Tumgik
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Lágrimas na Chuva
Léo? Po, eaí cara! Que bom te ver. Senta aí. Vai até o terminal? Massa. Eu também. Ta vazio hoje, né? Deve ser o horário. Acho que esse é o último do dia. 
(...)
Podem ser poucas pessoas, mas tem uns tipos interessantes. Dá uma olhada no cara ali na frente. Aquele barbudo de camisa xadrez. Se liga naqueles fones de ouvido. Não basta serem maiores que a cabeça do cara, eles têm que ser laranjas. Aquilo na nuca dele é uma tatuagem? “Spice Girls”. Caralho! Essa deve ter uma história boa por trás. Será que é isso que ele tá ouvindo naqueles fones gigantes?
E aquela moça ali. A de cabelo curto, vermelho, tá vendo? Parece que tá lendo algo. Não consigo ver a capa. Você consegue? “Crítica da razão pura”? Porra, ela tá lendo Kant em um ônibus à meia noite? Esses universitários são fodas. E aquele senhor sentado do lado dela, tá fazendo o que? Parece que tá trocando mensagens. Ou jogando candy crush, sei lá, não consigo enxergar a tela. Olha a camiseta dele. Tá toda suja. De cimento, eu acho? Deve ser pedreiro. Esse é um trabalho que deve ser foda pra caralho. Imagina que merda, passar o dia inteiro levantando muro e voltar pra casa de busão a essa hora. Especialmente considerando a merreca que esses caras costumam ganhar.
Enfim, se liga na senhora ali atrás. Essa de cabelo preso, com as dez mil sacolas. Porra, como ela planeja carregar isso depois que descer do ônibus? E pior, como ela conseguiu carregar aqui pra dentro em primeiro lugar? O cobrador deve ter ajudado ela. Você acredita no ânimo desse cara? É meia noite, ele tá trabalhando e ainda assim tá com um sorriso na cara, brincando com aquela pulseirinha dele e conversando com a outra senhora ali na frente. A atitude desse cara é louvável. 
(...)
Quem mais? Vejamos… Ah, ali. A menina perto da porta. Bonitinha, não é? Cabelo curto, camiseta de Star Wars… E vou confessar uma coisa pra ti. Costumo estranhar gente de óculos, mas nela, ficaram bem bonitos. Como assim falar com ela? Não vou falar com ela, cara. Para de palhaçada. Além do mais, olha aí. Ela tá descendo. Deixa pra lá. A chuva tá começando a engrossar. Fecha a janela aí, cara.
É impressão, ou o sujeito de terno ali tá assistindo dragon ball no celular? Pois é, saiu uma nova temporada, não foi? Porra, depois de tantos anos? Tão realmente abusando da nostalgia dos fãs. Eu devia ter uns dez anos quando isso passava na TV. E aliás, olha a maletinha do cara. Aquilo é um case de saxofone, não é? Que massa. Sempre quis aprender a tocar algum instrumento. Será que ele é profissional? Com essa roupa, devia estar tocando em um casamento ou sei lá. Será que isso paga bem? Sério, você acha? Bom, fazer o que.
(...)
Nossa. Olha aquele cara ali, tá se molhando todo. O guri todo de preto ali no canto. Não, cara, ali. O cabeludo. Isso, ele. Por que ele não fecha a janela? Bom, vai que ele gosta de chuva. Ou só não consegue levantar pra fechar a janela. Olha a situação do sujeito. Tá com a cabeça enfiada no vidro, sem se mexer desde que eu entrei aqui. Sem falar no tamanho das olheiras dele, puta merda. Esse cara nunca deve ter dormido na vida. E aliás, é impressão minha ou esse busão tá indo meio rápido demais? Porra, tá caindo o mundo lá fora. Isso não é meio perigoso? Covarde é a mãe, cara. Eu só prezo minha vida.
Falar nisso, sente a atitude do motorista. Aquele cara é o exato oposto do cobrador. Acho que se eu estivesse na situação dele, também estaria puto. Porra, isso já não é mais hora de estar trabalhando. Mas fazer o que. Se ele não trabalhar, a galera que passou o dia inteiro trabalhando não volta pra casa. Cidades grandes são uma merda. Só espero que o cara não esteja com sono.
Se liga. Parece que o cabeludo fechou os olhos. Porra, dá pra ver o alívio no rosto dele. Só vai ser uma merda quando ele tiver que acordar e sair dali. Parece até que ele tá sorrindo. Qual você acha que é a história dele? Parece que ele tem uma tattoo no... Opa, calma aí. Que que é aquilo no meio da pista?
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Dez Minutos
Eles nunca são iguais, entende? Isso, a insônia me ensinou. Falo daqueles últimos dez minutos que separam a madrugada do amanhecer. Nesses dez minutos, no céu ainda escuro, surge uma pequena mancha que cobre o horizonte, como a primeira pincelada de um artista sobre a tela branca de um novo dia. E a mancha nunca é igual; varia em tamanho, formato, cor… E é nessa primeira mancha da alvorada que se esconde, em toda a sua inocência, tudo aquilo que o amanhã tem a dizer.
Muita coisa pode acontecer nesses dez minutos. Neles, eu já me apaixonei. Já desisti e já achei forças para continuar. Já deixei de lado, mesmo que por um momento, todos os meus pecados. E é claro, já pequei, desafiando os anjos a tentarem corrigir-me. Esses dez minutos são minha razão de viver, bem como um dia serão minha sepultura. Dito isso, vamos ao real propósito desse texto.
Nunca me tomei pelo tipo de sujeito que um dia escreveria sobre uma paixão. Mas hoje, não tenho muita escolha. Então, com o mesmo coração que escrevo sobre a vida, a morte, o amor e minha cidade, dedico esse texto a ela. Naquela tarde, olhei em seus olhos pela primeira vez, e encontrei neles aqueles dez minutos. Claros, calmos e profundos. Revelavam pouco, mas deixavam claro que escondiam em si o infinito. Seus olhos eram a calma antes da tempestade. O prelúdio da alvorada. Duas janelas fechadas que despertaram em mim uma curiosidade incontrolável.
E com essa ode, tento eternizar sua beleza. Sua sinceridade. E a distante e intensa curiosidade que seus olhos queimaram em meu peito. Nessa madrugada, danço sozinho à valsa de um louco apaixonado. Mas como eu disse, muito pode acontecer naqueles dez minutos. Quem sabe na primeira pincelada de amanhã, tu não dances comigo? Por hoje, isso é tudo.
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Junkie
Ele andava meio esquisito da cabeça. Queria estar longe de todo mundo, mas não queria estar sozinho. Não aguentava mais gente dissimulada, gente que não se permite sentir, gente que mente, gente que finge, gente que não ouve, não fala, não pensa, não age, não faz porra nenhuma que os faça merecer a nomenclatura de “gente”. Por outro lado, não aguentava mais a si mesmo. Considerava-se arrogante, enjoado e covarde. Já tinha pensado em se matar, mas sabia que não teria coragem. Não só isso, a verdade é que não queria morrer. Amava viver, mas odiava a apatia que consumia sua vida. Na maioria do tempo, conseguia fingir bem que sabia lidar com a própria cabeça, mas era um puta de um esforço. O pobre desgraçado era um antro infindável de paradoxos e caprichos que muitas vezes, nem ele mesmo entendia. Sabia que nunca beberia o suficiente, mas por muitos anos, isso não o impediu de tentar. Estava sempre apaixonado. Era sempre platônico. Tinha dois amigos muito próximos com quem tentava compartilhar o que se passava em sua cabeça, mas nenhum dos dois entendia. Não era culpa deles. Verdade seja dita, ele também não sabia explicar. Com as outras pessoas, nunca se dava o trabalho de ser sincero. Sabia que estaria gastando saliva e que seria facilmente taxado de louco. Nunca aprendeu a concluir as próprias ideias: quase sempre perdia-se em devaneios. Quando perdia a fé em suas ideias, tinha dó de descartá-las. Deixava-as ali apodrecendo, com a certeza que nunca tocaria nelas novamente. Quando ainda era bem jovem, desaprendeu a chorar. Frequentemente tentava forçar-se, mas não conseguia. Como consequência, expressava suas dores insípidas em pequenos parágrafos que ele próprio odiava. Insistia neles mesmo assim, porque mesmo que a contragosto, acreditava que um dia seria capaz de escrever algo digno de leitura. Sentia vergonha da própria ingenuidade. Paradoxalmente, também sentia orgulho. Sonhava com o dia que seria que capaz de amar a todos, e que todos seriam capazes de amá-lo. Sabia muito bem que era uma ideia utópica, mas cegava-se com o próprio otimismo forçado. Aprendeu cedo a rir de si mesmo. Tinha um senso de humor que muitos considerariam mórbido. Seria capaz de gargalhar em um funeral se soubesse que ninguém ouviria. Em suma, era um tremendo fracassado.
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Olhos de Cera
Miguel fechou a porta atrás de si. Deixou a mala encostada ali mesmo e largou-se no sofá. Fazia tempo que não sentia-se deslocado na própria casa. Nasceu paulistano, mas vivia agora em um pequeno apartamento em Curitiba. Cinco dias atrás, recebeu a notícia que seu tio estava hospitalizado. Passaram bastante tempo juntos quando Miguel era garoto. Hoje, já não eram tão próximos. Ainda assim, pediu licença do trabalho e correu de volta para sua cidade natal para ver o tio. No segundo dia, morreu. No terceiro foi enterrado e no quarto, todos já corriam de volta para suas vidas. Afinal, que se há de fazer?
Durante todo esse processo, Miguel não derramou uma lágrima. Nem tinha certeza se sentira-se triste. Mas sentia-se diferente de uma forma que não saberia definir. Levantou-se do sofá e desfez a mala. Tomou um banho e enfiou-se em roupas mais confortáveis. Amanhã, ainda não teria que voltar ao trabalho. A perspectiva do vazio à sua frente assustou-o. Pegou um livro para ler, na intenção de distrair a mente. Não tinha lido mais de dez páginas quando acabou a luz. “Puta merda” deixou escapar, rompendo o silêncio que inundava o apartamento.
De toda forma, não conseguiu tirar muito das páginas que leu. Não conseguia parar de pensar na expressão facial do tio, quando acordou de seu primeiro infarto. Para que o leitor entenda, o tio de Miguel teve dois infartos: Sobreviveu ao primeiro e ficou internado. Dois dias depois, o segundo levou-o. Quando Miguel chegou ao hospital, ele ainda dormia. Algumas horas depois, acordou e viu-se cercado de sua família. Tinha nos lábios um sorriso, e nos olhos, algo que Miguel não foi capaz de interpretar. Seria cansaço? Seria o torpor da morfina? Fosse o que fosse, deixou-o muito incomodado.
Após alguns minutos, Miguel não aguentava mais ficar encarando o nada. Pegou uma vela, acendeu-a e largou-a sobre a mesa da cozinha. Sentou-se ao lado dela e insistiu no livro. Mais umas dez páginas, talvez vinte dessa vez, e acabou por distrair-se com a chama da vela. Era um tanto inconstante. Em alguns momentos, parecia quase estática. Em outros, dançava como se quisesse fugir do pavio. Olhou em volta e contemplou o apartamento escuro, com a exceção da pequena chama ao seu lado. Sem saber ao certo por quê, abriu uma janela e apoiou a vela no parapeito. Sentou-se de frente para a janela e ficou assistindo a chama se contorcendo e lutando contra o vento.
Uma coisa era certa sobre a morte de seu tio: Morrera em paz. Já estava velho, e parecia pronto. Além disso, a expressão que deixou para trás em seu corpo era um tanto pacífica. Como a de quem aceita docemente o toque do próprio leito após um longo dia de trabalho. Miguel não sabia se acreditava ou não em vida após a morte, mas sentia que seu tio estava em um lugar melhor. Ainda assim, sentia-se culpado. Sentia que ficara lhe devendo algumas lágrimas em seu funeral.
Voltou-se novamente ao livro. Já tinha quase certeza que não conseguiria ler nada naquela noite, mas era um sujeito insistente. Mais algumas páginas… Quem se importa quantas? A questão é que veio uma rajada de vento um pouco mais forte, e a chama acabou desistindo. A vela já estava quase no fim de qualquer jeito, mas talvez ainda durasse uns bons minutos. Olhou para o pequeno toco de vela, que agora mal podia enxergar, e lembrou-se mais uma vez dos olhos do tio. Finalmente entendeu-os. Eram olhos frustrados. Frustrados por estarem abertos mais uma vez. E foi naquela noite, sozinho no breu de seu apartamento, que a dor decidiu alcançá-lo. Pagou as lágrimas que devia. Atrasado, mas com os devidos juros.
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T.O.M.
Eles dizem que um gato tem nove vidas. Nove? Sete? Sei lá, pouco importa. Sabemos que não é verdade. Mas imaginem como deve ser uma merda. Você vive até seus oitenta anos, assiste morrerem todos que você ama, seus pais, seus irmãos, seus amigos… Finalmente, está no leito da morte. Encontra uma certa paz. Seus olhos estão cansados, seus ossos já estão caindo aos pedaços, seus rins estão falhando, seu coração arranha as paredes do seu peito ao bater e seus pulmões se contraem e se soltam devagar como um fole. Suas pálpebras pesam como duas bigornas, e toda vez que caem é mais difícil levantá-las. Uma última vez, elas caem. Os pulmões murcham. O coração para. Toda a dor vai embora do seu corpo naquele último suspiro e te corre um último pensamento: “Certo. Agora só faltam mais oito”.
Mais oitenta anos. As pálpebras caem, os pulmões esvaziam, o coração para. “Mais sete”. Cinquenta e três anos dessa vez. Um caminhão te atropelou. Você se aterroriza. Sente o gosto do seu próprio sangue e de suas tripas que agora te escorrem pela boca. Você não enxerga bem porque um dos seus olhos foi amassado para dentro do seu crânio. Um dos seus braços foi parar do outro lado da avenida. Os ossos em suas pernas se fragmentaram tanto que se parecem com pó. Sua uma pálpebra que ainda está no rosto cai. Os pulmões inundados de sangue murcham. O coração, perfurado por uma costela quebrada, para. “Mais seis”. Sua nova mãe te aborta. Seu corpo, que nem ganhou o aspecto de corpo ainda, é aspirado para fora de sua casa em mil pedaços. “Mais cinco”. Você tem câncer de pele aos quarenta e um anos. A quimioterapia tira seus cabelos, seu apetite, seu sono, sua vontade de lutar e enfim sua vida. “Mais quatro”. Você é baleado em um assalto. A bala atravessa sua cabeça de um lado ao outro. Você morre rápido demais para sentir dor. “Mais três”. Você chega aos oitenta de novo. Todos que você amava morrem ao seu redor e seu corpo ainda funciona perfeitamente. Você abre a gaveta do seu criado mudo. Aponta seu velho amigo, nunca antes usado, à sua própria cabeça. “Mais duas”. Uma bela noite, já nos seus sessenta anos, você vai dormir e nunca acorda. “Mais uma”.
Você acorda. São duas horas da tarde de um domingo de março. Você tem dezoito anos. Parecem oitenta. Percebe que sua vida não durou quase nada, mas você carrega nos seus ombros o peso do universo inteiro. Você se pergunta de onde vem todo esse peso. Acaba ignorando e decidindo que é apenas uma frescura sua. Afinal, você é só um moleque de dezoito anos, não é?
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Compacto
Lamento afastar-me da real matéria do meu conto, mas existe um caso que gostaria de contar a vocês. O que narrarei aqui ocorreu uns dois anos antes de meu primeiro encontro com Rogério, Tadeu e Elisa. Ou seja, três depois do acidente de meus pais. Estava saindo da estação Santa Cecília, a caminho de casa, quando deparei-me com uma garota que fez o ensino médio comigo. Catarina era seu nome.
- Alexandre? - disse, ao reconhecer-me. - Quanto tempo! Como vai?
- Eu? É… tive altos e baixos. Depois que nos formamos, eu fui aceito na universidade de Bologna. Como você deve se lembrar, eu queria estudar música. Acabei não indo, já que uns dois meses antes, meus pais morreram em um acidente de avião. Eu nunca vou poder enterrá-los, já que não encontraram os corpos. Mas para ser sincero, prefiro nem vê-los, do jeito que devem ter ficado. De toda forma, acabei herdando a empresa deles, que depois de muita bagunça e burocracia que me sugou o pouco que sobrava da minha vontade de viver, consegui vender. A boa notícia é que virei milionário da noite para o dia. A má é que eu quero que o dinheiro se foda, já que eu passei os últimos três anos em depressão profunda, saindo de casa só quando necessário e dormindo umas quatro horas por noite. Bom… Isso se eu tiver a sorte de conseguir dormir. Uma vez ou outra, tento beber até desmaiar, mas mesmo assim, não consigo passar de quatro horas. Para ser sincero, estou bêbado agora. Planejava terminar o trabalho quando chegasse em casa. Vejamos… Que mais? Ah, sim: Ano passado, tentei comprar uma passagem e viajar pelo mundo para ver se conseguia encontrar alguma coisa que me desse um novo objetivo, ou ao menos um pouco de perspectiva, mas acabei tendo um ataque de pânico no aeroporto, e após umas duas horas trancado no banheiro, decidi ir para casa. Você esperaria que após todo esse tempo, eu já tivesse me recuperado, mas parece que não. Não sei se um dia vou me recuperar. A boa notícia é que não preciso, já que além dos meus falecidos pais, ninguém dá a mínima se eu vou ou fico. É meio libertador, na verdade. Não ter nenhuma obrigação ou motivo para se levantar. É meio solitário, mas fora isso, nada a reclamar. E...é. Acho que é isso aí. E você, como vai?
Essa foi a resposta que eu arquitetei em minha mente. Na verdade, quase chegou a sair-me da boca. Tanto tempo sem ter uma conversa de verdade com alguém, você começa a ficar descuidado. Felizmente, percebi meu erro antes de cometê-lo.
- Catarina! Tudo ótimo. E você, como tem passado? - respondi.
- Vou bem! - disse ela - Escuta, estou com um pouco de pressa agora. Me liga um dia desses, tá? Vamos botar a conversa em dia.
- Pode deixar. Se cuida!
Claro que ambos sabíamos que eu não tinha o número dela. São engraçados, esses pequenos rituais que nos obrigamos a fazer ao encontrar um conhecido. Nós fazemos perguntas que teriam o poder de revelar um pouco do universo que existe dentro daquela outra pessoa, porque sabemos que ela não responderá. E ela não responde, porque sabe que seria inconveniente. É “inconveniente” que as outras pessoas existam. É “inconveniente” que exista todo um universo dentro de cada um daqueles pontinhos que passam por você na rua. É muito mais fácil que todos sigamos certas regras e padrões de conversação para preencher o silêncio de forma inofensiva, para que sejam criados pequenos e rápidos estereótipos de cada pessoa. Assim, podemos lembrar desses pequenos estereótipos e continuar interagindo de forma simples e agradável.
Praticidade é tudo quando se vive em uma metrópole, não é? Tudo tem que ser breve, tudo tem que ser rápido. Pessoas não precisam ser tão complicadas: Vamos compactá-las. É realmente utópico, não acha? Compactar as pessoas. Destruir completamente o fator humano e substituí-lo por… Pelo quê, exatamente? Mentiras. Mentiras rápidas e fáceis. Eu sei que estou mentindo, você sabe que eu estou mentindo, mas ambos estamos felizes. Porque a verdade é muito complicada.
Hoje, já fazem treze anos que tive esse breve encontro com Catarina. Não a vi desde então. Não sei o que ela estava fazendo da vida nessa época, e não sei o que está fazendo agora. Não sei nem se está viva. Para ser sincero, nem ao menos lembro seu sobrenome. Não existe nenhuma conexão entre essa história e o restante do conto. É só… Estou arrependido. Não só por esse caso, mas por várias outras pessoas que nunca realmente conheci. Que não me conheceram. E com essas breves páginas, busco uma redenção. Quem sabe, elas não cheguem aos olhos de Catarina? Se chegarem, quem sabe não deixemos de ser estranhos? É uma tentativa vaga e estúpida, claro. E mesmo que der certo, ainda existirão estranhos demais nesse mundo. De um jeito ou de outro, não aguento mais olhar para universos inteiros e enxergar não mais que uma ou duas frases.
Dito isso, fora de qualquer compactação imposta por qualquer convenção social, diga-me, leitor: Como vai?
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Esculturas de Vidro
O dr. Souza ainda tinha os olhos muito bem abertos quando ouviu tocar seu despertador. Cinco horas da manhã. Permaneceu sem reação, olhando para o teto por mais uns trinta segundos. Em um reflexo quase ritualístico, preparou-se mentalmente para a repreensão da sra. Souza. “Desliga isso logo, Gil” ela diria “Me deixa dormir em paz”. Mas o fato é que a sra. Souza não era mais sra. Souza há pouco mais de um mês. Voltara a ser srta. Giovanna Russo. O doutor desligou o despertador e levantou-se da cama.
Foi até o banheiro e lavou o rosto. As olheiras já começavam a incomodá-lo. Na verdade, sentia-se incomodado com toda aquela situação. Não estava habituado à insônia. Não estava habituado a estar sozinho. E mais importante, não estava habituado à falta de controle. Conforme andava até a cozinha, foi visitado por algumas memórias. Memórias de sua esposa acordando ao seu lado, dizendo que amava-o. Memórias dos dois fazendo café da manhã juntos, decidindo quem buscaria Carol na escola mais tarde. A menina ficou sob custódia da srta. Russo, e a srta. Russo mudou-se de volta para a Itália. E é claro, inacabáveis memórias dos dois discutindo. Pareciam todas tão… Distantes. Como se não fossem suas. Como se viessem de algum filme que assistiu anos atrás. O dr. Souza era incapaz de aceitar que era o mesmo homem daquelas memórias.
Chegando à cozinha, pegou sua velha frigideira e derreteu um pouco de manteiga, na intenção de fazer alguns pães na chapa. O gesto não era novo, mas sentiu como se tocasse a frigideira pela primeira vez. O fato é que desde o divórcio, nunca derramou uma lágrima. Sequer sentiu-se triste. Em vez disso, sentia-se longe. Longe de tudo e de todos. Longe de si mesmo. Como se estivesse trancado em uma sala, assistindo à própria vida em uma televisão. Seus braços e pernas se mexiam, as palavras saíam de sua boca e as expressões faciais mudavam conforme o necessário. Até pareciam gestos do dr. Souza, mas não o eram. Ele apenas assistia. O corpo agia por reflexo, acostumado a décadas da mesma invariável rotina.
Agora imagine o seguinte, leitor: Você acorda um dia e percebe que nenhuma das suas memórias era sua. São todas imagens que estão ali somente por conveniência do destino, mas nenhuma delas é verdadeira. E todas as suas decisões, ideias e idiossincrasias foram extrapoladas da crença incondicional de que você era a pessoa daquelas imagens. Mas um belo dia, você descobre que não é. Cada vez mais, era esse o sentimento que engolia o dr. Souza. Tornara-se um espectador sem identidade, sem nada além das imagens da vida de outra pessoa em suas mãos.
E o que o dr. Souza sabia sobre essa pessoa era que dentro de duas horas e vinte minutos, ela deveria operar um paciente no hospital São Camilo. Consequentemente, ela tomaria uma ducha, vestiria um par de calças sociais pretas, meias também pretas, uma camisa azul clara com listras brancas, um sapato e seu jaleco, entraria em seu carro e estaria no hospital quarenta minutos adiantado. E instintivamente, foi isso que o dr. Souza começou a fazer. Tomou sua ducha, vestiu as roupas e foi até a garagem. Ligou o carro, abriu o portão e engatou a ré.
E por mais distante que tudo parecesse, por mais frágil que fosse sua rotina, a paz de Gilberto Souza encontrava-se no fato que ainda podia controlar o lado de fora. Ainda era capaz de ir ao hospital, cumprimentar seus colegas, ministrar suas consultas e suas aulas e operar seus pacientes. Claro, teria de fazê-lo com algumas olheiras a mais, mas ainda parecia o mesmo. E por algum tempo, isso pareceu-lhe suficiente. Essa foi a manhã em que isso mudou.
Quando o dr. Souza chegou à rua do hospital, o relógio no visor de seu carro marcava sete horas e vinte e seis minutos. A cirurgia estava marcada às oito horas, deixando-o com apenas trinta e quatro minutos de sobra. Isso descontando o tempo que levaria para entrar no hospital e estacionar. Foi quando tudo veio à tona: A insônia, a casa vazia, o fato que com sorte, veria sua filha umas duas ou três vezes por ano, e a repentina realização que nada estava nem nunca estivera sob o seu controle. Ele era apenas mais uma peça no tabuleiro, priva de vontade ou identidade, inteiramente à mercê do rolar dos dados.
Naquela manhã, a remoção do apêndice do sr. Ernesto Braga foi remarcada. Uma semana e meia depois, a operação foi feita pelo dr. Carlos Teodoro Filho. O dr. Souza não foi visto no hospital naquela manhã ou em nenhuma das seguintes. Seu carro destrancado estava estacionado a duas quadras de distância do hospital. Nele, estavam seu celular, sua carteira, suas chaves e seu jaleco. Desse dia em diante, ninguém nunca mais viu ou ouviu falar do doutor Gilberto Viana de Souza.
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Coelhos não choram
Como ela é? Porra, essa é uma pergunta difícil. Tem certas coisas que não dá pra descrever. Formam uma imagem tão detalhada, tão específica na nossa cabeça, que talvez nem tenham inventado ainda as palavras para pintar esse quadro. De qualquer forma, vamos tentar. Vejamos aqui o que consigo te dizer.
Ela não é nada como suas antecessoras. Tem algo na sua forma de sorrir, de cantar, de falar; especialmente, de ficar em silêncio, que me lembra… De mim? Não, não de mim. Não é por aí. Ela pode até ser um pouco como eu, mas há ainda algo mais. Uma certa leveza no seu jeito de ser. Ela nunca aprendeu a ser assim: simplesmente é. Por isso, não é como eu. Por isso também, cativou-me.
Ao mesmo tempo, cada dia mais, parece-me ser feita em seus menores detalhes como uma crítica a tudo aquilo que eu sou. Sua voz, seus olhos, suas mãos, suas pernas, cada um dos fios do seu cabelo; são todos versos de um irrefutável poema sobre todas as minhas falhas. E por falar em seus olhos… Puta que pariu, seus olhos. Que dizer deles? Eu derrubaria um império se ela pedisse fitando-me com aqueles olhos. “Olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, diria Machado. Mas esses olhos não dissimulam. Longe disso. São olhos sinceros, vivos como nenhum outro par. Olhos que engoliriam o mundo.
Agora, eu poderia muito bem perder o nosso tempo fazendo como os poetas, inventando um milhão de eufemismos para seus seios ou suas coxas, mas não vou. Há mais que isso nela. E é disso que eu gostaria de falar: Ela não é só musa; é também artista. E há ainda de criar coisas belíssimas. Coisas que eu gostaria muito de ver. Até hoje, não vi obra mais completa e verdadeira que ela própria. Seria um tanto irônico se fosse ela a mudar isso. Espero esse dia com um sorriso no rosto, trabalhando como posso para criar algo belo também.
E agora, chegamos ao que é, para mim, sua qualidade mais importante: Ela ama sentir e ama criar. Gosto de acreditar que tanto quanto eu. Imagine a empatia de um artista por outro, entende? “Artista”. Sei lá se sou digno da palavra. Usarei-a por falta de uma melhor. Enfim, não divaguemos. Como posso concluir essa pequena ode? Eis aí:
Não acho que ela saiba desses meus sentimentos. Tampouco que entenda a beleza e o potencial que leva consigo. Pode ser que entenda, sei lá. Acho que de algum jeito, isso tornou-a ainda mais interessante. Eu poderia continuar aqui, enchendo mais sabe-se lá quantas páginas com palavras sobre ela, mas o fato é que não bastaria. Essa imagem é minha e só minha. Fiz o que pude para compartilhá-la. Espero que tenha respondido tua pergunta.
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