Tumgik
croniquismo · 3 years
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Um outro dia de verão
por Matheus Lopes Quirino
Um verão pode ser triste quando se está com o braço quebrado. O sorvete derretido, que lambuza a mão; a pele descascada com cheiro de ontem. O sentido de andar pulando as poças de água, formadas nos sulcos de lama, entre uma calçada quebrada e a rua sem asfalto. O verão triste e tardio com a praia cinza e areia dura. O picolé caro e as crianças vestidas de roupão numa brisa gelada, à beira mar. Ao longe, despontam barquinhos feios no mar poluído, outrora novíssimos e azuis, sem tinta corroída pelo tempo.
Daquele quadrinho de praia deserta, o garoto sonhava com uma embarcação romantizada. Algo como um navio pirata devidamente paramentado com capitão Gancho e os tapa olhos coloridos de musicais da Disney. Um elenco de marinheiros descamisados com músculos à mostra em corpos besuntados de bronze e suor, com as partículas de sal dourando suas tatuagens ao sol, como joias cravejadas flutuando num oceano tão azul quanto o azul.
Azul, a cor do espiritualismo. Azul, a canção de Gal. Azul, arauto dos impressionistas. Pílula etária, capa de caderno surrado com memórias azuis. Olhos que perscrutam outros olhos azuis. Como grutas que se desnudam em segredo por vácuos que pingam silêncios. Outrora bandeira fincada em território inimigo, Azul, o maioral, personagem forte e terno, como um marujo bem humorado num filme bonito de se ver às noites de chuva.
Dos pequenos Smurfs aos Dragões azuis, os balões e os borrões de tinta, os jeans que secam nos varais das casas de todas as cores, dos carros estacionados nos portões com cercas baixas. Da discórdia e dos fuscas azuis. Das televisões de tubo e cheio de pinho sol. Das dispensas cheias de latas de óleo e caixas de fósforo, palitos de dente. Dos vinis empilhados entre cacarecos empoeirados e parafusos & chaveiros de postos Texaco, Sinclair, etc. Uma mobília amadeirada e um quintal quase vazio. As flores crescem miúdas enquanto o verão se mostra com suas velharias.
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croniquismo · 3 years
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Conceituadíssima
por Matheus Lopes Quirino
Da série tudo mundo tem. Todo mundo conhece alguém que sabe tudo, “Conceituada não, conceituadíssima”. Acima de qualquer enciclopédia, essa proeza intelectual pegou a Wikipédia no colo e, se ela não fosse, a ensinar o Oráculo moderno dar arrotos em diferentes línguas, com certeza a humanidade estaria mais burra do que está. Claro, sorte dos que podem viver, compartilhar e até frequentar suas casas, cama & mesa. Só de respirar o mesmo ar da figura magnânima, todos as sombras da ignorância são banidas pelos raios de sabedoria.
Vamos lá, no final da teia científica, lá está ela. A sabe tudo espertalhona. Quem soprou para os cientistas o caminho das vacinas? Adivinhem. E mais, é uma sabedoria tão corrosiva que por onde passa deixa rastros. Não há vácuo que não se inunde de bons frutos quando sua palavra é semeada. Todos devemos a essa especialista em absolutamente tudo. Que gentilmente teve a paciência de ensinar a cada professor seu devido lugar, tomar giz e quadro, e ter a bondade de colocar o educador no banquinho para lhe ensinar o que ele não sabe.
E sim, aos seus olhos, ouvidos e elástica boca, somos todos uns tolos. Idiomas mal informados e manipulados. Estamos à mercê dos ardilosos e errôneos filósofos, cientistas, professores, jornalistas, ativistas, políticos e formadores de opinião, ou de qualquer um que tenha o ímpeto de propor um debate. Porque não há debate, só razão. E ela tudo sabe, tudo vê. Escreve bonito, de dar inveja. Seus livros publicados são best-sellers e já estão no forno biografias, documentários e romances sobre sua vida e trajetória inconfundíveis.
Como Diabo mora nos detalhes, não podemos esquecer de mencionar que, uma vez estando prostrado diante de sua magnífica figura, tão bela e impactante face, que desnorteados e entorpecidos sairemos a ponte de não mais lembrar ou assimilar qualquer fragmento de memória do encontro. Como os que dizem ver deus, em tão profundo e inesquecível encontro, que esquecemos. Hoje, Conceituadíssima não fala, postula. Vende fórmulas prontas, infalíveis, impactantes. E amanhã, quando não sobrar nada a não ser as favas, ela irá em busca delas, sem esquecer?
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croniquismo · 3 years
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Amigo secreto
por Matheus Lopes Quirino
É tempo de amigo secreto, de caixinhas balançando, embrulhos luxuosos contrastando com papel pardo. Mas o papel pardo tem um charme que lantejoula nenhum tira. É uma textura rugosa que causa até calafrio. E o cheiro do papel pardo? Que rapidamente nos joga em uma repartição fantástica e imaginária, cheio de papais Noel empilhadeiros de presente, gordos, risadeiros e tomando Coca-Cola. Como eles não se confundiam na hora de dar um presente? É etiqueta? Há tempo de puxar o presente no trenó, lá do céu, ler etiqueta e mandar pela chaminé?
Ok. Os gnomos talvez ajudem. Se eles já não estiverem altinhos de cogumelo. Papai Noel vai jogando, jogando, para ler uma etiqueta cheia de garrancho. É tão feia a letra que, por estar desatento ao volante, derrapa e sofre um acidente alado. Tromba com uma cegonha parteira que, puta da vida, ao voltar de uma descarga, xinga o velho que escoriou sua asa. Ele já está soterrado em neve. Uma puta zona. Coelhinho da Páscoa sai da toca, apitando, precisam chamar uma ambulância para dar conta do acidente de trânsito.
Todo mundo no hospital. Papai Noel vai precisar ficar de molho. Por ironia do destino, é o único que sabe guiar um trenó. Seus sósias, ajudantes de oficina, não andam de ônibus, tem vírus circulando e não podem se contaminar. Duendes? Nem altura têm pra dirigir. E as renas fizeram greve. A partir daí, ligaram para George W. Bush com um sonoro: se vira! Assim nasceu o Dia de Ação de Graças e, logo, o amigo secreto. Já que não tem papai Noel. Cada um que compre e dê o que quer.
E passaram décadas assim. 2021. Escritores vão se reunir para jogar uma conversa fora e bolar um sorteio. Sorteio de livros é um tiro no escuro. Ainda mais para quem vive apinhados neles, pode acontecer de receber um repetido. Como trocar um livro que já passou pela minha vida? Com o frescor do novo, as boas intenções... Se a edição for bonita, vale. Agora, e se for uma daquelas coisas bizarras econômicas com o corpo número 8 e papel de bíblia em PB!
Chegou o dia e os embrulhos todos foram para baixo de um pinheiro de plástico e neve falsa, feita de algodão. Caixinhas e caixonas embrulhadas em papel manteiga amarelo ovo e plastificadas em berrantes fúcsia. Onde estará Dom Casmurro? Com certeza no embrulho sofrido. Aquele amarradinho em papel pardo e cordão de cadarço. E “Japoneses podres de ricos”, no fúcsia. É uma hipótese. Rola de tudo, menos dicionários e didáticos, pelamor. O último que veio com um Aurélio nunca mais voltou.
Mas, por incrível que pareçam, na última rodada. Saiu um embrulho diferente de um envelope miúdo. Ele havia ganhado uma coletânea de Dickens, com vários tomos, e dava... um e-book! A cara de cu da moça que gastou um dinheirão com o Dickens. Recebeu... A obra completa de José de Alencar, em e-book. “Se você não tiver como colocar CD, eu te mando o pdf por e-mail, pode ser?”. Antes era o Aurélio, agora o perigo é a nuvem. Se existia um limite de ser pão duro, ele foi ultrapassado a décima potência. É melhor o papai Noel por sebo nas canelas, voar em uns sebos com bom desconto, ressarcir essas pobres almas vítimas da avareza.
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croniquismo · 3 years
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A viagem
por Matheus Lopes Quirino São dias quentes que embalam a insônia. De manhã, o céu abre a porteira para o verão, mesmo ainda inverno, se converte em um balneário com azuis muito costeiros, quase como se os pássaros fossem conchinhas a voar. Do outro lado da sacada, camuflada de uns plátanos, uma xícara de porcelana repousa sob os jornais de domingo, sinal de desleixo e preguiça, enquanto um anúncio interrompe o som da brisa de terça-feira, levantando já cansada. É Misty, de Erroll Garner. Por trás da cortina se escuta o gorjear dos pássaros, à revelia dos horários de voo rotineiros. Estão com calor e rumam, sabe-se lá para onde, para que tal um balneário. A janela aberta é fechada para o gato não pular. Não é equilibrista, apenas um felino de pelo escaminha. O televisor sintoniza na última parada de um desfile sem graça, uma espécie de carnaval requentado. As tardes do feriado não são engraçadas, mornas com o aspecto mortuário de um país que morre sufocado na própria desgraça. Embora a vista da sacada não seja das piores, o ar seco da estação travestida de verão faz o nariz coçar, sangrando um pouquinho. Estirado no sofá, mexo os pés para cima, tentando lembrar do trecho de uma musica que lembra um outro verão, que não esse temporal transformista do inverno mormaço. Os cuidados com o Rinossoro são um reflexo rápido da condição que venho suportando. Rinítico, espirro um tanto por causa da poeira e fecho as persianas para impedir o sol de tocar nos jornais desbotados de outras semanas. Sento-me ao lado de um interruptor, com o celular em mãos carregando. Vejo notícias de além das montanhas e a saudade, esse pássaro flamejante que ronda o meu bairro, emite um som agudo que só se escuta dentro de casa. Procuro fragmentos de beleza camuflados nas obras do tempo. Encontro sem muito esforço, sua foto colada na carteira do lado de um ingresso já muito vencido. Espero para te ver à noite, como aquelas mocinhas que esperam no porto, depois da guerra. É nonsense pensar em guerra, em verão, em flâmulas, quando estamos no inverno. A água ainda é doce, longe daqui, na direção contrária da floresta que queima. Em algum lugar desse mundo a população de faunos diminuiu e as ninfas agora correm atrás deles, no sentido contrário. Já não existe esse papo de trair a própria natureza. Mas existe a tristeza de um feriado que, turvo, se descortina por detrás da persiana, com algum abajur aceso. Sinto mesmo, como se estivesse dirigindo na contramão do tempo. Você mora em cada detalhe desta casa, onde na minha cabeça estão aquelas tantas coisas nossas. Reproduções de Paul Klee e Goya jazem apoiadas na parede branca, nunca serão penduradas. Guardo um porta retrato seu comigo, muito pequeno, além da foto que carrego nos bolsos. Espero pontualmente o telefone tocar, todos os dias, para perguntar como está na Finlândia. Setembro chegou, baby. Eu moro em Portugal ou na Espanha, e você sabe como insisto em previsões para o futuro. Comprei um baralho de tarô por achar bonito, vi uma almofada que era a sua cara, sorri pra você na chamada de ontem. Poderia chamar nossa casa de Ilhas Cíclades, enquanto escrevo para o Cairo, com um cravo na lapela, uma rosa púrpura. Releio a última carta, de algumas semanas, e desejo as mãos que escreveram ali. Já anoitece e o calor segue insuportável, como a distância, dissipada pelo toque do telefone, faz meu coração palpitar como uma ave que levanta voo depois de algum tempo no ninho. 
ps: Setembro chegou e eu anuncio o próximo pouso, se não nos teus braços, pelo caminho até Buenos Aires ou Cartago.
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croniquismo · 3 years
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Chorume
por Matheus Lopes Quirino 
Chorume virou xingamento feio. Não é igual chamar de fidaputa, assim, disparado. Fidaputa ninguém mais liga, fidaputa é quase um reflexo linguístico, tipo quando pisam no seu pé com unha encravada. Agora, chorume não. Chorume atinge o âmago. Chamar de chorume alguém é compará-lo ao visco caldaloso remanescente de sujeira que pinga do saco de lixinhos da pia. Chorume é algo tão nojento que não chamaria mesmo meu inimigo de chorume. Tipo quando você, de chinelas, pega o lixo do balde da pia para levar para fora e cai uma gota no seu dedo, ai... 
Muita gente tem usado chorume sem nem saber o que é. Uns usam o Google Chorume. Alguns por não saberem mesmo a diferença de Chrome e Chorume, falam com o técnico de informatica no balcão da loja de artigos eletrônicos: “Como eu abaixo o Google Chorume?”. O moço segura o riso, e ensina a mexer no tal Chorume. É vírus do zap que infectou o celular. Por isso ele apagou o Chorume. É pornozão click-bait, pop up de sites indevidos, com propagandas indevidas. 
Não sei se o homem que fala do chorume curte algo mais hardcore. Ele tem cara de que assiste pornografia chorume. Fala meio bronco, assim, reparando sem constrangimento na bunda de uma mulherzona que vestia um macaquinho de lilases. Era uma mulherzona porque era grande, assim, do tamanho de um aparador de louças antigas. E barulhenta também. Estava para dar na cara do moço da informática, ríspida e faladora. Será que já teve problema com o Chorume? 
Ela puxa conversa com o olhudo que estava reparando. Falam de política. São contra todos. Contra o presidente e toda a corja. Resolvem falar mal do Brasil. “Tudo aqui é brincadeira”, “O STF tem um canal no TikTok”. O STF fazendo dancinha no TikTok, pensei? O Leva abrindo espacate. Nada mal. Lembrei do vídeo em que o Gilberto Gil aparecia cantando com uma banda numa reunião da ONU. Algo parecido. A galera dançava, se divertia, festejava. Todos engravatados. Isso era o Brasil. Dá para acreditar. Gil, quase abrindo espacate. Hoje, restou o chorume. 
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croniquismo · 3 years
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Aconchego que não se mede
Para Ruth
por Matheus Lopes Quirino
Olho pra trás, respiro, sonho e revejo os vultos passando depressa pelo retrovisor. Penso naquele dia em que nos vimos pela última vez. Não esquecer, nunca. Os últimos olhares desorientados, a mão frágil tentando repousar tranquila no meio do socorro, do caos. Daquele limbo existencial, a finitude projetada em cenário, pensei ver nos seus olhos um reflexo tão bem delineado que, sim, tive certeza: era a sua melhor forma tentando avisar, tranquilizar, dar algum afago para quem ali se reunia ao seu redor.
Há dois anos ela se foi. As lembranças são eternas. Todos os dias elas aparecem, nos gestos do dia, nos sonhos, no jeito de falar uma palavra, na hora em que a mente está limpa. Principalmente quando a cabeça está limpa. Paz combinava com ela. Era sempre um afago prolongado estar sob sua vista, debaixo das asas. Invencível. Era esse o sentimento: estar protegido dos mil raios e trovões, dos monstros, dos desastres, do próprio Diabo, de tudo que fere.
Hoje, a proteção existe. Ficou como herança, como escudo. Penso na luta daquela que foi minha musa, meu sol, minha razão de viver. Quem eu mais admirei e amei, quem eu guardo como uma mãe, no sentido do princípio do amor, do cerne, de primeira importância e grau, instância, centro, começo da matéria. Minha avó foi o meu porto seguro mais tranquilo e bem-humorado. Não houve censura, ou toque, ou reparação. Nunca foi de questionar movimento, caminho, palavra. Apresentou o melhor dos mundos, repleto de uma magia infante, celestial, quase cancioneira, no sentido de viajar ao torno das coisas tão à vontade que já se sabe o caminho. E só segue. Vai ser feliz!
Ela sempre soube. Qual caminho ia trilhar, tantos. Sinto que ela andava sempre comigo, em espírito. Continua aqui. Em ronda noturna contra os pesadelos. Em suspiros de paz com o sucesso e vibrando junto à ansiedade dos momentos. Levo comigo seu melhor sorriso e o jeito de ser, tão sincero, que é fácil ser imaginativo e trafegar por nuvens de algodão ou pular estrelas, como uma personagem de desenho animado. Fica o filme de uma vida, rebobinado, cujas sessões são eternas reprises felizes, repletas de abraços, docinhos, carinho, uma tarde de quinta ou sexta-feira embalada no friozinho de São Paulo. Um aconchego que não se mede.
A lembrança está fresquíssima e se formou uma casca natural para proteger tudo aquilo que não cicatriza. A ferida sempre estará um pouco aberta. Nunca seca. No máximo há um afago, para se abrir em prantos quando se cutuca a memória como se cutuca um peixe na beira do rio. Molhadeira para todo lado. E é assim que ficamos, na ribanceira, admirando o reflexo dos porta-retratos dela, inconformados com o insondável mundo dos mortos, meio bobos e absortos vendo o fluxo do rio correr depressa como a vida.
Ao fundo, pedras de cascalho e peixes coloridos, como da infância. O som da água correndo por entre as pedras, o cheiro de grama, mato úmido, penetra as narinas, junto ao barulho de cigarras. O farfalhar das ervas, o piso seco do passo de um calçado. As risadas e os tapas na água. Tudo está ali, na beira de um rio. Lembro da vez em que pescamos, havia tanta beleza no momento que não me dei conta. Gosto de coisas bonitas, cresci educado por elas. As quero e sempre as tive. Minha memória traz essa boniteza tão prosaica e frugal, tão natural, que para aproveitar o céu da infância outra vez só voltando com muito zelo, quase que escutando a voz dela dizer o próximo capítulo da história.
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croniquismo · 3 years
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As vantagens do pum
por Matheus Lopes Quirino 
Das vantagens de quando a temperatura cai, uma delas é fazer bunker de cobertas. É um ritual estranho também. Morar em um país tropical, não tão tropical no Inverno, dá alguma graça aos olhos dos que esquecem fácil do que guardam. Numa ‘batida’ no guarda-roupas se encontra quinquilharia de séculos, caso haja a cultura de passar de mão em mão, geração em geração, família por família. Sabe aquela manta tricotada da bisavó que algum parente ganhou nos anos 1980, usou uma vez e botou no ‘saco’ dentro do baú: ela reaparece.
E vendo a luz depois de décadas, esse artefato peludo que muito adormeceu, em um dia frio, é perfeitamente útil. Algo similar, na praça, pode sair muito caro. Pagar caro para umas semanas de frio não é exatamente um conforto. Não que o tricô seja lá uma quintessência da moda, nada disso, é uma lembrança de outros tempos, tão carregada de memórias quanto de poeira. Acontece que aquilo nada tem a ver com o garimpeiro de pantufas. Então, para não começar um brechó, o jeito é se enrolar no cobertor e, em silêncio, aproveitar o quentinho. Antes de tudo, é claro, vale expulsar as pulgas, percevejos, baratas e quiçá algum gamba que tenha nascido, crescido e morado dentro do velho armário de roupas de invernos. Pode haver.
Com tudo lavado com antecedência, pois o frio não espera, é chegada a hora de fazer as camadas de cobertas na cama, como um sanduíche de muitos metros. Colcha, lençol, coberta felpuda. Coberta fofa, cobertão, coberta escocesa xadrez, por cima de tudo. É um jeito de se abrigar contra o temível frio e também os monstros que moram pelos cantos no quarto, debaixo das camas e dentro dos guarda-roupas.
Gela e, de repente, sente-se vontade de buscar uma bolsa de água quente. Já é tarde da noite e tudo está silencioso, tão silencioso e calmo que nasce, tímida, uma sensação de espanto, de medo, de absoluto choque que se converte em pavor. Não há como sair dali, enfrentar o frio, os monstros, sair do bunker cosido pelos antepassados que foram comidos pelos monstros, pela terra. Nesse momento, quando a bunda gela, a cloaca fecha, o jeito é se encaramujar nos cobertores, preparar os puns, esse aquecimento benígno para emergências, e dormir, enfim, na paz. Os monstros que vivem debaixo da cama estarão todos mortos, como mosquitos e inseticidas, e o quentinho continua, a depender da frequência punsística, da quantidade de monstros e do medo.
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croniquismo · 3 years
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Cacófato
por Matheus Lopes Quirino 
Escrever sobre escrever é uma armadilha. Não que seja falta de assunto, longe disso, é quase um ato de autoamor. Às vezes o tema é justamente esse: escrever. Sentar pra escrever quando não se tem nada pra fazer de imediato. Sentar e respirar um pouco do ar que entra pela janela, olhar a gata dormido nas cobertas, ao lado, e encarar cada linha do documento que vai ganhando forma no Microsoft Word com espanto, ainda que, na dúvida, por fim se sobressaia a desconfiança. Será que consigo?
Escrever sobre escrever também pode rivalizar, às vezes, com explanar sobre o nada. O nada. Essa janela aberta numa casa de praia recém-descoberta na mente, que evoca a infância; o guarda-roupas aberto, pelado, sem uma meia para contar história. Ou um pote de sorvete que não tem mais sorvete. Acabou e ficou ali no congelador. O nada. Quando penso no nada, são essas figuras que me vêm. E se fico pensando repetidamente em nada, começo a lembrar das coisas que tenho de fazer. Pra ontem.
No nada. No nada. Nonada, nonada, nonada. Um exército de nonas, ou nonnas, as avós dos italianos. Nesse instante, imagino uma manada de nonnas bravíssimas com os netos que não chucharam direito o pão italiano no fundo do prato de espaguete com muita passata de tomate. Imagino que é pelo menos uma dúzia de velhas putaças com as crianças que não fizeram direito a lição de casa. Com seus chinelos de madeira, ou tamancos, as nonnas começam a perseguir os netos. Triplica-se o número de mancebos desta colônia imaginária. Um avisa sobre a movimentação, munido de um binóculo numa torre de castelo: “Nonnada! Nonnada!”.
Todo mundo sai correndo e gritando, como clássicos italianos lombardos. Como deve ser. Uma fantasia um tanto cretina, que evolui para uma batalha com tomates vermelhos, no estilo das apresentações trovadorísticas medievais. Molho de tomate por toda parte. Baguetes feito espadas, caçarolas e caldeirões como escudos. Almôndegas como bombas de efeito moral e armadilhas de massas quentes.
Leio o absurdo que acabo de escrever. Talvez quinze ou vinte minutos gastos nessa loucura surrealista inspirada em comida. O almoço se aproxima. Ainda não vem ideia. Nada. Pensasse eu na nonna, que era simplesmente vó, aramar-me-ia de pão, azeite, molho de tomate, cavalgando numa burrata com baguete em riste. Olé, à cozinha.
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croniquismo · 3 years
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A diplomacia é uma máquina lavadora de louças
por Matheus Lopes Quirino  
Casa é lugar de lavar roupa suja. Casa de família, então... com mãe, pai, irmãos, tios, papagaios, caninos e felinos – e agregados. Sobram louças e roupas sujas para se lavar, e quanto mais o acúmulo de itens se espraia pelas cestas e pias, pior o estresse. “Esse inferno dessa louça”, diz a mãe. Enquanto a pia parece dar cria. São incontáveis pratos, todos sujos e empilhados, que ladeiam canecas de café borradas de café, leite, nescau. Copos de suco devidamente sujos formam uma torre de castelo que pode desmoronar com um sopro.
Revezamento não adianta. Na hora após o almoço, quando uma preguiça arrebatadora toma o copo da criatura bem comida, a louça é escanteada pelo estofado macio (hoje, nem tão macio) do sofá da sala. No cafezinho, aquele inocente pedaço de bolo, que repousará num prato de porcelana e a xicrinha de café preto, num instante, se amontoarão na pia, para desgraça de quem for o lavador da vez.
Planilhas e sermões não funcionam. A preguiça pós almoço é um patrimônio nacional. Não tendo a cultura da tirar um cochilo, a sesta, as coisas ficam pela metade e, como tudo nesse país, empurra-se com a barrigada o amontoado de louças, naquele aglomerado que vai se multiplicando como coelhos. Quando a vista alcança a terra arrasada, já sem louça alguma para fazer refeição, o jeito e arregaçar as luvas amarelas – a salvação para os dedos.
Pia é um depositório de lixinhos e gosmentices alimentícias dispersadas no almoço. É nojento, soma-se isso a água e o óleo, quando não o resto do café, o leite, ou seja lá qual resíduo de alimento esteja na ordem da cozinha na semana. Em dias frios, lavar a louça é um suplício. Briga! Briga! Briga! Bastasse uma máquina de lavar louças, como a Brastemp Compacta Prata com Ciclo Pesado ou Ative!, da mesma marca, que a complicada diplomacia familiar estaria resolvida, e guardar tudo fica sendo prazer.
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croniquismo · 3 years
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Sonos e sorvetes
por Matheus Lopes Quirino 
A vontade de dormir é diferente do sono. O sono te puxa para as profundezas do recanto tranquilo de algum bosque idílico, cenário de conto de fadas. Pode dar pesadelo, pode, mas o sono é uma espécie de anestesia do inconsciente. Não é penoso o “Não dá mais”. Simplesmente se capota, como se fôssemos atingidos por um dardo venenoso daqueles caçadores das savanas, só que indolor. O sono é faceiro, ele domina pelas beiradas. Sedutor, amacia a carne aos poucos, com um sopro de despreocupação. Feito galã black-tie, uma baforada de menta ou uma nuvem nicotina saborosa são os efeitos desse beijo incompreensível. E em três, dois, um, dorme-se. Há também a versão dos carneirinhos, que se aproxima mais do conto de fadas do começo.
O sono é bom. Aliado. Ele vem desplugar a chave frenética do rítimo de trabalho, preocupações, ansiedades, inconstâncias. Ele dopa, benigno, para que renasçamos depois de algum tempo. O ato em si, o momento em que se dorme, é a quintessência. Podendo durar minutos ou dias, o sono varia da cochilada para a hibernação, e tem suas consequências fisiológicas. O cochilo, quando não bem aplicado, é um potencial brochador das têmporas, do humor, de toda parte do conjunto, inclusive.
O cochilo é um bug. Ele acontece, do nada, mas não é tão prazeroso quanto o sono. O sono se arrasta, o cochilo, dá uma trepidadinha. O sono, quando bem aproveitado, é um ninho de prazeres sem fins. Somado a ele, os sonhos, são os requintes, as cerejas do bolo dorminhoco. Sono bom com sonhos excitantes, sem recorrer ao devaneio carnal, necessariamente, é uma verdadeira taça de sorvete cinematográfica, daquelas que ficam bem na foto e são gostosas. Um sono até que bom, com sonhos intranquilos, é uma bolinha magra de sorvete. O não sonho é um cubo de gelo. O pesadelo, a anomalia do sorvete frito. E o sonho do desamor, o próprio chicabom do desprezo.
Já a vontade de dormir é o próprio diabo. Ela existe, está na espreita. E não necessariamente envolve o sono. Pode-se ter vontade de dormir e não ter pingo algum de sono. Esse estado inerte de sofrimento se chama insônia, dama baixa, como um vizinho que resolve botar para quebrar numa festa noturna. Ela não vai embora, é a última da festa, sendo enxotada pelo Sono, espécie de policial que acaba com a barulheira. A vontade de dormir se manifesta quando o sono não vem. Não porque esteja de folga, longe disso, mas há um desentendimento entre todas as partes do conjunto.
Nesse fator, entram um milhão de motivos que encheriam laudas e laudas de justificativa. Não estando aqui como escrivão da insônia, eis que a substituta do sono aparece indevidamente, durante o dia, tarde, noite, oferecendo sem mesuras a tentação mor que é cair num cochilo sem ressalvas, não importa se no horário de trabalho ou no meio do supermercado.
Uma armadilha que desemboca em perigos maiores, sucumbir às artimanhas da vontade de dormir, de maneira irregular, no lugar e hora errados é um sintoma do esgotamento, outro vilão da historinha. O esgotamento seria uma espécie de milkshake que deu errado. Uma bola de creme com meio copo de coca cola que caem num ruidoso e frenético liquidificador sem tampa, esparramando líquidos melados por toda a cozinha. Nessa altura do campeonato, a lambança é feita. As consequências, várias. De dormir no volante e acabar numa gaveta no necrotério a passar o ponto no ônibus e gastar os sapatos, há uma infinidade de frias no departamento da “dormida” entre vida e morte.
Sem mais a declarar, peço licença para cair em um cochilo que, com alguma sorte, pode se converter em sono, como um sapo que, num toque de mágica, vira príncipe encantado. Fui.
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croniquismo · 4 years
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“Coisa de homem”
por Matheus Lopes Quirino
Atualizada a expressão, “coisa de homem”, hoje, é ato falho – quiçá fálico. Dividindo um teto com outro par de calças, eis que a expressão vem a calhar em momentos de saia justa (outro termo discutível), em tempos em que a cinta liga aperta no lombo dos marmanjos, sobre um alerta na voz, meio tossida “Ah, isso aí é coisa de homem”. Escolher as frutas erradas no hortifruti, comprar a marca de leite condensado mais cara, com as inúmeras possibilidades pela metade do preço, pegar carne moída já moída, não pedir para moer na hora. Isso, no mercado.
Em casa, arrumar mal a fruteira, recém-chegado do mercado, e nem esperar para fazer uma porcalhada, porque você colocou nas mesmas sacolas os produtos de limpeza com o pão – que ficou com gosto de sabão. Coisa de homem, ser meio bobo e desligado com as coisas de casa. Coisa de homem também é trocar os temperos dos potes, deixar para última hora para comprar pasta de dente, quando já não dá mais para apertar, e escovar com sabão. Isso quando se escova.
O mais indefensável dos vacilos: deixar a toalha molhada em cima da cama. Coisa de homem também é se dissimular quando perguntado sobre o porquê da toalha está na cama. E não se dar por vencer, tentar, mesmo que em vão, ganhar com uma argumentação de araque, dizendo que a toalha molhada ali serve para umidificar o ambiente – mesmo em março, quando chove o dia todo.
A lista é quilométrica de “coisas de homem”. E tem coisa que só homem faz. Só homem sabe. Como deixar os pelos incrustados no gilete, o pote de maionese mal rosqueado na geladeira, as cadeiras não recolhidas ante a mesa, as embalagens das encomendas picotadas em algum canto do sofá, o sabonete dentro da caixinha de papelão, nunca usando a saboneteira, porque, sinceramente, ele se pergunta “O que é isso”.
Mesmo dois homens adotam esse código. Elevando a dinastia do sexo masculino para longe de qualquer resquício de macheza, erra-se e diz: “Isso é coisa de homem”. Quando há acerto, pode ser “Tá uma delícia, feito igual ao da minha mãe” (termo também discutível), mas, sem dúvida, melhor do que a macheza.
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croniquismo · 4 years
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Noites de verão
por Matheus Lopes Quirino 
Estou enrolado no roupão, parado em frente à janela com algumas ideias atordoantes. Esqueço do tempo, continuo ali sem dar bola para o relógio, cujos ponteiros vagam mais que o próprio dono do reflexo na vidraça. O maquinário talvez esteja fraco, não é suíço, é chinês. Talvez por isso ele se demore e, de súbito, pare algum dia, provavelmente no dia em que eu mais precise saber das horas.
Imagino estar cruzando a Av. Paulista em um dia nublado, com um pouco de pressa, atordoado pelas ideias que não me largam. No pensamento, carrego uma porção de sacolas que marcam meus braços esguios. Estou com uma camisa de botões de manga curta, na mochila, agasalhos se apertam com livros, blocos de anotações, remédios, necessaire, meias sujas, a roupas de ontem, depois de dormida e suada. Algum dia ainda é verão.
Estamos no verão. Impossível não lembrar da Bethânia com o vozeirão grave no dueto com Adriana Calcanhoto. Escuto “Estamos no verão, se é noite e faz calor/ para que serve uma canção como esta?”. De repente, estou na mesma avenida saindo do Blue Note, no Conjunto Nacional. Era em algum dia de verão. Desisti dali e desci a rua Augusta para comer um sanduíche sírio.
Não há relógio e nunca houve. As horas se espreguiçam, infernais, jogando ao tempo e fora dele, irreversível, uma possibilidade de voltar a refazer os passos de algum dia, quem sabe entrar no bar de jazz? Descer o lado oposto da rua? Voltar para casa? Não, não faz sentido. Os dias se arrastam lentos, caminhando para um suposto inverno, inverso do verão, onde as noites quentes embalavam o tempo sem pressa. Até que demorou para chegar aonde chegamos. Se eu soubesse, aproveitaria um pouco mais, não andaria com pressa. Nesse momento puxo a cadeira e me sento, tomei o último gole do capuccino e começo a trabalhar pela manhã.
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croniquismo · 4 years
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Um bom dia para nascer
por Matheus Lopes Quirino  para Nathan Como um pobre coitado que está a limpar as folhas secas que estão na calçada, com nada mais que um rastelo, nada adianta. Vem o vento e bagunça tudo. Homem, cabelos, folhas e rastelo. Estou diante do espelho daquele banheiro com louças verdes. Me encaro, mordo os lábios, torço a cara, não a ponto de ver o Diabo, pelo contrário, piso em algodão açucarado, estou a derreter ali. Saio do banheiro em direção ao quarto como vim ao mundo, no meio da madrugada, como um vulto, me confundo com as sombras da noite. Uma virada em V. Suspiro já aliviado enquanto não enxergo nada; o instinto me conduz ao leito quente, suado, com cheiros e outras tantas palavras que repousam naquele colchão no chão. Tudo incrivelmente ganha um sentido nebuloso. Como se a cigarra da Alice soltasse um copioso jato de vapor por todo aquele quarto, todo aquele apartamento, todo o centro da cidade. Os dias de verão são úmidos e nebulosos como aquele quarto naquele estado, nós dois ali no chão em meio a palavras, meias, cuecas, comprimidos para alergias e anti-inflamatórios, livros da Penguin Books e jornais amarelados, necessaires com pílulas para hipocondria, muitos copos de água, todos vazios e um abajur vermelho com luz amarela. Respirava fundo tentando não fazer barulho, estávamos meio dormindo, meio acordados. Ia me encaracolando ali onde o silêncio reinava, mas em minha cabeça um turbilhão de vozes com perguntas lavrava esta selva tropical que pensa em flores e frutos proibidos. Lá atrás no espelho ri. Ri porque pensei em todas as palavras jogadas ali no colchão. Nas que não precisavam ser pegas com a mão e enfiadas na boca como uma pílula. Pois já estava fazendo efeito. E aquilo ia surgindo como a luz natural que entra no quarto pela manhã. Quando não há jeito se não ser desgarrado pelo despertador, mas, no fundo, pelo mundo. Felizmente o mundo dá tréguas aos domingos, mesmo que se desgarrar seja necessário: macaqueamos em outros galhos, voltando à toca, à noite. Sibilos, vozes, forro, cuícas, garrafas sendo atiradas no asfalto, gargalhadas sendo ouvidas de quem habita fora daquele quarto, daquele apartamento, do centro da cidade. Estamos de novo no escuro. Na pira dos acrobatas, coelhos saindo e entrando em cartolas fictícias e o faquir engolindo com maestria um ou outro canivete. "Pum, pum". Não há plateia para aplaudir silenciosamente. O soslaio denuncia. Dai vem uma série de perguntas com as palavras jogadas ali no chão ou no colchão. E andamos com elas na cabeça, esperando a deixa para dizer sem tanto negrito ou caixa alta. Ou só saber mesmo, quando os pequenos atos denunciam aquilo que os subterfúgios do grande circo místico acaba por suspender no ato da corda bamba da juventude. Sai da boca um verso triste de poesia. Depois um feliz, como se os dois se completassem. Abrem as flores noturnas e já não consigo mais parar de sentir aquilo com aquele ser ao meu lado. E já não bastasse a memória falhar, a perna tremer, o escuro ser bem-vindo para olharmos mais atentamente um ao outro, já não bastasse tudo isso, sobe um sotaque português a entonar os versos de uma poetisa com pé nestes trópicos. No dia seguinte, ele deblatera com o tempo e o mundo para ficar mais meia hora, e eu continuo mudo assistindo, esperando o momento certo pra usar a palavra certa. É assim, entre os silêncios do não dito, talvez dissesse "tudo bem", mas mais: demonstrasse. É neste momento que açoito a Vênus que me rege, sob o signo de Gêmeos. Aquela Vênus anti-Milo que está para ocultar o que sentimos. Como um escudo para não se deixar ser penetrado pelo que já se apoderou do nosso corpo. Apenas não dizemos o já sabido. E tudo bem. Olho para o cartaz da Sônia Braga e lembro da música "Hoje", do Taiguara. E foi hoje, nessa madrugada, já na troca com a Aurora, é hoje que me vi sem saber dizer, escovando os dentes na pia de louça verde. A enfrentar as caretas que levam ao Diabo, a saber que talvez exista, sim, volta. Mas já não será mais a mesma coisa. E o horóscopo repousa na mesa ao lado da garrafa de café preta de plástico. Ao lado dela, uma caixa de bombons finos, lacrada. E ela é para mim. O horóscopo está bom, Netuno e Plutão estão em trígono, é a primeira vez que provo aqueles bombons, daquele jeito. Taiguara se mistura com Debussy, o sol renasce e a cortina já não encobre mais nada. Sou um desses bichos de concha que saem da areia e andam de lado. Às vezes como um vulto entre quarto e banheiro, às vezes como certos fantasmas que vivem entre o espelho, a rua e a alma. É encantador o retrato que vejo naquele quadro. O dia nasce, a nuvem se dissipa. Calço os sapatos ao som de Madonna, mexo no emaranhado de fios caracol e rio, novamente, sem dizer uma palavra. Elas estão espalhadas pela cama, pelo chão, pelas paredes do apartamento e os caminhos pelas ruas, pelo centro da cidade, pelos restaurantes, padarias, cafés, pela loja de bugigangas japonesas, pelas travessas, vielas, pontes, periferias. Pelo idílico e o natural, pela selva e o asfalto. Pelo tempo e tudo que há fora dele, irreversível. Pelo que simplesmente é e está ali no suspenso do silêncio. Abrimos os olhos e já é de manhã. É um bom dia para nascer.
19.05.2020 - Viagem à roda de meu quarto - Quatrocincoum 
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croniquismo · 4 years
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Meio sol em 2021 ou O ano que não começou
por Matheus Lopes Quirino
Na madrugada de 10 de janeiro, um príncipe Indiano saiu de seu elefante, cercado por uma cidade de camundongos, e foi beijar a mão da amada, em plena Times Square. Acordou. Do primeiro olho descolou a seguinte frase: “Das xícaras sujas de ontem, o café de cada manhã é servido”. Começou o dia um tanto poético, sem se dar conta do limbo que o mundo lá fora se afundava.
“Quando eu quiser falar, alguém vai me escutar?”, escutou no rádio, antiguinho aparelho portátil da Phillips, saído de alguma gaveta do porão. Depois “E daí? Segue a Vida”. Sobe a insuportável vinheta das manhãs. Desce as escadas para o dia que se esparrama pela sala de estar arejada de sol. Sol. Sol. Para. Pensa um pouco sobre as súplicas gratuitas que saíam aleatórias dos pulmões do rádio. Pensa em colocar um podcast para começar o dia informado. Prefere ficar ali, entre as ondas do sol, a levar outro soco gratuito.
Não é sabido escutar notícias. Não pela manhã. A hora do sol é inalienável. Tapete. Chão. Alonnnnnggggggaaaaammmmmmeeeeeeennnnnnnttttttttto. Pronto. Alguém já tocou as pontas dos dedos dos pés e sorriu? Alguém em toda história fez isso? Levanta-se para colocar a água do café para ferver. Olha no calendário de papel em imã na geladeira: julho de 2020. Não está certo. O dia de hoje não existia naquele calendário, portanto, não existia. Era uma ilusão, uma loucura da sua cabeça.
Certo, o Iphone vibrava, dando bom dia, analisando as últimas pedaladas, a frequência cardíaca, traçando rotas, exercícios, testes, dando prognósticos, avaliações, números, números, números. Com um bonequinho tipo manequim de zinco pintado de preto, com áreas prateadas protuberantes: faça mais bunda, faça mais perna. Para bater a meta de corrida semanal, ele precisaria correr duas semanas seguidas, sem parar. Algum personal trainer resistiria a esse malho?
O dia estava começando. Finalmente, depois de acordar dos dias tirados do trabalho, da bermuda folgada de linho, das sandálias surradas de couro de outra estação, do ballet improvisado, das reprises de novela no canal Viva, depois de receber o jornal impresso aos fins de semana e ler com atenção o horóscopo, uhm, depois de alongar, talvez, por uma hora, e falar consigo mesmo. Depois da ruína das festas e da saudade que tilintava sua tacinha de champanhe no dia 31, e de todas as coisas que lembravam talvez aquele 2020 que havia parado a folhinha. O presente era atestado com uma casa silenciosa, repleta de luz, com quartos vagos.
Solidão? Não. Eu sou jovem. Pensa ele. Ansioso com o noticiário, sem estar de colete a prova de tudo. As férias acabaram. Mas não volta a São Paulo. Não volta. Naquela casa onde as portas rangem, o passado é delineado por pequenas coisas, o rádio antigo, o calendário, o impresso de fim de semana, a hora de saudar o sol, todas as manhãs, e sentir o sol mais cordial do que nunca, mesmo casmurro em alguns sábados.
Reparou: do final de 2020 para cá, sem exceção, todos os sábados se choveu. Chuva e sol, casamento de espanhol! Sempre pensava nisso quando associava as palavras sol + chuva. O relógio marcava 05:43 da manhã. O cheiro de pinho sol estava forte. Talvez tenha vazado. Talvez tenha vencido.
As suas manias não combinavam com a idade. Um moço jovem, bonito, forte, com mãos lindas esculpidas por um Caravaggio. Escuta radinho, come salada de frutas, anda de bicicleta pelas faixas vermelhas da sua cidade do interior. Sabe, mais: acorda junto com o sol, esse menino.
Desde a virada dos ponteiros naquele último dia do ano passado, desde lá ou de março, não sabe ao certo, entrou-se na prorrogação de um tempo sem tempo, onde cada manhã, como no refrão da Bethânia, o café de cada manhã é servido. As louças só não estão sujas porque não há mais ninguém na casa.
O dia está lindo para amanhecer, se alongar, talvez até sorrir alcançando a ponta dos pés. Não há mal algum. Perder o celular algumas vezes. Ver o horóscopo do dia, aguar as plantas, tomar um banho quente, esquecer um pouco da vida no coração da cidade do interior. Esquecer um pouco de si, e de todo passado, de tudo. A água do caneco seca e um cheiro de metal queimado invade suas narinas. Esquecer de tudo, menos do que ficou no fogo, talvez desde o ano passado.
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croniquismo · 4 years
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Um compêndio de aflições
por Matheus Lopes Quirino 
A alegria muito deve à tristeza. Como um rosto que é lavado rapidamente por um jato de água fria de uma pia gélida e manchada, acordamos de sonhos intranquilos, os olhos repletos de secreção que condensam os cílios. Abandonamos o leito quente para passar lânguidas manhãs apertando calos dos dedos. Cara amassada. Não mais do que o peito, talvez haja um furúnculo cavado no jardim do viço. Tenho dor de estômago quando bebo Coca-Cola pela manhã. O Cantagalo inteiro escuta o meu chiado, enquanto desço as ruas apertando os braços contra a barriga como um filhote de cruz credo, como aquele corcunda de Paris que acabaria no garrote.
Charada: “Posso ser belo, ao mesmo tempo que sou asqueroso”. Está nas escrituras sagradas. Por um cheiro de rosa e tempero indiano, um vizir surge de uma nuvem como um emissário do mau. Tudo não passa de um sonho e a charada me acompanha por um mês, dois. É uma constante cadeia de problemas. Mas não é exatamente tristeza. Prefiro mudar de personagem e ser um tenista com o braço quebrado. Talvez, de pronto, ele não reconheça a beleza de ficar parado, e mande ao inferno a gravidade e os deuses do Olimpo. Do outro lado da cidade, um homem sofre de vertigens, tão fortes que é impossível se quer dar um passo sem estar em um rodamoinho. Ele invejaria o tenista em outros tempos. A água cai de uma boca de torneira em uma tarde feia num rincão. As pás do moinho giram lentamente a água do filete. O tempo está cada vez mais seco.
As flores tristes abrem pela manhã. As cheias de felicidade começam a abrir nos finais das tardes. Elas são secas e gordas e parecem com naturezas mortas tipo óleo sobre tela. Um dia precisei sair para comprar um ramalhete de flor e acabei me perdendo no meio do caminho. Tinha lavado o rosto, estava com um braço quebrado por causa do tênis. Tomei Coca-Cola pela manhã. Me dava gastura e vertigem e nesse momento senti um calor.   Estava no ônibus pensando tão rápido, tão rápido, que não ordenavam meus pensamentos. Pense et nominus, avec m... eu sou amor da cabeça aos pés.
Foi um dia rubro. Tão alaranjado que, assim, parecera plutão. Plutão não, Marte. Eu pensava em coisas malucas assim, enquanto limpava minha flauta transversal para pedir esmolas no centro da cidade. Agora a história começa. Preciso de uma boa voz para contar meus versos, talvez acompanhe um ritmo maluco que não seja propriamente humano. Seja coisa do sobrenatural. Da cruz torta, das galinhas mortas, das tardes quentes, das danças frescas, dos homens crentes. Minha história começa assim:
I
No dia um do descobrimento
Um’Alma pousou na flor, com arrependimento
Arramalhou-se pelo quintal, tocou o umbral
Verteu à terra,
Abriu como flor no inferno
No planeta glacial, fez-se fugidia rameira em busca dos cascos
Como uma égua a parir de Pégaso
Ela mastiga as folhas e flores do destino.
No ano seguinte, nasceu Salvador Dali,
Aquele que domou o diabo e soube plantar a semente exata no vaso
Principiou chuva, sorriso escasso, terra seca, vá embora!
Homem perneta, flor amarela, algo debaixo do braço
II
Era uma menina linda que fazia inveja nas outras com sua caminhada. Tão terna, delicada, fazia as flores suspirarem, com medo de que enveredasse a canteiros terrenos. Como podia, jovem menina, arramalhar-se com o cravo vadio. Aquele espécime que crescia como erva daninha, bico de harpia. Vazio, ali no jardim do vizinho. Esperando o beijo tácito da menina que passava com a pasta do grupo escolar debaixo do braço. A história se estendeu até o jardim ser consumido pela mata, a mata pela floresta, a floresta pela promessa, a promessa pelo fogo, o fogo pelo ocidente e o ocidente por um pássaro proibido que partia das margens do mundo. Como um aviso prometido ao cravo, que murchou ao fim do dia, quando não foi colhido.
III
A colher que leva o remédio até à boca é um tanto cruel. Não é de porcelana ou barro, ouro ou prata, não é de plástico ou de papel. É uma colher de madeira, cuja concavidade suja é lavada por água fria, da mesma pia que lava o rosto quente pela manhã. Que desperta da vertigem o homem ensandecido, que dá água ao tenista depois do jogo, quando a tarde é tão quente, mais tão quente, que mais se parece Saturno a terra, embora as matas cresçam ao meu redor.
IV
Mentira. Eu não quis dizer isso.
Mas disse.
Eu não quis fazer.
Mas fez.
Não faria outra vez.
Não acredito.
A culpa não foi minha.
E de quem diabos foi?
A culpa é do destino.
O destino. Esse menino caiçara sem mar, essa flor que murcha nos finais das tardes, este tenista com os braços quebrados. Este homem que cambaleia até ir ao chão. Esta torneira emperrada que não lava a cara. A colher que derruba o veneno antes dele penetrar minhas veias, minhas vísceras, contar meu viço, me fazer serpente.
V
Eu o amo na medida do inexpressável. Como um universo que é feito por uma força, não remedeia as ordens de deus, esse anfitrião do destino, que serve uns uísques para cada astro na sala escura. Ele está comigo neste momento, uma mão sangra e a outra reluz.
VI
Arrependimentos. Sofrimentos. Paixões aterradoras. Casos fugazes. Um bom currículo. Uma fixa meio limpa, meio suja. Uma garrafa de cerveja enterrada em uma praia deserta, onde nenhum ser humano nunca pôs os pés. Uma nota baixa no colegial. Os planetas alinhados. A primeira mordida. Um pão de fermentação natural. O primeiro sexo. O segundo sexo. O terceiro sexo. O último sexo. Uma casa com encanamento de gás natural. Uma mulher perfeita, como a virgem maria. Um vago pretexto para escapulir. Muitos perigos que rondam os sonhos. Uma perna quebrada em um jogo de tênis. Um monstro inventado para me por a dormir. Um outro dia nascendo. Uma cor diferente. O vermelho e o negro. Uma possibilidade de amor sincero. Um saquinho de frutas secas caídas. Um chá de cúrcuma que mata insetos. Uma frase sem sentido dita depois da outro. Um arrepio do avesso. Um soluço que imita um sussurro. Um tempo pecaminoso à frente. A eterna culpa descansa.
As aves põem ovos nas praias desertas. As almas trafegam pelas vias férreas. Uma mãe chora no rosto do recém-nascido, recém morrido. A cabana é destruída pelo vento. O ardor é um dos ingredientes da prosa afobada. O lírio é um homossexual enrustido. O cravo, um canalha. A begônia é uma dona obesa e tímida. A calêndula é uma senhora transcendental.
Sexo tântrico. Musica alta. Açaí, avião. Djavan, Djavú. O carro anda uma milha no escuro até parar no meio da estrada.
Há um buraco entre a próxima estrada e a pausa.
Uma lebre rasga o caminho e é arremessada feito uma corça por um bisão.
Estamos trabalhando sem acidentes há 48 dias, exceto pelo coelho, que não deveria estar onde está.
24.08.2020 - Viagem à roda de meu quarto - Quatrocincoum
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croniquismo · 4 years
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Cidra de pêssego Cereser
por Matheus Lopes Quirino 
Ela estava lá, nos fundos de uma gaveta de saladas, na geladeira. Não sabíamos há quanto tempo, seu rótulo havia sido borrado pela umidade das verduras, mas a validade estava cravada no vidro, em outubro de 2019. Pensei rápido, não deveria a cidra vencer logo no próximo ano? Digo, em um começo, ainda em janeiro, para dar espaço às outras colegas que disputam na gôndola uma mão amiga para festejar. Não é qualquer bebida: é uma cidra cereser de pêssego. Ela é mais do que especial, a começar pelo rótulo, cujo pêssego fotoshopado está em derrapada, pegando uma onda fresca de cidra cereser, reluzente, maduro, corado, com uma folhinha quase caindo de um cabinho em seu orifício. Como a lingerie prestes a ser arrancada, no caso da cidra, com os dentes, num ímpeto de ano novo. E olé! A mandíbula de quem desata essa bebida é diferente da de quem bebe Veuve Clicquot. Provavelmente é alguém mais eloquente, acostumada a morder e mastigar um pedaço de carne dura. Não só por questões de dinheiro. Claro, uma custa 5, a outra 500. Mas falemos de paixão, não só de sofisticação. O espírito que envolve a cidra de pêssego é peculiar, pois a cidra é só um detalhe na mesa, é mais um líquido a ser ingerido numa sequência química de porres em alguma mesa de plástico da Brahma em uma praia bem lotada no guarujá. Já a Veuve não, ao fundo, tem mística clássica é um garçom que chega com abridor. Mas se fossemos comparar a prima rica com a prima pobre, seria um clichêzão. E não falo de gente, nem de quem bebe cidra ou Veuve, não. Falemos das bebidas em si, do formato da garrafa, da pompa, da disponibilidade. Quem nunca viu uma criança manusear no mercado uma cidra, seja ela de qualquer natureza, atire a primeira pedra. Quando a mãe vem gritando “Filho, larga isso! É vidro! É álcool!”. Coitada da garrafa, dedilhada, sacudida, com o risco de explodir e virar um monte de cacos e uma viscosa mancha fedorenta no chão. Já a Veuve é poupada dessa malemolência. Ela é dont touch. Sua caixinha está lá, mas ela está bem guardadinha no armário de vidro dos cigarros. Se quem pode coloca as mãos ali, e não fica dedilhando indiscriminadamente, falamos de uma senhora, uma viúva, que provavelmente nada tem a ver com o pêssego photoshopado. Agora sim, a cidra cereser lá do fundo da gaveta. Ela apareceu. Estava vencida e precisaríamos dar um fim em sua existência. Comemorar ano com champanhe vencida deve dar azar — se for cereser, ainda... E nem para ser uma Chuva de Prata, uma Espuma de Prata, quiçá uma Salton em promoção. Todas elas passam no teste, porque só a cereser de pêssego é o cúmulo do absurdo. Ela está para o mundo das bebidas como a pizza de estrogonofe está para o mundo das pizzas. É muito esquisito. Juntar um espumante com uma fruta. Ainda mais o pêssego, algo incomum na rotina de tantos brasileiros. Come-se banana, come-se maçã, abacaxi, laranja, uvas, melancia, mexerica, melão, coco. Mas nada de pêssego. O pêssego também é uma fruta de elite, assim como os damascos e as nectarinas. Não faz sentido esse crossing over, seria como um cruzamento proibido de castas em outros tempos. Só há recriminação. Mas sempre tem alguém que gosta. Pelo contrário. Nunca vi ninguém falando da tal cidra de pêssego. Nem citando, quanto menos postando foto com uma garrafa dessas de cidra de pêssego cereser. A campeã fotogênica é a Chandon. Möet, Brut, etcetera. E não é nada demais, a Chandon também não está aos pés da viúva. Na pirâmide social dos espumantes, ela mora na Tijuca. É a nova rica, badalada, moderna, que fala inglês enrolado e vota no partido novo. A viúva é a rica da velha guarda, não sabe o que é selfie. Mas aparece de vez em quando em alguma coluna social. Mas a cereser de pêssego, essa sim, nunca teve seu lugar devidamente reconhecido. Nem para assumir a sua natureza transgressora, quebrando todos os protocolos ao misturar álcool barato com fruta cara. São dois mundo em um só lugar. Para o ano novo, ao menos uma vez, deem a chance à cidra cereser sabor pêssego. Juro que não ganhei nada, mas perdi cinco reais, pois a minha acabou de ir ralo abaixo.
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Uma vida pela frente
Uma vida pela frente por Matheus Lopes Quirino para Nathan Nós subíamos a Rebouças antes do próprio tempo. Talvez o destino, essa espécie de padrinho, esse arquétipo do Mestre dos Magos, estivesse mandado à terra alguma pista do que estava por vir, pista essa que só depois, bem depois, acabamos encontrando, sem precisar desvendar coisa alguma, já tendo chegado ao destino sem perceber. No clique da maçaneta, andei em direção ao janelão que dá para a rua: a noite caiu depois de muito agitar as nuvens, sem pedir para bater à nossa porta. E lá estávamos nós, em nosso último dia de carnaval, ligados pelo confete grudento, a árida sede, conforme despejamos os penduricalhos e adereços em um caixote de madeira. O carnaval era apenas uma via lotada, no meio do caminho, entre um ano e outro. Sem fogos, ano novo, sem areia, sem contagem regressiva. Ainda havia confete na rua quando demos o último beijo. Só aí o ano acabou. Enquanto subíamos a Rebouças, para entrar na Consolação, senti um aperto, um aperto quase conjunto, que ele sentiu. Eu sabia que ele sabia. E ele tinha percebido. Mas talvez fosse o mundo prestes a desabar, ou a noite em claro por causa da bebida barata e quente. Ou a rua Augusta imunda na quarta-feira de cinzas, ou o último adeus na esquina da Cesário Mota com a Marquês de Itu. Quando o ano estava prestes a começar. Quando a vida dava lugar à morte. E, mesmo assim, insistimos, até os últimos segundos antes do desamparo. Como quando as crianças têm à mão um sabonete de glicerina e ele pula como peixe. Não desiste. E dá pirueta feito um golfinho de circo, não deixa a superfície do chão sujar a limpeza, ou a limpeza interferir ali. É um toque inapropriado. É uma ação contra a natureza. Não parava de pensar na volta. Mas ainda não tinha acontecido. Estávamos apenas há uma semana sem tocar o outro. Era duro. E a coisa teve seu ápice um mês depois, quando, aos prantos, me vi fechado feito uma concha, com uma pérola engasgada. Do outro lado da linha, lá ele está. Hoje terminamos a ligação mais cedo. Cocei a barbicha e comecei a pensar. O ano acabou há cinco meses. Estamos esperando setembro. Eu penso: quando setembro vier, vou fazer uma viagem. Quando setembro vier, vou acender uma luz. Quando setembro vier, vou pegar o primeiro ônibus em direção à Terra do Fogo. Quando setembro vier, talvez ainda haja tempo de celebrar. E quando setembro vier, se ainda restar vida, se ainda existir abridor de garrafas, nada mais justo do que brindar ao que não aconteceu. O tempo morto. As queimaduras, as horas feridas. O sexo rijo. Os ponteiros partidos. Os sonhos desgovernados por quartos escuros. As inconsequências do engano, os rabiscos não feitos, as histórias morridas antes de começarem. As voltas pelo quarto pelas muitas horas sem descanso, durante todos os dias, ainda nesse ano que finda em alguns dias. Como se fantoches tomassem para si as responsabilidades do noticiário. Ficamos suspensos numa bolha, os ônibus cortam os sonhos e sua pele é distante. Eu espero que o ano comece em setembro. Embora ele tenha acabado em março, abril. Essa fenda que nos encontramos, fora do tempo, fora da vida, fora de si mesmo. Dias andando em círculos. Lembrando das últimas gotas que caíram do chuveiro. Do adeus, do abraço, do último aceno. Do beijo que podia ser mais demorado, e por isso ele foi lembrado. Pois não sabíamos. O ano terminava para entrar em recesso por tempo indefinido. Estou em casa escrevendo tarde da noite, como sempre. Penso em você todas as horas. E desde que entramos nesse túnel do tempo moribundo, sonho com você todas as noites que não são noites. Me confundo com o presente e o encanto, o absurdo. Preciso apertar os olhos. Estou deitado na cama chacoalhando os pés, contando os dias que precisam ser engolidos o mais rápido possível. Como se eu mordesse a língua feito um epilético toda vez que faço contas, que quebro compromissos, que largo tudo e, segundos depois, desisto porque não tenho coragem de celebrar o novo ano sem estar contigo. Me reduzo a um piegas, acabou a luz e a música. Você sabe dos meus problemas com as pistas de dança, e eu espero mais uma vez contar com você naquela troca de faixa. Sem que se saiba que é a primeira do disco que adoramos ouvir juntos enquanto fazemos hora, antes de ir a algum lugar. Aposto que a música do ano novo será “Azul”, da Gal, e ela vai tocar do seu aparelho telefone no aparador. À meia luz, respiro todo ar da cidade, pareço ter nascido ali mesmo. Como antes do mundo acabar. Ao seu lado, no criado mudo, repousa um carregador plugado na parede, mas sem o aparelho. Ao lado dele, as inúmeras cápsulas de medicamento para tosse ou dor de barriga, algumas moedas e as palavras cruzadas. Em cima do livro do Tanguy Viel, estão nossos óculos. Do ano passado para cá, devem ter passado uns cinco meses. Nenhum de nós tem certeza. Talvez em algum lugar do quarto esteja um adereço esquecido, que só agora faça sentido, ou mereça devida comemoração.
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