Text
Dasein Despedaçado: A Implosão do Diferencial
1. O Surgimento do Ser e a Manifestação
O ser, ao surgir no mundo, ainda sem consciência definida, encontra-se manifestado perante os demais. Manifestar-se é, para nossos fins teóricos, o estado daquilo que aparece e se diferencia. O requisito número um para ser é, antes de tudo, aparecer.
O aparecer configura que o ser toma parte do mundo enquanto é por ele moldado: é o ser-lançado, que perante outros seres surge e é notado. A diferenciação vem da realidade notável de que os seres nunca constituem igualdade.
Cada unidade do que chamamos de ser é, em outras palavras, única por definição. O ser é, em essência, diferente dos demais seres — e esta regra é, portanto, imutável.
2. A Consciência como Vínculo Ontológico
O ser, dotado de tais características, nasce. Mas, ao nascer, não possui ainda consciência. A consciência é uma dialética subjetiva pela qual o real, o objetivo e o sensível podem ser definidos. Consciência é vetor, e está tão intimamente ligada ao ato de ser que é inútil falar de ser sem uma consciência prévia que filtre, cuidadosamente organizando (ou não) os dados externos. A consciência define o que vem de fora de forma coerente.
Um bebê é um broto de ser, e assim podemos chamá-lo não apenas porque seu caráter está em formação, bem como suas habilidades e competências, mas principalmente porque sua consciência — o ser — desenvolve-se cuidadosamente. Esse processo natural é altamente mutável, entretanto.
3. A Manifestação do Próto-Ser
O próto-ser, ainda incompleto após seu nascimento, toma seu primeiro passo na consolidação por meio do processo de manifestação, isto é, aparecer diante dos demais que agora o reconhecem como ele é: naturalmente e sem pressões. Ser ainda incompleto, não totalmente manifestado no mundo. Já Dasein, mas incompleto em sua estrutura interna.
O ser que aparece, mas ainda não se diferencia, exerce sobre os demais um fascínio comum aos seres plenamente manifestados: fascínio ontológico. Ora, estão diante de um ser que ainda não é com todas as suas forças! Ele é moldável, ainda latente: ele em nada se diferencia dos demais. Ele apenas aparece com inocência — inocência aqui sendo o ser inconsciente de si e do mundo.
4. Diferenciação: Fundamento Ontológico
Falemos agora deste componente em constante construção no ser, desde o momento que nasce ainda latente até o momento em que deixa de ser — que perde sua consciência e sua manifestação: diferenciar-se. Diferenciar-se é ter conjuntos diferentes de características.
A noção mais básica dessa diferenciação é ocupar espaço: dois corpos não ocupam o mesmo espaço. Se um ser é idêntico a outro, mesmo nos detalhes celulares mais primordiais, cada um ainda possui existências distintas pela forma como ocupam o espaço. Essa é a diferenciação primordial e fundante.
Entretanto, os seres, ao longo de sua existência, e a partir dessa propriedade — o corpo — criam inúmeros significados na jornada do ser ao não-ser. Esses significados fundem-se na tentativa de dar propósito à vida, esse curto intervalo entre ser e não-ser.
As diferenciações constituem a unidade básica dessa atribuição de sentido, moldando o mundo e os seres num processo dialético, dinâmico e pungente, contínuo enquanto houverem seres.
5. Significado, Consciência e Caminhos do Dasein
Um ser que aparece se diferencia quando toma consciência gradual dos diversos significados ao seu redor e com eles interage nos mais variados graus, formas e entusiasmos.
Um tal próto-ser que nasce e recebe de seus pais uma educação evangélica encontra-se numa posição Dasein tal que uma miríade semi-infinita de significados se abre diante dele. Para esse próto-ser, essa educação pode significar: fé vinda de berço ou ateísmo incrustado pela imposição; boas amizades ou experiências ruins. Talvez tudo isso, em diversas fases variadas? Talvez mais de uma dessas fases, que vêm e vão a cada vinte anos?
As possibilidades do Dasein são próximas do utter oblivion — ou seja, incalculáveis em termos práticos. A diferenciação é a apropriação de significado; é, em parte, individuação — mas a ultrapassa. Aqui falamos precisamente das condições transcendentais à individuação em si.
6. A Sociedade como Aparato Semântico
A partir daqui, entraremos num balé de forças ontológicas quase cósmicas que regem a vida ordinária humana. O processo de diferenciação é o começo da maioria dos conflitos humanos — e afirmo isto de forma mais ontológica do que prática.
Tomemos, por exemplo, um adolescente de quinze anos que se vê consumindo conteúdo científico e, frente ao que aprendeu, torna-se um ateu. Este jovem possui agora um elemento conflitante com sua família cristã. Pior ainda? Ao invés de simplesmente se abrir, ele pode esconder isso, pois possui em seu acervo de significados advindos do mergulho no Dasein um significado claro que diz: “Isto é vergonhoso, inimportante, e portanto é bobagem dizer”.
Este jovem enfrentará consequências evidentes por essa escolha: está reprimindo características que o tornam diferenciado, individual. Não se trata apenas de discordância ordinária — trata-se de uma autoimolação ontológica. Ele abre mão daquilo que o faz um ser manifestado.
7. Semantofagia: A Opressão Ontológica dos Significados
Agora imaginemos essa tendência sendo movida por outro agente ainda maior, tão alienante ao ser (Dasein), mesmo que este tenha dele absorvido grande influência: a sociedade.
A sociedade é, para os fins deste estudo, um conjunto de sentidos e significados compartilhados entre as consciências e por ela legitimados — não aceitos como bons ou maus, mas reconhecidos como entes reais: a religião, a moral, a ética, a opinião pública, o capitalismo, a família... e, quem sabe, até tribos urbanas.
Queremos aqui nos atentar ao fato de que os significados e sentidos compartilhados entre os indivíduos, de alguma forma, ganham uma dimensão alienante aos mesmos em seus processos de diferenciação.
Theodore Kaczynski, em seu manifesto A Sociedade Industrial e Seu Futuro, afirma:
“A sociedade industrial não pode ser reformada de forma que não oprima as pessoas; ela deve ser descartada completamente. [...] A sociedade tecnológica tende a excluir os indivíduos inadaptados, aqueles que não se encaixam nas exigências do sistema.”
Em resumo, encontramos aqui um fenômeno que chamo de semantofagia: quando um sentido ou significado compartilhado — e legitimado — engole o processo de diferenciação por meio de aparato opressivo, real ou sensível.
8. Conclusão: A Castração Ontológica
A semantofagia é, portanto, um dos maiores problemas no caminho natural do ser à diferenciação. Ela constitui, de forma categórica, a imposição de certos significados e sentidos sobre o ser.
Embora, em parte, traga o Dasein à sua forma para o outro, em outra parte atrapalha — e muito — o desenvolvimento e a paz do processo ontológico, controlando e ditando quais semióticas lhe são apropriadas ou não.
É, para muitos efeitos, uma castração ontológica — opressiva. E disso decorrem diversas possíveis respostas: desde o individualismo radical até o anarcocapitalismo, como tentativas de corrigir esse problema que uniformiza e castra ontologicamente. No fim, deixa os seres — jogados no mundo — confusos, tensos, reprimidos e aborrecidos.
Bibliografia / Influências
Heidegger, Martin. Ser e Tempo. Tradução de Fausto Castilho. Petrópolis: Vozes, 1995. Obra fundamental na formulação do conceito de Dasein, ser-no-mundo e diferenciação ontológica. Ser e Tempo - PDF no LibGen
Kaczynski, Theodore. A Sociedade Industrial e Seu Futuro. 1995. Manifesto que inspira a noção de alienação sistêmica e crítica à normatividade técnico-industrial. A Sociedade Industrial e Seu Futuro - PDF no LibGen
Stirner, Max. O Único e Sua Propriedade. Tradução de Paulo Menezes. São Paulo: Hedra, 2007. Contribuição essencial para a ideia de individuação radical e crítica às instituições semânticas normativas. O Único e Sua Propriedade - PDF no LibGen
Land, Nick; CCRU (Cybernetic Culture Research Unit). Fanged Noumena: Collected Writings 1987–2007. Ed. Robin Mackay e Ray Brassier. Falmouth: Urbanomic, 2011. Influência no pensamento de forças semióticas despersonalizadas e crítica aceleracionista à racionalidade dominante. Fanged Noumena - PDF no LibGen
Kant, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Valerio Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Edusp, 2001. Base conceitual para a distinção entre condições transcendentais da experiência e estruturação da consciência. Crítica da Razão Pura - PDF no LibGen
1 note
·
View note