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febravolima-blog · 6 years
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ESPINOSA E O AMOR ATRAVÉS DAS FORMAS DE CONHECIMENTO.
O presente artigo visa à compreensão do amor espinosano e sua relação com as formas de conhecimento em seu Breve Tratado, obra anterior à sua Ética.
    De uma família judia portuguesa imigrada para os Países-Baixos em busca da liberdade religiosa impedida pela inquisição em Portugal, nasce, em 24 de novembro de 1632, em Amsterdã, Baruch (Bento em hebraico) de Espinosa. Crescido num berço essencialmente religioso, educado na escola hebraica da comunidade, inclinou-se, mais tarde, à matemática, à física e à filosofia, tutelado por Van den Enden, um antigo jesuíta livre pensador. Espinosa era intensamente crítico, e, conduzido por seus estudos e pela influência da filosofia cartesiana, não demorou muito para que começasse a confrontar os rabinos acerca da ortodoxia judia. Espinosa recusa todo e qualquer apelo ao regresso à fé religiosa, sendo excomungado (herém) e condenado ao exílio poucos meses depois, passando a usar nos seus escritos a forma latina do seu nome, Benedictus. Em 1660, instala-se em Rijnsburg, onde escreverá sua primeira obra, o seu Breve tratado sobre Deus, o homem e seu o seu bem-estar, manuscrito esse encontrado apenas em 1853 (obra que seria um primeiro esboço de sua filosofia). Em 1661, Espinosa começa a redigir o seu Tratado da reforma do entendimento, que permanecerá inacabado. Segue-se subsequente a este tratado, em 1663, os Princípios da filosofia de Descartes e os Pensamentos metafísicos.  Neste mesmo período, enceta a sua jornada rumo à Ética, demonstrada à maneira dos geômetras, sua obra-prima que lhe rendeu mais de dez anos de trabalho, vindo a ser concluída no ano de 1675. Nela reside o ponto máximo de sua filosofia: a libertação do homem através do conhecimento. Acometido por uma tuberculose, Espinosa falece em fevereiro de 1677.
   Ao início da segunda parte de seu Breve Tratado, nos quatro primeiros capítulos, Espinosa esclarece, à luz de sua filosofia, suas três formas de conhecimento: a opinião, a verdadeira crença e o saber intelectual. Em sua Ética, essas formas de conhecimento tomarão os nomes de conhecimentos de primeiro, segundo e terceiro gêneros: imaginação ou ideias adequadas como o primeiro; razão ou os conhecimentos das relações como o segundo; a ciência intuitiva ou o conhecimento das essências como o terceiro.
    Com isso sua intenção é postular, rigorosa e logicamente, a possibilidade de conhecer uma mesma coisa de três maneiras distintas. Evidenciando, contudo, que cada maneira implica variações de um mesmo afeto. Ou seja, não obstante a verdade alcançada, o sentimento no decorrer desta busca será relativo ao meio empregado para alcançá-la e assim a vida tende à perfeição à medida que se vale da melhor maneira de conhecer.
    Para compreender o que aqui se propõe, é preciso, antes, explicitar sua ideia de Deus, que abarca toda a sua filosofia, haja vista que esta é geométrica. Para isso, alguns conceitos que a precedem precisam ser esclarecidos, posto que já possuem um uso corrente na filosofia e não devem ser tomados com mesma significação, tendo Espinosa uma visão distinta da tradição. São estes os conceitos de substância, atributo e modo.
    Para Espinosa, só há uma substância, à qual tudo pertence, que é causa de tudo e de si mesma: Deus: "Entendo por Deus um ser absolutamente infinito, isto é, uma substância constituída por uma infinidade de atributos, em que cada um exprime uma essência eterna e infinita” (ESPINOSA, 2008, Parte I, def. 6). Sendo a substância "aquilo que é em si e é concebido por si” (Ibidem), ou seja, aquilo que é concebido por uma coisa distinta de si não possui uma realidade independente, e logo não pode ser substância. Os atributos infinitos seriam os constituintes da essência divina, sendo por nós conhecidos apenas a extensão e o pensamento (matéria e intelecção).
    Admitindo uma única substância, Deus prescinde do ato criador, mas se manifesta através de uma infinidade de efeitos, isto é, através dos seus modos: a singularidade do mundo é, portanto, apenas um modo de Deus. Seus infinitos atributos pertencem à mesma substância (única), que se manifestam através de seus modos: o homem é um modo de Deus que carrega em si manifestações dos atributos pensamento e extensão. Este tem por objeto os corpos; aquele, as ideias. Podendo ser também compreendidos como corpo e alma, muito embora não haja, como na tradição dualista, uma hierarquia entre eles. São paralelos e independentes. São, portanto, uma única e mesma coisa, que se exprimem de duas maneiras diferentes - esta coisa única é o próprio ser humano. As distinções nascem dos modos, não da substância que é a mesma. Não é difícil perceber a distância que há entre o Deus de Espinosa e o Deus judaico-cristão. Não há pessoalidade ou antropomorfismo divino, não somos sua criação, mas uma extensão do seu pensamento substancial. Deus é tão material quanto espiritual, pois dos atributos infinitos que o compõe, à extensão pertencem os corpos; e ao pensamento, toda a cognição: somos o manifesto do próprio Deus à existência. Logo, a imanência pertence a sua essência, e não a transcendência. Daí a noção que Deus e natureza são uma só e mesma coisa, visto que Deus é imanente ao mundo. O panteísmo seria a sua decorrência religiosa - por sua extensão, a Deus pertence o mundo; por seu pensamento, a sua compreensão.
      Espinosa defende que só o conhecimento verdadeiro de Deus dá ao homem um conhecimento verdadeiro de si mesmo e da vida afetiva, propiciando assim a verdadeira liberdade. Se a alma humana (pensamento), assim como corpo (extensão), é a totalidade do homem, expressa através dos atributos divinos, e não uma parte que o compõe, o homem é consequentemente conhecimento de si e do mundo, e sua sorte se relaciona com aquilo que conhece bem ou mal (adequada ou inadequadamente) através do corpo, que lhe está unido.
Nesta ideia repousa o problema central do homem: o preconceito universal (aqui tratado como preconcepção). Nas suas palavras:
"As minhas demonstrações correm o risco de não serem compreendidas como deveriam ser, porque esbarram, em todos os homens, contra um conjunto de preconceitos que se reduzem, no final das contas, a um so, a um preconceito universal. E se esse preconceito é universal é porque é natural e necessariamente inscrito em cada um de nós desde o nascimento. Com efeito, todos os homens nascem, ao mesmo tempo, conscientes e ignorantes: conscientes de seus apetites, capazes de saber em que sentido os leva à procura do que lhes parece bom, mas, ao mesmo tempo, perfeitamente ignorantes das causas das coisas, e em particular daquilo que os determinar a procurar nesta ou naquela direção” (ESPINOSA, 2008, parte III, pp. 61 a 68).
    Considerando o seu discurso, percebe-se a importância de se compreender as consequências do conhecimento de uma coisa através das suas formas de obtenção. Submeteremos, a título de exemplo, o amor à opinião, à verdadeira crença e ao saber intelectual: primeiro, segundo e terceiro gêneros de conhecimento.
    No início do capítulo V de seu Breve Tratado, temos: "O amor, que não é senão gozar uma coisa e unir-se com ela...” (ESPINOSA, 2012, p.101) e mais: "O amor nasce, assim do conceito e do conhecimento que temos de uma coisa, e quanto maior e magnifica se mostra a coisa, tanto maior é o amor em nós” (ibidem). Amar pressupõe conhecer, necessariamente. Assim como a existência pressupõe conhecimento: "...se não conhecêssemos nada, certamente também não existiríamos” (ESPINOSA, 2012, p.102). Temos então instaurado o juiz máximo da afetividade, o conhecimento, que julga os objetos passíveis de amor de acordo com seu nível de essência. Há aqui uma relação importante: o tipo de conhecimento e a essência do objeto conhecido (perecíveis, não-perecíveis e eterno). Desta relação decorre os graus de perfeição do homem.
    O conhecimento através da opinião, ou conhecimento de primeiro gênero, seria “o único capaz de gerar falsidade” (ESPINOSA, 2009, p116). Considerando que, para Espinosa, uma ideia falsa não é o contrário de uma ideia verdadeira, mas sua deficiência. Isto é, a ideia verdadeira é completa e acompanha sua causa de ser, enquanto uma ideia falsa seria uma ideia incompleta, que não acompanha sua causa de ser. "Conhecer algo é conhecer a sua causa". Daí temos a sua máxima sobre o amor: "O amor é a alegria acompanhada da ideia de uma causa exterior" (ESPINOSA, 2009, p.48). O amor através da opinião é deficiente, não reconhece a sua causa de ser, e por isso é chamado de amor-paixão, um amor passivo, que sofre pela consciência do seu apetite e inconsciência do seu ser. Essa falsidade, vivida pelo amor através da opinião, seria um distanciamento de Deus, visto que "Cada coisa, na medida em que é em si, esforça-se para perseverar no seu ser" (ESPINOSA, 2009, p142). Este ser é o próprio Deus, substância e causa de tudo. É dessa maneira que podemos julgar certos amores, pois à luz da Ética, um amor que não tem conhecimento verdadeiro (completo) não pode ser bom, sendo um amor a algo perecível, que em nada ajuda a perseverar no seu ser. Dizer "eu o amo, mas não sei por quê" seria um contrassenso existencial. Seria o mesmo que tratar o amor como uma finalidade, que, ao alcançá-lo, se esgota em si mesmo. O amor-paixão é uma alegria que não acompanha a ideia externa de uma causa. Alegria passiva, alienada. O amor-paixão advém de um conhecimento inadequado e incompleto.
Cabe aqui esclarecermos o que Espinosa entende por Desejo.
    O desejo é fruto de uma afirmação de si, de sua perseverança. Um desejo de ser, não um desejo de ter. Desejar alguém significa então reconhecê-lo como parte principal de sua autoafirmação. E esse reconhecimento se dá quando o desejo é acompanhado da sua causa (segundo gênero de conhecimento). O desejo nascido da opinião não é adequado visto que ele não tende à autoafirmação do ser, mas sim, visa a ser outra coisa buscando o que lhe falta. Por isso o amor, através da opinião, tem por objeto sempre o perecível, que finda num vazio.
    O conhecimento através da verdadeira crença, ou conhecimento de segundo gênero, é o conhecimento verdadeiro, ou seja, conhecimento completo, adequado. Isso significa dizer que a sua causa de ser sempre acompanha aquilo que sentimos, a afetividade. Ao procurar a causa de tudo que nos afeta, enaltecemos a singularidade de tudo que contemplamos, pois evitamos as ideias gerais que anulam as diferenças individuais.
    Se toda coisa visa à perseverança do seu ser, a alma, como fora dito, que é conhecimento (atributo pensamento), visa perseverar-se conhecendo. Logo, desejar ser, nesse caso, seria desejar sempre conhecer. Não desejar algo para (finalidade), mas desejar algo por sua causa. Desejar por pulsão, não por atração. "Não é por julgarmos uma coisa boa que nos esforçamos por ela, que a queremos, que a apetecemos, que a desejamos, mas, ao contrário, é por nos esforçarmos por ela, por querê-la, por apetecê-la, por desejá-la, que a julgamos boa" (ESPINOSA, 2009, Ética, III). Este esforço nasce do reconhecimento do outro como afirmação do nosso próprio ser. Julgar algo como bom significa desejá-lo, mas o desejo para Espinosa nunca é uma falta como em Platão, mas sim uma afirmação. O amor, através desta forma de conhecimento, é o ato de reconhecer aquilo que se soma à busca pela nossa perfeição, que se encontra somente em Deus. Buscarmos a perfeição significa buscarmos a Deus, que é perfeito.
    Onde podemos ver a supremacia dessa forma de amar em relação à primeira? O conhecimento é a causa do desejo. Logo, o objeto desejado será sempre uma certeza de um bom caminho, o caminho perseverante de nossa essência, de nossa singularidade. Ao amarmos através das causas, temos por máxima: Toda a afetividade deve servir à afirmação do ser.
    Se o amor através do segundo gênero incorre, ao conhecer as causas de nossos afetos, numa busca pela perfeição que aponta para Deus, no terceiro e último gênero (o conhecimento intuitivo), o amor se torna o ato de união com Deus. "A contemplação da coisa mesma, não por outra coisa, mas em si mesma" (ESPINOSA, 2012, p. 99).
    Se o amor "nasce do conceito e do conhecimento que temos de uma coisa, e quanto maior e magnífica se mostra a coisa, tanto maior é o amor em nós” (ESPINOSA, 2012, p.101), Deus que é perfeito e magnífico deve ser o objeto máximo de nosso amor, pois a perfeição em Espinosa é sempre um regresso ao ser supremo e sempre um reconhecimento da sua causa de existir, uma união com nossa origem. Somente em Deus o homem encontra sua verdadeira liberdade - através dele conhecemos tudo verdadeiramente. Somente nele podemos nos afirmar inteiramente. Deus é a plenitude do egoísmo.
    A filosofia espinosana assoma em sua mais bela forma ao considerar a realidade inteiramente ligada através dos modos de Deus. Faz do mundo algo a se contemplar por inteiro. Faz-nos entender que o ódio não tem causa de ser exceto na ignorância, que é apenas uma imperfeição, um ato de separação, pois odiar algo/alguém implica necessariamente uma privação da nossa própria perfeição. Ensina-nos a enxergar o outro, através do amor (um ato de união), como caminho de salvação mútua e a conduzir sempre os homens ao seu estado mais perfeito, posto que a consciência visa sempre à permanência, jamais à decadência.
O amor é conhecimento.
  Referências:
BARBOSA, Jorge. Introdução a Espinosa. Disponível em: http://jbarbo00.blogspot.com/2013/12/intoducao-espinosa.html. Acesso em: 25 set. 2018.
ESPINOSA, Baruch. Ética. São Paulo: Autêntica, 2009
ESPINOSA, Baruch. Breve tradado de Deus, do homem e do seu bem-estar. Belo-horizonte: Autêntica, 2012.
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