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cronicascontadas · 9 months
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      “Eu odeio ter que tomar tantos remédios”, ela disse. 
          “O problema é quando eles tomam conta de você”, falei, empático.
    “Eles já me tomaram. Já não sei mais o que ou quem sou”
    “Você é uma bela mulher”, falei o óbvio sem pensar em nada melhor.
     Ela baixou o olhar. Era ermética a elogios, apesar de seus encantadores olhos verde-mar e de sua talentosa mão para escrita. Nada penetraria a escuridão que ela parecia querer preservar dentro de si, como uma vítima que protege seu próprio algoz, pois vê nele a única força bruta capaz de despedaçar os muros do seu enclausuramento particular.
      “Já me tomaram, já não sei quem eu sou”, repetia baixinho perdendo o olhar no vazio...
      O que seria ela então antes de a tomarem? Talvez alguém que fosse incapaz de proteger-se de si mesma? Alguém cuja a mesma existência que um dia lhe soprara a vida agora pesasse demais, machucasse demais? Sua fala que pouco dizia e muito expressava, sua linguagem corpórea tímida e retraída, tudo nela externava a fadiga de uma alma densa, carregada.
      “Gosto das flores no final do inverno. É como se, uma vez contidas pelo frio do vento gelado, começassem então a desabrochar, abrindo uma a uma as suas pétalas ressecadas. É um momento único, sublime”.
      Eu não costumava reparar muito em flores, talvez fosse um sujeito rude demais para certas sutilezas. Apenas assenti com a cabeça. 
      “Aceita mais uma cerveja?”, Perguntei.
      Tornei a que restava em minha garrafa e voltei da cozinha com mais duas em mãos.
      “Olha só moça bonita, essas são as únicas flores que tenho visto desabrochar ultimamente”
      Saquei as tampinhas e pus abridor sobre o parapeito da varanda. 
      “Você não acha tudo isso uma fuga? A maneira como você bebe, essas garrafas todas vazias, não estaria você fugindo?” Ela perguntou derramando em mim seus olhos verdes e entristecidos. 
      “Sim, acredito que você esteja certa.” 
      “Então qual a razão de viver assim?
      Fiquei em silêncio. Da mesma forma que não falo de sexo durante uma transa, não falo sobre beber enquanto bebo. Não que isso fosse alguma espécie de tabu, mas talvez uma escolha. Permaneci no meu silêncio. No hiato das palavras acendi outro cigarro. Ela insistiu no assunto:
      “Você foge para poder recuperar o fôlego antes do próximo mergulho. Tudo demais faz mal, inclusive a realidade.” Freud dizia que não seria possível enfrentar a realidade o tempo todo sem algum tipo de fuga.
           Assenti com a cabeça. Eu não teria do que discordar, embora não resumisse a questão toda ao seu argumento. Ela continuou:
      “Mas a própria vida não deveria ser o local onde buscaríamos esse fôlego? Se queremos ar para arejar, respirar e tocar a vida, por que buscá-lo justamente fora dela?”
      Nessa hora percebi que seus olhos verdes contraíram-se levemente, como quem segura uma lágrima prestes a cair. As janelas de sua alma eram escancaradas demais, um grande problema pros dias de hoje. No entanto era justo aí que se via a essência de sua beleza. Ela era bela tanto por dentro como por fora, mesmo que em seu braço guardasse pequenos aranhões e na alma grandes cicatrizes. Deixou os cabelos cor-de-mel cairem pela face. Dei um trago profundo e exalei a fumaça lentamente antes de falar: 
      “É uma grande ironia, não é mesmo? Dizem que o ser humano é social em sua essência. Dizem que a vida não está no indivíduo em si, mas no compartilhar com os pares. Esse é meu problema. Meu problema são os outros. Aí vem mais uma ironia: se o saudável é seguir nossa essência sociável, então na verdade o problema sou eu. “ 
      “Bem, talvez a vida seja uma sequência de ironias temperadas com algumas metáforas."
     Algo me ocorreu. Não seria ela, e somente ela, a responsável pela própria automutilação do seu espírito? Ou estaria eu julgando-a injustamente demais? Se a cada manhã ela enxugava o rosto com uma toalha de espinhos, não poderia a vida ter-lhe oferecido uma outra toalha então? E se nas mesmas manhãs ela penteava os longos cabelos com navalhas afiadas, haveria ela pedido para ter cabelos longos demais?  
      A causa e a consequência se confundiam em minha cabeça. Uma nuvem cinza pousou em meus pensamentos. Tornei outra garrafa na tentativa de clarear.
     Ela, em silêncio, observava tudo. Olhou para as paredes da sala, a luz amarelada no teto. Olhou para varanda e depois deitou os olhos sobre mim. Aquele olhar me engolia. Quanta sinceridade cabe em um par de olhos? Quanta sinceridade meus olhos são capazes de suportar?
      “Separei uma cerveja que é a sua cara”, ela falou, olhando para o refrigerador.
      “eu aceito”.
      Buscou a cerveja e voltou com seu caminhado feminino e decidido.
      Encostou os cotovelos no parapeito da varanda. 
      Aqueda noite me trazia à mente os velhos sonhos empoeirados. E meus sonhos não eram desejos, eram nada mais que pedidos de paz. Ficar em paz. Eu continuei com meus goles a passos largos. Eu continuei com meus goles antes que aquele olhar me engolisse por completo. Como olhos tão languidos iluminavam tanto? Beleza e melancolia se misturavam em seu rosto em tons sutis e irretocáveis.
      “Meu tempo está se esgotando. Preciso ir”
     Eu sabia que ela iria embora. Sim, ela iria embora. Não da minha rua, não do meu bairro. Não da minha cidade...
      Era cedo demais para ficar tarde, no entanto ela insistiu em partir. Eu me despedi e desejei boa sorte. Fingimos que ainda nos veríamos, em uma vã tentativa de transformar um “adeus” em um simples “até logo”. Mas o até logo nem sempre é logo ali.
     Ela me abraçou forte. Eu retribuí.
     Caminhou em direção à porta da sala, a transpassou sem olhar para trás, e partiu deixando o vazio de algo bom que chega ao fim.
    O ar da sala agora vazia me agulhava a garganta. Eu ainda escutava suas palavras ecoando pelas paredes (“gosto das flores no final do inverno...”).
            Então logo veio o completo silêncio, sufocante e ensurdecedor. Eu precisava respirar. Desci na alta noite pelas ruas vazias. Comprei mais cervejas (uma fuga, teria dito ela). Não fosse o tempo, teríamos mais tempo, eu pensei. Não fosse aquele olhar, não fosse aquele olhar...
            O céu denso guardava suas estrelas em um véu cinza de nuvens. De volta ao apartamento, as cinzas do último cigarro jaziam frias no cinzeiro da sala. Me acomodei na poltrona ao centro, pensativo. (quem disse que haveria de ser justo? Quem?).
Abri uma cerveja. A tampinha rolou para debaixo do sofá.
E por lá ficou.
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cronicascontadas · 9 months
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É alta madrugada e o sol ainda não nasceu. Talvez demore, melhor assim. Observo solitário da varada. O que mudou? 19 anos. O que tanto mudou? Prédios que antes não existiam agora seguem firmes, contaminando a lembrança de uma paisagem de outrora. Prédios antigos resistem, seguem cansados, fadigados pelos ventos do tempo e o sol dos dias.
              O que mudei? 19 anos. O que tanto mudei? Momentos que não imaginaria viver agora são lembranças recentes de um passado de quase agora. Lembranças distantes e momentos longínquos seguem extinguindo-se, pois o que fomos não é o que somos.
               E o que somos não parece tanto com aquilo que pensaríamos ser.
              Escuto minha terapeuta dizer “tenha calma” e digo a ela não peça calma a mim, peça calma ao Sr. Tempo, que leva as feridas mais profundas a um preço caro demais: o nosso próprio tempo. Sr. Tempo não tem tempo para o nosso tempo.
              19 anos se passaram. Quem imaginaria? Eu deveria ter imaginado. Deveria ter imaginado que as caminhadas de 1km até o prédio comercial que agora vejo pela varanda iriam acabar, seja pela falta de propósito em ir até lá, seja pelo comodismo de não querer andar até lá. Comodismo é a morte que nos mata um pouco a cada dia.
              Deveria ter imaginado que a vizinha de cima, e toda sua beleza exuberante que um dia tanto desejei, iria embora de vez. A tive em meus braços sem imaginar que um dia ela partiria rumo ao seu próprio tempo (por onde ela anda?)
              Deveria ter imaginado que minha própria juventude acabaria, e que ir a academia da esquina não seria mais uma tarefa do ego de um jovem descobrindo a vida, e sim a necessidade de controlar colesterol e problemas cardíacos. Deveria ter imagino que a diversão viraria obrigação (e isso vale pra quase tudo hoje em dia).
              Uma vez um senhor me disse: “faça amizades enquanto é jovem, muito jovem, pois essas são puras e sem interesse.” Hoje não sei mais o que é puro, embora a dúvida seja o preço da pureza, como dizia o filósofo.
              Talvez eu devesse dar um crédito ao Sr. Tempo-que-toma-nosso-tempo: ele me trouxe a maturidade para ser quem hoje sou. Mas darei crédito ao Sr. Tempo ou às experiencias que ele me trouxe? Quem sabe a ambos. Quem sabe?
              O fato é que já ralei o joelho da vida algumas vezes. E foi o Sr. Tempo quem soprou e cicatrizou minhas feridas. Mas o aprendizado, esse, por mérito é meu.
O Sr. Tempo, que passivamente roubou meu tempo, talvez não tenha noção do que me tornei graças ao tempo.
Mas eu tenho.
              O Sr. Tempo pode me levar os dias, mas eu aprendi com o tempo a construir fortalezas. 
Batizei a última com meu nome, e ela está de pé, depois de muito tempo. E, sem dúvidas, resistirá ao tempo.
  Pois o que somos por dentro não se corrói.
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cronicascontadas · 11 months
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   Entrou pela sala e sentou-se na grande poltrona acolchoada, presente de sua esposa. “Era a maior da loja, meu bem, a maior! ”. Afrouxou o nó da gravata com os dedos e suspirou. Pegou a garrafa de whisky – um legítimo escocês 18 anos – e a tornou no copo de vidro cristalino. Deu o primeiro gole, voltou o copo à mesinha e suspirou novamente. Escutou as agulhas finas do salto-alto caminhando pelo corredor até a sala.  
             “Que bom que você chegou meu bem! Você não sabe da última! ” 
             “Hum” - Pôs outra dose no copo.
             “A Mimi e o Roberto! Eles se separaram!”
             “Querida, me vê um gelo por favor. ”
             As agulhas longas do salto foram até a cozinha. De lá ela voltou falando enquanto segurava o container com as duas mãos.
“Eu sabia que não ia dar certo aqueles dois! Você lembra do casamento? Eu falei para Mimi que aquele sujeito não tinha bom gosto! Quem avisa amiga é! ”.
“Eu gostei da festa”.
             Na verdade, ele detestava festas de casamento. Não conseguia enxergar o sentido daquilo tudo, não entendia as noivas comparando os vestidos, comparando as decorações, comparando os padres.... Acabara habituando-se ao ritual depois de frequentar os casórios de algumas pessoas do seu meio. A parte que ele achava mais irônica era quando os recém-casados saíam da igreja e entravam em algum carro luxuoso que os esperava fora. Nunca entendeu o que igreja e religião têm a ver com limousines.
             Ele a conheceu na festa da Milena, amiga dela de infância. Ela havia pegue o bouquet e ele havia esgotado o whisky da mesa, quando então os dois se esbarraram - de costas um para o outro. Logo que ele se virou, viu aquele belo par de olhos azuis permeados por cabelos dourados. Ele agachou para apanhar uma das rosas e passou os olhos por aqueles quadris fartos e bem desenhados pela cintura fina. O mundo girou e ele se esforçou para disfarçar a ebriedade. Ela continuava com o bouquet nas mãos, olhar arregalado, tentando em vão não deixar claro o seu óbvio interesse nele, naquele momento. Conheceram-se melhor. Poucos meses depois, logo assumiram o compromisso. Agora ela estava na sala-de-estar, os mesmos quadris, a mesma cintura, e com o espelhinho de maquiagem nas mãos.
             “O que!? Você gostou daquela festa?! Você não lembra daquela decoração cafona? E o padre? O padre me dava sono! ”
             “Mas o padre não estava na festa, meu bem. ”
             Encheu outro copo e dessa vez pôs duas pedrinhas. Girou o gelo com o dedo. Ela continuava pra lá e pra cá, segurando o espelhinho de maquiagem em frente ao rosto, tintilando o seu salto-alto agulha pelo apartamento. Foi ao banheiro e voltou perfumada. O cheiro tomou a sala. Ele ficou com um gosto adstringente na boca, bebeu outro gole.
             “O que você acha meu bem? ” -  Ela perguntou pondo as mãos na cintura e ressaltando suas curvas.
             “Bom. Gostei da cor”
             “Comprei hoje na loja do shopping. Uma pechincha! ”
             Ele perdera as contas de quantas vezes já escutara isso. “Uma pechincha” – repetiu ele em voz baixa. Lembrou de todas as pechinchas que havia engolido até ali. A decoração extra na igreja no dia do casamento – uma pechincha. Um pôster gigante com a foto de ambos em cada parede do buffet – uma pechincha. Até que não sobraram mais paredes, então arrumaram uma parede extra para pôr mais fotos – uma pechincha. A banda da festa tinha que ser a que ela queria – uma pechincha a mais. E teve uma pechinchina a mais também por que ela não queria a limousine convencional. A versão luxo acabara de ser importada, e somente a filha do governador, que casara 1 mês antes, a havia usado - uma pechincha. Depois veio o apartamento (“precisamos de um maior, t�� uma pechincha!”), carro do ano, jóias...   
          A pechincha diária vinha em doses menores: geralmente um vestido, uma bolsa, ou um sapato. Quando ele fazia cara feia, ela vinha com um sorriso, afagava, chamegava. Ela tinha seus meios. Se ele resistisse, ela encenava um pequeno drama, sempre dizendo que se fosse fulana, esposa de fulano, ela nem precisaria pedir. E que fulana é feia, mas sabe se vestir, e que ela não poderia desperdiçar a sua nobre beleza usando roupas sem graça que nem as da cicrana. O problema é que para ela todas as roupas perdiam a graça rápido demais. No fundo, ele sabia que era tudo culpa dele.
             Pôs mais duas pedras de gelo e encheu o copo até a borda. Continuou girando o gelo com o dedo. Olhou o sol se pondo. Ele teve inveja do sol se pondo. Não sabia entender, muito menos explicar. Ela interrompeu o silêncio com sua voz estridente.
“Estou indo encontrar as meninas. O marido da Renata deu um carrão a ela, e olhe que ele ainda está pagando o ap novo! “
“Hum”
“Sempre achei eles dois uns fofos! ”
“Hum”
             Ele continuou hipnotizado pelo sol entrando no mar, cheio de energia, cheio de calor, e que agora parecia arrefecer em águas azuis claras. Contemplou o mar também. Teve inveja das pessoas que andavam tranquilamente pelo calçadão, da simplicidade das 3 cores dos semáforos, das crianças que bebiam água de côco lá embaixo, no singelo quiosque do teto de palha.
Girou mais uma vez as pedras de gelo com o dedo. Formou um pequeno redemoinho. Ela fez o seu ensaio fotográfico de sempre em frente a um dos tantos espelhos da sala e então saiu pela porta, ainda de olho no celular. E depois viriam as fotos no espelho do elevador - ele imaginou. O som das passadas do salto-alto e suas agulhas foi ficando cada vez mais distante, até sumir. As pedras de gelo se chocavam. Ele continuou as girando, absorto, absorvido.
Lembrou de quando tinha 9 anos, da bicicleta que ganhou do seu pai. E que seu pai havia pedido para que ele não saísse da frente da casa. Mas ele pedalava a bicicleta até o final da rua, e depois até o outro quarteirão, depois até o outro bairro, e pedalava e pedalava... lembrou do sorriso simples e pueril das meninas da vizinhança de sua infância, tão suburbana, tão em paz. Lembrou ainda das crianças pedindo uma voltinha na bicicleta nova. Teve que se livrar dela quando os pais saíram da casa e se mudaram para um apartamento. A bicicleta foi para um depósito. Ficou encostada, enferrujada.
Ele reclinou um pouco mais sua poltrona. Tentou relaxar. Apenas tentou, vai ver ele é quem enferrujara. As pedras continuavam a girar no copo.
O sol terminou de se pôr e a garrafa – agora seca – jazia largada no carpete. O vento balançava forte a cortina e cada pancada dela contra a janela do vigésimo andar era ritmada e solitária, como uma gota d´água que insiste em cair, como a agulha de um salto a bater no piso concreto.
  Já era noite e a lua ia alta
  A poltrona da sala descansava ao centro.
 Vazia como o copo.
  Vazia como o apartamento.
#conto #cronica #cronicascontadas
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