiam intervir.
Lembro que o homem responsável pelo meu projeto em particular, Conrad Lukas, fez uma careta exagerada de desgosto quando me disse que eu não estaria completamente sozinho lá. Tive a clara impressão de que ele era uma daquelas pessoas que sentem que as restrições éticas não fazem nada além de amarrar as mãos de um verdadeiro cientista, o deixando à mercê das limitações de seus subordinados.
Minha seção da pequena estação espacial era completamente independente. Tinha comida, cobertores pra dormir e equipamentos de exercício de gravidade zero, tudo pro meu uso pessoal. A única entrada pro resto do satélite estava trancada e selada. Podia ser aberta de ambos os lados, mas do meu lado exigia um código. Eu tinha acesso ao código em caso de emergência, mas eu ainda tinha muita missão pela frente pra sequer pensar em ser o responsável por acabá-la mais cedo.
Eu também tinha uma grande janela arqueada. Ela me dava uma boa visão da Terra lá embaixo, assim como muitas oportunidades de olhar pro espaço, o que eu fiz bastante naqueles primeiros dias.
Me disseram que os outros astronautas fariam o possível pra evitar a janela enquanto faziam manutenção ou reparos do lado de fora. O Controle de Missão também me forneceu muitos livros, filmes e outros entretenimentos, pois, como Conrad me disse na primeira reuniçao, o experimento era sobre isolamento, não sobre tédio. Então quando tranquei a porta pela primeira vez eu tava me sentindo muito animado com a coisa toda, pra ser sincero.
Eu sabia que tava sendo monitorado. Tinha uma câmera pequena montada na parede que ficava de olho em mim. Não era invasiva ao ponto de eu não conseguir sumir dela quando quisesse, mas na maioria das vezes eu ficava feliz em comer, ler e me exercitar na frente da lente atenta.
É claro que aqueles que avaliavam o meu progresso nunca se comunicavam comigo diretamente e talvez nem estivessem assistindo à transmissão o tempo todo, então, se eles tinham opiniões sobre como eu tava fazendo meu trabalho, eu nunca ouvi. Mesmo que meu trabalho fosse só ficar sentado em uma sala no espaço esperando minha mente fritar.
Tentei não me confortar muito com o fato de que havia pessoas observando cada movimento meu, pois senti que encontrar esse conforto iria muito contra a essência do experimento. Eu tinha que me sentir sozinho de verdade. O que pelo menos não demorou muito pra acontecer. Sinceramente, não consigo ver como ter que me amarrar pra dormir ou beber suco de canudo em um saco de papel alumínio pode ter muito efeito no isolamento, mas eu que não ia contestar.
Acredito que algumas pessoas teriam ficado mais perturbadas do que outras por estarem orbitando a Terra, mas não me pareceu muito diferente de nenhum dos outros estudos sobre isolamento conduzidos nas últimas décadas. Na verdade, o verde e azul silencioso e ondulante da Terra logo abaixo era outra fonte de conforto — saber que outras bilhares de pessoas viviam suas vidas sem ter ideia do que estava acontecendo bem acima de suas cabeças.
Esses dois confortos duraram quase seis semanas. Eu estava ciente de que era ali que eu deveria começar a sentir alguns dos efeitos colaterais mais angustiantes.
Eu já tinha passado pela apatia e por uma crise de insônia. E eu não tava usando minha máquina de exercícios direito há quase duas semanas, mas ainda assim não esperava que as alucinações fossem tão graves quando elas começaram.
Fui acordado duas vezes com o barulho da porta abrindo, só pra encontrá-la tão fechada quanto sempre esteve. Durante os dias eu ocasionalmente ouvia passos, o que nem deveria ser possível em gravidade zero. Teve também um apagão por mais ou menos 20 minutos em algum momento que pode ou não ter sido real. Aparentemente não perdemos energia em nenhum outro sistema, só nas luzes.
Então tudo isso era razoavelmente angustiante, mas pelo menos tinha a vantagem de não ser inesperado. Não... o primeiro aviso que eu recebi sobre como as coisas iam piorar foi o traje espacial.
Os relógios marcavam 14:30 UTC e eu tava assistindo Extermínio de novo, um dos melhores filmes que tinham disponibilizado pra me entreter, quando uma movimentação na janela chamou minha atenção. No começo, achei que poderiam ser alguns detritos orbitais passando, mas depois eu avistei, ainda na borda da janela arqueada.
Era uma mão. Uma mão vestindo uma luva branca e volumosa de um traje espacial. Ela começou a flutuar lentamente pela janela, seguida pelo resto do braço, depois pelo tronco, até que quase todo o traje estivesse flutuando lentamente pela janela.
No começo fiquei animado com a ideia de ver outro ser humano, mesmo que fosse rápido ou que pudesse comprometer parte do meu trabalho, mas à medida que o traje se movimentava meticulosamente pelo espaço, ele girou o suficiente para que eu pudesse ver claramente através da viseira.
Não tinha ninguém lá dentro. O traje flutuante estava completamente vazio.
E de repente eu comecei a ficar com muito medo.
Por fim, ele atravessou pela noite direto para o outro lado, e eu parei pra tentar me acalmar depois de presenciar uma cena profundamente estranha de se assistir. Consegui me acalmar, mas só até olhar de novo pela janela.
Não tinha mais nenhuma roupa vazia flutuando, mas notei algo que, por algum motivo, não me ocorreu enquanto observava o traje vazio. Resumindo, aquilo era impossível, e eu devo ter olhado de milhares de ângulos diferentes pra tentar entender.
A Terra tinha sumido.
No começo, presumi que deveria ter sido uma mudança de posicionamento, mas isso não fazia sentido. O planeta lá embaixo nunca tinha sumido da minha vista antes, e se mudassem isso tão radicalmente eu tenho certeza que teria sentido.
Mas isso não mudava o fato de que onde a Terra deveria estar havia um espaço vazio e escuro. Devo ter ficado observando por horas, esperando ver o sol. Definitivamente nós ainda estávamos nos movendo e, pelo que eu pude perceber, ainda parecíamos estar nos movendo em algum tipo de órbita, mas sem ter um planeta abaixo, eu não faço ideia de porquê mantivemos o mesmo padrão. Independentemente disso, o sol deveria ter aparecido em algum momento.
Depois de dois dias esperando, finalmente aceitei que o sol e a lua também tinham sumido.
Não tava completamente vazio lá fora. Ao longe, eu ainda conseguia ver estrelas brilhando. Provavelmente estavam mortas há muito tempo, mas eu sabia que não tinha nada que elas pudessem fazer pra me salvar.
Em algum momento do primeiro dia eu lembrei da câmera. Concentrei minha atenção nela e comecei a gritar e pedir por ajuda na vã esperança de que alguém pudesse estar assistindo à transmissão e conseguisse entrar em contato. Eu chorei e implorei para aquela câmera por quase quatro horas até ser repentinamente atingido por um pensamento aterrorizante.
Flutuei até a câmera e segurei com cuidado os cabos de alimentação que saíam da parte de trás da parede. Eu os segui, procurando onde eles a conectavam à energia ou ao aparelho de transmissão. Em vez disso, o que eu encontrei foi um par de fios cuidadosamente cortados.
Transmitindo nada. Alimentando nada. Ligados a nada.
A câmera nunca nem tinha sido ligada e com certeza não tava transmitindo nada pra Terra. Então, quais dados eles estavam coletando?
Eu ainda não faço ideia de qual é a resposta pra essa pergunta, mas senti que recuperei um pouco de sanidade depois de passar uma hora muito curta destruindo a câmera.
Depois disso, chegou a hora de quebrar o código e abrir a porta que dava para o resto do satélite. Eu tinha decidido que mesmo que isso fosse só um truque bem elaborado e convincente pra examinar as reações a certos estímulos em um ambiente de testes, ainda assim aquilo tava muito além do que eu tinha me voluntariado pra fazer. De um jeito ou de outro, eu decidi que tava fora desse experimento desgraçado.
Abri o pequeno cofre que guardava o documento com a senha e quebrei facilmente o lacre do recipiente. Eu tava desesperado pra sair por aquela porta o mais rápido possível e levei alguns minutos pra memorizá-la.
E109GHT8.
Eu ainda me lembro vividamente de quando inseri aquele código várias e várias vezes na tentativa de abrir aquela porta. Cada vez que eu o digitava meticulosamente com o máximo de precisão que ainda existia dentro de mim, cada vez que o campo de senha lia o que eu aparentemente tinha digitado, ele dizia:
"Ninguém está vindo."
E as portas continuavam fechadas.
E foi isso. Eu tava preso e sozinho em uma salinha flutuando no espaço — no espaço vazio e deserto. Eu tinha muita comida e água então a fome não era uma preocupação, mas em algum momento da primeira semana o relógio parou de funcionar.
Sem um relógio e sem nenhum sinal do sol ou da lua, ficou completamente impossível calcular qualquer tipo de tempo. Se eu tivesse que adivinhar quanto tempo passei naquele exílio esquisito, diria que foi algo entre três e seis meses. Mas isso se baseia completamente nos meus padrões de alimentação e sono que eram em grande parte movidos pelo desespero e pelo terror silencioso e doloroso de estar totalmente abandonado. Eu não conseguia nem ler meus livros ou assistir a nada já que os personagens pareciam mortos e sem vida, o vazio de suas existências artificiais ficava muito nítido pra mim.
As alucinações pararam. Eu não tinha nem o conforto de uma companhia nos meus delírios, embora em algum momento a linha entre sonhos e realidade tenha ficado muito tênue. Eu estava dormindo, amarrado à minha cama no meio do vazio, e ao mesmo tempo flutuando por cemitérios antigos ou pelo mar aberto e vazio. Não eram alucinações, embora fossem sonhos, mesmo que o frio parecesse escoar por eles e penetrar em meus ossos.
Passei tanto tempo tentando abrir aquela porta, mas nada funcionava. Os mecanismos e a parte elétrica não eram acessíveis pelo meu lado. Finalmente desisti de tentar quando abandonei o que restava da minha esperança. Foi aí que eu notei outra coisa que me alarmou de uma forma muito diferente.
Fiz alguns cálculos e percebi que meus estoques de comida e água não pareciam estar acabando. Durante todo o tempo que estive lá, no que agora eu só conseguia considerar como minha prisão, não parecia ter havido nenhuma mudança significativa nos meus suprimentos. Ninguém poderia estar me reabastecendo porque não tinha ninguém além de mim lá. A comida era inacabável, então isso significava que eu poderia ficar preso naquele lugar pelo resto da minha vida — se é que eu ainda poderia envelhecer?
Comecei a considerar muito seriamente a ideia de que eu tinha morrido e estava no Inferno. Falando dessa preocupação, o jeito como eu finalmente consegui escapar pode até ser considerado irônico. Eu morri de fome. Bom, não morri, eu acho, já que tô vivo o suficiente pra falar com você, mas cheguei bem perto.
Não sei quanto tempo fiquei flutuando ali, amarrado naquele casulo solitário que eu chamava de cama, me recusando a comer ou beber, esperando pelo fim. Depois de tudo aquilo, eu não tinha nenhuma garantia de que era possível morrer, mas eu tinha que tentar. Quando finalmente perdi a consciência pelo que eu esperava ser a última vez, foi o maior alívio que já senti.
Não sei exatamente quando percebi que não tava morto. Em vários momentos eu voltei à consciência e sei que senti a reentrada na atmosfera com bastante intensidade, mas é difícil distinguir pensamentos claros de antes do hospital.
Ninguém nunca me contou realmente o que aconteceu além do fato de que descobriram que eu estava em sério perigo de morte e meus colegas do Dédalo me socorreram e conseguiram me manter vivo até terem uma oportunidade de me mandar de volta.
Não fui atrás de saber mais detalhes; não mesmo. Eu sei o que aconteceu. E nenhuma versão lógica da história que eles possam me contar vai mudar isso.
Não entrei mais em contato com o Conrad e, até onde eu sei, ele não fez nenhuma tentativa de entrar em contato comigo. Mas me pagaram tudo, o que foi uma surpresa.
Eu fiquei querendo contar pra alguém o que realmente aconteceu por quase um ano antes de encontrar o seu Instituto. Não tem nada que vocês possam fazer sobre isso, mas eu queria tirar esse peso do meu peito.
Então, obrigado por me deixarem colocar no papel.
ARQUIVISTA
Fim do depoimento.
Embora exista muita cobertura da mídia sobre o lançamento do satélite Dédalo no início de 2007 pelo Grupo Estratosfera, que é um consórcio de várias empresas científicas e aeroespaciais, parece que a operação verdadeira da instalação é protegida com muito mais sigilo pelas várias organizações envolvidas.
Martin conseguiu confirmar que, durante os dois anos de operação, ele tinha mesmo um total de três funcionários a bordo: Yan Kilbride, Manuela Dominguez e o Sr. Chilcott.
Porém, tirando isso, não conseguimos encontrar muita coisa além dos muros da burocracia corporativa. Mas o Tim conseguiu obter uma lista das empresas envolvidas no consórcio.
Três nomes se destacam: Pinnacle Aerospace, que pertecence majoritariamente à família Fairchild, um grande investimento privado de Nathaniel Lukas e a Optic Solutions Limited, que é uma empresa aparentemente inofensiva que fabrica câmeras especializadas para pesquisas e aplicação industrial, que é, no entanto, notável por ter seu endereço comercial em Ny Alesund, na Noruega.
Receio que isso seja o máximo que eu possa fazer neste momento sem chamar atenção, por isso talvez seja sensato deixar o assunto de lado.
Fim da gravação.
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SASHA
John?
Arquivista: Hum...
Sasha: O que você tá fazendo?
Arquivista: Sash... hum, eu não consigo encontrar a pasta do caso da Hill Top Road. Pensei que tivesse te entregado pra investigar sobre as crianças?
Sasha: Você entregou e eu devolvi.
Arquivista: Ah, certo.
Sasha: Mesmo que eu não tivesse devolvido, eu preferiria que você ficasse longe da minha mesa.
Arquivista: Ah, é claro, desculpa. Eu não sabia que você ainda tava aqui, se não teria te perguntado.
Sasha: Claro.
Arquivista: Vou ver se está com o Tim então.
Sasha: Aliás, John. Eu já te pedi antes.
Arquivista: O quê?
Sasha: Por favor, não grave as nossas conversas.
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ARQUIVISTA
Idiota. Achei que a Sasha já tinha ido embora. Eu queria dar uma olhada na mesa dela pra ver se encontrava qualquer coisa que pudesse explicar seu comportamento estranho nos últimos tempos. Não consegui olhar muito, mas tudo parecia normal, tirando alguns pedaços de papel rasgado. Eles poderiam ser de arquivos ou só papel de rascunho rasgado, é difícil dizer.
Eu tô perdido. Mas por que ela iria querer destruir arquivos? Ainda assim, acho que é melhor eu me afastar da Sasha por um tempo depois disso. Só vou ficar de olho à distância por enquanto.
Mas eu encontrei várias fotos dela com o namorado novo, o que me deixou um pouco mais tranquilo.
Bem, mais ou menos. Tem alguma coisa nele que não parece muito certa. Alguma coisa no sorriso, talvez?
Quer dizer, todas as fotos são da Sasha e do Tom — que foi como me disseram que ele se chama — se divertindo juntos, mas... é difícil explicar exatamente, mas cada uma delas parecia de algum jeito ser uma foto tirada de um banco de imagens.
Fim do complemento.
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arquivosmagnusbr · 2 years ago
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MAG056 — Filhos da Noite
Caso #0100710-B: Continuação do depoimento de Trevor Hebert, a respeito dos últimos anos de sua carreira como caçador de vampiros.
Ouvir em: Spotify | Youtube
Aviso de conteúdo: entomofobia, insetos, horror corporal, menções a câncer
Tradução: Lia
ARQUIVISTA
Continuação do depoimento de Trevor Hebert, a respeito dos últimos anos de sua carreira como caçador de vampiros. Depoimento original prestado em 10 de julho de 2010.
Gravação de áudio por Jonathan Sims, arquivista chefe do Instituto Magnus, Londres. Nota: estão faltando várias páginas no arquivo da época em que ele aparentemente não morreu de câncer de pulmão no instituto.
Continuação do depoimento.
ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Ela morreu no final.
Ela era velha e triste, mas não merecia aquilo. Sempre me perguntei o que teria acontecido se eu tivesse chegado lá um pouco mais cedo. O problema é que, uma vez que eles enfiam os dentes em você, você já estará praticamente morto, mesmo que eles não te drenem. Jorrar no chão ou encher a barriga de um vampiro não faz muita diferença pro pobre coitado que estiver sangrando.
Já me perguntei várias vezes se tava ficando louco, sabia? Quer dizer, ninguém mais parece ter visto aquelas coisas, e eu já encontrei várias em toda a minha vida. Talvez eu tenha sentido o cheiro deles. Tipo, ninguém nunca conseguiu escapar, e eu ter fugido de Sylvia MacDonald me deu uma intuição para identificá-los. Tem alguma coisa neles. Eles são caçadores. Mas com o passar dos anos eu também me tornei um caçador e talvez os predadores se reconheçam. Tudo que eu sei é que hoje em dia eu quase consigo sentir o cheiro do sangue vindo deles. Mas isso não quer dizer que eu não cometa erros — eu posso errar muito feio, na verdade.
Encontrei Alard Dupont no verão de 1982 e o assassinei pouco depois. Eu usei a palavra assassinato aqui, que eu não tinha usado antes, porque ele foi o único que eu matei que eu sei que era humano. Na maioria das vezes eu lamento a morte dele, mas há um certo conforto nela. Se eu fosse só um serial killer tendo alucinações, não vejo por que minha mente não teria transformado Dupont em um vampiro também. O fato de ter conseguido matar pessoas normais me dá a certeza de que as criaturas que caço são reais, entende?
Isso não quer dizer que a morte de Alard Dupont não tenha sido o resultado de várias decisões extremamente ruins da minha parte. No início dos anos 80, eu estava completamente dominado pelos meus dois vícios. Como mencionei, depois de um tempo, a caça se tornou um vício por si só. Dos dois, sempre achei a heroína o mais fácil de largar. A heroína é calma. É um pedacinho de paz em um mundo cheio de nada além de desgraça. É difícil largar isso pra sempre... mas a caça? A caça é um propósito. Não é só um jeito de passar o dia, é um motivo pra que de fato haja um dia. Tentei desistir dela por um tempo depois do Dupont, mas aquilo queimava em mim muito mais do que qualquer problema que eu tivesse enquanto estava sóbrio.
Mas em 1982 esses vícios estavam praticamente descontrolados. Fazia vários anos desde a última vez que eu tinha encontrado um vampiro e cada momento em que eu não estava chapado era gasto na busca por qualquer coisa suspeita. Eu estava fora de forma. Peguei uma infecção por injetar entre os dedos dos pés, o que acabou me levando pro hospital e me fez perder dois dedos, embora eu felizmente tenha mantido o pé. Mas naquela época, isso só me deixava mancando e me causava uma quantidade razoável de dor. Talvez se eu tivesse sido mais rápido, se eu tivesse conseguido acompanhar o Dupont com mais facilidade... Eu teria percebido meu erro. Talvez se minha mente não estivesse tão embaçada pela heroína eu poderia ter percebido, ou talvez se eu não estivesse morrendo de ansiedade pra matar outro vampiro. Qualquer uma dessas coisas poderia ter salvado ele. Talvez até se ele tivesse um nome que não me fizesse pensar no Drácula. Mas nenhuma dessas coisas era o caso, então insistir nelas é inútil.
Eu não sei se o Dupont era tecnicamente mudo ou não. Eu não tive nenhuma experiência real com essa condição e ele não parecia ter nenhum problema de audição. De qualquer forma, eu nunca vi ele falar, o que agora eu acho que você já sabe que é algo que eu consideraria um sinal de alerta considerável pro vampirismo. Um amigo meu com quem compartilhei um abrigo algumas semanas antes e que compartilhava uma fraqueza semelhante por narcóticos mencionou o quão incrível era que seu traficante sempre fosse capaz de saber exatamente o que ele queria sem que nenhum deles dissesse uma palavra. Pensando agora, eu deveria ter percebido que isso não combinava muito com os vampiros que eu já tinha encontrado antes, que nunca mostraram nenhum sinal de lerem mentes, mas eu tava louco pra matar.
O garoto que me disse isso era estranho. Devia ter uns dezenove anos, dizia pra todo mundo que seu nome era Stanley Kubrick. Estava sempre fazendo referências à sua carreira no cinema e eu nunca consegui descobrir se aquele era realmente seu nome verdadeiro que ele por acaso compartilhava com o diretor ou se era só uma piada estranha que ele insistia em fazer. Mas o que mais me impressionava nele eram as cicatrizes em seu pescoço. Depois eu descobri que ele as ganhou quando foi atacado por um cachorro quando era mais novo, mas na época eu estava convencido de que elas estavam ligadas ao Dupont. Então eu descobri onde Alard Dupont fazia suas entregas em Piccadilly Gardens e comecei a observá-lo.
Ele era surpreendentemente descarado — ficava sentado em um banco do parque por horas fumando ou lendo uma revista ou outra. Eu nunca tinha visto um vampiro ler uma revista antes, mas eu já tinha os visto fingindo assistir televisão ou ler um livro pra se misturarem melhor, então isso não levantou nenhuma suspeita pra mim. Então chegou o momento que me convenceu completamente que eu tinha que matar o Dupont. Enquanto ele estava sentado no banco, dois policiais passaram por mim e foram em sua direção. Eles nem me notaram — ninguém repara num mendigo. Mas, enquanto caminhavam em direção à figura no banco, um dos policiais cutucou o parceiro e gesticulou em direção a ele. Eles claramente o consideraram suspeito e começaram a se aproximar. Mas quando eles se aproximaram, Dupont olhou pra cima e fez contato visual com eles. Eles pararam — só por um momento — e ele acenou com a cabeça gentilmente. Os policiais se entreolharam, se viraram e foram embora. Isso era tudo que eu precisava pra ter certeza do que ele era. A conclusão a qual cheguei depois é de que os dois policiais estavam simplesmente envolvidos e não o reconheceram imediatamente, mas só pensei nisso muito tarde.
Era um dia nublado e, pra mim, parecia que o Dupont estava se mantendo nas sombras, exatamente como eu pensei que ele faria. Continuei observando enquanto ele fazia mais algumas vendas, e eu também já estava querendo injetar a essa altura. Mas tinha uma adrenalina muito mais intensa que eu estava perseguindo naquele momento e ela empurrava todos os pensamentos sobre a droga pro fundo da minha mente. Por fim, a noite caiu e observei Dupont se levantar do banco e seguir para o centro da cidade, caminhando na direção do vento e sob as sombras. Obviamente a escuridão não o impediria de me ver, mas aprendi que, por mais discreto que um sem-teto possa ser, ainda é sempre melhor ser visto pelo menor número de testemunhas possível. Imaginei que ele estivesse indo em direção a uma boate ou clube, que é um dos locais favoritos dos vampiros, já que a música alta torna a ausência da fala muito mais fácil de esconder. Até ali eu estava certo enquanto ele se dirigia para o Hacienda, um dos clubes mais barulhentos de Manchester. Ele ainda não era tão famoso naquela época, na verdade acho que tinha aberto há pouco tempo quando tudo isso aconteceu, mas mesmo assim provavelmente teriam me barrado na entrada, dado o estado em que eu estava.
Então observei Dupont entrar e me camuflei, pedindo esmola de quem passava por ali enquanto esperava. Ele apareceu mais ou menos duas horas depois com outro homem o seguindo de perto. Eu não reconheci eles. Quer dizer, não tinha porquê eu reconhecer, mas o novo amigo de Dupont era quase tão grande quanto ele. Os vampiros tendem a atacar vítimas menores, aquelas menos capazes de se defenderem caso a surpresa do ataque não as paralizem. Aquele cara parecia bem capaz de cuidar de si mesmo. Ainda assim, até onde eu sabia ele não fazia ideia do que estava prestes a acontecer com ele e, enquanto o Sr. Dupont o conduzia por um beco próximo, eu corri atrás deles.
Fiquei quieto enquanto mancava pelo lixo que cobria o beco e silenciosamente puxei meu fiel martelo. Depois de um minuto, eles se viraram pra uma porta e pegaram uma chave. A porta se abriu e os dois entraram. Fiquei alarmado com a ideia de ficar trancado do lado de fora e não conseguir alcançá-lo. Esquecendo a discrição, agarrei a porta e a abri. Eles se viraram pra mim. Eu o ataquei com um grito, batendo o martelo no ombro de Dupont e o derrubando no chão com um estalo agonizante. Eu nunca vou esquecer o momento em que ouvi Alard Dupont gritar. Foi um som tão penetrante e algo que eu nunca esperaria. Em um momento, tudo o que eu tinha construído na minha cabeça nos últimos dois dias se despedaçou e eu senti um pânico repentino com o que tinha feito. Com o que eu tava fazendo. O amigo dele também gritou e começou a correr de volta pra fora da porta. Não sei se ele conseguiu me ver direito. Levando em conta que a polícia nunca veio me interrogar, acho que não.
O Dupont ainda tava gritando, aquele som horrível abafando todos os meus outros pensamentos. O sangue escorria de seu rosto onde havia batido no chão e eu não sabia o que fazer. Eu tinha que sair de lá, mas aquele barulho era demais. Eu não conseguia me concentrar, não conseguia fazer nada, então eu bati nele de novo. Com força. Na cabeça. E aí ele ficou quieto. E tudo ficou terrivelmente silencioso. Ele só ficou deitado lá. Nunca senti nada parecido com a vergonha e o nojo que senti naquele momento. Tentei queimar o corpo, mais por hábito do que por qualquer outra coisa, mas não deu certo e eu fugi pra rua antes que a polícia chegasse.
Depois disso, passei mais de uma década andando em círculos. Não me lembro muito dessa época, só lembro que passei a maior parte do tempo tão drogado que, olhando agora, fico genuinamente chocado por nunca ter tido uma overdose. Só saí dessa em 1996, quando um encontro casual com uma criatura que se chamava de Hannah Edwards me levou a salvar uma jovem de virar a janta. Não vou entrar em detalhes, foi muito parecido com a minha caçada à June Lewis, exceto que a vítima saiu viva dessa vez.
Eu me pergunto por que parece que eu sempre os encontro pouco antes de eles atacarem. Não pode ser porque eles passam todas as noites se alimentando, aí o mundo seria um banho de sangue. Talvez eles se misturem melhor quando não estão caçando e eu não os reconheço. Ou talvez eles hibernem. Não é uma pergunta que acho que algum dia eu vou saber a resposta, mas significa que sempre há uma urgência nas caçadas que na maioria das vezes me impede de fazer muitas investigações sobre eles. A Hannah foi minha quinta vampira confirmada e a última, supondo que eu não encontre outro antes que o câncer me leve. Eu realmente me considerava aposentado, descansando depois de passar uma vida defendendo o mundo da escuridão. Porque era isso que eu achava que era, sabe? Vampiros eram as coisas que espreitavam no escuro. As únicas coisas que espreitavam no escuro.
Mas no ano passado, pouco antes do meu diagnóstico, encontrei uma coisa que me fez repensar isso. Eu sei que eu não preciso nem dizer que o inverno é um momento difícil pra um sem-teto. Não importa quantas vezes você já tenha passado por isso, quando aquele primeiro vento frio sopra por você, é como se uma morte terrível estivesse vindo te buscar. Aquele último foi muito ruim, vários dos abrigos que normalmente me acolhiam fecharam e aqueles que sobraram acabaram enchendo rápido. Eu me viro bem já que sou um rosto bem conhecido e tudo mais, mas ainda senti a pressão de juntar dinheiro suficiente pra garantir meu lugar mais cedo. Mesmo assim, tinha alguns dias da semana em que eu ainda acabava no frio. Meus ossos de velho não andam tão bem hoje em dia, então eu ficava de olho nas idas e vindas dos abrigos noturnos de Manchester e, depois de algumas semanas, comecei a notar algo estranho.
Várias vezes, em alguns abrigos diferentes, eu via um dos abrigados se levantar no meio da noite, reunir seus pertences e sair para as ruas geladas da cidade. Ver isso acontecer uma vez foi estranho, mas ver isso acontecer várias vezes era surreal. Eu tava sóbrio na época, então não conseguia nem fingir que tava delirando. Ainda mais estranho — toda vez que isso acontecia, 10 minutos depois uma mulher entrava e tomava seu lugar. Era a mesma mulher todas as vezes. Ela devia ter cerca de 40 anos e era esbelta embora suas roupas fossem um pouco protuberantes em uns lugares estranhos. Seu rosto era enrugado pelo que eu conseguia reconhecer como uma vida difícil e uma fina camada de sujeira embaraçava seu cabelo. Ela parecia ser bem normal para aquele lugar, e eu poderia até descartar a expressão distante e neutra como o tipo de trauma muito comum entre o meu povo. É por isso que não prestei muita atenção nela na primeira vez que aconteceu; ou na segunda.
Quando percebi que isso tava acontecendo pela terceira vez, eu finalmente comecei a prestar atenção, mas não me aproximei dela imediatamente. Perguntei sobre ela na manhã seguinte, mas nem mesmo os funcionários pareciam saber de nada. Decidi ficar de olho e, se ela aparecesse de novo, eu a confrontaria. Bom, ela apareceu. Era final de janeiro quando aconteceu, por volta das 2:00 da manhã. Justamente no ponto mais frio da noite. Vi um dos meus companheiros do abrigo sair lentamente da cama. O nome dele era Craig, eu acho. Eu não o conhecia muito bem, ele era um andarilho sazonal e só nos cruzávamos ocasionalmente. Bom, ele saiu sem fazer barulho, juntando seus pertences em silêncio e deixando uma cama vazia. Eu esperei. Bem acordado, com a mão na faca, respirando firme. Como esperado, alguns minutos depois ela entra, sem mochila ou equipamento de qualquer tipo, e se senta na cama do Craig.
Eu me levantei e caminhei em direção a ela. Assim que ela me viu, sua postura mudou e ela ficou na defensiva, embora a expressão vazia em seu rosto nunca mudasse. Comecei a me apresentar e perguntar por que ela estava pegando a cama do Craig, e aí ela me encarou. Comecei a sentir uma sensação muito estranha — eu queria ir embora. Não foi como com um vampiro, onde eu teria a sensação de que ela tinha falado comigo — aquilo foi só uma consciência repentina do meu próprio desejo. Eu já estava sóbrio há três anos naquela época, mas senti que queria desesperadamente ficar chapado, e eu sabia que o melhor lugar pra conseguir isso era lá fora, na noite. Pensando agora, acho que pode ter sido minha própria mente racionalizando a maneira como senti minhas vontades me puxando pra fora do lugar, mas ainda era muito poderoso. Se eu não tivesse uma vida inteira de experiência identificando e lutando contra o efeito do olhar de um vampiro, provavelmente também teria feito isso. Mas eu tinha, então me mantive firme.
Houve uma longa pausa enquanto aquela mulher olhava fixamente para mim. Então ela começou a correr, passou pela porta e saiu. Eu a segui. Não importava pra mim se ela era uma vampira ou não, tinha alguma coisa errada e eu queria descobrir o que estava acontecendo. Eu a persegui até a estrada, estava fria e silenciosa e, se tinha alguém ali, não fez nenhum barulho. Ela corria de um jeito estranho, mais como se estivesse tendo espasmos, com passos suaves, e seus braços se deslocavam de maneiras estranhas enquanto ela se movia. Não sou tão ágil quanto antes e meus pulmões obviamente estavam em frangalhos, mas consegui acompanhar o ritmo dela. Eu conseguia sentir no meu sangue — aquilo era uma caçada, e eu sempre me sentia mais forte em uma caçada.
Finalmente, cheguei perto o suficiente pra agarrá-la pelo braço. Meus dedos se fecharam em volta do cotovelo dela, e então eles meio que... afundaram pra dentro. Eles não atravessaram a pele nem nada disso, mas... ela meio que amassou sob os meus dedos, tipo quando você esmaga uma salsicha crua.
E eu conseguia sentir um movimento de dentro do próprio braço. Não era um vampiro, mas definitivamente não era humano. Com o outro braço, ela desferiu um amplo golpe em mim, mas eu tava preparado e me esquivei do soco. Peguei minha faca pra tentar ameaçar aquela coisa, talvez fazer ela responder a algumas perguntas, mas calculei mal o saque e acabei a cortando levemente no estômago. Não foi um corte profundo ou longo, mas aparentemente foi o suficiente. Todo seu corpo começou a estremecer quando pequenas figuras começaram a sair da ferida.
Aranhas.
Milhares e milhares de aranhas.
Ela finalmente abriu a boca como se fosse gritar e mais sairam de lá — dezenas de milhares de pernas esvoaçantes e olhinhos malignos. Eu gritei e comecei a recuar quando as formas escuras se agruparam em torno de seus pés e se espalharam em um círculo trêmulo. Por um segundo, fiquei com medo de elas virem atrás de mim, mas então elas simplesmente correram para as sombras e fendas dos prédios próximos até que a rua estivesse vazia de tudo, a não ser por aquela mulher.
Ela ainda estava de pé, mas através da boca aberta... Eu podia ver que seu corpo era completamente oco, exceto por algumas teias de aranha que eu conseguia ver sob as luzes da rua. Eu fugi dali e essa foi a última criatura que eu encontrei.
Essa é minha história. De nada.
Quando eu pensava que eram só vampiros, eu poderia ter achado que vocês são só um bando de malucos. Mas se existem outras coisas por aí... talvez vocês saibam mais sobre isso do que eu. E talvez vocês possam precisar de um pouco mais de informações sobre os vampiros. É uma pena que eu tô de saída.
Vou sentir falta da caçada.
ARQUIVISTA
Fim do depoimento.
Bom, isso com certeza é uma surpresa. O Martin me informou que o Sr. Herbert faleceu depois de prestar seu depoimento inicial, por isso é um choque encontrar essa adição mal arquivada ao seu original, mesmo que esteja parcialmente incompleta.
Além disso, na verdade, verificando os registros hospitalares e de óbitos de Londres e Manchester, não consigo encontrar nenhum registro da morte do Sr. Herbert. Por outro lado, também não consegui encontrar nenhum registro dele vivo após a data do depoimento. A ideia de que ele poderia sobreviver seis anos com câncer de pulmão em estágio avançado não tratado é implausível, pra dizer o mínimo, e ainda assim... A morte de Alard Dupont parece coincidir com o depoimento na maioria dos detalhes. Ele tinha meia dúzia de condenações por várias acusações de porte de drogas ou comportamentos violentos, mas nada fora do normal. Não consigo encontrar nenhum indício de que ele era mudo, mas fora isso, tudo confere. Quanto à pessoa feita de aranhas, a única prova de sua existência parece ser a de que eu sou muito azarado pra que isso seja só uma alucinação de um velho vagabundo.
Preciso conversar com o Martin.
Fim da gravação.
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Arquivista: Senta.
Martin: O que tá...
Arquivista: Senta. Por que você mentiu pra mim sobre o Trevor?
Martin: O quê?
Arquivista: Por que você me disse que ele tava morto?
Martin: Desculpa, quem... quem é Trevor?
Arquivista: Trevor Herbert. O vagabundo. O caçador de vampiros. Você me disse que ele morreu.
Martin: Mas, tipo, ele... morreu. Não morreu?
Arquivista: Aparentemente não.
Martin: Ah. Desculpa.
Arquivista: Desculpa?
Martin: Quer dizer, eu... eu nunca o conheci pessoalmente. Eu só ouvi alguns dos outros pesquisadores mencionando isso.
Arquivista: O quê?
Martin: Sim, bem, eu poderia jurar que eles disseram que ele morreu. Quer dizer... talvez eles tenham dito que ele parece com a morte ou algo assim. Mas eu realmente pensei que eles tinham dito que ele tava morto.
Arquivista: Então é isso? Só um mal entendido?
Martin: Sim. Você parece estar levando isso pro lado pessoal...
Arquivista: Porque você continua mentindo pra mim, Martin!
Martin: Sobre o quê?
Arquivista: Eu não sei. Mas você tá.
Martin: Onde você conseguiu isso? Você andou mexendo na lixeira?
Arquivista: Estava na antiga sala de documentos, do ladinho de onde você costumava dormir. É sua caligrafia. "Se os outros descobrirem que eu estou mentindo", mentindo sobre o quê, Martin?
Martin: Olha, só esquece isso, ok? Por favor.
Arquivista: Eu não posso esquecer. Todo mundo nesse lugar têm um monte de segredos e eu não posso confiar em uma palavra do que você diz. Nem sobre isso, nem sobre o Trevor.
Martin: John, só...
Arquivista: Martin!
Martin: Okay! Okay! Okay. Só... só... promete que não vai... me demitir?
Arquivista: Te demitir? Tá.
Martin: Eu... Eu menti no meu currículo.
Arquivista: Quê.
Martin: Eu não tenho mestrado em parapsicologia. Eu nem tenho um diploma.
Quando eu tinha 17 anos, minha mãe, ela teve... ela teve alguns problemas, e eu acabei abandonando a escola pra ajudar em casa. Eu tentei de tudo, mas nenhum lugar me contratava, então eu meio que comecei a mentir no meu currículo e o mandar pra praticamente qualquer lugar. Por algum motivo minha mentira sobre a parapsicologia me rendeu uma entrevista com o Elias e... e depois um emprego aqui. A maioria dos detalhes do meu currículo são inventados. Eu só tenho 29 anos.
Arquivista: Certo, eu... uh... Eu acredito em você.
Martin: Por que você tá sorrindo?
Arquivista: É, eu só... Hum... Eu não vou mencionar isso pro Elias. Fica só entre a gente.
Martin: Então você não se importa?
Arquivista: Pra ser sincero, Martin, eu... Na verdade, eu tô bem aliviado.
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arquivosmagnusbr · 2 years ago
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MAG055 — Controle de Pragas
Caso #0160311: Depoimento de Jordan Kennedy a respeito de vários encontros que ocorreram enquanto trabalhava com controle de pragas.
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Aviso de conteúdo: entomofobia, insetos
Tradução: Lia
ARQUIVISTA
Fala de novo, por favor.
JORDAN
Como é?
Arquivista: O que você acabou de dizer, pode dizer de novo pra eu gravar?
Jordan: Ah, ok. A Jane Prentiss está morta.
Arquivista: Você tem certeza? Completamente.
Jordan: Sim. Eu assisti à incineração.
Arquivista: E não teve nenhuma... complicação?
Jordan: Tipo... o quê?
Arquivista: Vermes que sobreviveram e escaparam? Uh, o corpo se movimentando durante a incineração, ou fazendo ruídos, como gritos ou cantorias? Sentiu algo estranho, tipo mil coisinhas rastejantes se movendo na sua pele?
Jordan: Uau. Não, nada do gênero. Só o cheiro, mas, quer dizer, eu vou chegar lá. Correu tudo bem. Não sobrou nada além das cinzas que eu entreguei ao seu amigo. Uma coisa que eu não deveria ter feito, a propósito, então não fale pra ninguém.
Arquivista: Claro. E obrigado.
Jordan: Claro.
Arquivista: Mas já se passaram meses. Por que você decidiu prestar um depoimento só agora?
Jordan: Não foi só... não foi só queimar o corpo dela. Eu também fui o primeiro a ser chamado pra lidar com o ninho no antigo apartamento dela.
Arquivista: Ah...
Jordan: É. Mas eu estive pensando em algumas coisas, juntando algumas peças, e eu pensei que, bom, vocês provavelmente deveriam saber.
Arquivista: Certo. Bom, começa do começo, de onde quer que você se sinta confortável. Depoimento de Jordan Kennedy a respeito de...?
Jordan: Várias coisas estranhas que eu encontrei enquanto trabalhava com controle de pragas.
Arquivista: Depoimento gravado diretamente do indivíduo em 3 de novembro de 2016.
Início do depoimento.
JORDAN (DEPOIMENTO)
Trabalho como exterminador há mais de 10 anos. Eu deveria dizer controlador de pragas, na verdade — o BPCA geralmente desaconselha o uso da palavra com "e". Eles acham que soa um pouco desagradável demais; prejudica nossa imagem pública. Eu nunca me importei. Quer dizer, eu acho que dá pra dizer que matar coisas é meio que exercer um controle sobre elas, mas eu sempre senti que tentar higienizar meu trabalho é um pouco desonesto. Tipo tentar ajudar as pessoas a esquecerem que o que elas estão realmente fazendo é encomendar a morte de criaturas que consideramos muito nojentas ou insalubres pra viverem. Isso precisa ser feito, não me entenda mal, e fico feliz em fazer, mas não é meu trabalho segurar as mãos das pessoas e fazê-las se sentirem melhor com isso.
Já trabalhei em lugares por Londres inteira — principalmente grandes prédios comerciais onde tenho que trabalhar à noite enquanto todos os banqueiros e afins já foram pra casa. Armar armadilhas, colocar caixas de veneno; o de sempre. Casas residenciais não me chamam tanto pra cuidar de ratos e camundongos, principalmente se for um lugar alugado. A maioria dos proprietários não se dão o trabalho de pagar por esse tipo de serviço ou tentam lidar com a situação por conta própria.
Mas recebo um monte de chamadas sobre percevejos. Esses desgraçados são um inferno de eliminar, e é claro que no verão temos que lidar com vários ninhos de vespas. Adicione uma porção generosa de baratas, formigas e às vezes até pássaros ou raposas e você vai ter uma boa ideia do que consiste a minha vida profissional. Bem normal.
Recebi meu primeiro chamado estranho cinco anos atrás. Eram formigas — ou, pelo menos, foi o que me disseram. Lá em Bromley. A casa em si parecia uma casa suburbana bem normal. Talvez um pouco mais degradada do que a de seus vizinhos, mas nada particularmente incomum nisso, principalmente já que eles estavam me chamando. Não tinha carro na garagem e as persianas estavam todas fechadas apesar do sol de verão. Parecia que não havia ninguém em casa.
Descobri mais tarde que na verdade foi uma das vizinhas que me ligou, uma mulher chamada Laura Star, mas naquele momento eu ainda esperava ser recebido por alguém na casa. Eu bati na porta, mas obviamente não obtive resposta.
Eu sempre uso luvas quando estou trabalhando e quando olhei pra minha mão notei um brilho muito fraco onde o couro fino tocou a madeira. Parecia ser algum tipo de resíduo oleoso. Eu estava me sentindo menos confortável com o trabalho a cada segundo. Eu não conseguia ouvir nada lá dentro, então eu bati de novo. A mulher que me contratou tinha dito que eu podia só entrar, mas eu não queria simplesmente entrar sem avisar.
Depois de alguns segundos de silêncio, tentei a maçaneta e, claro, a porta se abriu. Não havia luzes acesas lá dentro e o lugar parecia quase completamente vazio de móveis. Eu conseguia ver um leve movimento no chão de madeira enquanto procurava o interruptor de luz. Logo o encontrei e acendi pra revelar exatamente o que eu esperava. Formigas. Eu só não esperava tantas. E havia muitas delas. Até hoje eu nunca vi tantas formigas dentro de um prédio ao mesmo tempo. Devia haver milhares cobrindo o chão e correndo pelas paredes.
Eu puxei minha mão pra longe do interruptor de luz quando notei dezenas delas rastejando ao redor dele. Até mesmo a lâmpada parecia estar envolta por elas fazendo com que a luz na sala fosse coberta com uma sombra trêmula. A casa em si não parecia estar muito melhor. Onde quer que houvesse um espaço entre as formigas eu podia ver aquela mesma podridão oleosa e não conseguia deixar de pensar que o prédio estava doente de alguma forma.
Bem, eu já vi muita coisa nojenta nesse trabalho, mas acho que aquele momento foi um dos mais intensos. Eu fugi por um momento de volta pra minha van pra decidir qual seria o meu próximo passo. Normalmente, eu deixaria alguma isca venenosa pra elas levarem até a colônia e eliminaria o problema pela raiz, mas uma infestação tão ruim como aquela, bem, aquilo não aparece do nada.
Eu precisava ter uma noção de com o que exatamente eu estava lidando. Mesmo da rua eu conseguia ver um fluxo constante correndo pra fora da porta aberta e ao longo do degrau. Eu me preparei com spray de pesticida e fui dar uma olhada mais de perto. Eu normalmente não usaria spray em formigas, mas aquilo não era normal, e a fórmula que eu estava usando funcionava muito bem em formigas. Dito isto, eu realmente não vi nenhuma delas morrer. Eu não esperava que isso acontecesse imediatamente, de qualquer maneira, e o importante é que onde quer que eu borrifasse elas fugiam, abrindo um caminho no chão desbotado pra eu andar.
Foi demorado, mas passei a maior parte do andar térreo assim e não vi nada além de mais formigas. Sem pessoas, sem móveis — nada. Pelo menos até eu chegar na cozinha e ver a geladeira.
Não tinha mais nada naquela cozinha. Até mesmo a pia tinha sido removida deixando só os canos de água saindo da parede como ossos enferrujados e doentes. Mas encostada na parede oposta havia uma geladeira velha. Sua carcaça que já havia sido branca agora era de um amarelo ictérico e eu não conseguia me livrar da sensação de que estava pulsando suavemente. Formigas gordas, pretas e enormes enxameavam pela fresta da porta e eu não tinha dúvidas de que o que quer que estivesse no centro daquela situação incrivelmente desagradável, estaria naquela geladeira.
Então eu decidi que provavelmente era uma boa ideia sair pra fumar um cigarro antes de abri-la. O ar lá fora parecia muito mais fresco quando saí da casa. Me afastei alguns metros da porta pra não ficar muito perto e acendi o cigarro. Foi quando dei a primeira tragada que vi um carro parar na entrada da garagem. Era um carro pequeno, compacto e vermelho, e a placa parecia indicar que tinha sido comprado no ano anterior. Mas, mesmo assim, pude ver a ferrugem começando a aparecer na tinta perto das bordas do painel.
Observei quando a porta se abriu e um homem saiu de dentro. Ele era alto, talvez um metro e oitenta e cinco, mas era difícil ter certeza de sua estrutura dentro do enorme terno marrom que ele usava. Ele olhou pra mim, depois pra placa no lado da minha van que dizia “Controle de Pragas do Kennedy”, e seu rosto começou a enrugar de raiva.
Dei outra tragada no meu cigarro. Eu estava inquieto com toda a situação e esperando pra ver o que aquele homem esquisito faria. Ele caminhou até mim com passos largos que o aproximaram o suficiente para que eu pudesse ver o brilho insalubre de suor em sua pele. Será que tudo aqui estava doente?
Ele se inclinou muito mais perto do que eu gostaria e exigiu saber o que eu estava fazendo. Eu disse que o proprietário tinha me contratado pra cuidar de uma infestação de formigas e eu estava fazendo uma varredura preliminar. Ele começou a balançar a cabeça violentamente dizendo que ele era o dono da casa, que aquela era a casa dele e que eu não tinha nada que estar ali. Bom, essas não foram as palavras exatas dele. O que ele realmente disse foi que eu não tinha nada que "aplicar meu ofício vil em sua propriedade".
Eu estava prestes a pegar meu telefone e ligar pra mulher que me contratou quando sua mão disparou do nada e me agarrou pela garganta. Ele me levantou do chão com uma força aterrorizante e eu fiquei muito feliz que, mesmo com o capuz abaixado, meu traje de proteção mantinha meu pescoço coberto. Eu conseguia sentir a mão dele através do plástico grosso. Estava quente, como se ele estivesse com uma febre incrivelmente alta, e eu comecei a entrar em pânico.
Ele me segurou lá, a quase trinta centímetros do chão, e minha visão começou a ficar turva quando ele apertou minha garganta. Enquanto lutava pra respirar, me debati procurando por algo pra lutar contra ele e percebi que ainda estava segurando meu isqueiro. Com um nível de compostura que, pensando nisso agora, ainda me surpreende, acendi o isqueiro e o levantei logo abaixo do braço dele.
O resultado foi muito mais dramático do que eu esperava. A manga larga de seu terno marrom acendeu quase imediatamente e, em poucos momentos, todo o braço dele estava em chamas. Ele gritou e me jogou no chão, e quando ele começou a se agitar tentando impedir que o fogo se espalhasse ainda mais por seu corpo, cambaleei até minha van. A essa altura, não importava quem era o verdadeiro dono daquela casa, eu já tava cheio daquele trabalho.
Quando estava entrando na van, eu senti o cheiro. Foi a coisa mais nojenta que eu já encontrei — um cheiro de alguma coisa atropelada cozinhando no sol com suor velho e ovos podres com só uma pitada de borracha queimada. E por baixo de tudo isso havia aquele cheiro indefinível de doença. Sabe aquele cheiro que você sente quando entra numa sala que tem alguém que está doente há vários dias? Não importa quais outros cheiros tenham ali, sob todos eles há aquele cheiro vago, mas inegável, de doença. Era assim que aquele homem cheirava enquanto tentava desesperadamente apagar o fogo de seu corpo.
Eu dirigi pra longe tentando não vomitar e não olhei pra trás. Eu também não chamei a polícia porque senti que eles poderiam não ser muito gentis comigo depois de ter ateado fogo a um homem, mesmo que ele tenha me atacado. Acho que ele também não tenha prestado queixa já que ninguém nunca apareceu pra me questionar sobre isso.
Então essa foi a primeira vez que encontrei o cheiro.
Arquivista: Entendi. E a outra vez foi quando queimou a Jane Prentiss?
JORDAN (DEPOIMENTO)
Não só isso.
Quer dizer, eu não cheguei a vê-la. A incineração foi a primeira vez que a vi pessoalmente. Mas alguns anos atrás fui chamado pra lidar com o ninho da vespas.
Pelo menos foi assim que o proprietário nomeou no telefone — aparentemente tinha machucado um de seus inquilinos mais cedo naquele dia e eu fui o primeiro serviço de controle de pragas para o qual ele ligou que estava imediatamente disponível. Ele não me disse o nome do inquilino, embora, obviamente, agora eu saiba quem era. Ele não me deu nenhum detalhe pelo telefone, mas parecia feliz em pagar a taxa da chamada de emergência, então juntei meu equipamento pra vespas e parti pra Prospero Road.
Era um pouco estranho receber um chamado pra vespas naquela época do ano. Era final de fevereiro ou início de março, eu acho, e ainda estava bastante frio. Ainda assim, se fosse um prédio quente o suficiente, elas poderiam facilmente continuar ativas. Independentemente disso, fiz questão de verificar o traje espesso que eu usava pra esse tipo de trabalho pra garantir que não tivesse pontos fracos ou danificados. Se elas eram agressivas o suficiente pra ferir alguém, eu não correria nenhum risco.
O nome do proprietário era Arthur Nolan. Ele era um homem baixo com uma carranca constante, cabelos brancos ralos e um charuto na boca. Parecia que sua camisa jeans já tinha vestido uma estrutura bem atlética, mas que já havia desaparecido há muito tempo. Ele me olhou de cima a baixo quando saí da minha van e vi sua boca se contorcer brevemente de irritação. Ele claramente não estava impressionado.
Eu fiz o monólogo de sempre sobre o que iria acontecer e ele acenou com a cabeça distraidamente antes de entregar as chaves do apartamento 4 em minhas mãos e apontar pra ele. Ele disse que se eu precisasse de alguma coisa, ele estaria no apartamento 1, onde ele morava. Eu aconselhei que ele e os outros inquilinos ficassem fora do prédio enquanto eu lidava com as vespas, mas ele só grunhiu e repetiu que estaria no apartamento 1. Os outros inquilinos aparentemente já tinham saído.
Eu carreguei o inseticida e entrei. Estava muito mais silencioso do que eu esperava. Enquanto eu estava do lado de fora do apartamento 4, eu normalmente esperaria ouvir o zumbido das vespas, mas a noite estava quieta. Abri a porta lentamente, sem movimentos bruscos que pudessem alarmar qualquer coisa que estivesse do outro lado, mas, de novo, o apartamento parecia estar vazio.
Parecia que tinha passado um furacão ali, com livros e roupas espalhados pelo chão e uma tela de TV quebrada no canto. Encontrei a escada proo sótão no centro do quarto. Era bem pequena e subir no meu traje volumoso foi complicado, mas cheguei lá. Ainda sem vespas, mas estava muito escuro, então vasculhei de novo até encontrar o interruptor de uma única lâmpada. A luz era muito fraca, mas era o suficiente pra distinguir um caroço espesso e polpudo encostado na parede oposta.
Com certeza não se parecia com nenhum ninho de vespas que eu já tinha visto antes. Quer dizer, a forma era até familiar, mas a textura da superfície parecia muito errada. Parecia muito menos de papel do que o normal, e as paredes eram menos... regulares, se esticando em ângulos estranhos e deixando meio difícil de desviar o olhar. A coisa era toda esponjosa, cheia de buracos pequenos e num geral parecia muito doente. E o mais perturbador de tudo: ainda não tinha vespas.
Nada disso mudava o trabalho que eu tinha que fazer, então pensei em começar como qualquer outro ninho de vespas e ver se funcionava. Estendi a mão pra frente, ficando o mais longe possível da coisa quanto o bocal permitia, e o empurrei pra dentro de um dos buracos maiores. Ele afundou com quase nenhuma resistência. Respirei fundo e puxei o gatilho, borrifando o pó de inseticida no interior da massa.
O efeito foi imediato. A coisa toda começou a pulsar e ter espasmos, a carne esponjosa dela latejando e borbulhando como algum tipo de massa abominável. Ela começou a crescer em tamanho, se expandindo e cobrindo o resto do bocal, se estendendo até mim. E aí começou a gritar. Não era o som do ar escapando ou um zumbido que soava como gritos, aquele ninho estranho estava soltando um grito longo e estridente de raiva e dor.
Larguei o borrifador e desci a escada tão rápido que quase caí no apartamento abaixo. Eu ainda conseguia ouvir aquilo quando cheguei à porta do corredor. Eu a abri apenas pra ser confrontado pelo rosto de Arthur Nolan, o proprietário, olhando pra mim com um olhar de decepção.
Ele balançou a cabeça e começou a andar pelo corredor. Eu o segui, desesperado por respostas, mas ele simplesmente ignorou minhas perguntas sobre o que diabos estava acontecendo e o que era aquela coisa e continuou descendo as escadas até seu próprio apartamento. A certa altura, ele balançou a cabeça e murmurou algo sobre esperar que aquilo não chegasse tão longe, mas não parecia estar falando pra mim.
Assim que a porta se abriu, percebi o quão desconfortavelmente quente era o apartamento 1. O ar era espesso e seco e fez minha garganta ficar um pouco áspera. O proprietário continuou a ignorar minha presença e caminhou até uma poltrona velha no centro da sala. Ao fazer isso, ele começou a desabotoar sua camisa jeans.
Mais do que qualquer outra coisa que aconteceu, foi isso que finalmente me fez parar, confuso. Eu não conseguia entender o que ele estava fazendo. Quando ele se sentou, sua camisa se abriu e eu vi o que parecia ser uma cicatriz intrincada em seu peito. Se eu tivesse que adivinhar o que era, diria que parecia uma chama estilizada, mas também me fez pensar em um rosto contorcido de dor.
O tempo parecia passar devagar enquanto ele pegava o cinzeiro no braço da cadeira e pegava uma caixa de fósforos. Ele acendeu um e, sem sequer olhar pra mim, gentilmente pressionou a pequena chama no centro da cicatriz.
Sua carne pegou fogo imediatamente. As chamas se espalharam por seu corpo como água. A poltrona pegou fogo, depois o chão, e então eu corri pra fora do prédio antes que aquele inferno me cobrisse também. Dessa vez eu não fui embora. Eu fiquei lá e assisti ao incêndio até que o corpo de bombeiros chegou.
Foi quando o fogo atingiu aquele espaço no sótão no último andar, onde eu sabia que aquele ninho horrível ainda estava. Foi aí que eu senti o cheiro: o mesmo fedor grotesco que tinha vindo daquele homem seboso e febril três anos antes.
Na época eu não liguei os acontecimentos. Eu estava muito ocupado tentando entender o que tinha acabado de acontecer. E quando os caminhões do ECDC apareceram pra me colocar em quarentena, esqueci completamente.
Eles foram surpreendentemente sinceros sobre a Jane Prentiss e o que tinha acontecido e, depois de um extenso interrogatório, eles acabaram me oferecendo um emprego. Aparentemente, o controle de doenças e o controle de pragas muitas vezes caminham juntos, e eu estou trabalhando pra eles desde então. A maioria dos trabalhos são normais — alguns um pouco estranhos, mas nada parecido com esses dois.
Arquivista: Então por que prestar depoimento agora?
Jordan: Quando ajudei a incinerar o corpo dela, senti o cheiro de novo. Como antes. Levei um tempo pra ligar as coisas, mas achei que você deveria saber.
Arquivista: Você tá dizendo que pode haver outros lá fora como ela?
Jordan: Céus, espero que não. Eu não sei. O homem da casa das formigas — ele não era como ela, de jeito nenhum. Mas aquele cheiro quando eles queimaram... Eu acho que eles estão conectados de alguma forma. E isso me assusta.
Arquivista: Sim... sim, isso me assusta também.
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ARQUIVISTA
O depoimento do Sr. Kennedy me deixou um pouco abalado. Embora eu esteja sempre feliz com qualquer encerramento adicional do caso de Jane Prentiss, esse parece vir com a ressalva bastante séria de que ela pode não estar trabalhando sozinha.
Não, isso não parece certo. Jane Prentiss — ou o que quer que tenha sido essa “colmeia de carne” que a pegou — não parece o tipo de ser que funcionaria bem com outros.
A casa em Bromley foi demolida no ano passado, mas o Martin conseguiu localizar os registros da propriedade. Foi registrada no nome de John Amherst. As datas não deixam totalmente claro se isso foi um pouco antes ou logo depois de ele aparentemente assumir o comando da Casa de Repouso de Ivy Meadows, mas não há dúvidas de que era a mesma pessoa. Todos os registros de propriedade da casa das formigas levam a becos sem saída ou contas bancárias desativadas.
Não parece que ele é outra colmeia de carne... Mas, ainda assim... Não há nenhuma conexão exceto por doenças e insetos... e um cheiro desagradável quando eles queimam.
Jane Prentiss está morta. Mas isso tá muito longe de acabar.
Fim da gravação.
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ARQUIVISTA
Complemento.
Eu… Eu não tenho muito o que relatar, na verdade. Estamos na semana do Halloween, o que significa que o departamento de pesquisa tá sempre lotado de depoimentos. A maioria deles é patentemente falso, mas o volume fez com que eles chamassem o arquivo pra ajudar com o excesso.
Tem sido legal, na verdade. Refutar pilhas de bobagem foi bom, como se eu estivesse trabalhando de verdade, não só me distraindo com teorias da conspiração e paranoia. Eu tive até uma boa noite de sono. Sinto saudades dessa época.
Fim do complemento.
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arquivosmagnusbr · 2 years ago
Text
MAG054 — Natureza Morta
Caso #0132306: Depoimento de Alexander Scaplehorn a respeito da avaliação que fez dos taxidermistas da “Sala de Troféus”, em Barnet.
Ouvir em: Spotify | Youtube
Aviso de conteúdo: animais mortos, escopofobia
Tradução: Lia
ARQUIVISTA
Depoimento de Alexander Scaplehorn a respeito da avaliação que fez dos taxidermistas da “Sala de Troféus”, em Barnet.
Depoimento original prestado em 23 de junho de 2013. Gravação de áudio por Jonathan Sims, arquivista chefe do Instituto Magnus, Londres.
Início do depoimento.
ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Eu tento não julgar pelas aparências.
Tenho certa simpatia por pessoas que se sentem instintivamente insultadas por aqueles que os cercam. Não só porque eu mesmo sou o que você generosamente descreveria como "estranho", mas porque minha carreira me levou a trabalhar pra Receita Federal, e você precisa ver o jeito como as pessoas se afastam de você quando descobrem que você trabalha pro fiscal.
Então eu tento ser um pouco mais profundo que isso e dou uma chance pra todo mundo. Então, fui com a mente extremamente aberta realizar uma inspeção na Sala de Troféus — uma loja de taxidermia perto de Woodside Park, em Barnet.
Eu nunca me senti de forma alguma atraído pela ideia da taxidermia, tirando alguns exemplos interessantes no Museu de História Natural, mas eu tinha certeza de que ela não merecia a reputação macabra que tinha. Claro, eu ia inspecionar o local para garantir que não estava sendo usado pra fins de lavagem de dinheiro, então, se eu descobrisse que estavam envolvidos com atividades criminosas, eu teria uma boa justificativa pra qualquer opinião ruim que eu pudesse ter, mas não queria me precipitar.
Veja bem, a Sala de Troféus tinha sido um marco de Woodside Park por mais ou menos trinta anos, mas, como muitas outras lojas de nicho, parecia vender muito pouco. Seus impostos estavam todos em ordem, mas havia pouquíssimos clientes regulares e a maior parte do dinheiro que os mantinha no azul vinha de algumas eventuais transações grandes que pareciam um tanto excessivas para os itens que estavam sendo comprados — todos os indicadores de lavagem de dinheiro.
Você ficaria surpreso com a quantidade de empresas que você passa na frente todos os dias na rua que estão sendo usadas desse mesmo jeito. Aquelas lojas que nunca parecem estar abertas ou que atendem a um mercado tão específico que você se pergunta como elas conseguem se manter. Bem, muitas vezes elas não conseguem sem ter alguma ajuda ilícita.
Mas eu não sou a polícia, não tenho poder pra prender ninguém ou revogar nenhuma licença ou até mesmo multar alguém sem passar por um monte de burocracia. Tudo isso vem depois e de outras pessoas. Meu trabalho é só discutir as conformidades e políticas pra prevenir a lavagem de dinheiro e examinar as transações pra confirmar que não tem nada suspeito. Eu acho fascinante, mas tô bem ciente de que a maioria das pessoas que eu inspeciono não compartilha da mesma opinião.
Assim que cheguei à Sala de Troféus, percebi que demoraria um tempo.
A loja tinha aquela camada de sujeira que só se acumula quando um estabelecimento está aberto há décadas sem nenhuma mudança, as letras douradas pintadas agora eram marrons e sujas e as bordas do toldo verde-oliva estavam cheias de sujeira. O tigre de pelúcia na janela estava tão desbotado pelo sol que eu tive que olhar duas vezes pra ter certeza de que não era um leão, suas listras estavam quase sumindo. Seus olhos estavam vidrados e um de seus dentes parecia ter quebrado. Mesmo assim, tinha alguma coisa na curva de sua boca que me atraía, e eu fiquei tão perdido olhando pra ela que quase pulei quando o sino acima da porta soou estrondosamente.
Olhei pra frente e vi um homem surpreendentemente jovem parado ali. Eu esperava ver algum tipo de caçador velho e durão a julgar pela aparência do lugar, mas, em vez disso, aquele jovem de 20 e poucos anos estendeu a mão para eu apertar. Eu apertei. A mão dele era firme e muito seca.
Perguntei se ele era o dono e ele respondeu que era, se apresentando como Daniel Rawlings. Aparentemente, o lugar pertencia a um velho amigo de seu pai que não tinha muitos parentes, e quando ele faleceu alguns anos antes, Daniel acabou o herdando. Perguntei se ele tinha algum interesse em taxidermia e ele apenas deu de ombros e gesticulou para que eu entrasse.
O cheiro me atingiu assim que eu passei da soleira. Era tão espesso que quase dava pra sentir o gosto, como se tivesse alguma coisa morta apodrecendo sob as tábuas do assoalho. Cheiro horrível. Eu me virei e vi Daniel acendendo um cigarro como se reconhecesse o odor do lugar. Ele apenas deu de ombros novamente e disse que eram os produtos químicos, lançando um olhar para a coleção reunida de animais selvagens empalhados.
Foi só aí que eu os percebi. Centenas de olhos mortos brilhantes olhando pra mim de todas as direções. Havia um alce enorme na minha frente, uma prateleira cheia de esquilos ao longo da parede, corvos imóveis presos a um velho candelabro elétrico e dezenas e dezenas de peixes montados em placas ou selados em tanques falsos.
Pelos, penas, escamas... todas as formas e tipos de pele morta me cercavam, cada um congelado em uma quietude estranha, como se estivessem presos em um mundo onde o tempo simplesmente havia parado. Tudo menos os olhos deles, é claro. Os olhos nunca estiveram vivos e todos pareciam olhar na minha direção, de um jeito que olhar muito de perto pra qualquer um deles era como olhar para vidro.
Levei um momento pra me recompor e tentar lembrar que eu tinha tomado a decisão de não julgar a loja ou seu dono com base no fato de que muitos consideram a taxidermia perturbadora. Eu conseguia me ver me tornando uma dessas pessoas e lutei muito contra o sentimento de injustiça que parecia estar tentando se infiltrar em minha mente.
Me forcei a fazer um bom elogio a Daniel sobre a variedade de suas peças enquanto ele acendia outro cigarro. Pensei em mencionar a placa de proibido fumar, mas não era exatamente por isso que eu estava lá, então comecei a falar sobre lavagem de dinheiro.
Ele assentiu e disse que tinha recebido a carta anunciando a inspeção e juntou todas as contas e transações dos últimos anos pra mim. Ele explicou que, como tinha assumido o negócio há pouco tempo, ele não sabia de muita coisa das políticas e procedimentos de prevenção à lavagem de dinheiro. Isso era música para os meus ouvidos, pois tem poucas coisas que eu goste mais do que ensinar o básico a um novo empresário engajado e em poucos minutos eu já tinha esquecido todos os olhos vidrados que pareciam me seguir pela sala. Pelo menos a maioria deles.
Daniel parecia extremamente interessado quando descrevi as verificações básicas do procedimento, mas não foi a primeira vez. As pessoas, especialmente os novos empresários, tendem a se sentar e prestar atenção quando um funcionário da Receita Federal aparece pra uma visita. Quer dizer, eu tento não explorar minha posição, mas as pessoas levam a visita do fiscal muito a sério e isso pode render alguns ouvidos maravilhosamente atentos.
Daniel não parecia estar em pânico ou preocupado, somente intrigado. Ele fez todas as perguntas certas e tinha sempre um bom exemplo na ponta da língua pra qualquer um dos aspectos mais abstratos da discussão. Resumindo, foi um prazer discutir lavagem de dinheiro com ele. Eu até parei de sentir o cheiro depois de um tempo, embora voltasse a senti-lo sempre que ele começava a fumar outro cigarro, algo que geralmente acontecia quase imediatamente depois que ele terminava o último. Não consigo nem imaginar como deviam ser os pulmões dele.
A única coisa estranha era que ele parecia determinado a evitar contato visual olhando pro chão ou para os animais taxidermizados, mas nunca diretamente pra mim. Era um pouco desconcertante, mas eu tenho um primo com autismo, então não era uma situação totalmente nova pra mim.
Por fim, a discussão terminou e Daniel falou sobre algumas das possíveis políticas que ele iria implementar. Elas realmente pareciam ser um pouco exageradas já que ele era a única pessoa trabalhando atualmente na Sala de Troféus, mas eu claramente não iria dizer pra ele ser menos cuidadoso.
Aí eu perguntei se podia dar uma olhada nos registros dele, e ele assentiu novamente e me levou para a sala dos fundos.
O escritório atrás da loja principal era pequeno e muito limpo. A maior parte do espaço era ocupada por uma grande mesa de carvalho e eu podia ver outra porta que levava ao que parecia ser uma oficina a julgar pelas mesas e sacos de serragem.
Daniel me entregou seus livros de contabilidade, registros bancários e recibos e me deixou sozinho. Nada daquilo tinha sido digitalizado e eu já sabia que levaria bastante tempo pra revisar tudo. O cheiro era mais fraco ali, então não foi tão horrível quanto poderia ter sido.
Havia taxidermia nessa sala também, mas era diferente das que estavam na sala da frente. Pendurados ao longo das paredes traseiras estavam couros e peles de animais tratadas. Eles pareciam ser bem velhos. Alguns reconheci como de origem nativa americana ou africana, e um parecia tão velho que eu fiquei preocupado até mesmo de respirar perto dele e ele se desfazer e virar pó.
Em cima da escrivaninha, encostada na parede, havia uma lebre montada com um pequeno colete. Ela me lembrou o coelho branco de Alice no País das Maravilhas, embora sua pele estivesse desbotada e agora manchada com um amarelo apagado. Achei o rosto dela um pouco mais perturbador do que os outros, apesar de não saber dizer por que, e tentei não olhar muito de perto enquanto examinava os registros da loja.
Não parecia ter nenhuma lavagem de dinheiro, o que era um alívio. Os preços que as pessoas pagavam pelos animais empalhados eram muito altos, mas eu não sou de forma alguma um especialista na área e não parecia ter mais nada suspeito nos registros.
Mas eu fiquei me perguntando qual era o tipo de pessoa para quem ele vendia. Da sala dos fundos, vi quatro clientes entrarem ao longo do dia. Observei cada um eles ficando cada vez mais apreensivos antes de finalmente fugirem de volta pela porta, tentando racionalizar o medo. Eu simpatizava.
Era quase hora de fechar quando o Daniel voltou pra me ver. Eu dei a ele a boa notícia. Ele não parecia particularmente aliviado, mas me disse que estava feliz em ouvir aquilo. Aí ele riu e me perguntou se eu sabia o quão sortudo eu era. Eu não entendi.
Ele me disse que eu estava sentado ali entre algumas das peles mais antigas do mundo. Ele falou com essas palavras. Isso me deixou um pouco inquieto e lancei um olhar nervoso para a oficina antes de me lembrar de que eu estava mantendo a mente aberta para a profissão estranha dele.
Daniel começou a percorrer as peças em exibição. Pele de búfalo da América do Norte, onça do Sul, uma pele de lobo do início da Idade Média. A lebre, disse ele, tinha feito parte da Grande Exposição de 1851 e ajudou a deixar a Inglaterra vitoriana louca pelo ofício.
Eu não gostei da ênfase que ele colocou em "louca" quando disse isso.
Por fim, ele apontou pra pele mais antiga. Ele me disse que era pele de gorila do Cartago, trazida por Hanno no século V a.C., e podia ser só a peça mais antiga de taxidermia do mundo.
Pra ser sincero, eu não acreditei nele. Mesmo que a pele de um gorila pudesse ser preservada por mais de dois milênios, parecia uma coisa improvável de ser encontrada na parte de trás de uma loja em Barnet. Mas ela era claramente muito antiga e eu não contestei.
Eu estava prestes a arrumar uma desculpa pra ir embora quando a campainha tocou na frente da loja e um par de vozes detestáveis com um sotaque londrino começou a chamar por Daniel. Seu rosto ficou pálido com isso e ele me pediu licença por um segundo, repentinamente me deixando sozinho no quarto dos fundos.
Ouvi os homens dizerem algo sobre descarregar uma van e então a campainha tocou novamente, levando Daniel com ela. Eu fiquei sozinho.
Eu comecei a arrumar minhas coisas e fazer algumas anotações finais pro meu relatório quando ouvi algo. Estava abafado, mas definitivamente pareciam ser palavras. Parecia estar vindo de debaixo do chão. Olhei pra baixo e vi um puxador redondo ligado a uma pequena porta que eu não havia notado, que presumi levar a um porão.
Ouvi o som mais uma vez. Dei uma olhada na loja principal para ver se Daniel tinha voltado, mas estava quieto. Eu sabia que abrir a porta era uma coisa idiota de se fazer. Não consigo imaginar um único cenário onde as coisas acabariam bem pra mim, mas o lugar todo era tão estranho que parte de mim não resistia em ver o quão funda era a toca do coelho, se me permite a piada.
Então eu abri a porta.
Tinha mesmo um lance de escadas que desaparecia no que parecia ser um porão. Eu não conseguia ver se tinha um interruptor de luz. Era impossível ver qualquer coisa além da primeira dúzia de degraus. Mas a luz que brilhava da lâmpada fraca atrás de mim iluminou uma coisa.
Um rosto.
Eu não conseguia distinguir nenhum detalhe, mas era pálido e balançava ligeiramente de um lado para o outro. O corpo abaixo dele estava escondido nas sombras, mas parecia olhar pra mim enquanto se movia.
Ele falou, o ritmo idêntico ao que eu tinha ouvido através da porta de madeira.
"Temos um aqui embaixo. Vem, vou te mostrar."
Soava tão monótono, quase mecânico. Parecia uma fala tão real quanto o vento soprando pelas frestas de uma rocha parece uma flauta sendo tocada. O que quer dizer que eles podem soar quase idênticos, mas só um deles é feito por um ser humano vivo. Comecei a dizer alguma coisa, a gritar, mas minha voz desapareceu na garganta quando o rosto recuou pro porão.
"Temos um aqui embaixo. Vem, vou te mostrar."
Eu me virei e corri pra loja principal. Agora eu estava totalmente apavorado e sentia o suor frio escorrendo da minha testa. Daniel estava na porta. Ele perguntou se estava tudo bem com um sorriso que fez meu estômago revirar e finalmente me olhou nos olhos.
Eu reconheci o olhar vítreo. Os mesmos olhos que me olhavam de uma centena de órbitas cheias de serragem ao redor da sala.
Quando todos começaram a se mover, eu quase desabei. Se eu tivesse desabado, não tenho dúvidas de que estaria morto... ou talvez muito pior. Em vez disso, tive uma súbita descarga de adrenalina e investi contra o Daniel, o derrubando no chão com a surpresa. Foi como bater num saco de areia.
Seus dois amigos londrinos demoraram muito pra me segurar antes que eu saísse correndo pela estrada. Pode até não parecer, mas consigo me mover em um ritmo razoável quando preciso, e fiz isso por quase uma hora antes de finalmente me sentir seguro o suficiente pra parar.
Eu tive muita sorte, sabe? Tive o bom senso de reunir todas as minhas anotações antes de abrir a porta do porão. O que significava que eu não tinha que voltar lá — eu podia simplesmente escrever um ótimo relatório e nunca mais ter que pensar sobre isso.
Tirando pra prestar meu depoimento pra vocês, claro. E foi exatamente o que eu fiz. Afinal, seja lá o que aquelas outras coisas fossem, não eram lavagem de dinheiro.
ARQUIVISTA
Fim do depoimento.
Fiquei um pouco apreensivo quando descobri que a Sala de Troféus ainda está aberta e ainda é propriedade de Daniel Rawlings. É o tipo de pista que nunca conseguimos nesses casos — que ainda esteja ativa e disponível para investigação. No entanto, dados os eventos detalhados aqui, eu estava bem receoso de mandar alguém pra investigar. Posso não confiar totalmente nos meus assistentes, mas não vou perdê-los.
Eventualmente a Sasha se voluntariou. Eu avisei que poderia ser perigoso, mas ela parecia estar bem interessada. Acabou sendo meio decepcionante no final.
Por mais sinistra que fosse a taxidermia, aparentemente não havia nenhuma figura no porão, que o Rawlings ficou feliz em deixá-la investigar, nem qualquer coisa obviamente estranha em qualquer outro aspecto da loja. O Rawlings disse que não se lembra de entregadores especificamente londrinos, mas sei que nem preciso dizer minhas suspeitas aqui.
Não temos provas de nada e se ele não quiser falar, não tem muito que possamos fazer pra que ele mude de ideia. Ele também nega ser o mesmo Daniel Rawlings que desapareceu em Edimburgo em 2006.
Ele permitiu que a Sasha tirasse uma foto dele e eu estava comparando ela com as fotos disponíveis do Daniel Rawlings que desapareceu. É muito estranho. Eles têm alturas diferentes, biotipos diferentes, rostos diferentes... mas os cabelos são idênticos.
Os olhos, por outro lado, não são; e acho difícil acreditar que eles possam ser a mesma pessoa. Outro beco sem saída.
Fim da gravação.
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ARQUIVISTA
Complemento.
Invadi o apartamento da Gertrude.
Eu tava fazendo algumas pesquisas e descobri que a casa dela ainda não tinha sido alugada. Uma conversa rápida com o proprietário confirmou que houve alguns atrasos legais por conta da forma como ela desapareceu e faleceu, e ela já tinha pagado pelos próximos seis meses, então eles ainda não tiraram as coisas dela.
Então... eu invadi. Não foi fácil e entrar pela janela fez com que eu não tivesse muito tempo antes de ouvir as sirenes, mas acho que consegui escapar.
Aprendi algumas coisas com isso. Em primeiro lugar, a Gertrude tinha uma vida muito minimalista. Não tinha nada na cozinha exceto por saquinhos de chá, uma panela, uma chaleira e uma única caneca. A cama dela tava bem arrumada e ela tinha uma única estante cheia de vários livros, a maioria sobre história. A julgar pela sacola que eu encontrei por ali, acho que ela costumava se livrar dos livros depois de lê-los.
Ela não tinha televisão, mas encontrei algo que chamou a minha atenção: um carregador de laptop. Não vi nenhum sinal do computador que vinha com ele, mas a indicação de que ela poderia ter um foi bem pro topo da minha lista de prioridades.
Ainda assim, a casa dela me forneceu poucas informações por si só, embora continue a provar que minhas impressões sobre a Gertrude dificilmente poderiam ser menos precisas. Tô começando a achar que a única suposição certa que eu fiz sobre ela foi que ela provavelmente gostava de chá.
Ah, e eu dei uma olhada em alguns livros da prateleira dela. Eles eram muito bem cuidados, com a exceção de que sempre que o rosto de uma pessoa aparecia na capa, seus olhos eram recortados e removidos com muito cuidado.
Fim do complemento.
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