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vamos começar direito?

Olá :)
Começo essa espécie de blog pra conseguir guardar na nuvem meus pensamentos transcritos, minhas pesquisas cibernéticas, meus descobrimentos musicais e qualquer coisa que eu achar curiosamente interessante. Espero conseguir fazer proveito disto como um exercício de escrita (crítica e criativa) além de trabalhar meu ladinho esquizofrênico conversando comigo mesma.
Sem mais delongas, estreio com uma resenha de Quarto de Despejo, livro que me marcou profundamente por se tratar de uma realidade invisível, expondo de uma forma muito crua a problemática social do Brasil vista por dentro.
Apesar de acadêmico, acredito que valha a pena ser posto no mundo por se tratar de um livro extremamente necessário.Façam um favor a si mesmos e conheçam Carolina Maria de Jesus!
Não sei se alguém irá aparecer por aqui, mas espero que gostem. (?)
Quarto de despejo – diário de uma favelada.
Carolina Maria de Jesus.
Carolina Maria de Jesus, mãe de Vera Eunice, João José e José Carlos, nascida em Sacramento-MG, foi uma mulher negra, periférica e catadora de papel que, por gostar dos livros, começou a produzir escritos e se auto intitulou ‘poeta do lixo’.
‘O Quarto de Despejo’, é uma autobiografia. Trata-se de um diário pessoal onde Carolina escrevia sobre sua dura rotina, suas tristezas, seus lamentos e sobre a realidade dos favelados que, segundo ela, são ‘projetos de gente humana’. O termo Quarto de Despejo, é uma metáfora a qual ela compara o centro urbano desenvolvido com uma “sala de estar com lustres de cristal e almofadas de ‘sitim’” e a favela com um quarto de despejo, local onde se joga o objeto fora de uso, o inútil, o maltrapilho. Objetos cujo fim é o descarte. O quarto de despejo é o lixo.
Ao iniciar o seu relato, ela já expõe sua dificuldade em sustentar sua família e se coloca como escrava do alto custo de vida, posicionamento que nos guia a questionar durante toda a narrativa o que realmente significou a emancipação da escravatura. Como podemos afirmar liberdade num país onde uma parcela considerável da população (de etnia negra em sua maioria) não consegue dignamente se alimentar? Acompanhamos a sua prática diária de malabarismos matemáticos com o dinheiro que recebe catando/revendendo papel pela cidade de São Paulo. Temos a impressão de estarmos diante de um diário de guerra, onde Carolina luta com todas suas forças contra a fome, a sua maior rival. Nessa batalha, a miséria é a sua grande companheira e o descanso é um gozo que não lhe cabe.
Casos de violência doméstica, relacionamentos abusivos, brigas espetaculosas entre vizinhos, pedofilia, mortalidade infantil, vandalismo, prostituição, alcoolismo como fuga da realidade cruel da fome. Acostumada com a maldade humana, Carolina descreve a favela do Canindé como um inferno habitado por seres sem escrúpulos, uma terra sem lei. E as cenas desagradáveis vividas por ela fornecem o seu material literário. Os erros ortográficos presentes no texto confirmam a sua máxima autoralidade.
Percebemos um cenário de descaso por parte do Estado, onde os governantes apareciam somente na época das eleições, praticando atividades filantrópicas em troca de votos para se manter no poder. Um cenário não muito distante do atual também é a ineficiência do Serviço Social, do Juizado de Menores e da Polícia. A Igreja Católica se mantém presente no processo de Catequização e a promessa de recompensas divinas pelo sofrimento em vida carnal era, de certa forma, reconfortante para aqueles moradores.
Algumas referências ao conceito de cordialidade são sutilmente percebidas, ao citar uma relação de cunho emotivo com os governantes em ‘as dificuldades cortam o afeto do povo pelos políticos’ e o homem dominado por impulsos emocionais (pro bem e pro mal) em ‘Na Assembléia dos favelados, justiça se faz a pedradas e linchamentos violentos’ por exemplo. Carolina, apesar de pouco estudo, utilizava a escrita pra acalmar seus impulsos. Sejam eles quais fossem.
Não se deixava abalar pelo assédio frequente dos homens, geralmente objetificando o seu corpo negro feminino. Carolina, como a própria dizia, era feita de aço. Porém deitou-se com alguns e mesmo nas piores condições, pareceu ceder ao amor quando docemente escreveu que ‘a saudade é amostra do afeto’.
Em resumo, a obra expõe a sua dura realidade: A tristeza é Senhora e o desejo por comida e dignidade está presente em todos os momentos. Paciência era a única coisa que conseguia armazenar e amor - no seu sentido mais puro – era o legado familiar a transmitir.
A autora, em seu enfrentamento diário no limite máximo da sobrevivência humana, nos ensina -acima de tudo- a potência de nossas fantasias e nossos sonhos. Se dizia mais feliz quando admirava o céu estrelado ou residia em seus castelos imaginários pois a favela era uma realidade muito dura a suportar. Durante surtos de desespero, cogitava o suicídio. A privação de direitos fundamentais a enlouquecia, dizia ela: ‘Quem suporta a vida até a morte deve ser considerado herói.’
Ao contrário do que previa sua trajetória miserável, ela resistiu a fome e se tornou uma das mais relevantes escritoras negras do país. Conseguiu expor as veias abertas do quarto de despejo urbano-brasileiro e levou a sua história a mais de 200 países, onde seu livro acabou sendo publicado.
Carolina Maria de Jesus foi uma mulher preta, mãe solteira, periférica, catadora de papel e ‘poeta do lixo’. Faleceu aos 63 anos por insuficiência respiratória. Suportou a vida até a morte e se tornou heroína. Com o poder de suas palavras, se tornou infinita e imortal.
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