Tumgik
gabientalismo · 20 days
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Me sinto magérrima. É como se a qualquer momento eu fosse desaparecer e simplesmente morrer. Não aguento mais sentir meu peso indo embora, não aguento mais sentir minha energia sendo sugada e toda a minha saúde se esvaindo. Sinto que vou morrer, sinto que a qualquer momento vou desmontar. Sou uma pilha de ossos em desespero, querendo e me esforçando para mudar, mas parece que o mundo quer que eu só vire pele e osso. Estou cansada. Queria pesar mais e ser mais bonita.
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gabientalismo · 28 days
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Se o diabo me visitasse
Era escuro e as luzes da rua não atravessavam o blecaute, fazendo só poucos feixes passarem pela janela e formarem um fonte de visão. Fazia silêncio e não se ouvia nada, a respiração não era ofegante, o sangue corria em silêncio. O corpo inteiro jazia em silêncio, esperando como quem espera um aviso prévio. Ela sentia precipitação, sabia que algo viria, não sabia quando, não sabia como. Piscava cada vez mais, tentando acostumar-se com o ambiente, aflita. Sentia um frio na espinha, de medo e de satisfação. Sentiu passos e vibrações, uma respiração calma e forte, um estalar de língua e um fungar sútil. Como se fosse um salto, os passos soaram barulhos. Se aproximando cada vez mais e numa batida da porta – três bem devagar – soube que chegara.
Aparecera nos sonhos e nas abstrações, como um desejo há muito almejado, muito querido e precioso. Via-se divagando olhando ao longe, pensando como seria bom e como seria perfeito se tudo aquilo que ela queria fosse conquistado tão facilmente quanto um piscar. Se batia as unhas na madeira imaginava os passos, quando ofegante pensava na possível respiração – ou seria calma? – e quando se tocava desejava que fosse sua mão. Um dia, tateando-se como cega, lendo a si mesma, sentia que já não se tocava levemente e que guiavam-na, passava pelo peito e pelo pescoço, pelo nariz e pela boca, pela mente e pela possibilidade. Ali soubera pela primeira vez que lhe apareceria. Soube outras vezes, é claro. Quando se viu no espelho e percebeu fios de cabelo curtos e negros em seus ombros – Loira como era não faria sentido – soube de novo. E de novo soube quando ao acordar com um corte na mão não havia nada de sangue. Mas teve a total certeza quando ouviu as batidas na porta, quando havia sonhado no dia anterior ele chegando com as três batidas na porta.
Levantou-se lentamente e caminhou com cuidado a porta. Percebia o corredor alaranjado e quente, iluminados por velas. Ouvia ainda a respiração calma e um coçar grosseiro, rude e forte, de rasgar a própria casca. “Devo entrar?”. Era grave, sútil, quase imperceptível. Sussurrada e gentil. Não respondeu com a voz, não gostava, não queria, e só fez que sim com a cabeça. Uma, duas, três vezes, como em desespero, como dizendo “pelo amor de deus abra a porta e venha”. O som de unhas rasgando uma carapaça grossa intensificou-se e tomou o corredor, ouvia pedaços caindo no chão e vira sangue escorrer debaixo da porta. O ar esfriou, o som aumentou e o silêncio veio. A maçaneta girou e a porta se abriu e ela foi se afastando, preparando para abrir caminho, e então viu a mão comprida e morena empurrar a entrada, pouco a pouco revelando a silhueta. Alta e esguia, tomou cuidado com a cabeça e apresentou-se com um chapéu de couro. Tinha cabelos curtos penteados para trás, um nariz fino, comprido. A barba era feita e tinha um grosso bigode, vestindo uma camiseta e uma calça de linho. Os pés prontamente protegidos com sapatos com salto. Não tinha necessidade, já era alto o suficiente. A pele morena ajudava a realçar os verdes olhos, que brilhavam a luz de um candelabro torto que carregava. O rosto era longo, trabalhado, quase perfeito e tinha cheiro de cravo. Fechou a porta e se pôs em frente a ela. Ajoelhou-se e passou-lhe a mão pelos cabelos. Assoprou seu rosto e viu-se então despida na frente do espelho.
“Sei o que desejas, sei o que pretende e sei das intenções. Sabe o que quero em troca e sabes que é para sempre” disse pegando em seu queixo, movendo-o em direção ao seu rosto e fazendo-a fitar os olhos verdes. As pupilas eram brancas. Ela fez que sim com a cabeça de novo, mostrando-se convicta e de acordo. Ele fez o mesmo gesto e pediu licença. Começou a acaricia-la de cima abaixo, lentamente, mas sem focar em nada. Cheirava seu pescoço, mordia a orelha e ela se entregava lentamente. “Eu vou começar de cima”. Sentiu a mão direita cobrir seu rosto e uma leve queimação, como se enrubescendo, tomar conta da face. Os dedões passavam pela sobrancelha, os dedos anelares pelos lábios e os indicadores pelos olhos. A mão esquerda desceu ao pescoço e apertou-o, sentindo que sua laringe era retraída, como se enforcando. Doía. A mão direita desceu aos seios e se repetiu, a mesma dor. E depois passou pelo ventre, pelas genitais, pelas coxas e por todo o resto do corpo, e ela não via e só sentia a dor absurda da transformação. O interior queimava, como se ele todo se rearranjasse, como se tudo fosse se tornando outro. Sentia as costelas espremerem, os quadris alargarem, sentia as coisas retraindo. Mas não via nada, não conseguia abrir os olhos mas confiava. Depois de meia hora de dor e de caricias que machucavam ela sentiu largar-se. Defronte ao espelho sentiu o êxtase, a vontade de continuar, a vontade de sair e pular. Sim! Nua! Sair e pular como dizendo “Eu me amo!” e agora se amaria. Ela sentiu a mão do homem... Homem? Anjo! Tocava-a no pescoço. Olhou nos olhos e perguntou “E agora?”, em que logo em seguida ela respondeu, feliz consigo “Um beijo” e beijou-o. Se beijara por alguns minutos até que ele afastou-a, beijou-lhe a face como cavaleiro e saiu pela porta do quarto.
Noutro dia ela levantou-se da cama. O dia era lindo, seu rosto era lindo, o corpo era lindo. Toda a conjuntura era linda. Ela era linda, ela era a beleza em suma. Fitou-se feliz, finalmente, sem nenhum peso na alma.
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gabientalismo · 2 months
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paula
Me percebo cada vez mais me tornando você. Se antes eram os outros - que em mim viam a ti, que comparavam os narizes, os lábios e as bocas, em determinado período os cabelos - hoje não mais. Hoje eu que vejo no espelho aquela outra, aquela irmã. E tudo se mostra você. Foi antes tentando copiar o que você fazia, quase que uma antropófaga, querendo consumir seus hábitos para me tornar você, de tamanha que fora, não, melhor, que é minha admiração. Ouvia os sons dos teclados, via as histórias e os livros e pensava QUERO SER ASSIM. Em determinado momento foram as letras, a escrita. Fosse teu C, teu A, teu P e agora teu M. Querendo ser igual você, querendo roubar a autenticidade pois sempre achei ela tão bonita em ti e logo, por que não poderia ser bonita em mim? Hoje sou os livros, sou os Ódios, sou as saudades, sou tudo. Mas mais ainda me vejo na aparência. E se eu me torno mulher e meu sangue hoje é de mulher, vejo em minha mão a tua, em meu rosto sua face, até as vezes o corpo no seu. Vejo como você se faz em minha semelhança e como isso me assusta pois nunca fora um desejo proposital, sempre fora aquele desejo de ser igual mas o Ser Igual enquanto uma admiração, o Ser Igual como querer ser aquela pessoa que é tudo para você, que você não imagina que pode sofrer e penar como você sofre e pena. Mas agora não, agora sinto que foi só uma passagem. Querer fazer-me você para ao menos sentir-me preparada para começar a ser eu. Empezar a convertirme en mi. E então me encontro nessa encruzilhada desejando de volta ser uma pequena para que tudo o que eu queria era ser você, desejar ser criança e sofrer de ataques de riso e de ameaças de incêndio. É tão engraçado, de fato me percebo me tornando você, ou melhor, como você. É cômico. Parece até que você é minha irmã.
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gabientalismo · 3 months
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Você nunca vai saber o quanto eu te amo
Você não vai nunca saber o tanto que te amo
O tanto que me importo
Você nunca vai saber o que eu faria só pra te ver bem
E sinto que todas as palavras não cabem
E não sei...
Sinto que eu poderia fazer tudo pra você
Sei, é loucura
E a saudade que sinto não cabe em mim
E transborda
Sobressai em preocupações
Pois como estar totalmente em paz se sei que em algum lugar estará você,
Talvez com angústia,
com tristeza?
Se eu pudesse dar todo meu bem-estar a alguém
eu daria à ti
Você nunca vai saber o quanto eu te amo
Nem nunca saberá
Talvez, um dia, eu te conte
Mas só talvez
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gabientalismo · 4 months
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FA - TAL
Quando senti tua mão na minha
Sobressaltou-me uma dúvida fatal
E excitação, e querer
Não quis sentir
Não quero!
Mas Deus!
Teu cheiro, tua textura
Teu cabelo enrolado em si
Jesus! Que ódio!
Você me dá ódio
Queria saber controlar
Mas não!
Quero me entregar e fazer-me tua
Toda tua
Quero que você me agarre de forma explícita
De forma fatal, como eu seu não fosse nada
Fatal
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gabientalismo · 6 months
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Trabalho-me para ser uma necessidade
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gabientalismo · 8 months
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Tudo o que me prometeram
Prévia de um sonho que um dia chamei de amor
Tudo o que o mundo um dia a sonhou em me dar
Jogaram fora, esqueceram e deixaram o erro
Com luta e força, encontrei-me
Limpei, cuidei e brinquei de sonhar comigo mesma
Hoje, ao lembrar, penso como era lindo no começo
Uma nova aventura, um novo medo
Hoje há outras preocupações
Mesmo assim sigo, pois me amo e sou eu mesma a minha vida
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gabientalismo · 8 months
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La Profundidad Del Daño
Y fueron dos ojos
Entibiados en el negror del cielo
"no llore" Hay me ditcho
Y acá, resguardo-me
A la pelea fundamental
Sin extravagancia
Y mi extrana mucho todas las cosas
Tu boca, riso, cabello, tu toda
Pero sigo asi, dando la vida
Pero no mi
No tu vida
La vida excomungada de Dios
Mi Dios
El Tuyo
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gabientalismo · 11 months
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Ouvido
É tão barata, essa dor
E se eu não fosse impura, talvez
Quero entender o porquê disto
A flor, o som, o ódio ao infinito
Não parou, não parará
Graças a deus
Mas você não fala
"Graças a deus"
E se parasse? Eu percebo?
Não! Oh, sim!
Estou tão cansada! Exausta!
E se eu volto?
Quem sabe volte também
Graças a deus
Sou pequena, obsessiva
Obssesora
Graças a deus
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gabientalismo · 1 year
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Você
Me percebo sempre buscando você. Assim, em tudo. Eu lhe busco até nos meus pensamentos. Entro em becos sem saída, abro portas e dou-me com uma parede. Quero muito teu abraço. Só. Sem beijos, sem toques... Sem sexo. Só teu abraço. Só a amizade...
Minto! Eu quero seu toque, teu beijo! Teu sexo! Quero, mas sei que não tenho e que é erro. Que é desrespeito. Amei outras e outros. Nunca deixei de te amar. Nunca vou deixar. Ultrapassa tudo. E não é amor romântico, esse é pra trás, mas o amor de fato. Já achei que éramos "Só Sexo". Nunca foi. Te amo para além da matéria, te amo em outra ordem, te amo além da minha própria compreensão. Se Deus te fez foi pra eu te amar. E eu consigo sim amar outros, mas nenhum é você.
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gabientalismo · 1 year
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Tudo Que o Tempo Me Revela
Eu sinto saudade. Saudade. Singular, sem plural. Solteira a saudade. Só o que o tempo me revela, cada vez mais, é a saudade. Quanta saudade. Quanto desejo. Quanta queimação. Os ardentes. Saudade de teus beijos, ardentes. Prova-se odiosa, mas ah! Que beijos hipnotizantes, ardentes. A eternidade que era meus lábios colados nos teus. Emoção de ardência. E nenhum beijo é igual ao teu. Nenhum beijo, nunca, nunca se comparou aos teus. Não terei você comigo. Agora, teus beijos? A memória esquece, mas meus lábios? Nunca.
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gabientalismo · 1 year
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Para me castigar e o mundo perdoar-me
Você pensa em mim? E o que você pensa quando falam de mim? Não sinto desejo. Não sinto vontade. Não sinto nada. Uma estranha. Cada vez mais torna-se uma estranha para mim. Um fragmento de memória. Um trecho confuso naquilo que eu chamo de vida. Quando eu vejo você a duras penas, contra minha vontade, contra meu desejo, passando rápido pelas portas, pelos vãos, como fantasmas, eu me pergunto se fui tola ao me entregar a ti, tão rápida, tão súbita, esperando a queda fria e dura, quente e suave nos braços da saudade. Ah, fui tola em chorar e beijar quando disseste tudo? Não! Não, nunca poderei me definir assim! Tola não, mas esperançosa. Esperançosa como quem se entrega ao desconhecido. Você, desconhecida pra mim. E percebo como passa, como tudo passa e como a febre fugaz de um amor se torna cada vez mais uma preocupação pequena em comparação as outras preocupações, nem tão pequenas, nem tão amorosas. E se me engolem, e se eu deixo me engolir, e quando me machucam e eu me sinto perdida e maltrapilha, nunca lembro de ti. Lembro de eu mesma, com esperanças em outro alguém. Como se a minha salvação estivesse no outro. Como se meu remédio, minha cura e meu Bel prazer fosse o outro. Fosse você no caso. Nunca te usei, nunca ousaria usar. Fora mais capaz você ter-me usado do que sequer passar na minha cabeça a simples motivação do uso. Quem manipula são os outros. Quem fere muitas vezes sou eu. Oh! E a pessoa horrível que percebi que sou. Estou tão parada no tempo quanto tudo que para no tempo. Não tenho exemplos, mas sei que quando olho aos dois lados não vejo nada senão minha imagem paralisada. E tudo anda, nada fica, e a distraída fragilidade agarra em mim e não me solta. E de novo me deparo com os vultos que já amei, com os fantasmas que hoje me olham não mais como um desejo mas como algo incerto e inócuo. Inquilina da dor, visito as memórias. E como o vento rasgante, no abismo entre o ser e o fui, me lanço as memórias e aos vícios. Como resposta a tudo. Vicios em tudo: álcool, filmes, livros. Mas nao esqueço pois nada disso ajuda-me a esquecer e então eu só lembro de tudo e tudo me lembra de tudo que me lembra das pessoas que já amei e de quando eu fora desejada, pois para além de tudo eu percebo que não desejo nada além do desejo do outro sobre mim, não desejo nada além da vontade de ser algo que querem, que almejam. Trabalho-me para ser uma necessidade, para que me vejam como algo necessário. Percebo-me enquanto uma depravada que muitas vezes só quis ser usada. Usada e jogada de lado para depois ser usada de novo, como um desejo intrínseco do outro. Nossa! Como eu pude ser assim? Não quero mais. Quem deseja-me agora sou eu. Busco como nunca isso que eu vejo, que sou eu, deforme, sem prestígio. O vulto que sempre passa na porta olhando pra dentro e sempre se cruza comigo. Não quero mais que seja você, ou os outros amores que já tive. Quero olhar no vão e ver meus cabelos soltos passando rápido. Acho que é por isso que confundia você comigo as vezes. Teus cabelos iguais aos meus, confusos e enrolados em si próprio.
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gabientalismo · 1 year
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Tumblr media
Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil.
Clarice, A Descoberta do Mundo
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gabientalismo · 1 year
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Queimam dentro de mim as quatro paredes de um casebre que já chamei de amor
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gabientalismo · 1 year
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Quero ver se tantos túmulos, tantas covas, tantas dores, me servirão de abrigo
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gabientalismo · 1 year
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Mulher
Olhava aquilo e então disse: -Sempre foi muito e demais fazer isso. Sua cara, seu trejeito, teu proprio pensamento. Pensamento preso a si própria, que nunca pode ver além do seu cabresto, além da sua própria visão. Paga-se tanto de alguém que tem amor, que tem doçura, mas sabe que no fundo não passa de uma rata. De uma cobra mentirosa. Olhe -se no espelho, Mulher! Vê-se inteira falsa! Uma face que não lhe pertence, um corpo que não lhe pertence, mãos e vozes que não lhe pertencem! E você tenta mesmo pagar de alguém doce? Alguém que se importa? Sabe-se muito bem que você não valhe o que come. Não valhe um vil metal, um amor que lhe dão. Irá morrer só, pobre e só, como você merece, como todos esperam que morra. Nunca pode tentar amar alguém além da própria e da única idealização, então não amará ninguém. Pare de falar e se olhe no espelho! Quer mudar? Mude! Mas saibas que não terá nada do que você perdeu por conta das próprias ações. Você é podre! - E cuspiu na imagem refletida no espelho.
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gabientalismo · 1 year
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FEMINILIDADE – 20/07/23
“Tem a ver com o feminino, do jeito que chega devagar, perante a tanta grandeza que se é. Na feminilidade que há no ato, que de repente, do nada você vai ao tudo, e da exaltação se corre direto à humilhação. Não há nada masculino na morte, não há nada duro em morrer. Morrer vem de uma delicadeza atroz, aguda, que fura como agulha as películas da vida. Morrer é leve. Por mais que o caminho doa, a morte chega leve, pouco a pouco. A morte é feminina.” Leu na revista.
Esperava fora do consultório do dentista. Começo de verão, o corpo todo em chuva e o tempo inteiro o mormaço. A sensação de abafamento espiritual. Se eram revistas, se eram recepcionistas, se era tudo o que havia envolta. Roçava a cabeça na parede e pensava: “De fato, a morte é feminina. Eu sou feminina... e eu me sinto morta... eu acho.”
Porque o que é viver? Se viver é sentir vontade de viver, ela já não vivia. Mas e se viver fosse outra coisa? Não, o simples bater do coração e o respirar não definem a vida. Ela fazia tudo isso automaticamente e mesmo assim não se sentia viva. Se uma partícula virava outra, e mais outra, e mais outra e mais uma ali e outra aqui e outra acolá, se isso era estar viva talvez ela estivesse. Mas não no cerne. Não no fundamento de viver. Posso estar viva, mas não me sinto. Sentir. É isso. Viver é sentir. E viver é buscar sentir, buscar o prazer. Viver é a busca incessante do prazer, de correr atrás do que te faz deliciar-se sobre si mesma. E a vontade não passa, não passa, não passa. Então se viver era buscar prazer, talvez ela de fato não estava viva. Nada dava-lhe prazer, nada lhe dava vontade de fazer de novo. Então estava morta mesmo. Mortinha. Roçava mais o cabelo na parede áspera da área de fora.
Tinha um ano que joana não ia ao dentista. Ele era um homem baixo e gordo, com entradas até o meio da cabeça e um bigode mal feito. Precisava de uma limpeza. Fumava muito. A mãe não sabia. Os dentes cheios de tártaro. Gostava de cigarro de melão. Cigarro de melão com coca-cola. Tomava de café da manhã as vezes, um maço de cigarro e um café, quando faltava o refrigerante. Alguns julgavam ela, mas ela gostava. Abaixava um pouco a pressão e a rotina diminuía a ansiedade. Depois de dois anos na análise a mãe já não pode mais pagar, então ficou só com seus cigarros mesmo.
Roçava mais forte a cabeça, coçava muito. Os banho quentes davam caspa nela. Tomava só banho quente. Se depilava muito e o banho quente ajudava. O lado de fora tinha cheiro de esgoto e.... Cigarro de melão. A moça ao lado fumava um.
-Me dá um cigarro, por favor? – Pediu pra moça, já estendendo a mão na boa vontade – Sou maior de idade, posso mostrar a identidade se quiser...
Subitamente a mulher – sua pele era já enrugada e tinha um cabelo grisalho falso – tirou da bolsa um cigarro e lhe deu. Pediu fogo e deliciou-se. Finalmente calma, dentro do consultório era muita ansiedade, som de maquininha, o telefone da recepção e aquele cheiro horrível. Pelo menos agora cheirava tudo a melão.
“Estou morta mesmo”, pensou, pensou e pensou. Estava morta mesmo. “Calor desgraçado, vou matar-me quando eu chegar em casa!”. Tragou o cigarro. Doce sabor da fruta.
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