Tumgik
datafromanon · 3 years
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Durante muito tempo, deitava-me cedo. Às vezes, mal apagada a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: “Vou dormir.” E, meia hora depois, a ideia de que já era tempo de conciliar o sono me despertava: queria deixar o livro que julgava ainda ter nas mãos e assoprar a vela; dormindo, não havia deixado de refletir sobre o que acabara de ler, porém tais reflexões haviam tomado um aspecto um tanto singular; parecia-me que era de mim mesmo que o livro falava: uma igreja, um quarteto, a rivalidade de Francisco I e Carlos V. Essa crença sobrevivia por alguns segundos ao meu despertar; não ofendia a razão, mas pesava como escamas sobre os olhos, impedindo-os de perceber que a vela já não estava acesa. Depois, principiava a me parecer ininteligível, como, após a metempsicose, as ideias de uma existência anterior; o assunto do livro se desligava de mim, eu ficava livre para me adaptar ou não a ele; logo recobrava a vista e me surpreendia bastante por estar rodeado de uma obscuridade, suave e repousante para os olhos, porém ainda mais talvez para o espírito, ao qual surgia como uma coisa sem causa, incompreensível, como algo verdadeiramente obscuro. Perguntava-me que horas poderiam ser; ouvia o silvo dos trens que, mais ou menos afastado, como um canto de pássaro na floresta, assinalando as distâncias, me informava sobre a extensão da campina deserta onde o viajante se apressa em direção à próxima parada: o caminho que ele segue vai lhe ficar gravado na lembrança pela excitação de conhecer novos lugares, praticar atos inusitados, pela conversação recente e as despedidas sob a lâmpada estranha que o seguem ainda no silêncio da noite, e pela doçura próxima do regresso.
Apoiava brandamente as faces contra as belas faces do travesseiro que, cheias e frescas, são como os rostos da nossa infância. Riscava um fósforo para ver o relógio. Quase meia-noite. É o momento em que o enfermo, que teve de viajar e ir dormir num hotel desconhecido, acordado por uma crise, se alegra ao distinguir debaixo da porta um raio de luz. Felicidade! Já é dia! Daqui a pouco os criados vão se levantar, poderá tocar a campainha, virão prestar- lhe socorro. A esperança de ser aliviado lhe dá coragem para suportar o sofrimento. Ainda agora pensou ouvir passos; os passos se aproximam e logo se afastam. E o fio de luz que estava sob a porta desapareceu. É meia-noite; acabam de apagar o gás; o último criado já se retirou e é preciso ficar a noite inteira sofrendo sem remédio. Voltava a adormecer, e às vezes só despertava por um breve instante, suficiente para ouvir os estalos orgânicos do madeirame, abrir os olhos para encarar o caleidoscópio da escuridão e desfrutar, graças a um clarão momentâneo da consciência, do sono em que estavam mergulhados os móveis, o quarto, aquele todo do qual eu não era mais que uma parte ínfima, e a cuja insensibilidade rapidamente regressava. Ou então, enquanto dormia, havia regredido sem esforço a uma era para sempre passada da minha vida primitiva, voltando a encontrar alguns de meus terrores infantis como o de que meu tio-avô me puxasse pelos cachos do cabelo e que se dissipara no dia em que — data, para mim, de uma nova era — os havia cortado. Este acontecimento, eu o esquecera durante o sono, porém sua lembrança vinha-me logo que atinava em despertar para fugir às mãos de meu tio-avô, e por medida de precaução envolvia completamente a cabeça com o travesseiro antes de retornar ao mundo dos sonhos. Às vezes, como Eva nasceu de uma costela de Adão, uma mulher nascia durante o meu sono, de uma falsa posição de minha coxa. Originária do prazer que eu estava a ponto de sentir, julgava que ela é quem o oferecia. Meu corpo, que no dela sentia o meu próprio calor, procurava unir-se a ele, e eu acordava. O resto dos seres humanos parecia-me algo bem remoto comparado àquela mulher que eu havia deixado momentos antes; minhas faces ainda estavam quentes do seu beijo, meu corpo sentia-se dolorido pelo
peso do seu. Se, como às vezes ocorria, ela apresentasse as feições de uma mulher que conhecera na vida, ia dedicar-me totalmente a esse objetivo: encontrá-la de novo, como os que seguem viagem para ver com os próprios olhos uma cidade desejada e imaginam ser possível desfrutar, em uma realidade, o encanto do sonho. Aos poucos, a sua lembrança se esvanecendo, eu esquecia a filha do meu sonho. Um homem que dorme sustenta em círculo, a seu redor, o fio das horas, a ordenação dos anos e dos mundos. Ao acordar, consulta-os por instinto e neles verifica, em um segundo, o ponto da terra em que se localiza, o tempo que transcorreu até o seu despertar; mas essa ordem pode se confundir e romper. Se, pela madrugada, após uma insônia, o sono vem surpreendê-lo durante a leitura, numa posição bem diferente daquela em que costuma dormir, basta seu braço erguido para parar e fazer recuar o sol, e no primeiro minuto ao despertar já não mais saberá as horas, achando que mal acaba de se deitar. Se adormecer em posição ainda mais desusada e diversa, por exemplo depois do jantar, sentado numa poltrona, então a reviravolta será completa nos mundos fora de órbita, a poltrona mágica o fará viajar a toda velocidade no tempo e no espaço, e, no momento de abrir as pálpebras, julgará estar deitado alguns meses antes, numa região diferente. Bastaria, no entanto, que eu estivesse dormindo no meu próprio leito e que meu sono fosse profundo, para relaxar-se a tensão do meu espírito; então, este perdia o plano do local onde eu adormecera, e quando eu despertasse no meio da noite, como ignorasse onde me encontrava, nem mesmo saberia, no primeiro instante, quem era; tinha somente, na sua simplicidade primitiva, o sentimento da existência tal como pode palpitar no íntimo de um animal; era mais carente que o homem das cavernas; aí então a lembrança — não ainda do lugar em que estava, mas de outros onde havia morado e onde poderia estar — me chegava como um socorro do alto para me livrar do nada de onde não poderia sair sozinho; num segundo, eu passava por sobre séculos de civilização e a imagem confusamente entrevista de lampiões de querosene, e depois, de camisas de gola virada, recompunham aos poucos os traços originais do meu próprio eu.
Talvez a imobilidade das coisas ao nosso redor lhes seja imposta pela nossa certeza de que tais coisas são elas mesmas e não outras, pela imobilidade de nosso pensamento em relação a elas. A verdade é que, quando eu assim acordava, meu espírito agitando-se para tentar saber, sem o conseguir, onde me encontrava, tudo girava ao meu redor no escuro, as coisas, os países, os anos. Meu corpo, entorpecido demais para se mexer, buscava, segundo a forma do seu cansaço, localizar a posição dos membros para daí deduzir a direção da parede, a situação dos móveis, para reconstruir e denominar a moradia em que se achava. Sua memória, a memória de suas costelas, dos joelhos, dos ombros, lhe apresentava sucessivamente vários quartos onde havia dormido, ao passo que em seu redor as paredes invisíveis, mudando de lugar conforme o aspecto da peça imaginada, giravam nas trevas. E antes mesmo que meu pensamento, vacilante no limiar dos tempos e das formas, tivesse identificado o aposento para reunir as circunstâncias, ele — meu corpo — recordava, para cada quarto, o tipo de cama, o local das portas, o lado para onde davam as janelas, a existência de um corredor, tudo isso com o pensamento que eu tivera ao adormecer e que voltava a encontrar quando despertava. Meu flanco anquilosado, procurando adivinhar sua orientação, imaginava-se, por exemplo, ao longo da parede em um grande leito de dossel, e eu logo me dizia: “Ora, acabei dormindo antes que mamãe viesse me dar boa-noite”; estava então no campo, em casa do meu avô, morto havia muitos anos. E meu corpo, o flanco sobre o qual estava deitado, guardião fiel de um passado que meu espírito jamais deveria esquecer, me recordava a chama da lâmpada de cristal da Boêmia, em forma de urna, suspensa do teto por pequenas correntes, a lareira de mármore de Siena, no meu quarto de dormir de Combray, na casa de avós, em dias longínquos que naquele momento eu julgava atuais, sem deles formar uma ideia exata e que voltaria a ver bem melhor dali a pouco, quando despertasse completamente. Depois renascia a lembrança de uma nova atitude; a parede fugia em outra direção: eu estava em meu quarto na casa de madame de Saint-Loup, no campo; meu Deus! São pelo menos dez horas, já devem ter acabado de jantar! Devo ter prolongado demais
a sesta que faço todas as tardinhas ao voltar do meu passeio com madame de Saint-Loup, antes de pôr a casaca. Pois muitos anos haviam transcorrido desde o tempo de Combray, onde, em nossos regressos mais atrasados, eram os reflexos rubros do poente o que eu via nos vidros da minha janela. Bem diverso é o tipo de vida que se leva em Tansonville, na casa de madame de Saint-Loup, diverso o tipo de prazer que encontro em só sair à noite, a seguir ao luar os caminhos onde brincava antigamente ao sol; e o quarto onde terei adormecido em vez de preparar-me para o jantar, percebo-o de longe, ao voltarmos, iluminado pelo clarão da lâmpada, único farol dentro da noite. Essas evocações turbilhonantes e confusas nunca duravam mais que uns poucos segundos; muitas vezes, a breve incerteza quanto ao local em que me achava também não deixava distinguir, umas das outras, as diversas suposições de que era feita, como não podemos isolar, vendo um cavalo na corrida, as posições sucessivas que nos mostra o cinescópio. Mas ora um, ora outro, eu havia revisto os quartos que habitara na minha vida, e acabava por lembrá-los todos nos longos devaneios que se seguiam ao despertar; quartos de inverno onde, quando estamos deitados, aconchegamos a cabeça com um monte de coisas disparatadas: um canto do travesseiro, a parte superior das cobertas, a ponta de um xale, a beira da cama, e um número dos Débats roses, coisas que por fim começamos a firmar bem, segundo a técnica dos pássaros, calcando-as indefinidamente; onde, num templo glacial, todo o prazer consiste em se sentir separado do exterior (como a andorinha do mar, que faz seu ninho no fundo de um subterrâneo, no calor da terra), e onde, estando aceso o fogo à noite toda na lareira, a gente dorme sob um grande manto de ar quente e enfumaçado, cortado de lampejos dos tições que se avivam, espécie de alcova impalpável, de caverna aquecida, escavada no seio do próprio quarto, região ardente e móvel em seus contornos térmicos, arejada pelos sopros que nos refrescam o rosto e provêm dos ângulos, das partes vizinhas à janela ou distanciadas da lareira, e que se resfriaram: — quartos de verão, onde gostamos de ficar unidos à noite morna, onde o luar, apoiado nos postigos entreabertos, lança até o pé da cama a sua escada mágica, onde se
dorme quase ao ar livre, como o abelharuco embalado pela brisa na ponta de um galho; às vezes era o quarto em estilo Luís XVI, tão alegre que até na primeira noite não me sentira muito infeliz, e onde as colunatas que sustentavam levemente o teto se afastavam com tanta graça para mostrar e reservar o local da cama; às vezes, ao contrário, era outro quarto, pequeno e de teto tão elevado, aberto em forma de pirâmide à altura de dois andares e parcialmente revestido de mogno, onde, desde o primeiro segundo, eu fora moralmente intoxicado pelo aroma desconhecido do patchuli, convencido da hostilidade das cortinas roxas e da indiferença insolente da pêndula, que tagarelava bem alto como se eu não estivesse ali —; onde um estranho espelho impiedoso, de pés quadrangulares, barrando obliquamente um dos cantos da peça, ocupava à força, na suave plenitude do meu campo visual de costume, um lugar que não estava previsto —; onde o meu pensamento, esforçando-se durante horas por se deslocar, por se expandir em altura, a fim de tomar exatamente a forma do quarto e preencher até em cima o seu gigantesco funil, passava noites de muito sofrimento, enquanto eu estava estendido na cama, os olhos erguidos, o ouvido ansioso, as narinas rebeldes, coração palpitante: até que o hábito houvesse mudado a cor das cortinas, fizesse calar a pêndula, derramasse piedade no espelho oblíquo e, mau, dissimulasse, senão expulsasse por completo, o cheiro do patchuli e diminuísse sensivelmente a altura aparente do teto. O hábito! arrumadeira hábil mas bastante morosa e que principia por deixar sofrer nosso espírito durante semanas numa instalação provisória; mas que, apesar de tudo, a gente se sente bem feliz ao encontrá-la pois sem o hábito e reduzido a seus próprios meios, seria nosso espírito impotente para tornar habitável qualquer aposento. Certamente, eu estava bem desperto agora, meu corpo havia dado uma última volta e o bom anjo da certeza havia fixado tudo ao meu redor, me deitara sob as minhas cobertas, no meu quarto, e colocara aproximadamente em seus lugares, na escuridão, minha cômoda, a escrivaninha, a lareira, a janela que dava para a rua e as duas portas. Mas, por mais que eu soubesse que não me achava nas residências que a ignorância do despertar me houvera por um instante senão apresentado a imagem nítida, ao menos me fizera
acreditar sua presença possível, um impulso fora dado à memória; em geral, não procurava adormecer de imediato; passava a maior parte da noite a relembrar nossa vida de outrora, em Combray, na casa da minha tia-avó, em Balbec, em Paris, em Doncières, em Veneza, em outros lugares ainda, a recordar os locais, as pessoas que ali conhecera, o que delas havia visto, e o que me haviam contado a respeito. Em Combray, todos os dias desde o fim da tarde, muito antes do momento em que seria preciso me deitar e ficar, sem dormir, longe de minha mãe e de minha avó, o quarto de dormir se tornava o ponto fixo e doloroso de minhas preocupações. Para me distrair nas noites em que me julgavam muito infeliz, haviam inventado de me dar uma lanterna mágica, com a qual cobriam minha lâmpada, enquanto esperávamos a hora de jantar; e, à maneira dos primeiros arquitetos e mestres vidraceiros da era gótica, a lanterna substituía a opacidade das paredes por irisações impalpáveis, aparições sobrenaturais multicores, onde eram pintadas legendas como num vitral vacilante e instantâneo. Porém isso fazia aumentar ainda mais a minha tristeza, pois a mudança de iluminação destruía o hábito do meu quarto, graças ao qual, salvo o suplício de me deitar, ele se me tornava suportável. Agora, não o reconhecia mais e sentia-me inquieto, como num quarto de hotel ou de um chalé, ao qual tivesse chegado pela primeira vez ao descer de um trem. Ao passo sacudido de seu cavalo, Golo, cheio de um desígnio atroz, saía da pequena floresta triangular que aveludava de um verde sombrio a encosta de uma colina, e avançava, aos solavancos, para o castelo da infeliz Geneviève de Brabant. Esse castelo era recortado conforme uma linha curva que era apenas o limite de uma das ovais de vidro inseridas no caixilho que deslizava à frente da lanterna. Não passava de um muro de castelo e tinha diante dele um campo aberto onde meditava Geneviève, que usava um cinto azul. O castelo e o campo eram amarelos e eu não esperava o momento de vê-los para saber a sua cor, pois, antes dos vidros do caixilho, a sonoridade vermelho-dourada do nome de Brabant mostrara-o em toda a sua evidência. Golo parava um instante para ouvir com tristeza a arenga lida em voz alta por minha tia-avó e que dava a impressão de compreender muito bem,
adequando sua atitude, com uma brandura não isenta de certa majestade, às indicações do texto; depois se afastava no mesmo passo sacudido. E nada poderia deter sua lenta cavalgada. Se mexiam na lanterna, eu distinguia o cavalo de Golo que continuava a avançar sobre as cortinas da janela, inflando-se nas suas dobras, afundando-se nas suas fendas. Mesmo o corpo de Golo, de uma essência tão sobrenatural como o da sua montaria, aproveitava todo obstáculo material, todo objeto incômodo que aparecesse, para tomá-lo como ossatura e torná-lo interior, ainda que se tratasse da maçaneta da porta, à qual se adaptava logo, e onde sobrenadava invencivelmente o seu manto vermelho ou seu rosto pálido sempre tão nobre e tão melancólico, mas que não deixava transparecer qualquer inquietude por essa transverberação. É claro que eu achava um encanto todo especial nessas brilhantes projeções que pareciam emanar de um passado merovíngio e faziam passear a meu redor tão remotos reflexos de história. No entanto, não poderia descrever que mal-estar me provocava essa irrupção de mistério e de beleza no meu quarto que eu acabara de preencher com o meu eu a ponto de não dar mais atenção a ele do que a mim mesmo. A influência anestesiante do hábito passara, e eu me punha a pensar e a sentir — coisas tão tristes. A maçaneta da porta, que para mim era diferente de todas as outras maçanetas do mundo, nisto que parecia abrir sozinha, sem que tivesse necessidade de girá-la, de tal modo se me tornara inconsciente o seu manuseio, eis que servia agora de corpo astral para Golo. E logo que chamavam para jantar, sentia pressa de correr para o refeitório onde a grande lâmpada do teto, sem saber de Golo ou de Barba-Azul, e que conhecia meus pais e o bife à caçarola, espalhava a sua luz de todas as noites; e de cair nos braços de mamãe, que as desgraças de Geneviève de Brabant me tornavam mais querida, ao passo que os crimes de Golo me faziam examinar minha própria consciência com maior escrúpulo.
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datafromanon · 3 years
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Vale a pena lembrar que todas as alegações da soberania humana vivem no arco entre o infravermelho e o ultravioleta; uma série de ecossistemas invisíveis coexistem ao reflexo do dia-a-dia cabal. Ao diminuir a intensidade energética da luz e da consciência, colocamos o mundo real entre parênteses para adentrar uma superfície incerta composta de seus sinônimos. Usufruindo de uma condição mais plácida, a consciência pode desenhar a estrutura de uma sensação com maior intimidade. Seremos partícipes ativos em misteriosa comunicação com as coisas. A imaginação dos sentidos, quando na verdade os sentidos do corpo podem estar pausados, se insinua como a notícia deles em uma atmosfera aquém de experimentação, da qual só é possível se apreender naquela situação. As formas sensíveis de exportar essa imaginação não conseguem assegurar a sua reprodução verossímil tal qual ela aconteceu no mundo dos sonhos. Caminhando nas ruas de um sonho, podemos ensaiar a vida sem nos poupar da paixão que temos pelas semelhanças e o resultado disso costuma ser especialmente vívido, às vezes inconspícuo quanto aos estados de suposta lucidez. Nos sonhos, somos testemunhas de eventos dos quais nos damos conta em uma situação peculiar de empirismo e os sentidos do corpo parecem ser ativados de modo muito coerente à maneira como são além-sonho, quase como se não estivéssemos compreendidos em um lugar do subconsciente. Ainda que seja difícil reproduzir para fora delas, a qualidade do nosso comportamento nas vivências oníricas, o absenteísmo do sonho causa-nos recordações. Os acontecimentos dos sonhos às vezes assemelham-se de tal forma à banalidade da vida que chegam a disputar espaço com as experiências acordadas que temos dentro de um tempo de 24 horas e, quanto mais ficamos distantes destes episódios, mais sobra para a nossa seletividade cultivar as suas factualidades, assegurar o que aconteceu ou não. Vivemos sob a determinação de que tudo pode ocupar uma medida sensível no espaço; o tempo que segue uma metodologia científica (uma contabilidade de minutos, horas e dias,) foi inventado pelo ser humano: fruto da delicada operação que é a atribuição de nomes às coisas. À medida que demora-se na leitura de um vocábulo, essa escolha é diretamente proporcional à quantidade crescente de conotações que podem surgir a partir do mesmo, abrindo-se numa fissura de entendimentos e ensaiando um rompante de novidades. O tráfego é pendular, de acordo com o peso atribuído aos movimentos: mesmo que as instâncias de um progresso composto por etapas formem algo como um movimento majoritariamente retilíneo, outros fenômenos podem impregnar esse percurso e magnetizá-lo para outras direções, tornando-o em algo curvilíneo, fazendo com que ele retroceda em algum momento; é quase como se o centro estivesse por toda parte (ao menos, neste caso). Então, o peso da forma lançada na sorte pendular pode vir prescrito de cálculos acerca da probabilidade em como ela irá se comportar; no entanto, até a alternativa mais plausível, ainda assim, é uma opção submetida à aleatoriedade.
Geralmente, existe um momento no qual percebemos como a habitação do mundo é feita através de distâncias; as formas vagam por nossas lembranças com diferentes níveis de nitidez e dispersão já que precisamos economizar alguns detalhes em detrimento da plenitude de outros. Como você consegue ter a certeza de que algo aconteceu? A memória tende a transfigurar as coisas vividas. O que sobra é algo de uma integridade particular, a qual não é inteiriça, talvez, no propósito de representar o passado, mas é responsável pela sua própria autonomia. Apetece-me pensar que os feixes de luz oferecem um jeito análogo de ensaiar a memória de procedimentos: eles, os feixes, são a eminência de algo o qual nos permite fazer a cartografia das paisagens, que é a luz banhando as coisas, quando se constroem da matéria vagante sobre tudo o que você consegue ver; então a luz verbaliza a si mesma, e a memória também. Imagino que as diferentes sensações de pertencimento aos vários âmbitos da vida pelos quais circulamos sirvam para identificarmos a contundência dos nossos cotidianos.
O primeiro interesse suscitado nesta monografia foi o de endereçar as proposições e situações de linguagem à criação artística, dando continuidade a operações perenes que foram iniciadas como respostas a provocações e problemas anteriores. Investiga-se a materialidade da palavra, na qual qualquer premissa semiótica se designa como improvável, (ainda que também seja irrefutável) conforme o desenvolvimento dos trabalhos. Estes precisaram se submeter à sua própria indeterminação, seguindo por seus apontamentos gráficos, ambicionando ativar novos sintagmas e oferecendo escuta aos acontecimentos artísticos que surgem destas experimentações. A natureza da investigação manteve-se também intricada nos problemas de conhecimento e reconhecimento das imagens. Uma série de fenômenos físicos que atravessam todos os cinco sentidos do corpo humano ganharam superfícies de contato e locução através de uma família de objetos que servem equações cambiáveis e são uma amostra (inclusive, também diagramática) do ruído ocasionado pelas circunstâncias supracitadas. À luz desta pesquisa, na vacuidade de um espaço expositivo abstrato, os objetos que compõem este arco possuem escalas, opacidades e dicções próprias que imantam umas às outras e podem se relacionar de diversos modos.
Não procure aqui, eu já saí. Eu sou um estado do futuro que através deste texto não pode se comunicar em plena comutabilidade contigo. Eu sou um resquício das minhas primeiras palavras. Depois de um tempo, é possível que a mensagem endereçada através deste texto já não faça sentido; tanto para mim, quanto para você, se é que para você ele o fez em algum momento. Se eu estivesse articulando meu pensamento através de uma sucessão de argumentos com início, meio e fim, cada detalhe se provaria como fragmento elucidativo de uma revelação maior, semelhante a um conto de detetives, uma história que não dá ponto sem nó. A partir daí, tudo que digo construiria o meu enunciado. A folha do papel tem hierarquias fortíssimas que eu gostaria de estilhaçar…
Algumas expectativas revestem os textos. Antes de surgir neste papel, este aqui foi rotulado como a contribuição escrita de um trabalho final de graduação. Ele fala com a quantidade de energia que ele é capaz de produzir. Sendo designado como um texto acadêmico, admitindo premissas do conceito de propriedade intelectual que o acompanham desde o seu nascimento.
O espelho reproduz índices? Ícones? Revelar uma imagem: velá-la novamente. Ver-se em um espelho requer uma proximidade física para com este, estar à sua periferia visual constantemente. Acontecem tantas coisas na superfície de um espelho. Os espelhos refletem, sobretudo, a si mesmos na paisagem. Tornam-se subordinados a uma certa relação de causalidade e iminência com que compõe o seu entorno. Alguns espelhos são mais ativos na hora de rebater as imagens, a exemplo de quando eles possuem rugosidades em suas superfícies. A textura do espelho está contida em uma vocação física dele que pode sujeitar o seu estado ao de uma textura na paisagem que ele reflete e não em sua própria superfície, mas é importante atentar-se para a sua presença no espaço e a sua habilidade reflexiva, impregnada de problemas gráficos. Percebe-se que o espelho carece de uma intimidade com a existência, por agenciar as formas de tudo ao seu redor, submetendo-se a uma espécie de vazio. A vontade de remover todos os contornos que zelam por algum tipo de singularidade pode causar o esvaziamento que é importante para se dar conta da quantidade de camadas de entendimento subjugadas na semântica das coisas. Enquanto a responsabilidade, a habilidade de responder, acumula um esquema de funções fadado a vacilar, os espelhos rebatem também os poderes e os encargos atribuídos à função das palavras. Às vezes, pode ser válido introduzir-se vazios nas palavras, alargá-las e decalcar delas muitas coisas que foram adicionadas para nos fazer crer que víamos tudo. Certos espelhos são responsáveis por descortinar imagens obtusas, mostrar a alguém pela primeira vez a percepção de determinadas figuras dentro do seu panorama, enquanto outros querem apenas refulgir e viver só da textura que se vê do lado de dentro. A nossa interação física na superfície de um espelho torna visível um dos índices mais polissêmicos que o corpo humano pode produzir: a condensação da água que há em nós na forma de digitais e marcas de respiração é o orvalho que, uma vez depositado, marca, entre outras coisas, a curiosidade de tocar a si mesmo, de se ver minuciosamente de perto, de se ver na perspectiva do outro, uma pausa conveniente para repousar ali e descansar as energias.
O que pensar da luz e da sua vontade incessante de se integrar ao espaço? De trabalhar os terrenos como canteiros de obra nos quais a vida humana faz seus alicerces e se abriga. É em correspondência com a eminência da luz que os seres humanos pensam seus modos de ser e de habitar a vida. À medida que nos qualificamos como seres viventes pela manutenção natural da vida, sem que necessariamente nos demos conta, estamos, também nós, ocasionando transformações geológicas ao passo que manufaturamos os nossos interesses cotidianos. Até a renovação celular do corpo humano autômato vai contribuir de alguma forma, se pensarmos que a poeira da Terra é formada por, entre outras coisas pueris, uma grande quantidade da pele que descama de nossos corpos. Estamos às voltas com a situação de entrada e saída dos meios.
O BREVE É VERBO OBREV É EVERB O
Uma película opaca pode oferecer poucas alternativas de atravessamento sob a ótica de uma leitura superficial. Quando uma massa de cor não se mistura com a predominância cromática que está ao seu redor, a superfície formada pelo seu plano pode ser a janela para a entrada em um outro ambiente, também pode ser o obstáculo que encerra atrás de si mesmo parte de um universo reservado. A partir de tais observações sobre as habilidades de uma forma opaca, imagino-a em uma relação silogística com o desenho bidimensional, na qual a folha pode ser pensada como espaço vago e a computação gráfica, por exemplo, auxilia nessa versão, à medida que a eletricidade das telas digitais as qualificam como efêmeras. Em tempo, sobre a relação silogística que povoa a prática do desenho aberto para a indeterminação sensível: digamos que se todos os espaços opacos são também espaços vagos, se o desenho desliza por esses espaços e nunca lhes penetra da mesma forma que o procedimento invasivo de uma faca ou uma goiva, então a marcação do desenho também é vaga e aponta a área de trabalho como impermeável, boia na superfície. Mas isso se dá não apenas porque ela não foi bruta o suficiente e sim porque, além disto, os valores semióticos falham para com a alegação da sensibilidade em esquemas acachapantes, que diminuem a sua gravidade. Isso pode ser pensado sobre o peso da palavra na escrita de arte, sobre o peso da palavra ensaiada no papel, no peso da palavra enquanto a consciência imaginada do seu sentido, entre outros. Se em um ensaio a palavra desvia das metonímias e fica às voltas com as suas vizinhanças, ela mostra os seus contornos mas ciente das cavidades em sua composição que talvez sejam invisíveis a olho nu. (Acachapante, 2013. Gravura sobre papel.)
De certo modo, o desenho é um caminho rápido para o estatuto da forma. Rápido não é o mesmo que fácil. Rápido pode ser sinônimo de efêmero. Efêmero não é sinônimo de esquecível. (Hyperlink, 2020. Vídeo, 59s.)
A participação gráfica no espaço das folhas de papel pode representar a submersão do desenho no vácuo ou o rebatimento da película opaca que força o instrumento marcador do traço a lhe tangenciar. Na produção de matrizes para os procedimentos de uma xilogravura, ou de uma pintura com máscaras, a erosão forma a imagem. O escavamento deixa a luz ou o pigmento entrar. No embate com as formas opacas é comum recorrer-se à destruição, ao despelamento. Gosto do embate que a superfície espelhada nos propõe. O livro pretendia guardar os detalhes do que se via, mas essa tarefa de algum modo se revelou acima de suas possibilidades no momento.
O escritor precisa silenciar uma cacofonia de falas e desejos, centralizando no conto o que é indispensável através da dicção do narrador. Ao longo do processo de escrita, a membrana que separa as suas emoções — do narrador — em estado de espírito (circunflexo, dissolvido) daquelas que vem à tona (com agudeza) no papel conduz para fora o humor mais eloquente em um tal momento, por uma osmose irresistível e que tomou conta das extremidades de seu corpo. Com o tempo, será possível dizer qual a voz que mais se sobressaiu. Se as interpelações forem muito prolíferas e causarem uma variação muito grande entre as diferentes participações, isso dificulta a possibilidade de se identificar um padrão na tessitura geral vista em distanciamento.
Há algo nas brechas deixadas pelos trabalhos de arte, braços que são capazes de articular outras perspectivas epistemológicas. Há um jeito de desenhar que admite as brechas, as falhas e as entrelinhas tão quanto a grafia de um entorno e as agencia à sua própria maneira. Quando há a liberdade de se ensaiar as formas e os destinos, quando as lacunas deixadas em uma ficção são a remissão do serviço de provar a existência das coisas, tais lacunas podem ser livremente apenas lacunas e esvaziarem-se para que outras percepções preencham o espaço que elas deixam. A repetição de sinais pode estar presente como pequenos grafismos no corpo de um trabalho, notícias que escondem o início do seu surgimento e apontam para o seu interesse de ocupar as superfícies, podendo engendrar longas peças a partir da reprodução de sua unidade primária. Perceber que existe um ponto de partida é um modo de imaginar que a proliferação não precisa se encerrar no espaço delimitado pelo trabalho. Em “Antessala”, a pesquisa artística e da linguagem se inicia a partir da combinação numérica que radicaliza a colaboração entre visão e tato, adicionando plasticidade e poética à experiência de um jogo enviesadamente lógico. O cubo mágico pode existir de várias formas diferentes da sua versão “resolvida”, sem precisar se comprometer com o utilitarismo. Nas faces do cubo, números são representados pela contagem numérica de pontos e dessa forma é possível que eles estampem o rigor geométrico de tais sinais no arranjo de um desenho extenso, tornando-o menos exigente.
A imagem da interdisciplinaridade causada pelos múltiplos e subjetivos interesses que cultivamos talvez nos evidencie em cópias muito semelhantes de nós mesmos, distintas entre si nas minuciosidades, como imagens de um alvo que estão sendo geradas no outro lado de um prisma. Se antes de sair, a fala circula inúmeras vezes por nossas interioridades é porque esses cacos fazem algo como um congresso a partir de informações íntimas e tratam-nas com o efeito de uma bobina.
Qualquer expedição iniciada na envergadura de um poliedro atravessável como o prisma espelhado rebate o chão tão incessantemente que ele parece ter implodido. É necessário ter o cuidado usual com o que se considera primoroso e acuidade visual o tempo todo. Pode não ser necessário o prisma para sentir-se dentro de uma caminhada vertiginosa, transitando pelas ruas das cidades contemporâneas. O ponto de vista do prisma é, no entanto, uma das articulações poéticas intuídas por essa sensação. Se as formas distantes de repente nos alcançam, a perpendicularidade entre chão e paredes se entrecruza por notícias destes em diferentes ângulos, então a habilidade ou inabilidade de se nortear diz respeito a um controle programático de nossos corpos. Um dos tratamentos para a funcionalidade de uma visão enfraquecida, por exemplo, é o uso dos óculos. Os óculos são algo como ecos dos olhos. Eles são superfícies de contato entre as ondas que são emitidas por uma pessoa e as que perpassam o espaço livre, são superfícies que modulam o apreendimento dos eventos no espaço e que ajudam a selecionar experiências estéticas. Um passeio acometido da perspectiva prismática pode ser algo como um jogo de luzes cambiantes, de câmeras distintas, a justaposição de vários óculos no rosto. Se, ao mesmo tempo que podemos ver à nossa frente, de repente podemos também conhecer a forma como alguém nos vê de costas, precisaremos decidir qual perspectiva é mais interessante. Ao passo que o prisma cliva e divide as imagens, ele é translúcido, é o lugar de passagem das novas percepções que vem a todo instante e da iminência de um “eu” anterior.
Acho esse momento oportuno para evidenciar, segundo minhas experiências e uma incursão que já dura alguns anos, depois de atravessar vários departamentos que dedicam-se aos diferentes estados e estudos das artes visuais, oferecendo escutas aos trabalhos de inúmeros adjetivos, posicionamentos conceituais e formas físicas diversas: tenho achado cada vez mais que a tarefa de conciliação da sensibilidade humana através da prática artística é um comprometimento enviesado, submerso nas vacuidades elásticas por onde dimensionam-se cada laço que fazemos ao longo de nossas vidas.
A geografia formada pelo somatório de caminhos afetivos os quais seguimos está suscetível ao movimento das placas tectônicas que sustentam o campo da sensibilidade. Algumas circunstâncias podem ser responsáveis por mudanças bruscas na nossa forma de se relacionar com as coisas do mundo exterior. Talvez haja sempre o interesse de se encontrar o logradouro do ouro, o ponto de convergência. Lembro-me de conhecer a obra “Como fazer para si um abrigo de livros”, de Daniela Mattos, que é um texto performativo contendo instruções de como se resguardar dentro de um abrigo feito com livros os quais se ama, empilhados ao seu redor. O último contato que eu tive com esta obra e o seu poder imaginativo já faz tanto tempo. A impressão que ela gerou em mim foi a de que Daniela havia de fato criado para si uma instalação seguindo as próprias instruções. Gerou uma lembrança muito fiel de que existia um registro filmográfico do que eu estava certo, até então, tratar-se de uma instalação. O texto fez parte da edição de número 8 da “Recibo 23”, uma revista de artistas, e foi publicado em 2011.
A visão da paisagem que eu mais encarei ao longo da minha vida sempre me remeteu a um grande tampo de mesa escondido debaixo de livros e, a partir da dobra na espacialidade retratada no trabalho de Daniela, as viagens matinais de partida para o mundo, saindo da casa onde morei durante muitos anos, tornaram-se na entrada em uma biblioteca semiótica de proporções apoteóticas. Se os livros são falantes e eloquentes à sua própria maneira, a paisagem, formada em sua grande maioria por casas que ocupavam diferentes alturas de modo que eu pudesse ver ao menos uma fatia de um dos seus lados, também narrava a espacialidade da vida humana de um jeito específico.
Em algum momento, eu passei a imaginar as estruturas das edificações, a fotografia de seus muros, como as camadas de folhas que compõem algo feito os livros. Havia uma predominância cromática: as resmas de páginas eram geralmente da cor laranja, como os tijolos expostos, unidos por cimento, e a encadernação era geralmente cinza e metálica, como os telhados de zinco. No quintal de casa, encostadas em um canto e descartadas do projeto de formarem uma cobertura, estavam algumas telhas de zinco, as quais eu namorei até decidir que deveria usá-las de outra forma. Cortei, em tamanhos menores, as chapas de zinco e removi o seu característico zigue-zague, alisando-as, até que elas pudessem ser manuseadas sem dificuldades pelas minhas mãos e compilar as minhas fábulas sobre a criação das imagens. Escutei a cacofonia do metal sofrendo tal processo de transformação assim como o escritor escuta todos os personagens em gestação na concepção de uma narrativa. Precisei lidar com a energia do material que estava acostumado a resistir ao sol e à chuva, que era testemunho de situações nas quais eu não estava presente ali em concomitância a ele: a sua locução compreendia uma variação tonal de altíssimos ruídos resultantes do atrito no metal sendo atravessado por serras elétricas ou planificado por um outro metal ainda mais duro e espesso. Do atrito surgiam também faíscas grossas, linhas tracejadas e incandescentes que sumiram ao tocar outras superfícies, como o chão.
Quando o espelho está à mão, guardado de modo “impróprio” em um objeto de natureza afetiva, um desafio ruidoso hasteia-se com o seguinte embate: a vontade de abrigar as imagens que estão encobrindo-se e desviando-se umas das outras, resguardar as alteridades que a superfície tocável tenta não perder de vista e que passam a serem refletidas no espaço cuidadosamente arranjado da superfície de materiais metálicos e manufaturados X o interesse de desalojar a escrita que é sensível, algo de uma instância etérea, muitas vezes denominada como imaterial; logo, um tipo de materialidade que abre margem para que se façam associações livres entre ela e a matéria da luz, a qual viabiliza (imanta) a paisagem, é tão palpável e rarefeita quanto o espaço livre é, por isso precisa adequar-se aos meios através de especificidades: ou depositar-se sobre uma superfície de grânulos maiores que o ar, estratificando-se na corporeidade de outros materiais ou decalcar um fragmento da realidade, dando lugar a um acúmulo tão grande de pontos luminosos que é quase como se um caco da parede limítrofe com outra dimensão muito mais saturada de luz tivesse se desprendido e emitisse um holofote através dessa mossa no espaço.
Muitas vezes, a teoria é experimentada como uma abstração que pode, em algum momento, ganhar uma forma e um vislumbre sólido. Ela pode também ser o destaque feito por um highlight, na medida de como determinados trechos de uma escrita elucidam momentos e abrem clareiras na sensibilidade.
Abrigar a ficção & desalojar o texto artístico.
Meu espelho é um dispositivo analógico, análogo e anamórfico, caixa criadora de anamorfoses. Não evita o efeito de espelho infinito. O direito de ir e vir marca a sua edição com bumerangues e anagramas. É como se quase tudo em sua prática desenhasse pontos que podem ser conectados como linhas de diversas formas, na ida e na volta, indiferentemente do vértice do prisma. Ele dá formas anamórficas às dores. Para apreciá-lo de perto é necessária a disposição de olhar a si mesmo, algo que não é inato a todas as pessoas. A tarefa de se olhar no espelho pode ser árdua.
Duas pulsões: a serena contemplativa e a infundida na paixão. Que a lógica ilumine a magia e que a magia ilumine a lógica. Mergulhar nas luzes de um tempo mas também aprender a ver através das suas sombras. O caminho afetivo está associado a uma dimensão psicológica da cultura. A memória, em uma de suas designações biológico-científicas, fica arquivada como uma espécie de slot de energia que é polarizada e colocada para fora em algum momento oportuno. Se pensarmos que a lógica é algo capaz de criar um espaço entre o homem e o objeto, a magia pode ser a responsável por fazer uma espécie de fusão, integrando o homem ao sentimento, uma intuição que não comporta a distância imaginada pela lógica. A magia, com o seu poder de resistir sempre à separação, encontra constantemente modos e formas de responder ao sofrimento causado por esta, irrompendo energeticamente; o choque ocasionado por essa polaridade é o que rompe com o paradigma da linearidade na visão subsidiada das nossas vivências cotidianas. A rememoração é algo que tensiona a própria ciência: a imagem da memória surge como algo que pula em cima do passado em resposta à ameaça do seu sumiço. Quando nos debruçamos sobre documentos fragmentados procurando encontrar uma sequencialidade temporal e/ou temática, estamos fazendo o trabalho de um filólogo. Cada época sonha com a seguinte, como disse Benjamin, o que é curioso pois o comentário assume a maneira como tentamos atribuir sentidos às descobertas a partir de imagens consumidas a priori. Energias emotivas sobrevivem nas imagens latentes e são despertadas quando entram em contato com novas épocas. Imagino o momento no qual uma pessoa entre em contato com uma imagem anamórfica dela mesma na superfície sinuosa do livro-imagem e a ocasião em que isso possa rememorá-la à plasticidade de um sonho que ela teve anteriormente. Existe uma série de razões pelas quais podemos, repentinamente, nos ver de formas tão impróprias e desnaturalizadas. A impropriedade é própria da vida. Maria Gabriela Llansol diz “Ana de Peñalosa não amava os livros: amava a fonte de energia visível que eles constituem quando descobria imagens e imagens na sucessão das descrições e dos conceitos.” Os trabalhos de arte são interlocutores que possibilitam a criação de novas epistemes, de retirar as culturas e os mundos de seus fechamentos e seus guetos identitários.
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datafromanon · 10 years
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go, get up & grow
go, get up and grow hiding yourself won't stop to show they're superficial, when saying that you’re a stereotype but deep down you know it's not alike no confortable coming to terms at the dining table
and the key is to act kinda natural fold the clothes you took off and put on your babydoll i’ve learnt to know when something is enough cooked by its smell as i’ve learnt to know when something is crooked by its bargain to sell i think i know you so well i wanna see you... asking for help, if you need it screaming like hell, as you feel it and still wanting to do it more than anything else i wanna see that you felt you were born with legs to run into freedom hold up your flag, see through the window use your legs to go out of this silly row listen to your innerteller what you better...
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datafromanon · 10 years
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BEACH AT DAWN
I hate this part It ruins my art When the sun blooms from behind the ocean Time flies away and it leaves no option
Would you please sit again? Settle down in the sand My body doesn’t want to obey my feet But we're going to leave the beach
Where do we go? Leaving to home so late it’s something I hate Where do we go now? Which feeling grows? And why not both?
Beach at the dawn could be so cold Bitch, when you're down I can make you feel pure gold
Save your compliments I can help you When you get really drunk I could come rescue
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datafromanon · 11 years
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NO LABS
I know no labs could invent the pills To feint how it feels inside of me When I’m with you
It couldn't be feinted by any lab What it feels to receive a mild caress in the head I’ll hunt you and show you a place to your bags I want to receive caresses in the comfort of your lap
How much time has passed by? I didn’t notice the time lapse I don’t want to say more goodbyes If my love to you I haven’t confessed How much time has passed by? It felt so quick I hadn’t noticed it yet I don’t want to say more goodbyes I’m trying to speak my mind in bold, italic and caps
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datafromanon · 11 years
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NO BLOUSE
A couple of photos of empty bottles I dried for today and for tomorrow Daily routine is forcing us a couple of sorrows We must find ways to console us Sometimes I’m about to find myself unconsoled Fake happiness ain’t something I can sold I wanna hug every needed one that I console But it isn’t always that I see a problem I can solve If I could stand at a beach house Wearing no pants and no blouse I got that tan of full sleeves Made by the sun of the city in which I live I’d ran to the suntan lotion in the shelf I’m a sultan in the kingdom of myself
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datafromanon · 11 years
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LIKE THE PISCES SYMBOL
Feelings fall from my chest and slide down to all my body parts They’re spreading that I had cultured a love for you down in the bottom of my heart I thought that if we would do it in 69 Then turn our backs to rest like 96 I could free the confusions I can't nevermind You started to turn me on till it clicked: I love your mind This smile will make me spoiled I had no coffee but something has boiled This time might has to be celebrated I'm loving something I’ve always hated You’ve became an Achilles' heel Who's got me down weakening my legs As you stand up there so still Your hair waving like a flag Nevertheless, I'm tired of the baton pass Don't wanna go home already waiting to come back Don't wanna go home waiting you to overcome Issues that you hold on your backs It’s you that shouldn’t hold on the past
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datafromanon · 11 years
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EXPERIMENT I
(Lower, from the kitchen:)
You know, I'm already thinking of Writing it down soon after here And the title would be something like... "INSPIRATION CALLED LOUDER" Would you rather it in caps, with a huge feel, Or all in minuscule? What you fab boy would rather?
(At the living room, pretty next to him:)
Oh, I'm sorry, nevermind these black spots The coffee dropped in here a little bit And I almost unhanded the coffee pot! Hahaha Be careful, I've just made the coffee pretty lately Blow it, it's kinda too hot
Ok, what about you! How old are you again? I don't have a clue I want you to say with the-top-of-your-lungs How it is to being so pretty young! You guys don't know, sometimes I miss that, being a twelve Please don't say it to no one else Haha, people used to say I had a haircut of a Lego toy You guys don't know, that incredible joy...
Never thought I would attend to Arts so far You know what? The inspiration called louder
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datafromanon · 11 years
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ASK U WHEN
I don't have a soul I'm a soul and I have a body Just like I know Daytime has the sun even when it’s cloudy
All those winds that come rumbling through the grove We don't hear ourselves and stop talking to perceive the love All those winds come rumbling, we perceive We don't hear ourselves and start to wonder what we deserve
Don’t know when we must be leaving And if I ask it you when we see the S-U-N Would you give me answers I could believe in? Would you give me answers that I could believe ‘em?
Maybe in outer space they always knew all the truth As we creep into white lies, brilliant theories, one or two sheer proofs We can’t handle the stars but we’re closer to them in the roof Schemin' a walk in the park? Or until it gets dark... We could totally stand still on the roof
Don’t know when we must be leaving And if I ask you something when we see the S-U-N Would you give me answers I could believe in? Would you give me answers that I could believe ‘em?
[That light ball is so damn above I'm only next to you and I want to love Overthinking could make our minds fry We won't have truly answers if we don't try
I take as a “yes” your suspect “H-U-M” I don't care if flowers sprout Or animals come around To see you when you C-U-M]
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datafromanon · 11 years
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I.C.Y. (I SEE WHY)
He's not the kind who laughs loud Neither opens very often his mouth He isn't afraid if the lens could take his soul out He cares too much of his soul
He used to play with his photo upside down When angry, would cover his face with his hair wind-blown Walking through the crowd Every moment he realises what's real
His clothes freak you too much He wears a bit of bronzer make up I wanted to approach, he makes me hush And I just wanted to ask him how he takes that off If he would say where he's got that bought Yes, it looks like he wears pure wealth Though he answers: "There's no merch, I did it myself"
He couldn't do this if his hair were short Leave him like this with his burqa haircut
Sometimes you're so icy With you I want to be I see why he’s I-C-Y People are so stupid and ignorant They try to get you fooled so you ignore them Now I know everything That's why they call you DIY If you C-R-Y but of happiness, I think it's alright
No matter how many schools: he’d always rule It's on his pace Looking so damn that he knows how to do it Caressing, pressing his lips That God graciously put on his face
You write down his nickname In the photo of him you framed You bled its boards, once he told It's a cool way to get photos cropped
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datafromanon · 11 years
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GOOD CAUSE
What if I say I come from down under Cause I live out of the city’s hub Will you no longer look at me? Will use your eyes to make me burn?
Baby, they only say wrong stuff and they’re not unaware There ain't these things, not in there It guides anyone to nowhere And I'm tired of the unfair
I'm not a mouse I live for a good cause, balancing the purpose And I know you can't wait to see what's underneath Of my blouse
I live in the edge of the suburbs Where the sun is from Where it's been already out when for you it hadn’t come I live in the edge of the suburbs Where the sun is on When it touches the horizon
It's worst than when I heard "What an absurd!" You see this face that you tried to burn You're not prepared for the world It's not you, sir But it's not an absurd, to urge
I'm not a mouse I made your mind blown, I can burn down your fucking house And I know you can't wait to see what's underneath Of my blouse
What you hate over there? I got loosen nerves You better sympathize with the cute spot in my nose If you don't feel secured, now I'm your cure You don’t live by your own on this world
I'm not a mouse I'm the love blown that you have not known And I know you can't wait to see what's underneath Of my blouse
What if I say I live in the suburbs? Will you think of an absurd? If I ever confirm what you heard Will it be an absurd?
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datafromanon · 11 years
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saudades desfraldadas nunca esqueço vocês em minhas orações subordinadas garçom, mais uma dose coração doendo de amor e arteriosclerose a chuva é fraca cresçam com força línguas-de-vaca pra que cara feia? na vida ninguém paga meia verde a árvore caída vira amarelo a última vez na vida [P LEMINSKI]
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datafromanon · 11 years
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I EMPLOY 'EM. DANCERS!
Dry leaves are confetti They are reified love It's a pity they cracked Once in plenty of 'em we dove Dry leaves are confetti Decoring the grove They look so pretty Spiralling from above
Dry leaves are confetti In freestyle maneuvers They look damn pretty From the tops that are upper And I employ 'em, dancers! Dry leaves are confetti They give me nerves To await 'em back And fight for love Dry leaves are confetti They silently howl Whose of them, a carpet Want them to love Dry leaves are confetti They are just pure love They make naturally those patterns That in my clothes I wove
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datafromanon · 11 years
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SEAGULLS
Two lovers, loney dancing One says "You look so good dressed in black" The other goes like "Why did you put on my favourite track?!" "How did you ever know it before we met?" Remember, before we met I dreamt of you Deep in sea salt With face covered of seagulls So it also was the entire beach You woke up to reality when you got the itch A cramp joined your heart to your feet The thunders sounded and you were dancing to it
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datafromanon · 11 years
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I CRY AS IF THE SEA WAS MADE OF ONIONS
The inventor of the mirror Has ruined with all the humans Looking down to the water I see my own figure And I cry as if the sea was made of onions
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datafromanon · 11 years
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I DIG A HOLE
A big fuck off If I'm going to be late today I did the role of Something I used to hate A big coffee cup Raised to the ceiling A big of a shut up And forget about my living I dig a hole off the reality of this Tuesday I dig a hole off expectations were created You will never really know How deep is the bottle If you don't try to dry it with a single sip You will never really know If you will see me tomorrow So why don’t you try to offer your heat?
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datafromanon · 11 years
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VAI & VEM
Nós já fomos duas plantas que ficavam lado a lado Se alimentando do mesmo solo Quando cansava, você repousava Seu longo caule no meu colo Não poderia ir à caça E você é tão carnívora A vista intransferível da praça Eu sou árvore frutífera Enxugue essa iridescência Dê visão à minha pulgência: Minha pulgência não tem vazão Meus pés não mexem onde estão A horta sofre, longe da praça Eu tô alimentando o chão Minha aorta por onde passa:  Vai e vem, de cal e sol, que vêm e vão
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