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Crônicas antifascistas
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Neste blog procuro estimular a reflexão sobre a natureza do fascismo e como combatê-lo, especialmente a partir da forma como ele se manifesta no Brasil. Isto porque, para ESMAGAR O FASCISMO é preciso compreende-lo. Se você acha que estas crônicas podem contribuir para isto, compartilhe-as.
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blogdobenedito · 5 years ago
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O fascismo está cumprindo o seu papel
Após a Segunda Grande Guerra, as sociedades capitalistas jamais se desvencilharam completamente do fascismo. Com o passar do tempo, porém, a extrema direita perdeu influência, tornando-se uma força marginal no sistema político burguês. No caso do Brasil, o movimento dos antigos integralistas, divididos em diversos grupos a partir da morte de Plínio Salgado em 1975, manteve-se até recentemente apenas como uma piada de mau gosto.
A razão do ostracismo político a que foram submetidos os fascistas durante mais de cinquenta anos foi a capacidade do capitalismo em manter um ritmo razoavelmente estável de crescimento econômico, acompanhado por significativas melhorias das condições de reprodução social dos trabalhadores. Embora tais melhorias tenham ocorrido apenas em um punhado de países (os mais ricos atualmente), perdurando pelo curto período de trinta anos, ela permitiu a formação de uma crescente e hoje arraigada crença na capacidade do capitalismo e, portanto, nas suas instituições “democráticas”, de um dia proporcionar uma vida digna ao conjunto da população.
O capitalismo desta segunda década do século XXI, porém, traz escassos elementos para a manutenção desta crença. Em uma profunda crise econômica que atinge em cheio o seu sistema político, cujo adiantado estado de putrefação provoca uma generalizada repulsa aos “políticos”, o capitalismo a duras penas consegue manter certa estabilidade para as suas instituições.
Terreno fértil para o fascismo. A virulenta atitude “antipolítica” dos fascistas proporciona ao seu discurso, mesmo que raso e grosseiro, uma ampla repercussão. Assim, na falta de candidatos próprios viáveis eleitoralmente, restou a direita brasileira em 2018 apoiar o fascismo bolsonarista como forma de evitar a eleição de um candidato da esquerda. Isto porque neste caso dificilmente a direita conseguiria impor as reformas ultraliberais a que tanto anseia, pelo menos com a urgência que ela reivindica (embora a incompetência do governo Bolsonaro tem atrapalhado bastante tal plano).
Neste contexto, seria de se esperar da esquerda uma firme oposição ao fascismo e à burguesia que o apoia. Mas não, como indica o vergonhoso comportamento da maior agremiação de esquerda do país nas eleições municipais de 2020. De acordo com os dados divulgados pelo Tribunal Superior Eleitoral, nestas eleições o Partido dos Trabalhadores fez coligações com o Partido Social Liberal em 140 cidades (o Partido Social Liberal é o antigo partido de Bolsonaro, no qual este ainda possui numerosos seguidores), em 302 cidades com os Democratas (o partido mais à direita da direta); em 333 cidades com o Partido Progressista (atualmente o principal aliado de Bolsonaro no Congresso), em 606 cidades com o venal Movimento Democrático Brasileiro (que abriga Michel Temer, o ex-vice-presidente golpista da presidente Dilma Roussef), em 193 cidades com o Partido Social Cristão (do governador fascista Wilson Witzel); e em 48 cidades com o Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (de Hamilton Mourão, vice-presidente de Bolsonaro).
Em meio a esta pantomina, vários observadores políticos afirmam que a direita “tradicional” (isto é, excetuando a extrema direita), foi a grande vencedora nestas eleições, firmando-se não apenas eleitoralmente (o que seria de se esperar), mas sobretudo ideológica e moralmente (o que é estarrecedor). No primeiro turno das eleições, o partido dos Democratas, por exemplo, apresentou um avanço de 49% no número de prefeituras conquistadas (passando de 2.905 para 4.341), e o Partido Progressista, 39% (passando de 4.743 para 6.346).
Tudo indica que a direita brasileira está conseguindo usar a extrema-direita como um espantalho para se recuperar politicamente. Obtendo, para isto, um alegre e ingênuo apoio da esquerda.
Enquanto isto, Bolsonaro e os seus asseclas continuam com suas atitudes genocidas, agravando o desastre sanitário provocado pela pandemia do COVID-19. E continua, também, com os seus crimes. Sem que, no entanto, nem o Congresso, nem o Superior Tribunal Federal tomem qualquer atitude que vá além de uma retórica defesa das instituições e da democracia (sic!). É que, para a burguesia, manter Bolsonaro até 2022 tornou-se eleitoralmente muito interessante (desde que isto não coloque em risco as reformas ultraliberais e o já abalado prestígio do STF). Isto porque, ao ritmo alucinante das bizarrices reacionárias do clã Bolsonaro e dos seus seguidores, todos estarão dispostos a qualquer coisa para evitar a sua reeleição. O que pode fazer do fascismo no Brasil não apenas uma incômoda solução emergencial para a direita, mas, um integrante permanente do sistema político burguês, como há muitos anos já ocorre em outros países (como a França, por exemplo).
Em suma, o fascismo no Brasil está cumprindo o seu papel de reabilitar a desmoralizada direita golpista e ultraliberal. E isto ele o faz de duas formas. Em primeiro lugar, ofuscando a esquerda por meio de uma crítica moralista e ultraconservadora à democracia burguesa. E em segundo lugar, pelo fato de, diante da insanidade e incompetência que tem caracterizado estes quase dois anos de governo Bolsonaro, até mesmo a direita golpista que decisivamente apoiou a sua ascensão aparece agora como uma alternativa democrática e civilizada, mesmo aos olhos da esquerda.
Nada como um bom espantalho para assustar os ingênuos. (escrito em 15/12/2020)
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blogdobenedito · 5 years ago
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O fim de um sonho
O campo progressista está estupefacto. Todos se perguntam: como pudemos chegar a este ponto? Como um personagem grotesco como Jair Bolsonaro pode assumir o governo? E, o que é pior, como, depois de quase dois desastrosos anos no governo, ele ainda consegue obter apoio de parte significativa da população? O governo fascista de Jair Bolsonaro, assim, parece um pesadelo do qual não conseguimos acordar.
Este caráter onírico assumido pela realidade parece que se impôs ao nosso pensamento. Evidência disto é que as reflexões que procuram uma resposta objetiva às  questões formuladas acima são raras. E na falta de tais reflexões, o que se observa é uma interminável série de lamúrias sobre os malefícios que os alucinados representantes do fascismo têm promovido. Esta dificuldade em analisar objetivamente o fenômeno do fascismo contemporâneo coloca-se, assim, ela mesma, como mais uma questão a ser respondida.
Ocorre que, em seu ataque aos valores da Modernidade, o fascismo contemporâneo se contrapõe frontalmente ao ideário da classe média progressista, a principal base social da esquerda contemporânea. No Brasil, esta esquerda vê a si mesma como uma ferrenha opositora ao governo Bolsonaro, em sua defesa de valores (supostamente) universais.
Mas há aspectos paradoxais nesta oposição. No Brasil, ao lado dos repetitivos, e cada vez mais enfadonhos, discursos denunciando as ações do governo, observamos o principal partido da oposição (aquele mesmo que, em campanha, Bolsonaro prometeu assassinar os seus membros) se abraçando alegremente em vários municípios aos partidos aliados do governo na campanha para as eleições. Este paradoxo, porém, se dissipa quando percebemos que tudo o que esta esquerda quer é que o mundo volte a ser como antes. Com ela, como antes, integrada à democracia burguesa e assim, como antes, fazendo os mesmos conchavos cuja insustentabilidade resultou na sua expulsão do governo. Uma atitude que é exatamente a inversa do que esperam as classes populares que, devido à inexistência de algo melhor em que acreditar, viram, e parecem que em boa parte ainda veem, nos líderes fascistas uma alternativa a putrefata democracia burguesa, tanto amada e defendida pela esquerda.
O que a esquerda parece não querer compreender é que não é em Trump, Bolsonaro ou Guedes, com suas tragicômicas personalidades, que estão as causas deste estado de coisas, mas que as ações destes destacados fascistas contemporâneos são consequências do aprofundamento das contradições do nosso sistema social. É verdade que há uma burguesia “esclarecida”, cujo discurso é mais nitidamente formulado pelas instituições que a representa em nível internacional, como as do complexo das Nações Unidas. Estas instituições têm reiteradamente denunciado várias ações dos governos fascistas (obviamente, sem caracterizá-los como tal). Um exemplo são as críticas da Organização Mundial da Saúde a forma como os governos federais dos Estados Unidos e do Brasil têm enfrentado a pandemia de COVID-19. Outro exemplo, as críticas da comunidade internacional à intensa destruição ambiental protagonizada pelo governo Bolsonaro.
As críticas desses representantes da burguesia “esclarecida” não são manifestações de hipocrisia. Elas apenas atestam o fato de que os regimes fascistas invariavelmente acabam revelando de forma extrema o potencial destruidor do capitalismo, o qual a comunidade internacional que expressa os interesses globais dos capitalistas procura limitar. Por outro lado, é preciso lembrar que foi esta mesma comunidade internacional que formulou e promoveu o “consenso de Washington”, dando forte impulso às políticas neoliberais. Dentre estas políticas destacam-se os famigerados “ajustes estruturais”, promovidos pelo Fundo Monetário Internacional, responsáveis por jogar na miséria centenas de milhões de pessoas pelo mundo afora (especialmente na África e na América Latina). O ultraliberalismo fascista contemporâneo nada mais é do que o aprofundamento dessas políticas neoliberais. Difere delas apenas no abandono de qualquer veleidade em relação à medidas compensatórias (mas que em nada compensaram o desastre provocado pelo neoliberalismo). E é preciso lembrar também que o fascismo foi uma forma da burguesia eleger alguém comprometido com as reformas ultraliberais por ela propostas, as quais têm se constituído em um verdadeiro massacre do povo brasileiro. Tais reformas são muito mais graves dos que as declarações racistas ou homofóbicas de Jair Bolsonaro e seus seguidores, por vezes criticadas com (certa) veemência pelos representantes da burguesia internacional,  e que causam tanto escândalo na esquerda.
É preciso esclarecer, no entanto, que não se trata aqui de repudiar os valores da modernidade. O que questionamos é se, sem uma profunda mudança das estruturas sociais, o conjunto da população não pode ter os seus “direitos” assegurados, para integrar-se plenamente à sociabilidade moderna. Afinal, o que significa expressões como democracia ou direitos humanos, para não falar da defesa das Universidades Públicas, da Educação e das empresas estatais, para alguém que, depois de andar por várias horas em um ônibus lotado, executa um trabalho exaustivo e mal remunerado o dia todo, para depois enfrentar novamente longas horas em um precário transporte público? Ou, pior ainda, para quem nem tem emprego, sendo muitas vezes obrigado a viver na rua? Ou para o negro pobre que cotidianamente arrisca sua vida pelo simples fato de transitar por uma rua da periferia? Ou para a “família monoparental”, ou seja, os milhões de mães com seus filhos abandonadas a própria sorte que se amontoam nas favelas? E o que significa para estas pessoas a denúncia de “discursos de ódio”, propondo, em seu lugar cândidas declarações pela paz, se para elas a vida é uma violência constante? Estas (mais de uma centena de milhões) de pessoas sabem que elas, e os seus filhos, e os filhos dos seus filhos, não terão a mínima oportunidade de ter uma vida digna nesta sociedade. Estas pessoas querem verdadeiras mudanças (algo que a classe média progressista não quer), o que as torna presas fáceis à manipulação dos fascistas.
Para a classe média progressista, “assegurar direitos”, como ela repetidamente reivindica, tornou-se um verdadeiro projeto emancipatório, ou seja, um projeto que traga em seu bojo a criação das condições para uma plena expressão da individualidade dos seres humanos. Para a classe média progressista, este projeto pode ser consumado no interior do capitalismo. Neste processo, as classes populares até poderiam ter acesso a alguns direitos (o que “já é muito”, como afirmam alguns ideólogos da classe média progressista), mas não a uma emancipação da alienação e da exploração a qual elas são submetidas no capitalismo. No entanto, uma genuína emancipação humana no interior de um sistema visceralmente desumanizante não é possível. Assim, o que parece faltar a classe média progressista é saber que a emancipação das classes populares do jugo do capitalismo é uma condição necessária para a sua própria emancipação.
Neste sentido, o fascismo representa um duro golpe ao projeto emancipatório da classe média progressista. Talvez o fim de um sonho. E o início do pesadelo que é a realidade do capitalismo que agora se mostra em toda a sua crueza, também para a classe média progressista. Será ela capaz de superar o caráter onírico do seu pensamento para enfrentar com lucidez tal realidade? (escrito em 02/10/2020).
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blogdobenedito · 5 years ago
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Todos democratas?
John Locke é considerado como um dos primeiros e mais importantes ideólogos da Modernidade. Opondo-se a Thomas Hobbes, outro grande autor inglês do século XVII, Locke afirmava que o Estado era necessário não para reprimir uma natureza humana supostamente bárbara e cruel, como sustentava Hobbes, mas para assegurar uma vida pacífica pelo reconhecimento dos seres humanos como livres e iguais. John Locke foi, também, um próspero homem de negócios, o que era comum entre os defensores desta nova sociedade. Surge, assim, uma sólida identidade entre democracia e ordem burguesa, a qual perdura até os dias de hoje. É interessante, porém, observar que, dentre as atividades econômicas das quais Locke participava, destaca-se o tráfico de escravos, o que, convenhamos, não era perfeitamente coerente com a sua defesa de uma sociedade constituída de seres humanos livres e iguais.
Está incoerência, porém, não é fortuita. Na verdade, a democracia, tal com a conhecemos hoje, não foi implantada a partir dos generosos escritos dos ideólogos burgueses. A efetiva implantação da democracia, mesmo nos limites a ela impostos pelo capitalismo, foi inteiramente obra dos trabalhadores. O sufrágio universal, o voto feminino, para não falar de direitos como a limitação da jornada de trabalho, o descanso semanal, as férias remuneradas, a limitação do trabalho infantil e a licença maternidade, tudo isto só foi obtido após agudos, e muitas vezes sangrentos, conflitos entre os trabalhadores e a burguesia. E o fato de muitos desses direitos estarem em franca regressão explica-se pelo enfraquecimento da organização dos trabalhadores provocado pelo desemprego decorrente da profunda crise do capitalismo contemporâneo. No Brasil, a implantação do governo fascista de Bolsonaro foi protagonizada justamente para assegurar a continuidade deste processo.
É de surpreender, portanto, a ingenuidade da esquerda brasileira ao acreditar na sinceridade de notórios representantes da burguesia para a formação de uma Frente Ampla em Defesa da Democracia contra o governo Bolsonaro. Ocorre que as frações da burguesia descontentes com Bolsonaro não querem a queda, mas apenas o controle do seu governo, para que as reformas ultraliberais possam se aprofundar com um mínimo de competência. Reformas, aliás, devastadoras da frágil democracia brasileira.
É verdade que controlar Bolsonaro é uma tarefa de possibilidade extremamente duvidosa. Com a prisão de Queiroz e de alguns dentre os mais alucinados bolsonaristas, assim como com o avanço dos processos contra Flávio Bolsonaro, entre outros dissabores, até parecia que o nosso truculento capitão reformado tinha se acalmado. É como se, finalmente, tivessem acertado a dose de Rivotril. Bolsonaro até usou máscara e demonstrou (uma abertamente falsa) compaixão pelas famílias dos mortos pelo COVID-19.
Mas parece que esqueceram que irritabilidade, alucinações e vertigens estão entre os efeitos colaterais do Rivotril. Então, imaginem Bolsonaro sendo ainda mais irritadiço e sofrendo de mais alucinações e vertigens que de costume. Como controlar alguém assim?
Esta é a grande questão que se coloca para a burguesia, e não a de uma suposta volta da democracia. Mas para a esquerda, a questão não se resume a controlar Bolsonaro. E nem se trata de, simplesmente, derrubar o seu governo, o que só ocorrerá se o seu controle pela burguesia se revelar mesmo impossível. Trata-se de implantar um processo de uma efetiva democratização do país, o que implica colocar em questão todas as reformas antidemocráticas ocorridas nos últimos anos que aprofundaram a miséria e a precariedade das classes populares.
Porém, o aprofundamento da crise do capitalismo provocado pela pandemia coloca muitas dificuldades para a burguesia dar continuidade as reformas ultraliberais. Uma incisiva ação do Estado será necessária para não deixar a economia pós pandemia soçobrar de vez. Uma transferência massiva de renda em favor do setor financeiro como em 2008 não bastará. Será preciso relançar o consumo, o que implica em certa distribuição da renda para a recuperação de uma efetiva produção de riquezas. A situação que se anuncia possui aspectos semelhantes ao período que se seguiu a crise dos anos 1930 nos EUA e após a segunda grande guerra na Europa e no Japão. Com o agravante que agora os efeitos causados pelas atividades humanas sobre os sistemas naturais já não permitem relançar o crescimento econômico seguindo o destrutivo padrão de desenvolvimento vigente.
É preciso, pois, que a sociedade se torne mais justa e sustentável. Porém, por iniciativa da burguesia, ao contrário, a tendência é a instalação da barbárie, na qual um punhado ainda mais restrito de privilegiados concentrará ainda mais riquezas em detrimento de bilhões de seres humanos marginalizados. É para tornar viável um mundo como este que o fascismo poderá se tornar ainda mais interessante para a burguesia.
Agora, portanto, a questão que se coloca vai muito além da reconquista de direitos. As classes populares e a esquerda em geral têm diante de si a necessidade de construir um novo mundo. Certamente o caminho será longo e difícil. E a aliança com a burguesia não é um atalho. (escrito em 08/07/2020)
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blogdobenedito · 5 years ago
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Atenção: o bolsonarismo não é só o fascismo de Bolsonaro
A crise do governo Bolsonaro aprofunda-se. O comportamento genocida do seu governo diante da pandemia provocada pelo COVID-19, assim como as ações dos seus mais alucinados seguidores, parece estar enterrando de vez as perspectivas da sua manutenção. O processo contra as notícias falsas, que provocou a prisão de Sara Geromini e outros líderes do bizarro grupo de 30 pessoas que se autodenominam “os 300”, levou a uma debandada geral das já esquálidas fileiras fascistas, como atestam as cada vez mais minguadas manifestações pró Bolsonaro. De acordo com reportagem da Revista Fórum (https://revistaforum.com.br/politica/bolsonaro/bolsonaristas-apagam-mais-de-3-mil-videos-do-youtube-por-medo-de-investigacao-sobre-fake-news/), desde o início de maio até a segunda quinzena de junho 3.127 vídeos de canais bolsonaristas foram retirados da Internet. Sinal do crescente desgaste do capitão reformado, o número de vídeos deletados de 81 canais bolsonaristas cresceu de 1.112 em maio para 2.015 nos primeiros 20 dias de junho. Só do blog de Allan dos Santos, outrora obstinado apoiador de Bolsonaro, foram retirados 272 vídeos. E o avanço do inquérito sobre Flávio Bolsonaro, turbinado pela prisão de Fabrício Queiroz não ajuda muito a situação dos anteriormente alegres e confiantes fascistas brasileiros. Sinais inequívocos de que a burguesia já não suporta Bolsonaro. O que tem sido interpretado pela esquerda como uma decadência geral do bolsonarismo, o que lhe abriria brilhantes perspectivas eleitorais.
É preciso ter calma nesta hora. O bolsonarismo não se resume ao fascismo protagonizado por Bolsonaro. Como mostra, por exemplo, os minuciosos estudos de Esther Solano, professora da Universidade Federal de São Paulo. Nossa professora, aliás, é um tipo raro de pesquisador. A um extremo rigor em suas pesquisas, assim como uma enorme paciência (passa horas entrevistando bolsonaristas, que estômago!), ela alia uma indignação que, em certa ocasião, a fez postar no Facebook um texto em que manda a grande imprensa e alguns apoiadores burgueses de Bolsonaro se f** (espanhola caliente! ai se eu não fosse casado...).
Segundo a professora Esther, o bolsonarismo é composto por vários grupos sociais, dentre os quais apenas um apresenta características nitidamente fascistas. Arriscando uma interpretação pessoal dos dados apresentados pela professora, penso que a base do bolsonarismo é composta por quatro grupos sociais. Um deles é composto por representantes da burguesia que viram em Bolsonaro uma forma de viabilizar o aprofundamento da exploração do povo brasileiro desencadeado pelo governo de Michel Temer. Para este grupo, com Bolsonaro assumindo a agenda ultraliberal por meio da sua aliança com Paulo Guedes, e as candidaturas de políticos provenientes das próprias fileiras da burguesia se mostrando inviáveis, só restou apoiar o extravagante capitão reformado em 2018. Este grupo, portanto, viu no fascismo apenas uma forma de viabilizar o ultraliberalismo. Assim, para este grupo, se o ultraliberalismo se tornar viável politicamente sem o incômodo e incontrolável fascismo de Bolsonaro, tanto melhor. É justamente este grupo que capitaneia (opa!) a oposição a Bolsonaro, assumindo agora um discurso em defesa da democracia que deixa maravilhada boa parte da esquerda.
O segundo grupo é o da pequena burguesia e da classe média em geral. Alimentados pela sua aversão ao Estado, a cujos impostos eles atribuem as incertezas da sua situação econômica, este grupo é extremamente sensível ao discurso ultraliberal e contra a corrupção. É a ala que aderiu a Bolsonaro mais pela sua admiração ao juíz Sérgio Moro do que por simpatia ao fascismo. A atabalhoada saída de Moro do governo semeia a confusão entre as suas fileiras sem, no entanto, atenuar o seu extremo conservadorismo.
O terceiro grupo é o dos fascistas “de raíz”. Normalmente oriundos de uma espécie de “lumpen classe média”, este é o grupo dos admiradores de Olavo de Carvalho, dos que creem na Terra plana, que a grande imprensa, principalmente a Rede Globo, são dominadas por comunistas, como o são o Congresso Nacional e o Poder Judiciário. São os alucinados que produzem farto material para os humoristas e fazem a esquerda pós-moderna se esconder debaixo da cama. Mas, de acordo a professora Esther Solano, ao contrário da crença dos “30%”, este grupo representa apenas cerca de 10% dos eleitores. É este grupo que, juntamente com o seu líder, está se isolando politicamente.
Mas há ainda, um quarto grupo de bolsonaristas, o mais preocupante. De acordo com os dados da professora Esther, há um número significativo de bolsonaristas entre as classes populares. A maioria já votou em Lula. Mas justificam o seu voto em Bolsonaro afirmando que, depois de Lula, o PT deixou de falar dos seus problemas. Ao contrário de Bolsonaro que, mesmo que de forma confusa e atabalhoada, é capaz de elaborar um discurso claramente direcionado a determinadas as classes populares, especialmente as mais pobres. É interessante salientar que as pesquisas de Esther Solano indicam perturbadores elementos comuns entre o fascismo bolsonarista e as formas “clássicas” do fascismo dos anos 1930-40, o qual ressurge com força no capitalismo contemporâneo na Europa e nos EUA. Neste último país, inclusive, apoiado em movimentos “neoconservadores” que propagandeiam um pensamento irracionalista quase tão insano como o divulgado por Olavo de Carvalho (guru dos bolsonaristas de raiz). Um tema recorrente destas insanidades é a violência. Ocorre que a violência é uma realidade cotidiana da população mais pobre. Ela a sofre no trabalho em suas relações com os seus patrões; nas ruas quando oprimidos pela polícia, que eles temem tanto quanto, ou mais, temem ladrões e assaltantes; e até mesmo nas agruras cotianas sofridas no transporte público e nas abjetas condições de moradia às quais são submetidos. E eles sabem que isto não mudará pacificamente. Diante desta realidade, a esquerda propõe angelicais discursos pela paz e a harmonia social, que só podem ser entendidos como o que eles efetivamente representam, ou seja, a descrição de uma realidade social acessível apenas às classes médias e altas. Bolsonaro, assim, ao propor “soluções” por meio do enfrentamento da violência pela violência elabora um discurso muito mais próximo da triste realidade vivida pelos mais pobres.
Mesmo que este discurso seja grotesco e absurdo, o importante é que ele (entre outros tão grotescos e absurdos) contribuiu decisivamente para que Bolsonaro, para este grupo, passasse a representar a novidade que o PT, por exemplo, um dia já foi. Mas que não é mais, depois do desgaste provocado pela crise econômica e pela intensa campanha para reduzi-lo a um partido tão corrupto como os outros. E, o que é pior, como relata a professora Esther, quando perguntados se votariam novamente em Bolsonaro, muitos moradores de favelas entrevistados afirmaram que sim, mesmo sem sentir uma especial simpatia pelo truculento capitão reformado (desfazendo assim a crença no seu caráter mitológico). Os entrevistados justificaram sua intenção de voto pelo fato de não se sentirem representados por qualquer outro político.
Há, sem dúvida, uma discussão importante na esquerda sobre o bolsonarismo, protagonizada no PT inclusive pela própria Esther Solano e decisivamente impulsionada por Lula e, de maneira geral, pela direção deste partido. Como produto dessas discussões aparece claramente que a esquerda tem que assumir uma defesa mais incisiva dos interesses dos trabalhadores. Mas esta discussão parece não influenciar a postura da esquerda (incluindo o PT) no seu cotidiano, no qual as pautas que respondem de forma clara e direta às necessidades das classes populares aparecem como uma reivindicação entre outras em meio a uma multitude de pautas como questões ambientais, de gênero e identitárias, que respondem a interesses expressos pela classe média. O afastamento da esquerda das classes populares, assim, fica claro pela frequência e a atenção que ela dedica a estas pautas de classe média no seu discurso cotidiano.
Portanto, para lutar contra o bolsonarismo, especialmente contra os seus elementos fascistas, a esquerda precisa com urgência recuperar a sua imagem de esperança para os trabalhadores. Querer apenas, neste contexto de euforia em torno da “democracia”, ser aceita como (mais um) integrante da democracia burguesa é um erro que terá graves consequências. E é o que parece estar acontecendo. A crise do capitalismo, ao contrário de ser vista pela esquerda como uma oportunidade para denunciar a impossibilidade da ordem burguesa (aliás, expressão banida do seu discurso) em assegurar uma vida digna para todos, parece fazê-la se conformar com a sua própria incapacidade de propor verdadeiras alternativas.
A esquerda, assim, aposta que o desgaste do fascismo a promova mecanicamente como uma alternativa de governo. De fato, o fascismo está desgastado. No entanto, a burguesia que se volta agora contra Bolsonaro não deixa de ser bolsonarista, pois a qualquer momento pode novamente recorrer a ele ou a um novo líder fascista. Isto porque os processos sociais que levaram a ascensão de um fascista ao governo continuam mais atuantes de que nunca. A crise do capitalismo, com seus efeitos desmoralizantes sobre a democracia burguesa, se aprofunda com a pandemia. E tudo indica que depois dela a crise continuará a se aprofundar. Neste contexto, uma esquerda que já não representa uma real alternativa aos olhos das classes populares, mas, ao contrário insiste em se identificar com a desgastada democracia burguesa (que agora usufrui de uma imagem momentânea e precariamente recuperada), promete vida longa ao bolsonarismo. Mesmo que seja por meio de uma alternância da hegemonia entre os seus diferentes constituintes. (escrito em 25/06/2020)
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blogdobenedito · 5 years ago
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Democratas antifascistas? A direita prepara a sua volta (agora sem intermediário)
“sem fé em si própria, sem fé no povo, resmungando contra os de cima, tremendo perante os de baixo, egoísta para com os dois lados e consciente do seu egoísmo, revolucionária contra os conservadores, conservadora contra os revolucionários, desconfiando das suas próprias palavras de ordem, com frases em vez de ideias, intimidada pela tempestade mundial, explorando a tempestade mundial — energia em nenhuma direção, plágio em todas as direções, vulgar, porque não era original, original na vulgaridade — traficando com os seus próprios desejos, sem iniciativa, sem fé em si própria, sem fé no povo, sem vocação histórica universal — um velho amaldiçoado que se viu condenado a dirigir e a desviar no seu próprio interesse senil os primeiros arroubos juvenis de um povo robusto — sem olhos, sem ouvidos, sem dentes, sem nada,assim se encontrava a burguesia prussiana depois da revolução de Março ao leme do Estado prussiano.” Karl Marx, A Burguesia e a Contra-Revolução.
Completando uma frase de Hegel, Marx afirmou que a história não apenas se repete, mas o faz uma vez como tragédia e outra como farsa. Mas, evidentemente, a história não se repete apenas uma vez. E, nestas repetições, a comédia se adiciona à farsa e à tragédia. O Brasil contemporâneo é um caso típico deste fenômeno. Consideradas as diferenças de cada época, a burguesia brasileira apresenta as mesmas qualidades da sua congênere prussiana, inigualavelmente descrita por Marx.
A tragédia brasileira consiste na atroz exploração à qual o seu povo é submetido que, mais uma vez, a burguesia certamente conseguirá aprofundar por meio da farsa que consiste em uma oportunista “oposição” a um governo, agora em crise, que ela mesma instalou. O elemento de comédia fica por conta de Jair Bolsonaro e seus alucinados seguidores. É evidente que esses elementos de tragédia, de farsa e de comédia são indissociáveis. No Brasil atual, eles são protagonizados pelo fascismo. Por isto, é interessante rememorarmos algumas características desta doutrina para destacar as particularidades do caso brasileiro. E a partir disto procurar entender a falta de originalidade da tragicômica farsa agora em curso.
A base social do fascismo é composta por indivíduos que possuem uma profunda aversão aos valores da Modernidade. A partir desta característica comum, porém, a base social do fascismo apresenta uma ampla diversidade em função do seu contexto histórico. Na sua forma “clássica”, como ele se manifestou na Itália de Mussolini, na Alemanha de Hitler ou, mais recentemente, como é protagonizado na França pelo clã Le Pen, o fascismo se caracteriza por um discurso populista com forte penetração nas classes populares. Tal não ocorre com o fascismo ultraliberal, do qual o governo de Jair Bolsonaro e Paulo Guedes é um representante dos mais característicos. Sem uma base popular, os apoiadores mais alucinados do fascismo no Brasil se constituem em uma minoria composta especialmente pela pequena burguesia, pela burguesia agrária e por outras frações da burguesia cujos negócios são voltados ao mercado interno.
No entanto, jamais na história o fascismo chegou ao governo a partir das suas próprias forças. Ascendendo politicamente em momentos de desmoralização do sistema político burguês, provocada por profundas crises do capitalismo, o fascismo se constitui no último recurso da burguesia para afastar a esquerda do governo e, assim, dar curso a um brutal aprofundamento da exploração dos trabalhadores, o qual é considerado (equivocadamente) pela burguesia como uma condição incontornável para a superação da crise.
No caso brasileiro este fenômeno é grotesco. O primeiro passo foi o golpe de Estado contra a presidente Dilma Roussef. Após vários anos sendo investigada sem que se encontrasse qualquer prova de corrupção, a outrora valente opositora da ditadura militar teve seu mandato cassado por um Congresso considerado como um dos mais corruptos da história do país. A este acontecimento abominável seguiu-se a condenação e a prisão de Luís Inácio Lula da Silva, que folgadamente ocupava o primeiro lugar nas pesquisas eleitorais para a presidência. Também desta vez, a condenação ocorreu sem prova alguma, o que foi admitido até pelos seus algozes. Mas a falta de provas tinha uma justificativa que pode ser sinteticamente descrita como: “todos os políticos são corruptos; Dilma Roussef e Lula são políticos; portanto, são corruptos”. Considerando o grau de putrefação da democracia burguesa (ou seja, a que serve para administrar os conflitos sociais preservando os interesses das classes dominantes), tal raciocínio parece incontestável. Mas, evidentemente, ele é um sofisma. É absurdo utilizá-lo como prova no julgamento de um indivíduo. Mas a campanha protagonizada pela burguesia, especialmente por meio da mídia, foi tão insistente, que a falácia acabou se tornando um aceitável silogismo, neutralizando os confusos e hesitantes argumentos da esquerda que procurava denunciá-la.
A operação, porém, funcionou bem demais. O sofisma se voltou contra os sofistas. Quando os políticos burgueses falavam que todos os políticos eram corruptos, para o povo era evidente que eles falavam sobretudo deles mesmos. Além disto, o massacre a que foram submetidas as classes populares no governo de Michel Temer, por meio da reforma trabalhista, dos recordes de desemprego, da destruição ambiental e do número crescente de assassinatos de camponeses e de outros componentes da população pobre (especialmente os negros), tudo isto (e muito mais) alegremente apoiado pelos partidos burgueses, pouco ajudou a amenizar a imagem dos políticos. O resultado é que representante algum da burguesia tinha a mínima chance de se eleger presidente. A ameaça da esquerda espreitava novamente, e, pior, com um candidato do mesmo partido de Lula, então preso.
Foi aí que surgiu Jair Messias Bolsonaro. Deputado medíocre, mas visceral e furiosamente fascista, Bolsonaro ao longo de trinta anos conseguiu arrebanhar uma turba de recalcados saudosistas dos tempos da ditadura e outros fracassados. Este eleitorado deu visibilidade a sua candidatura. E ao se aliar a Paulo Guedes, um ultraliberal que representa o que há de pior no pensamento econômico conservador, passou a receber um incondicional apoio da burguesia. Com um decisivo apoio dos grandes meios de comunicação, são então organizadas diversas manifestações, com reivindicações as mais estapafúrdias, dentre a volta da ditadura militar, o direito de se armar e ameaças de morte aos petistas. E para fomentar esses movimentos, foi montado, por meio das redes sociais, um extraordinário esquema de promoção da ignorância e do obscurantismo, típicos do fascismo. Diante desta avalanche de mentiras, a esquerda ficou paralisada pelo seu próprio irracionalismo pós-moderno, que a impediu de realizar qualquer análise objetiva da situação. Assim, em vez de visar as classes populares, que compõem a maioria dos eleitores, a campanha do insosso defensor da democracia burguesa, Fernando Haddad, secundado pela comunista pós-moderna Manoela D’Ávila, se voltou confusamente para a igualmente confusa (e predominantemente reacionária) classe média brasileira, chegando até a adotar as cores verde e amarela, um dos símbolos do patriotismo fascista de Bolsonaro. Deu no que deu.
Há, porém, outra notável regularidade no fascismo. Ele é uma besta incontrolável. E chega um ponto em que a própria burguesia não o suporta mais. Por exemplo, após estarem entre os principais financiadores da ascensão do nazismo, grandes multinacionais norte-americanas (como a Ford) acabaram por se juntar ao esforço de guerra contra os regimes do Eixo. No caso brasileiro, com um energúmeno como Bolsonaro esta coalizão da burguesia contra o seu governo era obviamente apenas uma questão de tempo. E isto apesar da aliança inabalável de Bolsonaro com o ultraliberal Paulo Guedes lhe assegurar um sólido apoio da burguesia. Uma das razões deste apoio (agora bastante relativo) é que uma eventual queda de Bolsonaro pode ter consequências imprevisíveis em relação ao “plano de reformas” dos capitalistas. Diante de tal impasse, a burguesia prepara-se para voltar ao governo sem a intermediação do fascismo, passando a considerá-lo “insuportável”. Com grande parte da esquerda apoiando-a, alegremente.
Desgastada a bandeira da corrupção, foi preciso elaborar outro discurso. O fascismo de Bolsonaro, neste ponto, facilitou bastante as coisas. Diante da visceral ideologia anti-moderna dos fascistas, que no Brasil assume características doentias, a defesa da democracia vem se destacando como um tema capaz de aglutinar forças políticas as mais díspares, desde os “democratas” (sic!) do Dem de Rodrigo Maia até os “socialistas” do PSol de Guilherme Boulos e uma larga fração do PT, passando pelos “trabalhistas” do PDT de Ciro Gomes e muitas outras formações políticas. Há certa euforia no ar. Parece que, finalmente, todos estão entendendo quem é Bolsonaro e o que ele representa. Mais ainda, todos estão se tornando fervorosos democratas antifascistas.
Sou velho, e razoavelmente observador. Já vi este filme. Ele passou na década de 1980 e tinha como título “Diretas Já”. Um filme triste, daqueles em que o mocinho e a mocinha morrem no fim e os bandidos triunfam. No final dos anos 1970, a ditadura militar encontrava-se totalmente desgastada. Os anos de arrocho salarial, de repressão política e, principalmente, a total incapacidade dos militares em enfrentar a crescente deterioração da situação econômica, entre outros fatores, tornaram a ditadura militar insustentável. A ascensão do general João Figueiredo à presidência não ajudou. Com uma refinada cultura cavalar, o presidente-general nos brindava com frases como “mulher é que nem cavalo, agente só conhece depois que monta” ou “prefiro cheiro de cavalo a cheiro de povo”.
Foi então que surgiu a campanha pelas “Diretas Já”, logo encampada pela direita que, por meio de uma eleição indireta devidamente acordada com os militares, emplacou como presidente José Sarney, um outrora fiel servidor da ditadura, empossado após a morte de Tancredo Neves. Este, aliás, antes de entrar para o MDB, foi um dos fundadores do Partido Popular, que era integrado, inclusive, por antigos apoiadores da ditadura militar. O resultado é que os militares nunca foram julgados por seus crimes, as reformas econômicas reivindicadas na campanha (especialmente a reforma agrária) nunca foram realizadas e o país caiu em um marasmo econômico que tornou os anos 1980 conhecidos como a “década perdida” do desenvolvimento brasileiro.
Agora a história se repete com elementos mais picantes de comédia, mas anunciando uma tragédia maior. E com uma farsa ainda mais infame. Esta farsa consiste na burguesia proclamar-se democrática e, pasmem, antifascista. Os mesmos que protagonizaram o golpe contra Dilma e a prisão de Lula, tornam-se agora fervorosos democratas, denunciando com veemência as atitudes fascistas do nosso capitão reformado e seus enlouquecidos seguidores. Este, por sua vez, contribuí decisivamente para alimentar esse discurso. Diante da terrível epidemia que assola o país, Bolsonaro, em total desprezo pela vida da população, mobiliza um inacreditável arsenal de insanidades na defesa dos interesses imediatos dos capitalistas que (ainda) o apoiam. Atrapalhando ao máximo o combate a epidemia por meio de medidas e atitudes que vão desde a pura e simples negação da sua existência até a sonegação de informações e a retenção dos parcos recursos destinados a população mais pobre, o governo Bolsonaro procura a todo custo terminar com o isolamento social para manter os lucros dos capitalistas.
Diante de tal descalabro, todos estão se tornando democratas antifascistas. Mas que assumem a defesa de uma democracia que nada fala, por exemplo, dos direitos trabalhistas perdidos, da precarização das aposentadorias e do crescimento do desemprego. E um “ataque” ao fascismo que limita-se a defender as instituições da democracia burguesa, que excluem qualquer forma de participação direta da população. Ao contrário, toda esta grande operação de “defesa da democracia contra o fascismo” orquestrada pela burguesia sob os aplausos da esquerda tem como principal objetivo manipular o povo para evitar a rejeição de um representante, desta mesma burguesia, mais confiável do que o bestialmente incontrolável Jair Bolsonaro.
No entanto, há décadas que está claro que Jair Bolsonaro é fascista. A luta contra o fascismo, portanto, deveria ter sido desencadeada já no momento da sua candidatura à presidência. Jair Bolsonaro, seus rebentos e seguidores assumem claramente seu projeto de instalar no país um governo de direita de extremo conservadorismo. Mas o fascismo é algo tão repugnante que mesmo Bolsonaro o nega. Mas as evidências do fascismo bolsonarista são tão óbvias que vários juízes que o apoiaram durante a campanha a presidência proibiram o debate público sobre o fascismo nas Universidades (alegando que isto seria fazer campanha eleitoral em uma instituição pública!). Este era um ponto sensível na fortíssima muralha ideológica do bolsonarismo, a qual apresenta uma extraordinária resistência a argumentos racionais, para não falar da sua total impermeabilidade aos apelos à paz e a moralidade. A bandeira antifascista poderia ser o elemento fundante de uma ampla oposição a Bolsonaro. Ela certamente permitiria à esquerda superar a sua posição defensiva e passar a enfrentar ativamente o ultraliberalismo, denunciando-o como o principal motivo da sustentação da burguesia ao asqueroso fascismo bolsonarista.
O problema, porém, é que o irracionalismo também prevalece no pensamento de esquerda. Embora de maneira confusa e contraditória, esta também “rejeita” a Modernidade. Esta esquerda “pós-moderna”, assim como o fascismo, repudia a razão como base para o entendimento da sociedade, o que a leva a negligenciar a importância crucial para a compreensão da dinâmica social a polaridade entre os interesses de classe dos trabalhadores e dos capitalistas. Assim, abandonando a racionalidade, negando a luta de classes, recusando-se a analisar objetivamente a sociedade, o pensamento de esquerda é dominado pela subjetividade, considerando as representações imaginárias e simbólicas como os principais determinantes da dinâmica social, o que, aliás, a impede até de compreender os processos sociais que geram o fascismo. Disto resulta a centralidade por ela acordada a reivindicação de direitos no interior do capitalismo, em detrimento de um projeto social alternativo, que a sua irracionalidade a torna incapaz de conceber. A diferença com o fascismo é apenas o tipo de imaginário. Para a esquerda pós-moderna o seu imaginário é o de uma sociedade democrática, que a todos assegura direitos, paz e harmonia; para os fascistas é o de uma sociedade ditatorial, onde reina a violência e a dominação. Ambos, porém, convergem em sua recusa de reconhecer a realidade que o capitalismo nos impõe, o que os torna, de acordo com as circunstâncias, oportunisticamente funcionais para a direita. Esta, sentindo os ventos da mudança, muda a sua postura. Como na campanha pelas “Diretas Já”, para a burguesia agora é hora de defender o imaginário pós-moderno, sob os aplausos entusiastas da esquerda e, assim, dispensando o seu incômodo intermediário, preparar a sua volta ao governo.
(escrito em 10/06/2020)
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blogdobenedito · 5 years ago
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O COVID-19 nos revela: a insanidade fascista no Brasil veio para ficar (mas este não é o pior problema)
A pandemia provocada pelo COVID-19 chegou a um Brasil governado por um presidente que apresenta as características do fascismo ultraliberal em seu estado mais puro. Como é típico do fascismo ultraliberal brasileiro, Bolsonaro e seus asseclas menosprezam o povo, exigindo a sua mais estrita subserviência aos interesses imediatos dos capitalistas.
O acompanhamento da epidemia em outros países têm revelado uma extraordinária capacidade de contaminação do COVID-19, aliada a uma taxa de mortalidade que varia entre 2 e 15%, dependendo das faixas etárias mais atingidas. Mas esta taxa pode aumentar exponencialmente com o colapso que ameaça os sistemas de saúde, até mesmo de países europeus, caso o número de pessoas infectadas ultrapasse em muito a sua capacidade. O Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS), que já foi considerado exemplar (mesmo sem jamais ter conseguido expressar todo o seu potencial) foi sujeito a uma verdadeira destruição desde o governo Temer, que se aprofundou aceleradamente com o governo de Bolsonaro e Guedes. O Brasil possui cerca de 200 milhões de habitantes. Assumindo a hipótese de 40% da população ser contaminada e 2% de mortalidade, teríamos 1,6 milhões de mortos. Uma catástrofe de inimagináveis consequências. E, no momento, a única forma de evitar esta catástrofe é o isolamento social. Até mesmo para a obtusa classe empresarial brasileira, não seria difícil entender que o isolamento lhe seria menos prejudicial do que o caos econômico que seria provocado por vários milhões de mortes pelo país. Mas eles se recusam a entender, assim como o seu presidente.
A atroz mediocridade e reiterada má-fé de Bolsonaro desafia até a mais elementar aritmética. Diante das alarmantes evidências do caráter catastrófico da pandemia, da qual traçamos acima um cenário que está longe de ser o mais pessimista, o presidente Bolsonaro chama a doença provocada pelo COVID-19 de um “resfriadinho”, e que as pessoas que serão por ele vitimadas morreriam de qualquer jeito, já que “todos têm que morrer um dia”. Em todo o mundo, nem de longe há paralelo de tamanha estupidez. Evidentemente, muitos governos de direita, num primeiro momento, tentaram colocar os interesses imediatos da burguesia acima de qualquer consideração humanitária, em alguns casos com consequências calamitosas. Até porque tais países também vêm provocando uma destruição dos seus serviços públicos de saúde, os quais agora mostram-se de uma desesperadora necessidade. O exemplo mais emblemático desta situação é o EUA que, embora sendo o país mais rico do mundo, vê a pandemia em algumas das suas regiões provocar o colapso do seu sistema de saúde. Porém, mesmo um energúmeno como Donald Trump, assim como todos os líderes da extrema direita no mundo, nem de longe apresentam um comportamento com a brutalidade de Bolsonaro. Ao contrário, Bolsonaro tem sido  criticado de forma unânime pela comunidade internacional.
Mas o que mais surpreende nesta situação não é o comportamento de Bolsonaro, muitas vezes secundado por alguns dos seus rebentos e alguns ministros. O surpreendente é o inabalável apoio que ele recebe dos “bolsonaristas de raiz”.
Há sempre aqueles que nutrem uma profunda aversão aos valores e as instituições que asseguram certa civilidade às sociedades modernas. Em momentos extremos, esta aversão provoca atitudes também extremas. Como por exemplo a formação dos batalhões de espanhóis, portugueses e, principalmente franceses, entre outros, que aderiram à insanidade hitlerista na segunda mundial. A principal motivação dos seus integrantes era o enfraquecimento da pátria que seria supostamente  provocado pela sua adesão aos valores modernos. Dentre esses valores, os mais repudiados eram os que sustentavam a democracia que, segundo eles, tornava a sociedade por demais tolerante com os seus inimigos, representados pelos comunistas, anarquistas e esquerda em geral, assim como por todos aqueles cujas origens étnicas os tornavam supostamente incompatíveis com a nacionalidade do país (judeus, ciganos, negros, árabes, etc.), acrescidos dos que ameaçavam a família tradicional, com especial ódio aos homossexuais. O advento do fascismo para esses indivíduos, normalmente oriundos da pequena burguesia e da burguesia agrária, foi uma libertação.
Como Bolsonaro é para os fascistas brasileiros. Tendo sempre que reprimir seus sentimentos e suas posições ideológicas para evitar serem repudiados, ridicularizados e isolados socialmente, os fascistas brasileiros vem há gerações acumulando recalque, ódio e sede de vingança. Em Bolsonaro eles encontram o seu perfeito porta-voz. Finalmente eles puderam sair ao sol (ou do armário...). Contrariando radicalmente a tudo o que é decente (denominado eufemisticamente por ele de “politicamente correto”), Bolsonaro é o messias, o mito, o grande líder (sic!) que os fascistas brasileiros ansiavam. E quanto mais estúpido, alucinado, medíocre e grotesco é o comportamento de Bolsonaro, mais os seus seguires se sentem representados por ele. Porque os fascistas brasileiros de raiz são, efetivamente, estúpidos, alucinados, medíocres e grotescos (não necessariamente nesta ordem de importância).
Estas pouco invejáveis características torna impossível qualquer discussão política com os bolsonaristas de raiz. Em seu delírio, eles construíram um mundo imaginário e próprio para si mesmos. Um mundo em que a terra é plana, um mundo no qual as mais deslavadas mentiras são veiculadas como imaculadas verdades e no qual as maiores atrocidades contra o povo brasileiro são consideradas não apenas admissíveis, mas moralmente louváveis.
O enfrentamento do COVID-19 tem nos ensinado como combater os indivíduos fascistas. Assim como em relação à pandemia que se alastra pelo mundo, a principal arma contra o fascista de raiz brasileiro é um hermético isolamento sanitário. Contribui para a eficiência dessa arma o fato dos fascistas serem minoritários, embora no Brasil eles tenham ficado particularmente barulhentos e ativos depois de libertados pelo seu mítico líder. O combate aos indivíduos fascistas, assim, é relativamente fácil.
Mas a experiência internacional mostra claramente que o isolamento sanitário está longe de ser suficiente para exterminar a doença fascista. Depois de abertas as portas do inferno por um líder messiânico, os fascistas de raiz não renunciam ao seu ódio à modernidade, por mais abjeta que seja a sua ideologia. Sobrevivendo nos interstícios das sociedades capitalistas ricas (e até mesmo nos países do leste europeu e da ex-União Soviética), o fascismo europeu sobreviveu durante décadas, sem conseguir ser extinto nem no auge do Estado do Bem Estar Social. Para ameaçadoramente ressurgir com a crise capitalista, chegando a assumir vários governos.
O fascismo, porém, não pode chegar ao governo apoiando-se apenas na turba alucinada que o segue fielmente. Para isto ele precisa do apoio daqueles que sentem seus interesses ameaçados pelos trabalhadores em épocas de crise. São os oportunistas de plantão que se encontram especialmente na burguesia, mas que envolve também indivíduos de outras classes, e até mesmo certos “intelectuais”.
A verdadeira dificuldade de combater o fascismo brasileiro, assim, não é colocada por ele mesmo, mas por aqueles que apoiaram sua ascensão. São, portanto, extremamente preocupantes as reiteradas tentativas da esquerda, formada justamente pelas forças políticas consideradas pelos fascistas como inimigos jurados de morte, de compor heteróclitas “frentes antifascistas” e alianças eleitorais espúrias com aqueles que mais contribuíram para a ascensão de Bolsonaro. Conformadas com as limitações impostas pela democracia burguesa, distante das classes populares que ela afirma representar (e há décadas não dedica qualquer esforço para organizá-la), tais forças políticas parecem colocar seu desejo por cargos acima de qualquer projeto político. Uma porta sempre aberta para o fascismo.
(escrito em 06/04/2020)
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blogdobenedito · 5 years ago
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O fascismo brasileiro e o COVID-19
A incapacidade do sistema capitalista de satisfazer as necessidades sociais mais básicas  durante as suas crises estruturais, o que, sob determinadas circunstâncias específicas a cada momento histórico, provoca uma irremediável desmoralização da democracia burguesa, abrindo caminho para a ascensão de um “salvador da pátria” de extrema direita, é geralmente aceita como a causa fundamental da instalação de governos fascistas. No entanto, no plano individual, o fascismo no Brasil se manifesta como uma verdadeira doença mental que, durante certo período, mostrou-se altamente contagiosa.
Foi um vírus. Evidentemente, não um vírus no sentido biológico, porém mais no sentido em que este termo é empregado na informática. Inspirados no fato dos vírus serem capazes de controlar as células que infectam, fazendo com que elas passem a multiplicá-los, os profissionais da informática assim denominaram os programas que fazem os computadores processá-los, com efeitos nefastos como perda de dados e a danificação de outros programas. Há também certos vírus informáticos que permitem que um hacker manipule o computador infectado para a realização de operações escusas sem ser detectado. O vírus do fascismo brasileiro apresenta características similares.
O cérebro dos adeptos do bolsonarismo parecem ter sido infectados, passando a ser manipulados a distância sem que os seus usuários sequer se deem conta disto (supondo que algum dia um bolsonarista tenha sido capaz de usar seu cérebro). Disseminadores deste vírus como Olavo de Carvalho e uma multidão de evangélicos, contando com o apoio de poderosos meios de criação e distribuição de notícias falsas, incluindo em certo momento a grande imprensa, atuaram como hackers que infectaram mentes fracas, com sistemas imunológicos já danificados por anos de frustração e recalque.
E após pouco mais de um ano do desastroso governo de Bolsonaro, se a epidemia do bolsonarismo já dava claros sinais de enfraquecimento, a epidemia causada pelo COVID-19 surgiu como uma poderosa concorrente. Bolsonaro sentiu o golpe. Suas declarações, assim como o comportamento dos seus seguidores mais empedernidos, tornaram-se ainda mais delirantes, como se o aprofundamento do bolsonarismo o tornasse capaz de enfrentar a concorrência. Mas isto não está funcionando. O COVID-19 tem assustado até mesmo outrora importantes aliados de Bolsonaro, especialmente aqueles que não foram propriamente infectados pelo vírus do fascismo, mas que abriram oportunisticamente caminho para a sua ascensão quando se tratava de afastar Dilma e Lula do governo. Até mesmo membros do próprio governo têm, de forma um tanto tímida é verdade, mas suficientemente clara, mostrado sinais de que já não suportam as alucinações presidenciais, especialmente as relativas ao COVID-19. Isto para não falar da comunidade internacional que já zombava de forma contumaz de Bolsonaro e agora denuncia com redobrada veemência a loucura do nosso capitão reformado compulsoriamente. E a unanimidade de tais declarações tem se tornado cada vez mais evidente. Elas têm sido veiculadas até mesmo pelos representantes mais reacionários da comunidade internacional, como certos veículos da grande imprensa estadunidense que apoia Donald Trump.
Mas isto não tem sido suficiente para fazer recuar os bolsonaristas, especialmente os “de raiz”. O vírus do fascismo parece ter danificado irremediavelmente os seus cérebros. Não apenas apagou as suas memórias, fazendo a ditadura militar no Brasil parecer um regime que promoveu felicidade e bonança para o país, mas o vírus do fascismo atingiu também os seus hardwares, danificando gravemente suas conecções sinápticas e provocando, assim, disfuncionamentos cerebrais que geram comportamentos inimagináveis pela sua temeridade. Concordando com a declaração do seu líder de que, de qualquer forma, com ou sem COVID-19, “todos nós vamos morrer um dia”, os bolsonaristas não temem pela própria vida. Prova é que Bolsonaro, mesmo sendo suspeito de estar contaminado (como já foi confirmado para 22 membros da sua comitiva aos Estados Unidos) recentemente saiu as ruas cumprimentando alegres seguidores e tirando fotos com crianças (uma faixa etária particularmente sensível a contaminação) contrariando tudo o que tem sido recomendado para conter o extraordinário poder de multiplicação do COVID-19, até pelo seu ministro da saúde.
Mas a coragem dos bolsonaristas parece dever-se mais a sua demência do que por convicções conscientemente fundamentadas. Porque o bolsonarista de raiz, incluindo o próprio Bolsonaro e a sua prole, antes de tudo, é um covarde. Ele teme a opinião pública, a imprensa, os comunistas, os socialistas, os democratas, as feministas, os homossexuais (imagina se algum bolsonarista um dia tiver que assumir...) e, mais do que nunca, os petistas. E a sua reação a este medo têm sido como a de Bolsonaro. Se distanciar ainda mais da realidade para criar um mundo em que, com os Estados Unidos acima de todos e Deus acima de tudo, tudo correrá bem, bastando para isto combater ferozmente a “esquerda”, os “corruptos” e, é claro as instituições que, mesmo de forma precária, conferem certa modernidade à sociedade brasileira.
A realidade imposta pela epidemia, porém, tem se mostrado incontornável. Após um ano de governo Bolsonaro observou-se um período de angustiante marasmo político. A situação do governo parecia encontrar certo ponto de equilíbrio. Mesmo as estapafúrdias e ridículas declarações de Bolsonaro, as medidas que eram por ele tomadas e logo revogadas, a abissal incompetência, mediocridade e descarada má-fé dos seus ministros (e, é claro dele e dos seus rebentos), tudo isto parecia, lentamente, estar sendo absorvido pelo sistema político brasileiro. Tudo isto para dar continuidade às “reformas”. De uma forma ou de outra, mesmo com Bolsonaro, a burguesia pregava a urgente necessidade de aprofundar o massacre do povo brasileiro como forma de assegurar os seus lucros nesses tempos de crise.
Diante do COVID-19, até mesmo a burguesia foi obrigada a admitir a impossibilidade de dar continuidade às suas reformas. Os seus representantes na grande imprensa, no Congresso, no Judiciário, nos governos estaduais e até municipais, se desdobram sobre a necessidade de tomar medidas enérgicas contra o COVID-19, chegando até a pregar com veemência um drástico isolamento social para conter a epidemia. Ou as epidemias, pois isto atinge não apenas a multiplicação do COVID-19, mas também a do bolsonarismo. Com isto, Bolsonaro corre o risco de se tornar inútil aos seus mais importantes apoiadores. Sem a burguesia ao seu lado, a queda de Bolsonaro pode ocorrer quase imediatamente. A título de comparação, a busca por evidências para afastar o Partido dos Trabalhadores do governo, por meio da mobilização durante anos de agências nacionais e estadunidenses de inteligência forneceu resultados pífios. Mas, a falta de provas não impediu a burguesia de protagonizar o golpe contra Dilma e a condenação que levou Lula à prisão. No caso de Bolsonaro, qualquer detetive de quinta categoria não levaria mais do que uma semana para reunir provas para condená-lo. As ligações da família Bolsonaro com milicianos (inclusive com os da organização que responde pelo charmoso nome de Escritório do Crime), o incompreensível acúmulo patrimonial de Flávio Bolsonaro em anos recentes, e até mesmo muitas das irresponsáveis declarações do capitão reformado, entre muitas outras falcatruas fartamente documentadas e veiculadas pela imprensa, já seriam mais do que suficiente para derrubar Bolsonaro.
Talvez os outrora apoiadores de Bolsonaro estejam esperando o término dos dois anos de governo para extirpá-lo sem provocar novas eleições. Ou talvez ele nem dure isto. Ou talvez ele fique no governo apenas como um fantoche fanfarrão e idiota. De qualquer forma, neste embate entre epidemias o COVID-19 parece invencível e a calamidade que se anuncia com a sua proliferação, afinal, talvez possa nos livrar de outra calamidade, a do governo Bolsonaro.
(escrito em 30/30/2020)
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blogdobenedito · 5 years ago
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A política do caos e o apocalipse
A ideologia visceralmente avessa à Modernidade protagonizada pelo fascismo faz com que seus governos sejam incapazes de conviver com o mínimo resquício de democracia. Mesmo as instituições básicas da democracia burguesa, por mais conservadoras que sejam, são intoleráveis para os fascistas. A separação entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário é vista como um obstáculo insuportável a uma missão redencionista, característica do fascismo, que, para se concretizar, exige a eliminação dos seus opositores. O fim da política como mediadora de conflitos sociais e a sua total substituição pela violência, assim, é um fenômeno indissociável do fascismo. Fundamentalmente, o que permite a ascensão do fascismo ao poder é a desmoralização da democracia burguesa decorrente de crises profundas do capitalismo. No entanto, a ocorrência de tais crises não é suficiente para assegurar a ascensão do fascismo. Esta exige estratégias políticas bem definidas. A estratégia política básica do fascismo é adicionar o caos na política ao caos da crise econômica para colocar-se como salvador da pátria. É, portanto, uma política do caos.
É interessante observar como esta política foi colocada em prática no Brasil os últimos anos.  Desde a sua campanha eleitoral, a verborragia de Jair Bolsonaro contra o “politicamente correto” é um elemento central dessa política. E depois da sua posse, tal política se intensificou. As delirantes declarações do presidente adicionam-se as dos seus ministros, aliás não menos delirantes. De uma estupidez e grosseria incomparáveis, que revelam a sua radical aversão aos princípios mais básicos da Modernidade, tais declarações, com a cumplicidade de empresários, militares, juízes e policiais (militares, federais e civis), tumultuam as relações do seu governo com o Congresso e com o poder Judiciário (que, no entanto, participaram decisivamente no golpe contra Dilma e na prisão de Lula).
Mas as origens da política do caos, assim como os seus efeitos mais devastadores, não se limita a Bolsonaro e seus seguidores. Ela encontra-se na preparação ao golpe de Estado que resultou na ascensão do fascismo no país, passando pela prisão de Lula. E, neste momento, tal política tinha como alvo a economia, até porque a atuação dos poderes Legislativo e Judiciário foram essenciais para a sua execução.
Um elemento central da política do caos no Brasil é a Operação Lava Jato. Seus efeitos devastadores sobre a economia do país são, provavelmente, inigualáveis na história brasileira, não apenas pela sua magnitude, mas, principalmente por terem sido protagonizados de forma consciente e deliberada. Vejamos alguns dados de uma pesquisa realizada pelo Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (https://www.ineep.org.br/post/os-impactos-econ%C3%B4micos-da-opera%C3%A7%C3%A3o-lava-jato-e-o-desmonte-da-petrobras), Em 2015, a Operação Lava Jato foi responsável por uma redução equivalente a 2,0% do PIB em investimentos da Petrobrás, e a uma diminuição equivalente a 2,8% do PIB em investimentos das construtoras e empreiteiras. Em 2016 a Operação Lava Jato provocou uma redução de 5,0% dos investimentos em formação bruta de capital fixo no país, assim como uma diminuição de R$ 100 bilhões no faturamento das empresas arroladas nos seus processos. Como um dos instrumento da política privatista que se instalou após o golpe, a Operação Lava Jato contribuiu decisivamente para uma queda no emprego na indústria naval de 82.472 mil trabalhadores em 2014 para 29.539 trabalhadores em 2018. Como resultado de suas ações a Operação Lava Jato provocou uma queda de 3% do PIB entre 2015 e 2018. É evidente que tal situação não poderia deixar de ter outros efeitos sobre a economia como, por exemplo, a dívida pública que aumentou 52% entre 2015 e 2018, chegando à 77,8% do PIB, o maior valor da história (56,28% em 2014).
Evidentemente, a instalação do governo Bolsonaro não arrefeceu esta política, ao contrário. O aprofundamento da reforma trabalhista, iniciada pelo vice-presidente golpista Michel Temer após assumir o poder, a reforma da Previdência Social, a extinção de diversos programas sociais, entre muitas outras ações governamentais, tiveram efeitos devastadores sobre a demanda interna, deprimindo a atividade econômica, acelerando a desindustrialização do país. O desemprego, embora disfarçado pela legalização da precarização trazida pela reforma trabalhista, aprofunda-se. A situação, enfim, é exatamente contrária à previsões realizadas empresários, banqueiros e ministros ao defender as reformas. Por exemplo, o ministro da economia Paulo Guedes afirmou que as reformas teriam um efeito imediato sobre o PIB, que ele delirantemente previa crescer 3%, ao atrair capitais para o Brasil. Mas, com a reforma da Previdência e a continuidade da reforma trabalhista iniciada no governo Temer, o que se observou em 2019 foi um mísero crescimento de 1,1% do PIB e uma fuga do país de mais de 35 milhões de dólares de capital estrangeiro. O caos, portanto, já era uma realidade em 2019.
Diante desta situação, a epidemia provocada pelo coronavírus pode transformar o caos em apocalipse. Os efeitos da epidemia ao redor do mundo são intensos. Um dos mais importantes, pelo seu efeito em cascata sobre os outros países, é o forte arrefecimento do crescimento econômico da China, berço da epidemia e locomotiva econômica do capitalismo globalizado. E, em todos os países atingidos pela epidemia, as drásticas medidas sanitárias praticamente inviabilizarão durante certo período boa parte das atividades econômicas. Desenha-se, portanto, um cenário de profunda crise mundial. Cenário que no Brasil torna-se apocalíptico devido a estupidez de Jair Bolsonaro e a incompetência do seu governo. Devido a política do caos sofrida pela economia brasileira, apenas nos dois primeiros meses de 2020 a fuga de capitais estrangeiros do Brasil já é maior do que o recorde histórico ocorrido em todo o ano passado, atingindo cerca de 45 milhões de dólares. As quedas do Índice da Bolsa de Valores de São Paulo (Ibovespa), entremeadas por interrupções preventivas de sessões extremamente instáveis, batem recordes históricos.
Um elemento importante da crise brasileira são os efeitos devastadores sobre o Sistema Único de Saúde (SUS) provocados pela política econômica adotada desde o governo Temer, e intensificada pelo governo de Bolsonaro. Isto torna particularmente importantes no país as medidas de isolamento que tem sido adotadas no mundo inteiro diante da epidemia. Isto porque, no Brasil, caso a epidemia se espalhe muito rapidamente, atingindo grande número de pessoas simultaneamente, simplesmente não haverá como tratá-las. As mortes causadas pelo coronavírus, neste caso, seriam muito mais graves do que em outros países. Mas a adoção das medidas drásticas de isolamento sanitário ameaçam ainda mais a já moribunda economia brasileira.
É difícil saber se o comportamento do presidente Bolsonaro nesta situação é fruto de sua já proverbial estupidez ou se ele é resultado de uma tentativa desesperada de defender os interesses dos capitalistas, que preferem a morte de um grande número de brasileiros a diminuir suas atividades econômicas e de especulação financeira. O mais provável é que seja pura estupidez. Em todo caso, nem diante da catástrofe que se anuncia, o presidente Bolsonaro deixa de protagonizar a ignorância. Contra os princípios sanitários mais básicos, o presidente minimiza a epidemia, desobedecendo as recomendações veiculadas de forma unânime pelos profissionais de saúde e até pelo seu ministro da saúde, um dos poucos integrantes do governo que parece capaz de certa lucidez. Ocorre que, até o momento, treze integrantes da comitiva presidencial constituída para a realização pelo governo Bolsonaro da sua já tradicional bajulação à Donald Trump estão contaminados com o coronavírus. Os testes realizados por Bolsonaro, cujos resultados foram negativos para o vírus, estão sendo refeitos, pois o período relativamente longo de incubação do vírus tornou suspeitos os resultados dos testes. Há uma probabilidade não negligenciável de Bolsonaro estar contaminado, o que não o impediu de alegremente confraternizar com alucinados apoiadores do governo em uma manifestação (contra o STF e o Legislativo!) que representou uma séria ameaça à saúde pública.
Voltando a questão econômica, a estratégia básica para enfrentar a catástrofe que se anuncia proclamada pelo ministro Paulo Guedes é a continuidade das “reformas” (ou seja, o ataque aos trabalhadores). Justamente o que aprofunda o caos instalado no país. A “liberação” de 147,3 milhões de reais recentemente anunciada pelo ministro da economia para o combate à recessão que se avizinha não foge desta lógica. Elas constituem em um velho truque da direita que consiste em desviar recursos já orçados em outras rubricas na tentativa de estimular o consumo dos trabalhadores e manter certo nível de atividade econômica. É como no ditado popular: “tirar a roupa de um santo para colocá-la em outro”. Embora possa trazer algum alívio imediato, especialmente ao SUS e ao Programa Bolsa Família, tal pacote, portanto, se mantém estritamente nos limites da austeridade fiscal que tem se traduzido como uma tragédia para as classes populares.
A gravidade da situação exige medidas mais drásticas. Neste sentido, é interessante observar que as medidas adotadas em muitos países europeus para enfrentar a catástrofe provocada pela II Grande Guerra basearam-se essencialmente em uma larga redistribuição da renda nacional em favor dos mais pobres. Foi assim que, por exemplo, a Inglaterra suportou os bombardeios que sofreu e o esforço econômico que dispensou durante este conflito. Ao que tudo indica, estamos na iminência de uma catástrofe global, talvez ainda pior do que a II Grande Guerra e que certamente será ainda mais grave no Brasil. Para fazer frente a tal crise são imprescindíveis medidas como a taxação de grandes fortunas; aumento do imposto de renda para os que ganham mais, com alíquotas crescentes definidas para estratos mais altos (rendimentos mensais de R$ 20 a 40 mil, R$ 40 a 60, etc); uma reforma agrária que, diante do agravamento do desemprego que se anuncia, permita o acesso à terra e condições de produção para um significativo contingente de trabalhadores; um aumento significativo do salário mínimo e das aposentadorias para aumentar o consumo das classes populares para a sustentação da atividade econômica; a estruturação dos serviços públicos (prioritariamente os de saúde, neste momento) para assegurar o acesso aos mesmos por toda a população.
Portanto, com o caos que reina no país provocado pelo governo fascista e ultraliberal de Bolsonaro e Paulo Guedes, parece inelutável o apocalipse.
(publicado em 17/03/2020, atualizado em 18/03/2020)
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blogdobenedito · 6 years ago
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O fascismo bolsonarista e a religião: um governo evangélico?
Na sua Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução, Marx afirma que “a crítica da religião é o pressuposto de toda crítica”. Nesta obra, Marx retoma uma tese de Feuerbach, segundo a qual o ser humano, ao criar um imaginário ente superior assumindo-se como sua criatura, tem na religião o ato por excelência da sua própria alienação. Baseando-se nesta tese os jovens hegelianos, dos quais Marx por algum tempo fez parte, promoviam uma crítica impiedosa a toda crença religiosa. No entanto, Marx rompe com o idealismo dos jovens hegelianos, afirmando que a crítica à religião deve ser feita a partir da compreensão das condições sociais que a torna necessária aos seres humanos, e não apenas a partir das suas manifestações imediatas. Para Marx, portanto, o fenômeno religioso deve ser analisado de uma forma muito mais ampla e profunda do que a mera denúncia das crenças e manifestações que o caracterizam, o que o levou, a partir de então, a se dedicar à crítica da economia política.
Para que possamos compreender as relações entre fascismo e religião é preciso ter em mente este posicionamento de Marx. A essência do fascismo é a sua radical negação da Modernidade. A proposta de voltar a um mundo mítico, de características medievais, protagonizada pelo fascismo procura restituir à religião o papel de guardiã das estruturas sociais que ela desempenhava anteriormente à Modernidade. No entanto, originado das crises estruturais do capitalismo, cujo aprofundamento provoca uma irremediável desmoralização da democracia burguesa e da Modernidade a ela associada, o fascismo conforma-se às próprias características do capitalismo cuja crise provocou a sua ascensão. E com a religiosidade sobre a qual ele se apoia não poderia ser diferente.
A crise do capitalismo é também a crise da religiosidade racionalista que o caracteriza. Ocorre que no contexto dessa crise, a até então alegada incontestável prioridade em assegurar o lucro dos capitalistas antes que as necessidades das classes populares possam ser atendidas (do que resulta que estas jamais sejam adequadamente satisfeitas) passa a se tornar cada vez menos convincente. Decresce o número de pessoas, especialmente entre as classes populares (ao contrário de grande parte dos intelectuais) que acredita nas justificativas econômicas, elaboradas pela burguesia e seus asseclas, da miséria e precariedade presentes nas sociedades capitalistas. A religiosidade típica dessas sociedades, baseada no seu “pensamento econômico”, passa a se mostrar inoperante para assegurar a hegemonia ideológica da burguesia. Fundamentalmente, assim, a ascensão de uma religiosidade francamente mística, reacionária e muitas vezes delirante sobre a qual o fascismo procura se basear, origina-se da crescente ineficácia da religiosidade racionalista do capitalismo provocada pelas suas crises estruturais mais profundas.
No fascismo populista do século XX, especialmente em suas versões latinas (regimes de Mussolini, Franco e Salazar), a negação da modernidade encontrou no catolicismo tradicional uma firme base ideológica. E mesmo nas ambíguas relações do nazismo com a religião, não era raro encontrar entre representantes importantes da Igreja Católica sinceros simpatizantes da sua causa.
No entanto, o capitalismo ultraliberal sobre o qual se apoia o fascismo contemporâneo parece ser mais coerente com uma religiosidade diferente da proposta pelo catolicismo. E é provável que esta característica seja ainda mais exacerbada na América Latina, como se observa claramente no caso brasileiro. A ideologia do fascismo nacional e populista do século XX continha uma superficial, mas eleitoralmente eficaz, crítica à usura praticada pelo capitalismo financeiro internacional, pregando uma volta a um capitalismo nacional baseado em valores típicos do catolicismo. Já o fascismo contemporâneo tem na burguesia financeira internacional a sua principal base de apoio, o que o torna estranho à apologia da frugalidade e da pobreza, e sobretudo com a já citada condenação da usura, que caracteriza o moralismo católico.
O surgimento de uma religiosidade alternativa à da Igreja Católica no Ocidente remonta as disputas ideológicas que acompanharam as transformações da sociedade do Antigo Regime (que conjugava uma base econômica já amplamente dominada pela burguesia, mas ainda sob instituições de caráter feudal). É neste contexto que surge a Reforma Protestante, iniciada por Martin Lutero. Uma das suas principais reivindicações era a de que a religião deveria basear-se exclusivamente na  fé, a qual teria como fundamento o contato direto com Deus, representado pela sua palavra expressa na Bíblia. Daí o ato revolucionário de Martin Lutero de traduzir a Bíblia para o “alemão” (na verdade não havia uma língua alemã unificada e sim um grande número de dialetos germânicos) e de abandonar o latim nos cultos da sua nova Igreja. O contato direto torna todos os fiéis iguais perante Deus. Neste sentido, assim como o súdito medieval é substituído pelo cidadão moderno, segundo o qual todos são iguais diante do Estado, para Lutero todos os fiéis são iguais diante de Deus e apenas este (pela sua graça), e não a Igreja (pelo respeito as suas regras), pode proporcionar a redenção dos seres humanos, originalmente pecadores.
O protestantismo gerou um amplo movimento dando origem a diversas variantes, dentre as quais as Igrejas Pentecostais. A palavra “pentecostal” é derivada de Pentecostes, um termo grego que descreve uma antiga festa judaica de comemoração da colheita, o dia de Pentecostes. Para os cristãos, foi em um dia de Pentecostes que houve a descida do Espírito Santo à terra, ocasião em que este entra em contato direto com os seus seguidores. Considerando este evento como símbolo da sua fé, o movimento pentecostal pretende pregar o mesmo tipo de poder espiritual, estilo de adoração e ensinamentos que supostamente ocorriam na Igreja primitiva. Por este motivo, muitos pentecostais também usam o termo Evangelho Pleno para descrever seu movimento, o que, provavelmente, está na origem da sua designação geral como “evangélicos”.
Livre de qualquer controle institucional, qualquer pessoa que se sinta como um portador da voz do Senhor (e consiga convencer a outros disto) pode se tornar um “pastor” e até mesmo fundar uma nova Igreja. Assim, a capacidade de comunicação, comumente expressada por performances espetaculares nem sempre bem intencionadas, pode facilmente se sobrepor às motivações de cunho religioso, o que faz com que o apregoado contato direto com Deus (ou Jesus) muitas vezes adquira um caráter alienante e místico, quando não francamente delirante. E o que é mais triste é que tais características dos cultos evangélicos têm se mostrado extremamente atraentes à população, assegurando às Igrejas que o praticam dezenas de milhões de fiéis, cujo número não cessa de crescer.
É sobre este tipo de evangélicos (que está longe de abarcar o conjunto deste movimento) que o fascismo brasileiro se apoia. Já na sua campanha, Bolsonaro se declarava abertamente como seu representante político. E depois da sua posse, é crescente esta imiscuidade entre governo e religião, como atesta a nomeação de vários ministros ligados ao movimento evangélico. É claro que, como é característico do governo Bolsonaro, este fenômeno ocorre pontuado por episódios hilariantes. Dentre estes, talvez o mais conhecido seja o suposto diálogo da ministra Damares Alves com Jesus trepado sobre uma goiabeira, por ela mesma relatado anos antes da sua posse, mas ainda assumido com orgulho pela ministra. Neste bizarro diálogo Damares expressa uma aflita preocupação com o risco de Jesus cair da goiabeira. Tem razão a nossa ministra. Assim como outros membros da família das Mirtáceas como a pitangueira e o eucalipto, a goiabeira se caracteriza por desprender facilmente sua casca, o que torna os seus troncos e galhos lisos e perigosos para trepadores pouco hábeis. A justificativa botânica, no entanto, não poupou a ministra do ridículo, embora esta, incansável e sem constrangimentos, continuou a protagonizar cenas e falas relacionadas à sua religiosidade dentre as mais absurdas do governo Bolsonaro (superando, aliás, forte concorrência).
Mais preocupantes são as consequências desta promiscuidade entre governo e religião sobre as instituições da frágil república brasileira. A bancada evangélica já é uma das maiores forças no Congresso Nacional. Há pouco tempo Bolsonaro prometeu nomear ministros evangélicos para o Superior Tribunal Federal. O ministro da Educação, o evangélico Abraham Weintraub, desde a sua posse empreende uma verdadeira cruzada contra os valores da Modernidade, com especial aversão às Universidades brasileiras. Desta mesma cruzada participa Damares Alves, que ironicamente ocupa a pasta do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Culminando com este circo dos horrores, depois de um desastrado rompimento com o seu próprio partido, Bolsonaro anunciou a criação de uma nova agremiação partidária que deverá ter como uma das suas principais bases os seus seguidores evangélicos, que deverão ampliar ainda mais a sua participação no governo.
Como tudo o que é protagonizado pelo governo Bolsonaro, as tentativas de implantar estas medidas são marcadas pela confusão e a incompetência, o mesmo ocorrendo com o seu programa econômico. Bolsonaro, portanto, tem perdido muito da confiança que a burguesia financeira depositava em seu governo para a implantação do ultraliberalismo.
Diante desta situação, muitos consideram que, com a queda de Bolsonaro, estaria superada a religiosidade por ele protagonizada. Mas aqui é preciso relembrar Marx. A crítica dos aspectos repulsivos, embora muitas vezes pitorescos e risíveis, das manifestações religiosas no interior do governo Bolsonaro pode até contribuir para a sua queda. Limitada a estes aspectos, porém, tais críticas são pouco úteis para elucidar as condições que geraram a ascensão do seu odioso governo, assim como da religiosidade sobre a qual ele se apoia, pouco contribuindo para uma efetiva superação do fascismo no Brasil.
(escrito em 18 de novembro de 2019)
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blogdobenedito · 6 years ago
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Fascismo e desenvolvimento
Fascismo e desenvolvimento são termos antitéticos. A noção de desenvolvimento possui uma evidente filiação com a noção moderna de progresso por meio da qual, desde o século XVIII, é protagonizado o uso da razão para promover a emancipação humana. O desenvolvimento é, pois, filho (ou neto) da Modernidade. Neste sentido, talvez a melhor forma de conceituar o desenvolvimento é que ele se constitui na promoção das condições sociais para uma plena expressão da personalidade dos indivíduos. Neste processo, o indivíduo, produto de múltiplas determinações sociais, afirma a sua singularidade, superando suas particularidades de classe em uma dialética trajetória para o universal. Até que as próprias classes possam desvanecer dando lugar a uma equidade em harmonia com as diferenças individuais.
Já o fascismo representa, antes de tudo, um projeto social profundamente antimoderno, com base em uma ideologia que, essencialmente, se constitui em uma completa negação da Modernidade. Para o fascismo a individualidade não existe (ou não deveria existir). Os seres humanos, assim, seriam apenas elementos de uma rígida estrutura social que tem as suas principais bases assentadas em um mítico patriotismo, assim como na família nuclear tradicional, definida biologicamente. O projeto emancipatório da Modernidade implica a superação das barreiras naturais, com os seres humanos humanizando a natureza e naturalizando-se a si mesmos como seres sociais. Como disse Marx, a fome saciada com garras e unhas já não é mais o apetite satisfeito com garfo e faca. O fascismo propõe a volta das garras e das unhas. Com ele, a irracionalidade passa a dominar a vida social com a violência se sobrepondo as mais elementares regras de respeito e civilidade.
No entanto, o desenvolvimento capitalista não é um processo linear e, menos ainda, homogêneo em suas manifestações. Ao contrário, ele é um processo desigual e articulado. Isto significa que o desenvolvimento não pode ser avaliado pela ideologia dos grupos sociais favoráveis (ou contrários) a sua promoção. O desenvolvimento é, portanto, um processo social objetivo que não pode ser compreendido pelas intenções explicitadas, mas pelas consequências das ações delas decorrentes.
O fascismo representa a exacerbação das caraterísticas específicas do capitalismo de cada época, de cuja crise ele emerge. Neste sentido, surgido oportunisticamente a partir da desmoralização do sistema político capitalista, o fascismo expressa com crueza as tendências do capitalismo em seus momentos de mais profunda crise. Os regimes políticos que suscitaram a sua própria designação como fascismo, caso da Itália, da Alemanha e do Japão nos anos 1930-45, representaram a extrema exacerbação de um imperialismo capitalista, que passa então a assumir uma amoralidade colonialista profundamente autoritária e cruel, após romper as limitações à violência representadas pelo Estado de Direito e outras instituições e valores modernos, peremptoriamente negados pelo fascismo.
Mas o fascismo nacionalista desses países representou, no campo econômico e social, uma resposta até certo ponto eficaz à crise que o gerou. A forte intervenção do Estado na economia, que assumiu boa parte dos investimentos impondo, para isto, graus de exploração dos trabalhadores só possíveis pela desumanização de parte da população dos países ocupados (ou mesmo do próprio país, como no caso dos judeus na Alemanha), mostraram de forma cabal a necessidade de romper com as políticas de laissez-faire que precipitaram a crise capitalista. É por esta razão que o fascismo populista não raro adotava uma retórica anticapitalista que denunciava o capital financeiro internacional que agia em detrimento da “grandeza da pátria”. Neste sentido, os regimes fascistas do início de século XX podem ser considerados como precursores de políticas econômicas que, sob formas mais brandas, se generalizaram nos países capitalistas mais avançados após a segunda grande guerra. Paradoxalmente, portanto, o fascismo populista do início do século XX não deixou de protagonizar, tanto em termos práticos como ideológicos, uma proposta de desenvolvimento, apesar de sua antinomia com o significado mais profundo deste termo.
O fascismo que emerge neste início do século XXI também expressa a exacerbação das características do capitalismo de nossa época. Mas, se o imperialismo anterior a segunda grande guerra faz surgir um fascismo nacionalista que acaba por romper com o pensamento econômico dominante, o fascismo ultraliberal contemporâneo (do qual o brasileiro é um caso extremo) é um fiel herdeiro do neoliberalismo. Mesmo que as condições para a ascensão do fascismo ultraliberal tenham sido criadas, justamente, pelo fracasso do neoliberalismo em restaurar certa estabilidade ao capitalismo. Neste contexto, o fascismo contemporâneo representa a ascensão de uma ideologia que, depurando o neoliberalismo de certas veleidades “sociais” (como atesta o surgimento de uma multitude de “políticas públicas” que caracterizaram as suas formas mais amenas nas últimas décadas), abandona qualquer pretensão de se apresentar como uma proposta de superação da crise, passando pura e simplesmente a defender os interesses imediatos das classes dominantes.
Em sua versão brasileira, o fascismo ultraliberal adiciona ao seu grotesco arsenal de insandices antimodernas uma profunda e explícita aversão ao desenvolvimento. Jair Bolsonaro, o “mito” dos fascistas brasileiros, afirmou que seu projeto é fazer o Brasil retornar ao que era há 30-40 anos atrás. A frágil experiência brasileira de um crescimento econômico com certa distribuição de renda (que de forma alguma ameaçou os interesses das classes dominantes) parece ter mostrado às classes médias que o desenvolvimento do país representa a perda de alguns dos seus privilégios. Por exemplo, o desenvolvimento necessariamente representaria uma intolerável amenização da intensa exploração dos trabalhadores menos qualificados, o respeito a diferenças individuais, o debate aberto de ideias e certa socialização das riquezas para assegurar investimentos públicos em resposta a necessidades mais básicas da população.
Há, portanto, uma parcela da população brasileira que não quer viver em um país desenvolvido. Rompeu-se o (aparente) consenso desenvolvimentista. Países como a Alemanha e a França (e, especialmente os países escandinavos para os mais bem informados) deixaram subitamente de serem invejados modelos de desenvolvimento. E com isto se desvanecem as pretensões da construção de algo como um Estado do Bem Estar Social no Brasil por meio da simples força das ideias e contra todos os incontornáveis obstáculos colocados pela brutal desigualdade social que proporciona uma triste fama ao país. Uma construção que se mostra agora claramente impossível de ser conciliada com a manutenção dos privilégios dos que (ainda, para muitos) não estão sujeitos à miséria e a precariedade impostas à maioria da população.
É este processo que leva os fascistas brasileiros a adotar o Chile como modelo de “desenvolvimento”, como afirmado reiteradamente pelo superministro da economia Paulo Guedes. Afirmação que se completa, de um ponto de vista “metodológico”, por Jair Bolsonaro, ao elogiar a tortura e o assassinato de dezenas de milhares de cidadãos pelo governo de Augusto Pinochet como meio de impor o neoliberalismo no Chile.
A ascensão do fascismo contemporâneo decorre, portanto, de uma clara consciência por parte das classes dominantes da ameaça aos seus interesses que representa o desenvolvimento, o que se manifesta de forma particularmente brutal no caso brasileiro, provocando uma polarização social sem precedentes no país. Diante desta situação, torna-se ainda mais evidente que o estudo dos problemas relacionados ao desenvolvimento não podem se limitar a disputas abstratas e meramente acadêmicas, mas exige um posicionamento explícito e racionalmente fundamentado diante dos agudos conflitos de classe existentes no país.
(escrito em 29/09/2019)
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blogdobenedito · 6 years ago
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Fascismo: da repulsa moral à oposição política
Há, indiscutivelmente, uma crise no governo fascista de Jair Bolsonaro. Com sua  incontinência verbal incontrolável, parece haver no ex-capitão uma forte, embora talvez inconsciente, vontade de fracassar e assim se libertar de uma função para a qual ele sabe não ter a mínima noção de como exercer. Aliada a má-fé e a incompetência ímpares dos seus correligionários, a cada dia o seu governo perde mais credibilidade. Isto pode levar a pensar que o fascismo ultraliberal atualmente dominante no Brasil está na iminência de ser derrotado. A realidade, porém, é muito mais complexa.
Mesmo se em um futuro próximo o governo Bolsonaro cair, as raízes estruturais do fascismo no Brasil continuarão intactas. Não há sinal de arrefecimento da crise econômica que levou a desmoralização do sistema político brasileiro. Ao contrário, ela provavelmente se aprofundará na medida em que a prioridade das classes dominantes é a de uma simples, e cada vez mais brutal, transferência de renda do conjunto da sociedade para os capitalistas (ou seja, para ela mesma), especialmente os ligadas aos setores financeiro e agrário. Enquanto isto, o governo Bolsonaro não manifesta preocupação alguma com o desemprego, com a crescente precariedade das condições de vida da maioria da população e com qualquer medida que possa promover um desenvolvimento sustentável do país. Ao contrário, o seu governo tem sido marcado por um grau de destruição ambiental, econômica e social jamais visto na história do Brasil. Restou apenas a retórica ultraliberal de que o enriquecimento dos ricos trará a melhoria da vida dos pobres (na medida em que proporcionaria maior capacidade de investimento aos ricos), mesmo contra as massivas evidências contrárias acumuladas em décadas de neoliberalismo. E foi justamente o fracasso do neoliberalismo, que provocou o esgotamento da capacidade da sua retórica de legitimar o poder da burguesia, que levou a completa desmoralização do sistema político brasileiro, abrindo as portas à ascensão do fascismo.
Mas desde o surgimento do neoliberalismo as forças que se pretendem progressistas (ou seja, a esquerda) foram incapazes de contrapor ao mesmo qualquer projeto social alternativo minimamente consistente. Ocorre que a massa dos críticos do governo Bolsonaro parece ser incapaz de reconhecer o seu caráter de classe e, assim, de percebê-lo como um instrumento para a implantação de um verdadeiro projeto social. Para tais críticos, Bolsonaro parece ser simplesmente  portador de uma grotesca insanidade, o que, evidentemente, não deixa de ser verdade, mas está longe de nos permitir entender as causas da sua ascensão ao poder e as ações do seu governo.
A atitude de tais críticos possui um caráter de classe. Pois ela é dominada pelos interesses da nova classe média. Esta, constituída pelos intelectuais, no seu sentido amplo, se distingue da classe média tradicional, formada essencialmente por agricultores, artesãos e pequenos comerciantes. E ao contrário desta última, a nova classe média adquiriu uma crescente importância econômica e social após a Segunda Grande Guerra, expressando a sua emergência na cena política (sua consciência de classe específica) ao longo dos anos 1950 e 1960. Neste contexto, pode-se simbolicamente considerar a revolta estudantil de maio de 1968 na França como a sua “Revolução Francesa”.
A nova classe média possui uma pauta política específica que está longe de responder aos interesses de classe dos trabalhadores. Centrando-se em problemas aparentemente universais, mas de uma forma que oculta o seu caráter de classe, a nova classe média os despolitiza, apesar de suas ações muitas vezes exibirem um (aparentemente irredutível) radicalismo. Não há, assim, nas reivindicações protagonizadas pela nova classe média, uma estratégia política claramente baseada em análises objetivas das forças políticas em conflito no governo fascista de Bolsonaro. Neste sentido, diante dos crescentes ataques do governo aos seus interesses materiais (únicos capazes de efetivamente mobilizá-la), a nova classe média expressa suas reivindicações por meio de um forte apelo moral, ocasionalmente acompanhado pela denúncia do caráter fascista do desrespeito à democracia e a direitos constitucionais fundamentais (como à educação, à saúde e à aposentadoria). Porém, limitando-se a contestar as medidas tomadas contra seus interesses sem com isto contestar o poder político que as protagoniza, a repulsa moral ao fascismo da nova classe média tem reiteradamente se mostrado incapaz de se constituir em uma efetiva oposição política ao governo Bolsonaro.
Há um elemento extremamente perturbador nesta situação. Para explicá-lo faço apelo a algumas obras. Em sua polêmica obra “A destruição da razão”, Lukács aponta a “Filosofia da vida”, como uma corrente de pensamento que, instrumentalizada pelo nazismo, foi extremamente eficaz para protagonizar uma postura irracional diante da realidade. Uma das primeiras expressões desta corrente filosófica foi “O mundo como vontade e representação” de Schopenhauer. Retomando a análise de Lukács, Michel Clouscard publica em 1970 um livro com o sugestivo nome de “Neofascismo e ideologia do desejo”, no qual analisa o projeto político da nova classe média, em um momento em que este triunfalmente assumia uma posição hegemônica na esquerda.
O que perturba são os elementos fornecidos pela obra desses autores para a análise do comportamento da nova classe média brasileira diante do governo fascista de Bolsonaro. Um destes elementos é expresso no próprio título da obra de Clouscard citada acima, "Neofascismo e ideologia do desejo". Tal título expressa uma tese que eu sempre (desesperadamente!?) rejeitei, a saber, a existência de um fascismo de esquerda (ou neofascismo como expressa o autor). Outro título que pode servir como ponto de partida para refletir sobre o comportamento da nova classe média é o da obra citada de Schopenhauer, “O mundo como vontade e representação”. Será que não é desta forma, como vontade e representação, que se se expressam os condicionamentos de classe que orientam a percepção da realidade da nova classe média? Adicionemos a isto a crítica que Clouscard elabora em sua obra às ideias de Herbert Marcuse, um dos mais renomados ideólogos das grandes revoltas estudantis dos anos 1960. Retomando teses de Freud e Reich, Marcuse afirmava que, para o indivíduo, a única realidade é a sua pulsão pela vida, o resto sendo meras representações. Vamos agora comparar tudo isto com a propaganda hitlerista que tem uma das suas maiores expressões no filme de Leni Riefenstahl que retrata o 6° Congresso do Partido Nazista, realizado no ano de 1934 na cidade de Nuremberg, cujo título “O triunfo da vontade” é uma clara (e intencional) alusão à obra de Schopenhauer.
Diante destes elementos cabe a pergunta: a repulsa ao fascismo expressada pela nova classe média não seria apenas o outro lado da moeda da “pulsão pela vida” ou da “vontade” do indivíduo, compartilhando com estas a mesma irracionalidade? Vale salientar, no entanto, que uma característica primordial do fascismo é a sua explícita e peremptória negação dos valores da Modernidade, sobre os quais se fundam, por exemplo, os direitos humanos e a democracia. A nova classe média apresenta características diametralmente opostas. O seu apelo à tais valores é um argumento frequentemente empregado na defesa dos seus interesses. No entanto, de acordo com Clouscard, ambas as posições se baseiam em um irracionalismo que seria a matriz fundamental do pensamento fascista.
De qualquer forma, resisto à hipótese de um fascismo de esquerda. Mas como marxista não posso me furtar a uma análise rigorosa e objetiva da realidade, para a qual a turbulenta situação do país constitui-se em um campo privilegiado. Neste contexto, a rejeição de tal hipótese dependerá, em boa parte, da capacidade da nova classe média de superar a repulsa moral em favor de uma real oposição política ao fascismo.
(escrito em 10/09/2019)
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blogdobenedito · 6 years ago
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O obscurantismo fascista
A emergência do capitalismo, em muitos aspectos, representou um progresso para a Humanidade. Combatendo o direito divino sobre o qual se baseava o feudalismo, a burguesia o contrapõe a um contrato social segundo o qual o poder só pode emergir do próprio povo. Para tanto foi necessária a afirmação da igualdade entre os indivíduos diante do Estado. Nasce, assim, o cidadão moderno que, por meio de avanços e recuos, se impõe ao súdito feudal, provocando o seu desaparecimento. O reconhecimento de uma igualdade fundamental entre os indivíduos implica respeitar a diversidade das suas crenças e culturas, o que impede que o Estado se sustente sobre uma religião. O Estado moderno, portanto, necessariamente deve ser laico. No combate ao feudalismo, dominado pela religião, a ciência moderna desempenhou um papel fundamental. A Igreja, evidentemente, combateu sistematicamente a emergência de uma postura objetiva diante da realidade, que ameaçava os seus dogmas. No início do século XVI, o filósofo e cientista Giordano Bruno, condenado à ser queimado vivo, e o astrônomo Galileu Galilei, obrigado a negar as suas descobertas, são alguns dos exemplos mais conhecidos do recrudescimento do controle exercido pela Igreja sobre a atividade intelectual no Ocidente, o qual se arrefece apenas a partir de meados do século XIX.
Consolidada a ordem burguesa, porém, ela mostra-se bem menos progressista do que induzem a pensar os valores sobre os quais ela procura se legitimar. Ao contrário, as revoluções industriais, impulsionadas fortemente pelo conhecimento científico, jogam a grande maioria dos trabalhadores na mais abjeta miséria. Os trabalhadores, porém, não ficam inertes diante desta situação. Em 1848, em um amplo movimento mais tarde denominado “Primavera dos Povos”, eclodem várias rebeliões de operários por toda a Europa, marcando a emergência do proletariado na cena política.
A partir deste movimento, a burguesia, assustada, coloca-se diante de um paradoxo. Por um lado, o conhecimento objetivo da realidade social e as possibilidades de uma genuína liberdade humana colocado pelo conhecimento científico já não corresponde aos seus interesses. Por outro lado, tal conhecimento é indispensável para o aumento da produtividade do trabalho sobre o qual baseia-se não apenas a acumulação de capital, mas também a amenização dos conflitos de classe nas sociedades capitalistas. Desencadeia-se, assim, um processo de decadência ideológica da burguesia. Esta perde, cada vez mais, o seu caráter progressista. A subordinação da geração de conhecimento aos seus interesses passa a ser uma questão vital para a sua sobrevivência como classe dominante.
Mas o paradoxo não é superado. A produção de um conhecimento rigoroso da realidade, quer seja ele de caráter filosófico ou científico (se é que estes podem ser separados), é impraticável sem um mínimo de liberdade. E esta liberdade pode gerar um conhecimento que pode expor não apenas a exploração econômica dos trabalhadores, mas também a alienação dos indivíduos do conjunto da sociedade (ou seja, o seu estranhamento em relação a sua própria condição de ser social), protagonizados pela sua dominação pela burguesia. Além disto, o extraordinário desenvolvimento das forças produtivas provocado pelas inovações baseadas no conhecimento científico, quando colocados diante dos muitos problemas, por vezes elementares (para os quais há tempos existem soluções técnicas), que ainda assolam as sociedades modernas, evidenciam que as relações sociais capitalistas se constituem em um sério obstáculo ao progresso da Humanidade.
Os intelectuais sempre se constituem, portanto, em uma ameaça potencial à ordem burguesa. Isto explica porque as instituições científicas, especialmente as Universidades, sempre são encaradas com desconfiança pelos capitalistas. Embora formalmente proclamadas autônomas, a plena liberdade ao exercício das atividades acadêmicas na Universidade jamais lhe é proporcionada. Prova disto é a quase inexistência de recursos para a extensão, o estrito atrelamento das atividades de pesquisa às exigências dos órgãos de financiamento de projetos e credenciamento dos cursos de pós-graduação e os cada vez mais rígidos mecanismos de financiamento e esquemas de funcionamento dos cursos de graduação. Além disto, são recorrentes as reclamações dos capitalistas de que as Universidades devem manter maior “proximidade” com as empresas, subordinando-se estritamente aos seus interessantes.
O fascismo, surgido da desmoralização da democracia burguesa provocada pela crise do capitalismo, transforma esta desconfiança em verdadeira aversão. O obscurantismo, uma das  características mais marcantes do fascismo, representa a decadência ideológica da burguesia em seu grau mais elevado. Disto resulta a negação dos fundamentos mais elementares das sociedades modernas. A imposição de crenças religiosas as mais ultrapassadas (e, em geral, ridículas) como “teorias” que só têm a Bíblia como evidência (como o criacionismo e a crença de que a terra é plana), a negação do reconhecimento da individualidade com o confinamento da sociabilidade humana aos limites da sua condição biológica (como a recusa em aceitar a diversidade de gênero entre os indivíduos), são alguns exemplos desta verdadeira insanidade que caracteriza o fascismo. É evidente que tal insanidade não poderia deixar de ser instrumentalizada pelos interesses econômicos da burguesia. A negação de resultados científicos que contrariam os interesses imediatos das classes dominantes, por mais consolidados e evidentes que eles sejam, é assumida pelos fascistas com uma desconcertante naturalidade, e muitas vezes de forma grotesca e truculenta.
A imensa desigualdade social historicamente existente no Brasil, que condena a maioria da sua população à miséria e à precariedade, torna gritantes as contradições das sociedades capitalistas com os próprios valores da Modernidade a partir dos quais elas procuram se legitimar. Não é de admirar, portanto, que as instituições republicanas sobre as quais se assenta a democracia burguesa nunca foram sólidas no Brasil. Somando-se a isto, em um contexto de profunda crise, em que os principais representantes dessas instituições (especialmente os dos Poderes Judiciário e Legislativo), dominados pelos interesses da burguesia, proporcionam um apoio decisivo ao fascismo, não é de admirar a forma superlativa que assume o obscurantismo fascista no Brasil.
Olavo de Carvalho, o guru do clã Bolsonaro, é o protagonista mais emblemático deste obscurantismo. Suas ridículas e pueris contestações de Issac Newton e Albert Einstein, por exemplo, ilustram claramente a mistura de ignorância e má-fé que caracteriza o obscurantismo fascista. No que diz respeito às instituições, participando de um evento promovido pela igreja Assembleia de Deus em 31 de maio de 2019, Bolsonaro afirmou:
“Muitos tentam nos deixar de lado dizendo que o Estado é laico. Mas nós somos cristãos. Ou para plagiar minha querida Damares, nós somos terrivelmente cristãos. E este compromisso deve estar presente em todos os poderes. Por isto, o meu compromisso: poderei indicar dois ministros para o Supremo Tribunal Federal. Um deles será terrivelmente evangélico”.
E ainda, em uma crítica antecipada à imprensa (mais uma organização moderna detestada pelo fascismo) na ocasião também declarou: “Não me venha a imprensa dizer que estou querendo misturar religião com Justiça”. Estas declarações mostram que, ao subordinar o exercício de seu cargo às suas crenças religiosas (e ao que há de pior nelas), nosso ex-capitão não possui a mínima noção do que é um Estado Laico.
As consequências do obscurantismo fascista no Brasil tornam-se ainda mais graves quando por meio dele são promovidos de forma direta os interesses econômicos imediatos das classes dominantes. Em um país dominado pelo agronegócio a subordinação da ciência aos interesses da sua burguesia agrária resulta no protagonismo de um verdadeiro desastre social e ambiental. Neste sentido, vale lembrar que, na história do capitalismo, nenhum país sob a dominação da burguesia agrária conseguiu assegurar condições de vida minimamente dignas a sua população. E é justamente o aprofundamento desta dominação que orienta as estapafúrdias declarações de Bolsonaro e do seu ministro Ricardo Sales. Exemplo disto é a negação pelo ex-capitão das gigantescas dimensões do desmatamento no Brasil e seu ministro do meio ambiente tentando se apoderar dos vultosos recursos do Fundo Amazônia, seguramente para empregá-los no aumento da extração de madeira e na expansão da agricultura capitalista e da mineração, os maiores responsáveis pela destruição em curso da floresta amazônica.
Mas o Brasil não é dominado apenas pela burguesia agrária. De maior importância é a dominação do capital financeiro, a qual serve, também, aos interesses do imperialismo, especialmente dos Estados Unidos. A defesa dos interesses deste setor é realizada por um obscurantismo intelectualmente mais elaborado. Ocorre que há um obscurantismo organizado no próprio seio da ciência contemporânea. E é no interior da economia, área de conhecimento que expressa mais diretamente os interesses de classe nas sociedades capitalistas, é que se encontra o seu exemplo mais emblemático. Trata-se da chamada economia neoclássica que, embora sendo a corrente dominante no ensino da economia nas Universidades, possui fundamentos já totalmente refutados, para não dizer absurdos, como a crença de que o capitalismo tende a ser um sistema econômico justo e harmonioso desde que não se imponha limites a exploração dos trabalhadores pelos capitalistas. Obviamente, tal “fundamento” é entusiasticamente acolhido pelo capital financeiro sem deixar, no entanto, de gerar argumentos pouco sutis. Por exemplo, no dia 14 de março de 2016, “O Antagonista”, página de imprensa na Internet cujos articuladores se engajaram alucinadamente no golpe de Estado que abriu caminho para a ascensão fascista no Brasil, é declarado que, “Sem Dilma, o PIB dobra”. Mas o que se observou, depois da saída de Dilma foi o aprofundamento da depressão econômica brasileira, com um brutal crescimento do desemprego e da deterioração das condições de vida da maioria da população. E pior, oito meses após a posse de Jair Bolsonaro, o PIB brasileiro não apresenta qualquer sinal de recuperação aos seus níveis observados anteriormente ao golpe. E ainda, mostrando que nada pode estar tão ruim que o fascismo não possa piorar, Paulo Guedes, nosso superministro da Economia, não apresenta qualquer política para o desenvolvimento econômico do país. Aliás, o objetivo do governo é justamente o de retroceder o desenvolvimento do país, como mostra a declaração de Bolsonaro à Rádio Jornal, de Barretos, em 11 de outubro de 2108, de que o objetivo do seu governo seria fazer “o Brasil semelhante àquele que tínhamos há 40, 50 anos atrás”. Coerente com esta afirmação, no lugar de uma política de desenvolvimento o governo de Bolsonaro, sob o comando de Paulo Guedes, protagoniza uma massiva transferência de renda dos trabalhadores ao setor financeiro, a qual não resulta em investimentos produtivos devido a falta de demanda. O destino destes recursos, assim, é a especulação financeira. Exatamente a especialidade do nosso ministro da economia.
O obscurantismo, pela sua própria natureza, é imune a argumentos científicos ou simplesmente lógicos. A tentativa, portanto, de fazer um fascista reconhecer a realidade que o cerca é de pouca utilidade. Aliás, é curioso salientar as reiteradas afirmações dos fascistas de que tudo que os desagrada é fruto de manipulação ideológica, mesmo quando se trata de fatos irrefutáveis. Isto porque a ideologia é execrada pelos fascistas como mera distorção da realidade. Mas é exatamente distorcendo, e até negando, a realidade que os fascistas argumentam. O combate ao obscurantismo fascista, inclusive em seus ataques à Universidade, portanto, só pode ocorrer por meio de um amplo movimento de oposição política ao fascismo em seu conjunto, no qual devem se engajar todos aqueles que não estão envolvidos pelo seu mundo mágico e delirante.
(escrito em 11/08/2019)
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blogdobenedito · 6 years ago
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A besta incontrolável
Hegel sustentava que os capitalistas constituem uma classe politicamente nula. Segundo este grande filósofo alemão do início do século XIX, nas sociedades modernas há uma dicotomia entre o exercício do poder econômico e o do poder político. Por exemplo, na república romana, os patrícios, grandes proprietários de terra, eram também os membros do senado. Na Roma antiga, assim, ser um grande proprietário de terra implicava quase que automaticamente no exercício de um cargo político. Também nas sociedades feudais, a nobreza e a Igreja, ao mesmo que tempo que exerciam o poder político, zelavam diretamente pelos seus interesses materiais. Mas nas sociedades contemporâneas, observou Hegel, os capitalistas preocupam-se, acima de tudo, em acumular capital. Esta concentração dos capitalistas em acumular capital é, aliás, uma exigência em um sistema econômico altamente dinâmico marcado pela concorrência. Por outro lado, tal acumulação, sendo movida exclusivamente por interesses individuais, tende a criar agudos conflitos sociais, mesmo entre os próprios capitalistas. Daí a existência de um sistema político que, além de dispensar os capitalistas enquanto tais da administração da coisa pública, permitindo que eles se concentrem estritamente nos seus interesses econômicos imediatos, provocou a emergência de um Estado que, segundo o idealismo objetivo de Hegel, representava a consolidação da razão nas sociedades modernas. À racionalidade protagonizada pelo Estado haveria a contraposição de uma intrínseca irracionalidade da sociedade civil que, por isto, foi caracterizada por Hegel como uma besta incontrolável.
Para Marx, no entanto, é na sociedade civil que se encontram os processos que nos permite entender as relações entre meios e fins nas sociedades modernas  (ou seja, a sua racionalidade, em certo sentido). Na perspectiva materialista e histórica sobre a qual se baseava Marx, a chave para a compreensão do próprio Estado encontra-se na análise dos conflitos de interesse entre as classes sociais presentes na sociedade civil. O papel do Estado nas sociedades modernas, assim, constitui-se essencialmente em um aparato institucional implantado para assegurar a perenidade das relações sociais capitalistas em meio aos conflitos que a caracterizam. Para Marx, a (aparente) racionalidade do Estado moderno subordina-se à irracionalidade da sociedade civil.
Neste sentido, não se pode afirmar que a caracterização de Hegel está ultrapassada. A cabal incapacidade do capitalismo em assegurar um crescimento econômico que proporcione condições minimamente dignas para a reprodução material das sociedades contemporâneas têm colocado obstáculos quase intransponíveis ao sistema político estatal em satisfazer os interesses da burguesia. Isto fica claro observando-se o rastro dos desastres econômicos, sociais e ambientais provocados pelo neoliberalismo, os quais atestam o fracasso das políticas econômicas implantadas em seu nome em estabelecer condições para uma acumulação de capital razoavelmente estável, especialmente após a crise financeira de 2008. Com o aprofundamento dos efeitos desta crise, há uma nítida consciência por parte da burguesia (o mesmo não podendo ser dito daqueles que supostamente combatem o neoliberalismo) que, doravante, o enriquecimento dos ricos só pode ocorrer por meio de um brutal empobrecimento dos pobres. Nesta situação, evidentemente, não há sistema político capaz de administrar os conflitos de classe, especialmente entre capitalistas e trabalhadores. Neste contexto, os interesses capitalistas só podem ser assegurados pela violência direta contra os trabalhadores, o que implica numa radical negação dos valores e até mesmo das regras mais elementares de convivência entre seres humanos vigentes nas sociedades modernas.
Esta negação radical dos valores da Modernidade possui um nome, fascismo. O Brasil é um país que historicamente apresenta gigantescas desigualdades sociais, o que em grande parte explica porque a democracia burguesa nunca chegou a se consolidar plenamente entre nós. As frágeis tradições democráticas do país fazem com que a falência da legitimidade e a extrema desmoralização do seu sistema político possam se tornar explosivas. Daí a extrema virulência do fascismo no Brasil atual, do qual nada se pode esperar além do caos.
O fascismo brasileiro, expressão radical de uma sociedade civil ensandecida, é uma besta incontrolável, como diria Hegel. E com ele concordaria Marx, que previu que o caráter anárquico do capitalismo desencadearia forças destrutivas capazes de ameaçar a própria existência da Humanidade. Por outro lado, a experiência histórica mostra que os regimes fascistas, embora invariavelmente colocados no poder pela burguesia, acabam, também invariavelmente, tornando-se insuportáveis aos próprios capitalistas, que passam a combatê-lo. Assim foi com Hitler e Mussolini. Ainda que estes, representantes de um fascismo populista, apresentassem um projeto social capaz de cooptar boa parte das classes populares. Ainda que estes fossem inimigos ferozes do comunismo em uma época em que este representava uma ameaça real ao capitalismo. Tal ameaça, aliás, é uma das principais razões que explicam porque as “democracias burguesas” tanto titubearam em combater os países do Eixo, havendo mesmo em todas estas “democracias” barulhentos movimentos fascistas. Neste sentido, é bom lembrar que grandes multinacionais capitalistas, como a Ford dos EUA e a Siemens da Alemanha deram um apoio financeiro decisivo à ascensão do nazismo. A decisão dos governos “democratas”, notadamente dos Estados Unidos e da Inglaterra, de combater o fascismo, portanto, não era óbvia. Afinal, porque não deixar Hitler acabar com a União Soviética e, com isto, enfraquecer decisivamente o movimento comunista mundial? Mas, como atesta os bombardeios à Inglaterra e o ataque à Pearl Harbor, sempre chega o momento em que o fascismo mostra a sua natureza mais íntima, a de uma besta incontrolável.
Mesmo antes da eleição de Jair Bolsonaro, era previsível que esta seria a principal característica do seu governo. Após as eleições, isto fica cada vez mais claro. E a besta brasileira é não apenas incontrolável, mas também de uma incompetência e mediocridade incomparáveis (além da notória insanidade e total ausência de escrúpulos do próprio presidente, dos seus filhos e muitos dos seus ministros). Neste contexto, o governo de Jair Bolsonaro parece estar em rápida deliquescencia. O que se coloca, porém, é como a sua queda poderia resultar em uma inflexão na implantação do programa ultraliberal protagonizado pela ala econômica do governo, o qual é o que mais afeta as condições de vida da população. Por mais repugnantes que sejam as fanfarronices e baixarias do presidente (e dos seus filhos e ministros), qualquer atitude progressista deveria ter como prioridade o combate as políticas econômicas em curso que estão levando o país à destruição.
Estamos, portanto, longe da possibilidade de uma verdadeira derrota do fascismo ultraliberal que se instalou no Brasil. No entanto, mesmo que, no caso da destituição de Jair Bolsonaro, a presidência passasse a ser ocupada pelo general Hamilton Mourão (que está a milênios de anos-luz de um democrata), a queda deste governo representaria um duro golpe ao fascismo no Brasil, especialmente aos seus apoiadores mais alucinados. Sem esquecer que muita luta ainda está por vir, temos, portanto, que agir com firmeza e determinação para que isto aconteça.
(escrito em 09/08/2019)
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blogdobenedito · 6 years ago
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Fascismo tragicômico
O fascismo é uma tragédia. Os cerca de 60 milhões de mortos na Segunda Guerra Mundial (mais de 3% da população mundial na época), as centenas de milhares de mortos no regime de Francisco Franco na Espanha, no regime fundado por Antônio de Oliveira Salazar em Portugal, nas ditaduras militares da Argentina, Uruguai e Brasil e, mais recentemente, a legalização do assassinato de suspeitos de tráfico e usuários de drogas (e o consequente massacre de cerca de 10.000 deles) pelo governo de Rodrigo Duterte das Filipinas, são alguns exemplos deste fenômeno. Além disto, é importante salientar o sofrimento imposto à população pela brutal intensificação da sua exploração econômica, acompanhada da eliminação de qualquer possibilidade de contestação, que invariavelmente se observa em países dominados pelo fascismo.
Apesar dos protestos dos seus asseclas, o comportamento de Jair Bolsonaro e de grande parte dos integrantes de seu governo é, indiscutivelmente, fascista. Todos negam os princípios da Modernidade. Direitos humanos, Estado de Direito, Estado Laico, separação entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, assim como as mais elementares regras de civilidade, são soberbamente ignorados, quando não explicitamente negados. Mas é provável que a tragédia protagonizada por este governo não inclua os horrores dos exemplos citados acima, exceto no que diz respeito a exploração dos trabalhadores e outros aspectos ainda mais sombrios do seu governo.
Não é um detalhe menor. O governo Bolsonaro protagoniza uma verdadeira destruição da economia e das riquezas naturais do país. Sua única preocupação, na área econômica, capitaneada pelo ministro Paulo Guedes, é a de uma massiva transferência de renda para o setor financeiro (como Bancos e especuladores da Bolsa de Valores), assim como a entrega das empresas estatais (e dos recursos naturais aos quais algumas delas têm acesso privilegiado) para o capital internacional, impondo ao país uma nítida subordinação aos interesses do imperialismo dos EUA. A reforma da previdência, a criação de um “fundo soberano” (sic!) a ser gerido por especuladores privados para o financiamento das Universidades Federais e a destruição da Petrobras, são exemplos eloquentes desta política. As medidas em relação ao ambiente são subordinadas a ela. A intensificação da destruição da Amazônia, a massiva aprovação de agrotóxicos, a privatização de parques e reservas florestais o atestam.
Os aspectos sombrios ao qual me referi diz respeito as ligações do clã Bolsonaro com as milícias, uma das formas mais repugnantes de criminalidade. É bom relembrar que as milícias são grupos de criminosos, quase sempre ligados à própria polícia, cujas ações são dirigidas contra as populações das grandes favelas, ou seja, por pessoas que estão entre as mais pobres do país. A presença de parentes de milicianos como assessores no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro (atualmente senador), assim como as homenagens a milicianos na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro em 2003 e 2004 por ele protagonizadas (ocasiões em que discursou com eloquentes elogios aos milicianos) deixam poucas margens a dúvidas em relação a essas ligações.
Há, porém, uma categoria profissional que, indiscutivelmente, está sendo grandemente beneficiada pelo governo Bolsonaro. Não estou falando dos banqueiros e dos especuladores, pois a categoria à qual me refiro é composta de trabalhadores honestos e dedicados que prestam valiosos serviços ao país e, sendo assim, não serão beneficiados pela regressão econômica e social promovida pelo ex-capitão e seus asseclas. Ao contrário, como a maioria da população, esta categoria profissional também deverá sofrer os priores efeitos desta regressão. Mas em uma coisa ela está sendo beneficiada: seu trabalho está sendo grandemente facilitado pelos atuais governantes brasileiros.
Refiro-me aos humoristas. Certamente que governantes com expressa vocação para o ridículo não são raros. E não apenas no Brasil. Os antigos presidentes da França, Nicolas Sarkozy e François Hollande, o presidente dos EUA Donald Trump e o recém nomeado primeiro-ministro britânico Boris Johnson, são exemplos eloquentes de governantes que, em alguns casos aparentemente até de forma deliberada, ofereceram e oferecem vasto material para piadas.
Mas neste quesito o governo de Jair Bolsonaro é imbatível. Como desde o início da sua posse diariamente somos brindados por bobagens inimagináveis destes governantes, limito-me aqui a citar alguns exemplos. A divulgação do relato da ministra dos Direitos Humanos Damares Alves de uma conversa que ele teve com Jesus Cristo trepado em uma goiabeira, já no início do governo do ex-capitão, foi auspicioso. As declarações do guru do clã Bolsonaro de que a terra era plana, de que as teorias de Issac Newton e Albert Einstein estão erradas e, ainda, de que a Pepsi-Cola adoça seus refrigerantes com extratos de fetos humanos, confirmaram a pantomina que viria. Mais recentemente, as explicações do (segundo) ministro da Educação indicado por Olavo de Carvalho, Abraham Weintraub, dos motivos de suas péssimas notas obtidas na Universidade de São Paulo, alegando que na época sofria de dores no ombro (o que levanta dúvidas sobre onde se localiza o cérebro de nosso ministro) é mais um exemplo da tragicomédia bolsonarista. Como já mencionado, limito-me apenas a estes fatos, pois seriam necessárias dezenas de crônicas para oferecer uma amostra significativa das absurdas bobagens, trapalhadas e insandices dos integrantes do governo Bolsonaro.
No entanto, em termos de bobagens, trapalhadas e insandices, Jair Bolsonaro parece imbatível. É que, além de proferir um besteirol inimaginável saindo da boca de um presidente, nosso ex-capitão demonstra uma ignorância ímpar e, em muitos casos, uma vergonhosa má-fé sobre os problemas mais básicos do país. Jair Bolsonaro é uma piada de mau gosto. Expressa má-fé quanto nega a destruição da floresta amazônica (chegando a contestar rigorosas pesquisas científicas), ou a existência de pessoas que passam fome no Brasil. E uma hilária ignorância quando, por exemplo, nosso infeliz presidente em uma das suas transmissões ao vivo não consegue falar síndrome de down ("drown", segundo ele), sendo rapidamente corrigido por um general ao seu lado. Ou quando, em pronunciamento nos EUA, se atrapalha ao tentar adaptar seu absurdo chavão (para o chefe de um Estado que deveria ser laico), "Brasil acima de todos, Deus acima de tudo", dizendo "Brasil Estados Unidos acima de tudo, Brasil acima de todos".
Enfim, sobre a tragicomédia do governo Bolsonaro restam apenas duas dúvidas, nada risíveis. Uma é quanto tempo será necessário para o Brasil se recuperar dos seus efeitos. A outra é se isto acontecerá.
(escrito em 26/07/2019)
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blogdobenedito · 6 years ago
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Fascismo ou não fascismo? Os delírios dos bolsonaristas.
Afinal, Jair Bolsonaro pode, rigorosamente falando, ser chamado de fascista? Vários juízes eleitorais, ao proibir discussões sobre fascismo em universidades públicas, na prática, já deram uma clara resposta a esta questão, mesmo antes do nosso abominável ex-capitão ser eleito. Mas, evidentemente, esta resposta não pode ser considerada satisfatória de um ponto de vista conceitual. E, por mais estranho que pareça, é justamente sob este ponto de vista conceitual que os asseclas de Bolsonaro procuram demonstrar que ele, e o tipo de governo que ele está implantando, não podem ser caracterizados como fascistas.
Uma das exposições mais claras dos argumentos dos bolsonaristas para alegar que não são fascistas foi expressa em um debate transmitido ao vivo em 03/07/2019 pela TV Horizonte, de Belo Horizonte entre Rudá Ricci, professor cientista político, e Victor Lucchesi, presidente do PSL Jovem de Minas Gerais. Na ocasião, este último alegou três motivos que demonstrariam que o governo Bolsonaro não era fascista. Segundo o jovem líder, o fascismo se caracteriza, em primeiro lugar, por ser coletivista, enquanto que o governo Bolsonaro, pasmem, seria um ferrenho defensor da liberdade individual; em segundo lugar, por ser centralizar o poder no Estado, em contraste com o governo Bolsonaro que seria “liberal” economicamente; e, em terceiro lugar, por ser sindicalista, enquanto o governo Bolsonaro é contra os sindicatos. No decorrer do programa, Rudá Ricci acabou perdendo a paciência e, infelizmente, abandonou o debate, o que, num certo sentido, pode ser interpretado como uma vitória do bolsonarismo, que tem justamente na sua capacidade de irritar seus adversários com argumentos absurdos uma das suas maiores armas.
O que define o fascismo, porém, não são as características, meramente conjunturais, enunciadas por Lucchesi. A natureza do fascismo reside na sua radical aversão à Modernidade. Explico-me. Os primórdios da Modernidade podem ser identificados na Renascença europeia, iniciada no século XIV, que consistiu em um amplo movimento de revalorização da Antiguidade Clássica, com o consequente abrandamento do dogmatismo religioso e o misticismo que caracterizam o pensamento medieval. A partir deste movimento, aos poucos, foi afirmando-se a possibilidade de uma compreensão racional do mundo, o que abriu caminho para o desenvolvimento da ciência e das técnicas a partir dela desenvolvidas. Da compreensão racional do mundo deriva, também, a ideia de progresso, não apenas no âmbito da produção material, mas também em relação às próprias estruturas sociais. Inicia-se, assim, no plano das ideias, uma lenta transformação das sociedades feudais que teve como resultado uma fundamentação ideológica totalmente nova para a legitimação das sociedades modernas. Enquanto a estrutura social medieval era baseada no direito divino, que assegurava o poder à nobreza e ao clero, as sociedades modernas têm como fundamento um contrato social baseado na noção de que o poder deve emanar do povo. É importante salientar, porém, o significado atribuído ao termo “povo”. A necessidade de um contrato social implica que o “povo” constitui-se de uma comunidade de indivíduos autônomos, e não como um conjunto indivisível, que se expressaria por uma “cultura” que poderia representá-lo como um todo. É, portanto, nas sociedades modernas que a individualidade humana passa a ser reconhecida, devendo este reconhecimento refletir-se nas suas instituições. Surge assim, no lugar do súdito medieval, com privilégios e obrigações definidos segundo uma rígida hierarquia social, a figura do cidadão, membro de uma sociedade em que todos devem ser iguais perante a lei. A república, surgida na Grécia antiga, é retomada e aperfeiçoada para se tornar o sistema de governo típico das sociedades modernas (as monarquias existentes em sociedades modernas praticamente não possuem poder político).
Na república moderna, o poder divide-se entre Executivo, Legislativo e Judiciário, os quais possuem funções distintas que devem ser exercidas com autonomia. Os representantes da sociedade que exercem o poder legislativo fazem as leis, os representantes da sociedade que ocupam, sempre temporariamente, o Executivo (ou seja, o “governo”) as executa, e cabe aos profissionais do Judiciário, apoiados em um aparato coercitivo (a polícia), assegurar que as leis sejam respeitadas por todos os cidadãos. Há, portanto, uma clara distinção entre governo e Estado. É importante salientar que a igualdade de todos os cidadãos perante a lei implica em definir de forma clara e explícita os direitos que asseguram às pessoas as condições mínimas para a sua existência, assim como o pleno exercício da sua individualidade, com o respeito às suas crenças, costumes e culturas (desde que exercidas no âmbito legal). O Estado moderno, portanto, é laico pois, para poder respeitar a todas as religiões, não pode privilegiar qualquer uma delas.
Impondo-se à ordem social feudal apoiando-se nos valores da modernidade, por meio dos quais procura legitimar a sua hegemonia política, o capitalismo, porém, mostra-se fundamentalmente incompatível com tais valores. Como afirmava Hegel, e como mais tarde salientou Marx, nas sociedades modernas há uma contradição fundamental entre Estado e sociedade civil, entre cidadão e burgues. Ocorre que o Estado de Direito Moderno representa uma sociedade ideal, frequentemente em contradição com os interesses econômicos dos capitalistas. Desta contradição surge a democracia burguesa, que só pode funcionar segundo os princípios da Modernidade desde que tal funcionamento não ameace as relações sociais capitalistas. Este funcionamento é tanto mais instável quanto maior é a dificuldade da sociedade em assegurar uma vida digna a sua população, de acordo como os princípios da cidadania. A Modernidade, assim, dificilmente medra em sociedades pobres, com economias pouco desenvolvidas, o que é agravado pelas profundas desigualdades socioeconômicas que lhe são características. E se a democracia burguesa é estruturalmente instável, sua existência é ainda mais problemática quanto mais pobre e, principalmente, desigual, for o país.
Por esta razão é que a estagnação, quando não a depressão, da economia e o vertiginoso aumento das desigualdades provocados pelas crises estruturais do capitalismo criam enormes dificuldades para a burguesia para legitimar o seu poder político por meio das instituições de um Estado moderno. São nestes momentos históricos que a burguesia recorre a negação da Modernidade, isto é, ao fascismo, para promover o aprofundamento das relações sociais capitalistas. E é claro que o fascismo assume os interesses capitalistas prevalecentes em cada momento histórico e de acordo com as características de cada país. O fascismo de uma Alemanha derrotada na Primeira Guerra Mundial que por meio de um exacerbado populismo exaltava o povo alemão como uma totalidade racial “superior”, a ser representada por um forte aparelho estatal, como forma de promover uma guerra imperialista total; assim como o fascismo de uma Itália que, mesmo tendo participado da aliança vencedora da Primeira Guerra Mundial, enfrentava grandes dificuldades de conciliar seus interesses imperialistas com um capitalismo frágil e incapaz de assegurar certa estabilidade social (dai a ideologia de um sindicalismo corporativista como base social do seu Estado imperialista colonial), não podem ser comparados ao fascismo contemporâneo. Mesmo que nos países capitalistas ricos as tradições fascistas ligadas ao imperialismo nacionalista, com veleidades protecionistas e forte apelo populista, ainda seja a forma mais comum de manifestação do fascismo.
É nos países dominados pela potência imperialista atualmente hegemônica, os Estados Unidos, como o Chile de Pinochet e o Brasil de Bolsonaro, que o fascismo contemporâneo se manifesta em sua forma mais pura. Tal fascismo é furiosamente ultraliberal, antiestatal e antipopular, exatamente como o líder do PSL Jovem de Minas Gerais descreve o governo Bolsonaro.
O fascismo, em todas as suas formas, é repugnante, mesmo para a burguesia que o promove. Assim, raramente são os próprios representantes da burguesia que o protagonizam abertamente. Esta tarefa é deixada para indivíduos, em geral com uma trajetória pessoal marcada pelo fracasso e a mediocridade, cuja degradação moral os leva a negar cinicamente os mais elementares princípios de civilidade, na medida em que certa neutralização de tais princípios é uma condição necessária para a implantação do fascismo. Este é o perfil típico dos mais convictos apoiadores do atual governo brasileiro. Mas nisto certamente nenhum deles supera o “mito” (sic!) Jair Bolsonaro, que é não apenas fascista, mas também um dos mais toscos e grotescos representantes que este movimento já teve ao longo da sua história.
(escrito em 24/07/2019)
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blogdobenedito · 6 years ago
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Pós-modernidade e fascismo: a fórmula do desastre
Historicamente, os movimentos fascistas nascem nos períodos em que a crise do capitalismo se aprofunda ao ponto de atingir o seu sistema político, desacreditando irremediavelmente a democracia burguesa. Estas são as causas objetivas do surgimento e da ascensão do fascismo, identificáveis nas condições materiais em que ocorre a luta de classes no capitalismo. Mas, as condições materiais não determinam mecanicamente os fenômenos sociais, inclusive os políticos. Como dizia Marx, são os seres humanos que fazem a sua própria história (embora não nas condições de sua escolha, mas nas legadas pelo passado). Neste sentido, se as condições materiais determinam as possibilidades de ação, é preciso não esquecer que é próprio da ação humana passar pelo pensamento. Toda decisão humana, assim, pressupõe uma possibilidade de escolha. Em outras palavras, se os processos sociais são compreensíveis objetivamente, isto não significa que eles não sejam influenciados, por vezes decisivamente, pelas condições subjetivas, as quais agem dialeticamente sobre as próprias condições materiais (e não apenas o inverso). As produções ideológicas que orientam a política, assim, dependem de movimentos do pensamento que não podem ser reduzidos mecanicamente à evolução das condições materiais. Neste sentido, o surgimento e, principalmente, a ascensão do fascismo nas sociedades contemporâneas explicam-se, também, por certa trajetória das produções ideológicas nelas observadas.
Em 1952 Geörgy Lukács completa o seu livro intitulado “A destruição da razão”, o qual representa um esforço do autor para compreender o nazismo, tendo como objeto a evolução da filosofia alemã. Neste livro, Lukács tentou mostrar como, a partir de Schelling, através de Schopenhauer e Nietzsche, chegando até Heidegger, o pensamento alemão teria sofrido um processo de irracionalização crescentemente aguda e furiosa, a qual deu, segundo o autor, um decisivo suporte ao triunfo da demagogia nacional-socialista. De acordo com a análise de Lukács, realizada com certa ferocidade no encadeamento implacável dos argumentos, é nos grandes representantes do pensamento irracionalista alemão do século XIX que se pode identificar os sinais precursores da deterioração filosófica que precedeu a escalada do nazismo.
Para Lukács, portanto, a disseminação do irracionalismo filosófico é um poderoso elemento propulsor do fascismo. Se estivesse vivendo em nossos tempos, Lukács teria um material muito mais farto para dar suporte a esta tese. É que o irracionalismo tornou-se uma tendência largamente dominante na produção intelectual contemporânea. Refiro-me aqui, principalmente, àqueles que sustentam que as sociedades capitalistas mais ricas teriam atingido uma (suposta) “pós-modernidade”. De acordo com esta tendência, o “projeto” da Modernidade, com seus grandes valores universais ligados ao progresso da Humanidade, falhou. Neste sentido, mesmo a noção de progresso deveria ser rejeitada. De acordo com esta ideologia, tudo é relativo, devendo estar subordinado a avaliações meramente subjetivas. Até mesmo o conhecimento científico, pelo fato de ser algo característico da Modernidade, passaria a ter validade apenas local, podendo mesmo ser rejeitado diante de outros “saberes”.
Os franceses estão entre os principais pioneiros do pensamento “pós-moderno”. Mas foi também um filósofo francês, Michel Clouscard, que a meu ver analisou com mais pertinência este pensamento. Para Clouscard, o alegado advento da pós-modernidade é um fenômeno de classe. Para o autor tal fenômeno, em suma, representa a emergência de um projeto social elaborado em função dos interesses específicos da nova classe média, formada principalmente por trabalhadores intelectuais no seu sentido amplo (ou seja, por todas as profissões que tem no conhecimento desenvolvido em instituições acadêmicas a base da sua atuação, o que inclui, por exemplo, advogados, médicos, engenheiros e administradores). Após a Segunda Guerra Mundial a ascensão social desta nova classe média foi fulgurante, em detrimento da classe média tradicional, representada por camponeses, artesãos e pequenos comerciantes. Tal ascensão contrastava com um capitalismo repressor dos costumes e que oferecia poucas garantias ao respeito dos direitos humanos. A liberalização dos costumes e a instituição de um genuíno Estado de Direito passam, assim, a ser os elementos estruturantes de um projeto social que exprime as aspirações políticas da nova classe média.
Tal projeto é simpático às classes populares, na medida em que pretende defender os seus direitos. Mas ele não inclui uma contestação clara e objetiva da exploração sofrida por estes trabalhadores, até porque a própria nova classe média é beneficiada por esta exploração. Por isto, ao mesmo tempo em que procura amenizar os efeitos da exploração dos trabalhadores no capitalismo, a nova classe média é avessa ao reconhecimento da luta de classes e da estrutura social capitalista na qual ela ocorre. Aliás, as próprias noções de luta de classe e de estrutura social são veementemente rejeitadas pelos ideólogos da pós-modernidade, assim como a possibilidade de qualquer análise racional dos processos sociais. O capitalismo, assim, figura como a sociedade na qual a pós-modernidade poderia se estender indefinidamente. Neste quadro, vários “fins” são decretados. Fim da história, fim das ideologias e, principalmente fim de qualquer esforço intelectual que possa dar suporte a um projeto de transformação global da sociedade, que passam a ser considerados como meras “grandes narrativas”, tão válidas como qualquer outra. Com um discurso altamente envolvente e aparentemente realista, na medida em que reflete o elevado grau de alienação vigente nas sociedades contemporâneas, a ideologia da pós-modernidade tornou-se hegemônica entre a esquerda, com a nova classe média impondo a prioridade dos seus interesses específicos sobre o das classes populares. Afinal, quem pode ser contra o direito das mulheres, dos homossexuais e das minorias raciais?
A nova classe média possui uma visceral repugnância ao fascismo. E, evidentemente, foram as condições objetivas de um capitalismo em profunda crise as responsáveis pelo surgimento do fascismo. Mas, paradoxalmente, o pensamento pós-moderno proporcionou um suporte ideológico decisivo a ascensão do fascismo. Ao negar qualquer possibilidade de construção de um projeto social elaborado racionalmente, a ideologia da pós-modernidade fortalece o irracionalismo fascista. A confusa contestação da Modernidade protagonizada pelos pós-modernos, assim, contribuiu para a sua radical negação pelo fascismo.
Em termos mais concretos, este suporte se manifesta pelo fato da pauta pós-moderna desmobilizar os trabalhadores, minando a sua organização, ao não oferecer uma clara alternativa as classes populares. Já a pauta do fascismo é clara, mesmo que medíocre e absurda. Para o fascismo, por exemplo, se há crime, é preciso prender e, até mesmo matar, mais. Se os serviços oferecidos pelo Estado não atendem aos interesses populares, é preciso acabar com o Estado. Se as empresas estatais não resultam em benefícios diretos à população, é preciso privatizá-las. Se o sistema político não representa os interesses da maioria, é necessário acabar com a política, matando os opositores, se preciso for. Não que os trabalhadores tenham aderido em massa ao fascismo, especialmente a sua variante ultraliberal, caso do Brasil. Mas, decepcionados com as vagas promessas da esquerda pós-moderna, eles se desmobilizaram, desorganizando-se.
Como afirmam Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista, apenas a força material pode se contrapor à força material que oprime os trabalhadores, mas a teoria, ao ser apreendida pelas massas, transforma-se também em força material. Neste sentido, apenas a força da organização dos trabalhadores pode se contrapor à dominação capitalista. Mas de acordo com a afirmação de Marx, os intelectuais, como produtores de teoria, possuem também um papel decisivo na transformação social. Ao assumir um projeto político estritamente voltado aos interesses da nova classe média, a esquerda perdeu a capacidade de desempenhar este papel. Assim, a recuperação desta capacidade passa necessariamente pela superação da pauta pós-moderna em favor da elaboração de um programa político que aponte para um projeto social alternativo claramente voltado à maioria da população. No caso brasileiro, ao contrário, a posição predominante na esquerda é de se limitar à tentativa de participar a qualquer custo do sistema político vigente, o que já era grave no âmbito de uma democracia burguesa que anteriormente ao golpe que destituiu Dilma Rousseff funcionava, mesmo que precariamente, de acordo com as instituições republicanas. Com a instalação do fascismo, que implica no total desrespeito as regras mais básicas do jogo eleitoral e ao Estado de Direito, como atestam a prisão de Lula, o assassinato de Mariele e o silêncio em relação ao envolvimento do clã Bolsonaro com as milícias, uma das formas mais abjetas de criminalidade, esta postura da esquerda torna-se simplesmente desastrosa.
(escrito em 16/07/2019)
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blogdobenedito · 6 years ago
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Fascismo e neofascismo no capitalismo contemporâneo
A partir do final dos anos 1960, o capitalismo inicia uma crise até hoje não superada. A surpreendente (na época) conjugação de taxas declinantes de lucro e de crescimento econômico com taxas crescentes de inflação provoca transformações profundas nos países capitalistas mais ricos. Tais transformações culminaram em políticas ditas “neoliberais”, que consistem em um agressivo protagonismo de uma sociedade regulada pelo mercado, especialmente por meio do desmonte de serviços sociais, da minimização dos direitos dos trabalhadores e da privatização de empresas estatais.
Com o avanço das propostas neoliberais nos países capitalistas mais ricos a partir do início dos anos 1980, especialmente na Europa e nos EUA, observa-se o fortalecimento de formações políticas (ou de tendências no interior de outras forças conservadoras) de extrema direita, que retomam as principais teses de um fascismo “populista”, surgido na esteira da grande crise do capitalismo dos 1930. A principal característica de tais formações é um exacerbado populismo nacionalista, segundo o qual a subordinação do país ao capitalismo internacional sob a égide do setor financeiro e, principalmente, os “estrangeiros”, desta vez representados pelos imigrantes, são tidos como os grandes responsáveis pela pobreza, pelo desemprego e pela precariedade das condições de trabalho vigentes nesses países.
O último sobressalto da crise do capitalismo contemporâneo, ocorrido de forma violenta em 2008, torna incontornável o reconhecimento do fracasso do programa neoliberal em assegurar um mínimo de estabilidade econômica aos países que o adotam. É neste contexto que se revela de forma mais clara a existência de outra forma de fascismo. Não que esta forma seja nova. Na verdade, várias experiências, especialmente na América Latina, como o governo de Augusto Pinochet no Chile, assim como as ditaduras militares no Uruguai e na Argentina, podem ser identificadas como formas de fascismo que, ao contrário de denunciar o capital internacional, são instalados justamente para assegurar a sua dominação. A novidade é que este “neofascismo ultraliberal” tem agora avançado nos países capitalistas ricos, sendo ativamente protagonizado pela “troika” formada pela União Europeia, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial (como atesta a forma como estas instituições agiram em relação à Grécia).
A principal característica do neofascismo ultraliberal é que ele representa o abandono pelas classes dominantes de qualquer tentativa de se legitimar politicamente por meio de um projeto social que, mesmo que de forma contraditória e, muitas vezes, meramente retórica, ainda oferecia uma perspectiva de superação da crise. A depressão econômica de 2008, porém, desmascarou definitivamente as promessas do neoliberalismo. Neste contexto, as classes dominantes voltam-se, pura e simplesmente, para o aumento da sua participação na apropriação da riqueza gerada pelos trabalhadores. Mesmo que para isto tenha que recorrer a uma brutal violência policial e a supressão do Estado de Direito. Por outro lado, as forças de esquerda ainda parecem apegadas à reconstituição (ou à constituição, no caso de países mais pobres) de um Estado do Bem Estar Social que desde os anos 1970 já se mostrava inviável. O pacto, tácito ou explícito, formado no quadro do neoliberalismo entre a direita, que comandava a economia, e a esquerda, que se ocupava da defesa de direitos, se rompe, sem que a esquerda pareça ter se dado conta disto. Assim, diante da ausência de um projeto social  capaz de mobilizar as classes dos trabalhadores em favor de uma alternativa à sua dominação pelo capital, observa-se nos países capitalistas mais ricos, uma crescente polarização entre o fascismo tradicional e o neofascismo ultraliberal.
Estas duas tendências de extrema direita, ao procurar consagrar uma sociedade em completa contradição com os valores da modernidade, são efetivamente fascistas. A estupidez e o grotesco estão entre as suas características mais típicas. As declarações misóginas e racistas de Donald Trump nos EUA e a negação do assassinato em massa de judeus na II Guerra Mundial pelos Le Pen na França são exemplos emblemáticos da grosseria e do distanciamento em relação à verdade protagonizados pelo fascismo populista. No entanto, as declarações racistas, homofóbicas, misóginas, e as recorrentes manifestações de uma abissal mediocridade pelo ex-capitão Bolsonaro e seus rebentos, representantes tupiniquins do neofascismo ultraliberal, são imbatíveis neste quesito, mesmo entre os fascistas.
Por outro lado, estas duas formas de fascismo possuem importantes diferenças. O fascismo populista, francamente reacionário, protecionista e anti-moderno, tem como principal base social as classes populares. Seus protagonistas sabem, como ninguém atualmente (e de longe muito melhor do que as forças de esquerda), se endereçar às camadas mais pobres e precarizadas da população, especialmente aos operários e aos agricultores, apesar das flagrantes contradições do seu discurso. Ao tratar de temas como o desemprego, a precariedade das condições de trabalho e as mazelas do capitalismo financeiro internacional, de forma clara e direta (embora invariavelmente simplista e ilusória), o fascismo populista possui um forte apelo popular. Donald Trump nos EUA, o clã Le Pen na França, Matteo Salvini na Itália, Viktor Orban na Húngria, são alguns exemplos desse caso.
Já o fascismo ultraliberal é francamente antipopular. Uma clara evidência disto é a violenta repressão aos movimentos populares que lutam contra a precarização das condições de vida dos trabalhadores protagonizada pelo governo francês de Emmanuel Macron acompanhada pelas suas declarações de que os desempregados são simples “fait néants” (literalmente, “que nada fazem”, ou seja, vagabundos), assim como as reiteradas declarações de representantes da direita europeia sobre o caráter “preguiçoso”, avesso ao trabalho, do povo grego. Mas, também neste quesito, o caso brasileiro parece ser imbatível. As declarações do colombiano ex-ministro da Educação do Brasil de que  “brasileiro viajando é um canibal”, e a genial proposta do ex-capitão Bolsonaro, de suma importância para o país, de extinguir a gratuidade de bagagens de até 23 quilos nas viagens aéreas, com o argumento de que tal gratuidade é “coisa de pobre”, indicam o desprezo pelo seu povo nutrido pelo neofascismo ultraliberal brasileiro.
Apesar de ainda persistirem alguns nostálgicos da Ação Integralista Brasileira (fundada em 1932), o fascismo populista possui pouca (ou nenhuma) influência ideológica no Brasil. Com o abandono dos aspectos politico-ideológicos do neoliberalismo pela burguesia em favor de ações francamente baseadas na violência, o neofascismo ultraliberal viceja no país sem concorrentes no campo conservador.
O projeto social do neofascismo ultraliberal é tão, ou mais, assustador que o do fascismo populista. Para este último, trata-se de instalar um capitalismo nacional, assumindo-se claramente a construção de uma sociedade voltada aos seus “verdadeiros” cidadãos, que por origem ou, em certos casos, por opção, respeitem supostos “verdadeiros valores da nação”. Obviamente, a construção de uma sociedade desse tipo  está fadada ao fracasso no contexto atual do capitalismo. Para o neofascismo ultraliberal, por outro lado, trata-se de impor definitivamente aos trabalhadores, mesmo que recorrendo a uma extrema violência, a existência de uma sociedade dividida entre um punhado de privilegiados em um capitalismo agonizante, e a ampla maioria da população que deverá suportar uma brutal degradação das suas condições de vida para viabilizar tal forma de capitalismo.
Este cenário torna-se ainda mais assustador se considerarmos que, no momento, não é possível vislumbrar no espectro político nenhuma força capaz de enfrentar de maneira convincente a ascensão do neofascismo ultraliberal, mesmo no campo ideológico (assim como ocorreu com o neoliberalismo). Neste sentido, a mera resistência aos efeitos das transformações em curso é claramente insuficiente sem um claro projeto social alternativo à dominação capitalista. Portanto, a implantação de uma sociedade neofascista ultraliberal, mesmo sujeita a avanços e retrocessos, parece ser uma forte tendência no capitalismo contemporâneo. Torço para estar errado.
(escrito em 23/06/2019)
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