Tumgik
decadentzombiepanda · 4 years
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Dia dos Namorados
Poucos dias de junho são tão tentadores quanto a terça-feira do dia dos namorados. E para um jovem, de 19 anos, alto , robusto, solteiro e , diga-se de passagem, apaixonado , nem um dia é mais penoso ao coração, mais provocativo para os modos e maneiras. Apesar de ser atraente o suficiente para atrair o olhar descontraído de uma mulher, ninguém o observava, quando nesta tarde de terça, sentado no canto do nível mais superior da sala, moscava feito estátua ; As pernas coladas umas nas outras, o cotovelo apoiado na mesa e  o queixo, que pressionado contra a palma da mão, dava sustentação a cabeça esticada na direção do velho professor de cálculo, enquanto ele roçava com firmeza o giz branco e fosco pelo longo quadro negro. Os raios alaranjados daquela tarde prematura de inverno projetavam-se como lanças pelas janelas laterais e resplandeciam na cabeça raspada dos calouros, que sonolentos, alternavam, como que indecisos, as pálpebras caídas, ora pelo caderno, ora pelas equações diferenciais. E, não se engane, muitos admiravam em segredo aqueles traços rígidos  e pretensiosamente artísticos; Por outro lado, podia ser que, ja estando acostumados, pouco notassem o ar descontraído, preguiçoso de uma cidade ainda rural, passando devagarzinho pela porta, carregando com alegria velada a substância da terra. 
Mas, a despeito de toda a tranquilidade que um dia de semana no interior pode oferecer, um fato simples inquietava o jovem rapaz sentado no canto superior da sala: Estava apaixonado.Era dia dos namorados e estava apaixonado. A questão, na realidade, não era o fato de ser dia dos namorados, muito menos o de estar apaixonado,  mas precisamente o fato de que aquele dia sinalizava pra ele uma constatação, a dura realidade da situação em que se encontrava: Estava apaixonado mas não havia dito à ela. Na real não chamou nem ela pra sair, quanto menos puxava assunto com ela. Tinha vergonha. A própria presença dela o constrangia. Quando ela se aproximava com seu corpo esguio e nariz arrebitado e dizia “Oi Carlos”, ele tremia. Tinha medo que reparasse nela, tinha medo de olhá-la em seus belos olhos azuis e estremecer por completo, travar e perder as palavras, causando uma cena digna do riso dela e dos outros colegas. Por isso, não a encarava. No sutil segundo que consistia na percepção do vulto de seus cabelos loiros passando pelo corredor ele desvia para o chão, a respiração presa até o momento em que fosse embora.Era melhor assim, pensava. Com certeza era melhor assim.
 Não era vergonhosamente tímido, na verdade, podia-se dizer, era até bastante confiante. A boa estatura, os ombros largos e o corpo musculoso embasavam uma certa segurança prepotente, tão típica do sexo masculino, e ele a ostentava com prazer.  Gostava de andar ereto , os braços para trás, o peito estufado e o queixo reto eram sua marca registrada, passeava pelos corredores e cumprimentava os colegas com voz firme, o olhar fixo transmitindo um interesse velado, ainda sedento por atenção. Entretanto e, para a sua profunda infelicidade , todas as características favoráveis do jovem pareciam ser anuladas pela mera presença daquela que era, para ele, uma deusa que havia descido a terra, curiosa por conhecer os reles mortais. Era verdade, e ele sabia; alguma coisa havia no jeito em que pronunciava seu nome: “Carlos”, que incitava seu estômago a dar duas voltas em torno de si próprio, a boca secava e a cabeça se soltava, pronta para maquinar mil suposições infundadas
------”Será que ela gosta de mim?” ----pensava
------” Será que me acha atraente, e por isso veio falar comigo?”
Mas logo ponderava
-------”Não. Ela tá sendo educada, deve ser assim; sociável com todo mundo.
O mais estranho é que ele parecia não conseguir se decidir entre uma coisa e outra, repassava essas duas ponderações mil vezes, ora como certas, ora como incertas, como se o poder de ler a mente alheia fosse uma habilidade inerente à ele, ou a qualquer um.
------”Mas óbvio que vou levar um fora. Onde já se viu, mal troquei umas palavras com ela.”
Nisto desvia seu olhar das equações para um relógio redondo e plano acima do quadro.
-----”Não importa agora, tá quase na hora, mais 5 minutos e vou agir”
Então vira-se para a primeira carteira da fileira, lá estava ela. O cabelo loiro caía pelas costas em um coque duplo, os braços finos apoiavam-se arqueados na mesa enquanto a mão esquerda escrevia, o jeans azul claro parecia ser parte integrante dela, quando uma das pernas cruzava na outra e o pé inclinado caía por cima da canela, sutilmente exposta pelo denim apertado.
Apenas a mirou por alguns segundos, o tempo necessário para que pudesse tomar conta de sua posição e repassar na sua cabeça o plano que maquinou a noite inteira.
“Muito bem, quando o sinal tocar, vou descer rápido esses degraus e alcança ela antes que saia pela porta,  então, vou pedir pra falar a sós com ela por um instante (assim consigo tirar ela da companhia das amigas e me prevenir de uma situação chata). Então, vou leva ela pra um canto, pegar na mão dela, olhar no fundo dos seus olhos e dizer: 
----”Eu sei que pode ser um pouco estranho ouvir isso de mim, mas eu só queria dizer que te acho uma gata, queria saber se você toparia sair comigo um dia desses.”-----”Assim, fácil, fácil, e que se dane o que ela vai me responder, eu realmente preciso tentar.”
O tempo passava lentamente.A voz desapressada do velho professor o inquietava quando dizia:
“Agora alunos, preciso que repassem a lista de exercícios em casa, nossa prova será na quinta da próxima semana, estudem.”----Por fim , os olhos cansados , não com relativa dificuldade, por causa do excesso de pele que pendia das pálpebras, se viram para a mesa no lado mais interior da sala, onde sua pasta ficava.
Era o sinal. A aula iria acabar e os alunos logo se levantarão de suas carteiras.O professor caminha em direção a mesa. Carlos pega o caderno e enfia na mochila, recolhe as canetas e a lapiseira em cima da mesa, lança-as desordenadas no estojo de couro preto, enfia-o na mochila.Fecha o zíper com facilidade. Puxa as tiras laterais para ajeitar a mochila nas costas e se levanta.
Os alunos começam a se levantar. Ajeitam suas mochilas com seu jeito lerdo habitual. Enquanto isso Carlos se prepara para descer, a visão nauseada revela o aglomerado de garotos se preparando para sair, chacoalhando os cintos e suspendendo as calças. À frente o caminho de degraus que levava até ela. Espaçados, eles compunham amplos platôs por onde as cadeiras ficavam, de modo que, ao descer um deles, ainda era preciso dar dois passos de elefante até o próximo degrau.
-----”É só respirar fundo”----Pensa-----”Vai dar tudo certo”
Então desce um degrau. De repente, as pernas finas parecem não sustentar mais o peso que o tronco forte exerce contra elas, seu corpo balança qual uma casa equilibrada sobre bambus. Por um instante, pensou em recusar admitir que aquilo que sentia era medo.
“Medo, que medo?”----Pensa.
“Não há por que ter medo”
“Preciso me manter firme”
Abre um pouco as pernas para garantir mais apoio. Desce mais um degrau. Topa com dois garotos conversando sobre o projeto de um carro elétrico.
“Precisamos achar mais alguém pra trabalhar no chassi”----Diz um
“Pessoal , eu preciso passar”---Diz Carlos, enquanto coloca-se entre eles, empurrando-os para o lado com o peito enquanto inclina a cabeça para tentar enxergar a frente. Onde está ela?
“Ela já se levantou. Droga ela já se levantou”----pensa. As pernas fraquejam mais uma vez.
Ela ainda não saiu pela porta. Conversa com uma amiga baixinha e gordinha.
“Você tá mais loira”----Diz a amiga
Ela ri. Carlos se apressa  e desce os últimos dois degraus, as pernas bambas quase se desequilibram quando ele chega ao piso. Ela, que estava logo à frente, repara nele.
“Você tá bem Carlos?”
Em um reflexo inesperado ele olha pra ela. Que surpresa estranha foi conseguir olhar pra ela! Por muito tempo esperou por isso. Esse era o dia! O dia em que teria coragem para fitá-la como ela era, olhar o rosto cuja forma ele tomava como miragem impossível, perdida para sempre em algum dos seus fúteis sonhos de criança. Era o dia em que, liberto de uma vez por todas das correntes da vergonha, poria os olhos no maior desejo que ele jamais almejou, e no entanto, sempre soube que desejava. Quem sabe o que aquela vista lhe reservava?
Tudo isso passou pela cabeça do nosso herói, como um raio, no segundo em que a viu. Que momento!
Pensou que aquele rosto branco, cheio de espinhas, aqueles cabelos loiros desgrenhados que caíam desajeitados sobre as escápulas, ainda mais brancas que o rosto. , que aquele sorriso (que sorriso!), estreito, a exibir com orgulho os dentes brancos e ainda as gengivas, em suma, que tudo aquilo era nada mais nada menos que um pequeno pedaço do reino dos céus, esquecido na terra por descuido do criador, no mesmo dia em que as estrelas foram geradas e o firmamento uniu terra e mar.
Mas nada dessas digressões apaixonadas o distraíram do seu dever ; Não teve tempo para pensar.Tudo o que conseguiu fazer foi se aprumar, respirar fundo, e preparar a voz pra falar.
“Oi Clara.Será que eu posso falar com você a sós?”
O rosto pálido dela  parece atingir um tom de branco ainda desconhecido pelo olho humano. Os olhos azuis o fitam com um misto de espanto e apreensão.
“Tudo bem. Carlos”.---Diz ela,  a  sobrancelha dobrada 
Ele  a acompanha até a saída. A luz forte do azul toma a vista , eles saem e enxergam a grama que separa o piso de verniz do estacionamento dos professores, o verde parece fritar em meio ao calor do meio-dia.
“Vamos até ali”-----Aponta veloz com a  mão um canto em que a parede branca, coberta por vilosidades de tinta, dividia com a grama.
Chegou a hora. Ela se apoia contra a parede e ele fica de frente pra ela. Por um segundo ponderou se deveria apoiar seu braço na parede ao lado dela, mas pensou que poderia assustá-la, então manteve-os próximos as pernas enquanto a observava com olhar resoluto. O coração bate forte e os pulmões parecem pedir por ar, a boca seca e por um instante, por um momento pensou que não fosse conseguir dizer. Talvez, pensar em tomar uma atitude fosse mais fácil do que tomar uma atitude. Talvez fosse ser um covarde pro resto da vida. Mas não, ele sabia, sabia que era um nervoso bom, e por isso de alguma forma tomou coragem para dizer:
“Clara eu, …..eu”-----
Nada.
“Clara, eu só queria te dizer que….”
Nada.
Merda.O impensável aconteceu. Travou. Sua língua parecia perder toda a força , não conseguia mais dizer palavra.
----“ O que foi Carlos? O que você quer dizer?”
Era tarde demais. Travou. Ele olha para ela uma última vez, os lábios, desesperados, tentam balbuciar qualquer besteira. Mas já era tarde.O celular dela toca. 
-----”Ah droga! Desculpe Carlos, mas eu tenho que ir.”
Ela vira de costas e vai saindo pelo corredor.
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