É uma pena que nem todos conseguem ver essa poesia que eu vejo da minha janela. A vista é a mesma, mas cada olhar é um olhar. Eu vejo um "bolo" de bexigas coloridas rolando com o soprar do vento pela calçada cinza nesse dia nublado, nesse bairro silencioso onde só se escuta o arrastar dos móveis dos vizinhos, o balanço das folhas e o som de um ou outro motor de carro ou moto se dissipando por essas ruas tortas. Penso que essa bexiga que está girando por aí, sem rumo, é um símbolo de um dia, ou uma noite, em que pessoas se encontravam em um espaço acolhedor e barulhento, bem diferente da sua realidade de hoje. E as bexigas reinavam, eram elogiadas enquanto cumpriam a sua função de alegrar aquele momento compartilhado. Mas, depois que cumpriu sua missão, foi descartada, jogada ao véu, lançada ao sete ventos. Seu passado foi apagado, no presente se tornou invisível. Hoje passa despercebida por aí, sem destino, sem função. Mas... eu vi. Eu vi essas pequenas, murchas e opacas bexigas fazer o pouco que as resta: mesmo no fim, elas ainda enchem poesia os olhos de quem quer ver.
Hoje a notícia da morte de Gal Costa me atravessou como um tiro. Fiquei um tempo refletindo por que tal fato me atingiu tão profundamente... e como que quase numa sessão de regressão me lembrei que quando criança, um dos meus primeiros contatos com a cultura do país foi a interpretação dessa potência em forma de mulher para a música "Brasil" também muito conhecida na voz e parceria de Cazuza.
"Brasil" é mais que uma canção é um grito, um manifesto, um protesto que chegou aos meus ouvidos pequeninos e mexeu com minha visão de mundo. Acho que ainda mesmo sem entender, eu percebi que o Brasil que eu queria era algo parecido com esse, onde uma mulher, uma guerreira, uma entidade feminina esbraveja com a camisa entre aberta, brincando com o esconde-esconde de mamilos tão emblemáticos que jorrou leite na cara dos caretas por 50 anos.
O Brasil de hoje me entristece, o conservadorismo, a falta de um projeto de nação, o individualismo de seus habitantes me causa enjôo. Talvez por isso ainda tomado por essa ressaca eleitoral a ida precoce de uma intérprete tão única me causou tanto pesar. O "Brasil" que eu queria, se calou junto dela e não sei se um dia voltará a dar a voz novamente.