Tumgik
fabulosoxanadu-blog · 5 years
Text
sobre saudade, coragem, medo, mar e amar
Tumblr media
há alguns anos, minha avó disse, ao telefone, que viver era acumular saudades. naquele tom triste, de quem hoje busca saudades nos detalhes que sobraram de suas escolhas erradas, ela descreveu uma sensação que eu sempre tive.
esta nostalgia já me era familiar e de família. envelhecer é acumular saudades. não discordei.
exatamente às três e quarenta da insuportavelmente quente madrugada de hoje, minha avó tem três vezes a minha idade, sessenta vezes mais saudade acumulada e hoje acredito que quis dizer que viver é coragem para criar momentos que vão deixar saudade.
coragem para catar os cacos, para perder o sono em dia de semana, para gostar do que vê no espelho apesar das inexoráveis consequências do tempo, coragem para conferir o relógio torcendo pra noite não estar acabando.
não que ter coragem signifique perder o medo. ao contrário disso, o medo não vai ficando esquecido, empoeirado em uma estante qualquer como a maioria das nossas lembranças. o medo é amorfo e consegue assumir as mais variadas faces ao longo da jornada.
e coragem... coragem é só a boa e velha habilidade de ir com medo mesmo.
ir.
ir amar, ir a mar.
mergulhar, prender a respiração, com medo de se afogar, com medo de buscar o chão com os pés e não sentir nada, mas continuar. aproveitando a maresia, flutuando nos dias de calmaria, observando o voo das garças, remando contra a maré nas tempestades, olhando para as estrelas na tentativa de decifrar o mapa do próximo destino. criando momentos que vão deixar saudade.
4 notes · View notes
fabulosoxanadu-blog · 7 years
Text
mais uma carta para o meu avô por parte de pai
Tumblr media
hey, vô. como vão as coisas do outro lado?
será que hoje você é uma criança prodígio que vai ser a artista plástica do século? ou será que só voltou a ser pó de estrela?
por aqui, a boiada segue o rumo. eu vou pela sombra, como você sempre sugeriu, mas às vezes não dá, às vezes é meio dia e o sol bate na moleira castigando a gente. mas a gente vai assim mesmo, suando, pensando na vida enquanto olha pela janela do ônibus, querendo fugir pra barcelona, sonhando com um monte de coisas que só vão acontecer - ou que já aconteceram - em outra vida.
que sorte a sua nunca ter entendido nada sobre amor. má sorte a minha, que não tive com quem aprender. nem sei se amor se aprende, vô. ou se ele só se aboleta na gente e tudo mais é que se foda.
o tempo e o vento vão desgastando tudo, os sonhos, nossa pele e a casa que você construiu. hoje eu tenho rugas e fios de cabelo branco, você não acreditaria.você deveria ter me explicado como é bom não ter rugas. alguém deveria. a sensação de que já passou tempo demais é maior do que a sensação de que tempo demais está por vir. mesmo sabendo que a matemática disso não faz sentido.
as pessoas estão procriando feito loucas. toda semana é um telefonema diferente contando que alguém vai nascer. às vezes são gêmeos, é uma coisa incrível. incrível e desesperadora. no meu lado da calçada a sombra é escassa demais pra dividir com alguém.
um dia, eu vou te escrever outra carta falando que toda semana é um telefonema diferente contando que alguém foi embora; e mesmo assim eu vou me sentir criança de novo.
acho que por hoje é só. a gente se encontra por aí. vai pela sombra.
só mais uma coisa,
sabia que parte do diagnóstico na medicina chinesa é feito a partir do cheiro do paciente? e aí eu queria te perguntar: como os doutores orientais trabalham quando estão com o nariz entupido?
1 note · View note
fabulosoxanadu-blog · 7 years
Photo
Tumblr media
sobre economizar experiências em uma vida de experiências já tão escassas
você provavelmente nunca vai aprender a tocar violoncelo, nem piano, e nem acordeon; um violão no máximo, as mais fáceis da adriana calcanhoto.
dificilmente você vai ter o peso que sempre sonhou. você nunca vai ter em casa uma biblioteca daquelas em que é preciso ter escadas para alcançar todos os livros. e uma lareira também, é pouco provável.
você não vai realizar obras primas da fotografia com a câmera analógica da década de 70 que ganhou dos seus pais. não vai escalar o monte everest. não que algum dia você tenha desejado escalar o monte everest... não vai ganhar um oscar, nem um nobel, nem um pulitzer. não vai nem ser entrevistado pelo jô.
dificilmente você vai cruzar a américa do sul em uma harley davidson. não vai à lua, não experimentará a gravidade zero. você não vai ter super poderes. não vai saber diferenciar as notas frutadas, amadeiradas, achocolatadas e etc de um vinho.
você nunca vai conseguir ler tantos livros quanto gostaria, nem fazer artesanato, nem reciclar de maneira criativa as suas caixas de ovos e garrafas de refrigerante. a decoração da sua casa não vai parecer com a das casas das revistas.
você nunca vai fazer um solo em um show e ser adorado por uma multidão de jovens ensandecidos. nunca vai ser tão seguro quanto gostaria, e aquela determinação e regularidade que você queria ter pra tudo na vida, esquece.
mas você ainda pode viver grandes amores. seja você alto, baixo, rico, pobre, fumante, hipocondríaco, hiperativo, preguiçoso, míope, tímido, manco, gordo, magro, louco. os romances são as únicas experiências na vida que só exigem que você se entregue.
apesar das contas pra pagar e da falta de talento para o artesanato, você pode experimentar a montanha russa que é se apaixonar, é grátis, e não precisa ter diploma na área.
você tem todas as possibilidades de aproveitar olhares, mensagens, bilhetes, pores-do-sol, café da manhã na cama, domingos de edredom e madrugadas de verão no tapete da sua sala mal decorada, regadas a orgasmos, cerveja, rocks antigos e segredos que ninguém nunca ouviu.
no final de tudo, essas sensações serão as principais entre um seleto grupo de realizações e sentimentos que realmente precisarão ser citados na sua biografia.
1 note · View note
fabulosoxanadu-blog · 7 years
Photo
Tumblr media
sobre certidão de nascimento
dia desses eu tive que ir até uma região que se chama ‘cabo do mundo’ pra buscar minha certidão de nascimento e outros documentos mais.
quando cheguei lá já eram umas oito da noite estava muito frio. no momento em que peguei aquele envelope de plástico comecei a rasgá-lo com muita dificuldade, como se fosse mesmo encontrar alguma coisa muito interessante ali dentro. sentimento estranho esse causado pelo papel que garante que você nasceu.
nome, local, data, hora, pai, mãe, avô, avó, gêmeo?
-não, gêmeo não.
-nome do gêmeo?
-já disse que não tem gêmeo, pô!
sua mãe passou nove meses te carregando, a barriga dela ficou enorme, todo mundo viu, depois, horas de trabalho de parto, horas. muito suor, sangue, força e berros. até que você conseguiu, foi empurrado, passou por aquele espaço apertado, engasgou, sentiu uma coisa muito estranha entrando pelos seus pulmões e começou a berrar também.
mesmo sem pedir, você tá aí na vida, enfrentando todo tipo de atrocidade, dificuldade, barbaridade, se adequando, socializando, trabalhando, ganhando dinheiro, ou não, partindo corações, deixando partirem o seu, berrando.
mas a verdade é que não importa quanto suor e quanto berro, alguém, um alguém qualquer, tem que carimbar e assinar um papel comprovando que você existe.
1 note · View note
fabulosoxanadu-blog · 13 years
Text
sobre o inverno sem frio
passamos o inverno inteiro esperando pelo frio. dia após dia uma expectativa calada de que os casacos sairiam dos guarda-roupas. ninguém comentava o assunto, mas era como se todos compartilhassem silenciosamente aquele desejo de dormir sob o peso de um edredom.
acordávamos e olhávamos com pressa pelas janelas, buscando alguma nuvem cinza, mas o céu azul e aquela luz quente marcavam, irremediavelmente, presença.
na esperança vã de um dia de ventaneira, ainda teimávamos em levar alguma proteção antes de sair de casa. um cachecol, talvez um chapéu, um par de luvas, de botas ou até mesmo um suéter. de nada adiantava. o suor continuava presente nas testas das pessoas pelas ruas, ninguém conseguia nem um arrepio, não via-se mãos se esfregando ou narizes vermelhos. cada um continuava tocando sua vida naquele clima abafado como se nada estivesse acontecendo. e não estava mesmo.
os dias se passaram, as pessoas foram perdendo as esperanças, os noticiários não sabiam explicar onde é que estava o frio final. tocava-se cada vez menos no assunto. já não vamos mais comer sopa e nem beber vinho. talvez no ano que vem? talvez no ano que vem seja pior. ficava cada vez mais difícil trombar com algum auspicioso levando consigo uma blusa de frio ou um cachecol. os mais sortudos viajaram pra praia. os mais azarados esperavam ansiosamente por alguma promoção de ar-condicionado.
90 dias de inverno vividos no verão se passaram. nenhum meteorologista se atreveu a dar palpites e até hoje ninguém sabe por onde andou o frio naquele ano.
2 notes · View notes