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O pós-funeral fora um inferno, todos os soluços e condolências imbecis cansaram a mente já sobrecarregada de Angel, e ela já sabia onde exatamente o silêncio era tão intenso, tão denso, que era o local perfeito para reorganizar os pensamentos.
Sentada em uma poltrona de uma das inúmeras bibliotecas do instituto — a mais distante do prédio principal, e consequentemente a menos frequentada — ela tomou os documentos de uma das matérias do semestre apenas para engressar num fluxo de reflexões. Ela cometera um crime grave nas últimas setenta e duas horas, ocultara um corpo. E quem seria o culpado? Algum de seus irmãos? Não, seria desleal duvidar da inocência deles, e mesmo que obviamente todos tivessem um motivo para ser o assassino, ela os conhecia o suficiente para saber que ninguém teria coragem. E de que importava? Volkov estava morto, a sé da decapolis estava vaga... e quem tomaria o posto? Bom, era óbvio que a primeira opção seria Vox. Ah, Alexei... pela primeira vez Angel não sentia medo de sequer pensar no rapaz, medo de que Volkov assombrasse seus pensamentos e os descobrisse. Ela então percebeu que não havia mais aquele abismo entre os dois, e um sorriso bobo tomou sua feição. Em seguida, as dúvidas, e seu semblante voltou a se fechar. Alexei... Alexei... Alexei...
Como se os pensamentos que martelavam aquele nome fossem um rito, ele fora invocado, e o rosto que sua mente desenhou pelos últimos minutos se materializou na porta, como pôde ver de relance. Ela não conseguiu falar, e rezou para que ele o fizesse.
A moça ouviu tudo: as palavras, a voz, a entonação e os sentimentos ali escondidos. Era como se ele tivesse lido sua mente. Sim, Volkov não era mais um problema, e ter essa liberdade para estar com quem quisesse deveria alegrá-la, mas ela se apavorou:
— Você sempre foi o mais corajoso entre nós dois. Hoje eu agradeço por isso. — Brincou, se ajeitando na poltrona em busca de conforto. — É tão estranho ter o poder de escolha depois de tantos anos!
Qualquer um interpretaria essa afirmação como algum tipo de piada, mas ela falava sério. E não tinha medo de que Alexei não soubesse interpretá-la, pois sabia que, no fundo, ele iria:
— Acha que ainda sente o mesmo, depois de todo esse tempo? Porque, se "ele" mudou algo em você, em relação a nós... Faria mais sentido... — Ela não costumava se engasgar com as próprias palavras, a não ser que fosse Alexei sentado logo a sua frente. Sua respiração falhou, sentiu até mesmo o coração errar uma batida, tudo porque temia a resposta.
with @carpedying
Os corredores do instituto estavam vazios, por ora. O murmúrio abafado dos colegas que se retiravam, os sussurros de promessas que não seriam cumpridas, e o som distante de saltos tocando o mármore já começavam a se diluir no fundo de sua mente. Ele já tinha falado com Celestine, com Grigori, com Sergei. Até mesmo com Oraculo, em uma troca feroz, que mais parecia um duelo. Mas ela, não. Angel. Ele a evitava com a naturalidade de quem sabia exatamente onde não pisar — como se o nome dela estivesse gravado num campo minado. Era engraçado, pensou. Ele, que raramente se sentia intimidado por qualquer mente, não sabia exatamente como lidar com aquela.
A porta da antiga biblioteca estava entreaberta. E lá estava ela. Sentada, talvez esperasse por alguém. Talvez soubesse que ele viria. Com ela, nunca dava para saber. Ele bateu de leve na madeira da porta, o som quase cerimonioso. "Não vim incomodar." A voz saiu baixa, cuidadosa. "Ou talvez tenha vindo, mas… se for o caso, você pode me mandar embora. Vai ser compreensível." Ele se encostou no batente da porta, não avançou. "Queria saber como você está." Fez uma pausa curta. "Seu discurso…'' Ele desviou o olhar como se fosse tocado por algo quente demais. "Acho que… evitei você por tempo demais hoje.'' Um riso seco escapou, sem humor.
"Evito você há anos, se for honesto." Por um segundo, ele se permitiu encará-la. "Porque você sabe sobre mim de verdade, e isso é insuportável." Mais uma pausa. "Não vim falar sobre Volkov. Já falamos demais dele, queria perguntar…" As palavras pesavam, como se se recusassem a sair. "…como nós estamos." Ele se aproximou, finalmente cruzando a sala, mas manteve distância segura. "Você e eu fomos…" Buscou uma palavra, mas não encontrou. "…alguma coisa." Baixou o olhar, coçando a nuca, incômodo. "E agora estamos aqui. Sem ele…." Ele se permitiu sentar na poltrona oposta à dela, exausto. "Talvez seja só o cansaço falando." Um leve sorriso, irônico. "Ou talvez seja a única conversa que eu devia ter tido hoje." Esperou. E pela primeira vez em muito tempo, não tentou prever o que ela diria.
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𝑷𝑶𝑽 𝑨́𝒈𝒂𝒕𝒂 ⸻ Funeral do professor Volkov. Instituto Valentinov, capela principal.
Ágata passou as últimas horas tentando não parecer afetada, para si e para seus colegas. Dormiu, comeu e leu normalmente, e ensaiou durante a noite, quando retornava para seu dormitório em meio a névoa da madrugada com as mãos e os sapatos sujos de terra, a expressão que faria quando lhe contassem sobre a tragédia que havia acometido o instituto. Ela sabia que o Volkov seria encontrado, e frizou isso para que seus irmãos mais frágeis se preparassem para tal. "Não devemos nos preocupar se encontrarão o corpo", disse a eles sob o céu negro da noite no jardim, enquanto alguém cavava a cova mais rasa e porca que já vira, "e sim em não lhes dar margem para a mínima desconfiança".
Assim foi feito, mesmo que o desespero não permitisse o raciocínio impecável do qual sempre se orgulhava, foi feito.
Agora, seu vestido preto e seu o casaco de pele mais escuro de seu armário cobriam um coração apreensivo. A capela estava fria, e havia muitas pessoas. Reconheceu imediatamente as feições de seus irmãos em segredo, aprendera a diferenciá-los em multidões. Desprezava alguns, amava outros, morreria por todos.
Esse pensamento dolorosamente verdadeiro ocupou sua mente até seu nome ser anunciado. O discurso que havia preparado era incapaz de ser solidário a Volkov, o homem. Mas ela sabia ressaltar a única qualidade que julgava ter: a mente.
Em frente ao púlpito, sentiu os olhos cravados em si. "Como Vox suporta isso?", pensou.
“Sertillanges dizia que ‘O intelectual é um consagrado’, pois como padre, sabia que a inteligência é uma benção sobrenatural, e que devemos honrá-la com o trabalho e ao exercer do intelecto. Eu procurei inconscientemente durante todos os meus dias nesta terra por uma mente para tomar como ideal, e fora daqui, nunca havia encontrado. Mas foi dentro de uma sala de aula que pude presenciar a mais pura forma da razão. Gavriil Yurevich Volkov era seu nome, um professor de dons quase místicos para tomar nossa atenção e nos fazer amar a única característica que nos difere dos outros animais. Seria blasfêmia se seu epitáfio ou qualquer réquiem em sua homenagem não exaltasse aquilo que tinha de mais poderoso, e caso a genialidade volte a florescer novamente dentro deste instituto, afirmo, meus caros, que há muito já teremos nos juntado ao nosso professor, pois Deus não presenteia a humanidade com pessoas como Volkov com frequência. Façamos então, com que sua memória viva até que sua mente incansável volte a esta terra em carne e osso novamente. Peço a todos que se lembrem do homem que jaz neste caixão como nada menos do que um intelecto singular e único, e que o tomem como modelo na busca pela verdade. Esta é a única que nunca morrerá. Obrigada.
Deixou o altar com o peito um pouco mais leve pela sinceridade com a qual discursara, pois era aquela a sua verdade, e era ela que defenderia com todo o fervor se seu sangue.
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𝒗𝒂𝒍𝒆𝒏𝒕𝒊𝒏𝒐𝒗'𝒔 𝒈𝒂𝒎𝒃𝒊𝒕.
A precisão dos passos e o silêncio cortante no olhar denunciam que 𝐴𝑛𝑔𝑒𝑙 𝑀𝑎𝑟𝑖𝑎 𝐶𝑜𝑛𝑐𝑒𝑝𝑐𝑖𝑜́𝑛 não está no Instituto Valentinov por acaso. Sendo 𝑖𝑛𝑡𝑒𝑙𝑖𝑔𝑒𝑛𝑡𝑒 e 𝑓𝑟𝑖𝑎, foi escolhido — ou amaldiçoado — como um dos observados de Volkov, selado entre sombras e expectativas antigas. Aos 𝑣𝑖𝑛𝑡𝑒 𝑒 𝑑𝑜𝑖𝑠 𝑎𝑛𝑜𝑠, cursa 𝑓𝑖𝑙𝑜𝑠𝑜𝑓𝑖𝑎 𝑝𝑜𝑙𝜄́𝑡𝑖𝑐𝑎, movendo-se entre os corredores como parte do cenário. Filha de uma origem 𝑑𝑒 𝑒𝑙𝑖𝑡𝑒, sua reputação circula com mais força que seu nome e dizem que sua semelhança com 𝐽𝑒𝑛𝑛𝑎 𝑂𝑟𝑡𝑒𝑔𝑎 já virou lenda entre os estudantes do dormitório. Seus amigos mais íntimos a chamam de 𝐴́𝑔𝑎𝑡𝑎, você pode encontra-la em alguma aula de 𝑒𝑠𝑔𝑟𝑖𝑚𝑎 ou nos 𝑐𝑙𝑢𝑏𝑒𝑠 𝑑𝑒 𝑥𝑎𝑑𝑟𝑒𝑧 𝑒 𝑑𝑒𝑏𝑎𝑡𝑒.
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