Tumgik
his-toria · 4 years
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Canoa e centopeia. A festa
- Não. Qual é. Não pode ser. Estou me sentindo estranha. Não era pra eu estar me sentindo assim. Ontem foi um dia tão bonito, tão, tão poético. Por que é que eu estou assim Fita?
- Ainda nem levantamos, não da pra saber se vai ser assim pelo resto do dia. Vamos tomar um “café” no Tó e quem sabe depois de uma boa “refeição” essa sensação vai embora.
- Tá certo. Bom dia Fita. Suspirou receosa.
- Bom dia Canoa. Uma pausa aconteceu aqui. Vou tirar mais um cochilo. Ninguém discordava de ninguém.  Para que não se perca o costume, no ar da pequena casa sempre tinha uma música rolando, era quase impossível encontrar esse ambiente vazio de melodia. Canoa e Fita sentiam se contemplados pelo som que invadia os cômodos e sambavam nas paredes, no teto, no chão de taco. Isso quando não rolava uma base e os dois passavam tardes batalhando entre si. Mas aquele dia tudo quanto era coisa no mundo como os pombos nos fios elétricos, a buzina do “cara” do pão, os vizinhos barulhentos e os pássaros presos em gaiolas imploravam por Segue o Seco com Marisa Monte, que parecia estar presente e que ficaria por todo aquele dia. Melodia para dias como aqueles. Despertaram. Depois de escovar os dentes, apreciando o sabor menta e a sensação que é lavar o rosto, com qualquer roupa e se duvidar com a mesma que foi dormir, Canoa pegou a magrela e foi a famosa padaria do Tó. Conhecida não por ter os pães mais fresquinhos e quentinhos. Mas pela clientela curiosamente cativada ao longo do tempo que viviam a arrumar umas belas encrencas no estacionamento. Tônico mais conhecido por Tó foi, por assim dizer, uns dos primeiros colegas que Canoa fez quando decidiu morar sozinha e mesmo que detestasse os salgados servidos por lá, sempre amargos e com gosto de anteontem, Tó era um homem muito simpático, baixo feito hidrante, pelos nos peitos, um dente era de ouro contudo muito bom de ouvido, o que era um sucesso, por que vocês sabem que quando Canoa começa a falar da mais voltas que um carrossel. Chega da enjoo. Antes da faixa de pedestre já era possível ouvir o sino que a magrela “margarina”, como chamavam, fazia. Como código Tó já abria uma gelada e deixava na mesa do lado de fora.  - Vi Tatiane quando passei em frente ao Sacolão! Pegou o copo, brindou e bebeu quando viu o farol abrir. Tradição que criaram no primeiro encontro.
- E eu lá te perguntei Canoa? Não, não, não quero saber de Tatiane. Coração de pobre já sofre de, de, de, demais. E eu não vou pro, procurar mais por ela e se ela perguntar! Diga que e, e, e, eu estou bem! É bom que eu deixe claro que Tó era gago, as vezes emperrava e seu olho direito emperrava junto. 
- Tá precisando de uma cerveja Tó. E pare de ser tão dramático, logo vocês vão estar na praça agarradinhos feito tâmaras. 
- Tâ, tâ, tâmaras? Falou deixando em amostra seu dente de ouro cravado no lugar do canino. - Algo do gênero. Sabe do que precisamos? De uma festa! Sempre que Canoa falava em festa fazia questão de se levantar como se as asas não coubessem na cadeira em que estava sentada. - O que você está fazendo? Perguntou Fita sentindo que a ideia era tão ruim quanto tâmaras. - Hoje fecho as, as 20h. Levantou junto. Der repente nasceu asa em todo mundo no bar. Tó sorria como se tivesse 56 anos menos 38. Subiu na margarina e meteu marcha. Antes de ir pra casa trocar e destrocar de roupa centenas de vezes por sentir se insatisfeita com seu estilo ou a falta dele ia no Toneladas Bar comprar uma bebida rica, rica em vitamina D, D de ficar doida. Que patético! Retrucou Fita quando teve de ouvir esse pensamento “adolescentico” vindo da Canoa.  - Eu sou contra o Tó ir. E você sabe porque. Prevejo acontecimentos desconfortáveis. Vai beber o que? Daquela vez todo mundo vomitou e lembra se bem de como foi o resto da semana. Não sabem quanto Fita saboreava ser intrometido.  - Fica tranquilo. Tó não vai fazer nada. Vamos curtir. Vai tudo dar certo. Vou levar Saint Germain e Marcus James. Meus preferidos. Brincava com as garrafas como se fossem bonecos no ar.  Em casa acontecia uma espécie de cerimonia que possivelmente atrasaria o encontro com Tó na estação. Canoa fazia toda uma ritualização quando ia se arrumar que perdia a noção do tempo e muitas das vezes se esquecia o por que era que ela estava se arrumando. Tem vezes que até desiste de lembrar e sai sozinha, deixando algum ser, que poderia ser sua alma gêmea, a espera dela por infinitas horas. Não satisfeita com nenhuma das combinações e o dia que ia se vestindo de noite. Repetia. Roupa não é o que importa. A ideia é que consta. Não está tão ruim. Ficou uns minutos, como costumava fazer, olhando se no espelho. Deixando que os olhos escorressem pelo corpo até se encontrar com os olhos. Em forma de ímã. Canoa sabia o quanto seu próprio olhar lhe afetava. Criava teorias que os olhos nos espelhos não pertenciam a ela, mas a quem mora no espelho. Era a forma que ela conseguia sentir que estava segurando na sua mão, como se ela se ausentasse daquele plano e em outro fazia se presente. Um momento delicado que aconteciam nos intervalos da sua vida. Entre ensaios, pinturas e a ruptura que a arte causou dentro de sua alma. Sorriu. Por que sentiu se contemplada. Rolou um inside. Uma ligação havia sido feita. Um trato. Durante o resto da noite estarei aqui comigo. Hoje, hoje eu sou a cor azul, falou em voz alta e riu. Desligou as luzes, trancou as portas, pegou os vinhos, sua chave e saiu. Hoje a noite ela poderia ser quem ela quisesse. E qual Canoa ela ia inventar de ser? As luzes dos postes davam uma graça pra todas as sensações sentidas, uma confusão, confusão que não combinava com o azul da sua silhueta. Canoa não sabia o que acontecia dentro das montanhas que moravam no seu coração mas não alimentaria aquelas emoções. Num impulso das certezas que os desejos que são declarados em voz alta te escutam com mais clareza. Pediu pra que naquela noite, não se sentisse pedra. Fita sentia seu aflito, que refletia em seu instinto e quase que sentiu pena, mas Canoa não merecia tal sentimento. Ao encontrar Tó, que parecia mais com o Mendonça de A Grande Família, fugiu de dentro dela alguns fantasmas que temem seu sorriso e a risada dos poucos amigos que lhe restam. Riram na estação. Riram dentro do trem. Riram na calçada. Pararam na frente do portão. Pintado de amarelo sol. Tó fez alguma piada, qual não me recordo, mas quase enfartaram de risos. Aquelas risadas em que damos leves socos na parede e quase nos ajoelhemos no chão. Se recomporão. E bateram palmas. Foram recepcionados por um homem que estava fantasiado de flamingo. Canoa e Tó se entre olharam disfarçadamente como quem dizia “Do que é estamos fantasiados?”. De fora a festa não parecia estar na proporção que se encontrava quando passava o corredor regado de samambaias. Uma multidão dançava. Contagiando antecipadamente o demônio que dormia nos pés de Canoa. Enquanto seus olhos pareciam perseguir uma borboleta que se misturava no aglomerado de gente aparentemente feliz viu o sorriso de pétala do outro lado. Sentiu se imediatamente anestesiada. Piscava em câmera lenta pra continuar apreciando sem perder nenhum frame. Ficaria olhando até que seus olhos se encontrassem. Como ímãs se grudassem. Parecia que uma Deusa soprava poemas no ouvido de Canoa, trazendo uma sensação de refresco que consumia o corpo inteiro, era algo a ser estudado, sua cabeça caia levemente pra esquerda, como se se apoiasse no colo da Deusa e compartilhasse com ela sua admiração por toda aquela imagem que Clarice pintava com seu sorriso, risada e jeito. Quando enfim os olhos se encontram, Clarice sussurrou pra sua Deusa, que também estava presente, “Ali estão os olhos cais”. A conversa em que ela estava presente, foi deixando de ser protagonista. Saiu acreditando ter pedido licença, mas não pediu. Era recíproco a sensação de anestesia. Parecia que Marisa Monte, outra Deusa, participava daquele olhar e decidiu cantar. “ Meu coração, não sei por que Bate feliz quando te vê E os meus olhos ficam sorrindo E pelas ruas vão te seguindo Mas mesmo assim Foges de mim “  -  Esta atrasada. Clarice tentou imitar o homem barba cor caramelo do dia do processo, mas era doce demais para aquilo.  “ Ah, se tu soubesses Como sou tão carinhoso E o muito, muito que te quero ” -  Os atrasos são intervalos pra verdadeira história. Canoa conseguia parecer se mais com ele, entrando no jogo, na cena, no drama. “ E como é sincero o meu amor Eu sei que tu não fugirias mais de mim “ Clarice abriu os braços como se interpretava ali Rose Dawson Calvert quando  Jack Dawson a segura pela cintura no vante do grande navio cruzeiro em Titanic. E cantou junto.  “ Vem, vem, vem, vem “ - Vem sentir o calor dos lábios meus. A procura dos teus. Vem matar essa paixão que me devora o coração e só assim então serei feliz. Bem feliz. Serei feliz. Bem feliz. Serei feliz.
- Feliz. Finalizou Canoa sorrindo. Sua voz até que é bonita. 
- Até? Canta pra mim pra eu ver se sua voz “até” que é bonita. Brincou. Não esperava te ver hoje. É seu namorado? Perguntou olhando por cima do ombro de Canoa, Tó que comia os salgados que estavam em cima de uma porção de mesas espalhadas no local.   - Namorado? Não, não. É meu amigo, meu amigo Tó. Ele veio de Mendonça, como pode perceber. Canoa sentia sua bochecha arder.  - E não é que é mesmo? Tá parecidíssimo. Mas e você? Veio de que?  - De trem.  Abriram um dos vinhos. Agora peço para que imaginem, como naquelas cenas de séries, todos dançando em câmera lenta no meio do quintal. Um quintal rodeado de pequenos pés de árvore, plantas enormes que vinham de vasos cor de barro. Todos dançavam. Todos cantavam. A maioria das pessoas na festa eram parte do coletivo de teatro que Clarice participava. Canoa não desgrudava os olhos do sorriso, um sorriso de flor, mais flor do que toda flor daquele jardim. Os demônios saíram dos pés e foram pra mente. Possuindo a imaginação. Tomando controle do pudor, inibição. Erguiam as taças, os copos, as latas ao céu sarnento. Depois de muito exibir seus demônios Canoa decidiu sentar numa área reservada ao fumantes e ascendeu com gosto, seu último cigarro. Degustaria como se fosse o último da vida. Apoiava os braços numa espécie de sacada. E via os carros que passavam pela rua. As pessoas dentro dos carros. No céu vinha vindo um avião. Fechou os olhos e decidiu fazer um desejo como se fosse estrela cadente, mas sua raridade impediria de que ela quem sabe um dia poder fazer um pedido. Então vai com o avião mesmo, resmungou. Do outro lado da rua era possível ouvir o som incomparável de spray sendo gasto. Olharam pra ela e acenaram. Deixando em cor verde neon escrito “Carma” no muro. Um barulho forte gritou do quintal der repente. Intervenção artística? Canoa foi se aproximando, olhando que todos continuavam dançando, em volta de uma rocha que chegou destruir os pisos de granito. Suas mãos começaram a suar. Fita sentiu Canoa ferver de uma hora pra outra. Ela sabia que era preciso reparar na respiração e somente nela prestar atenção já que era notável a invenção daquela imagem, sua cabeça inventará, seus olhos esculpiram aquele cenário. Lacrou sua vista com força deixando que o barulho escorregassem pelos ouvidos e que em troca o silêncio adentraria. Era possível mesmo de olhos fechados perceber a sombra que se fez em sua frente. Mas não era preciso olhar para saber quem pousava ao redor. O vento fez questão de anunciar seu cheiro, que aquecia Canoa, também a lembrava das tardes de Domingo, café e de eterna procrastinação. - O que é que você esta pensando? Sussurrou Clarice quase que na ponta do nariz da Canoa que de imediato abriu os olhos.  - Fazendo um pedido as Deusas. Sussurrou de volta.  - Sabe o que diz as lendas quando se pensa com convicção no que desejamos? Ela parecia irreal no meio de toda aquela arquitetura mundana. O único acerto na matriz. A voz afagava os possíveis delírios. Afastava a confusão que se aproximava. Canoa fez que não com a cabeça. Que uma estrela, a dona desse sentimento que mora no desejo, que assim como mora no céu, você carrega no seu peito. Mergulha na terra e então vira semente e nasce uma árvore que depois de longos anos mergulha no céu e se faz estrelas.  - O desejo nunca deixa de existir?  - Acredito que há formas de interromper esse processo. Conscientemente, inconscientemente. Gesticulava como quem explica algo numa lousa. O que você pediu? Canoa premeditou dizer “Você”. Não havia dúvidas de que seria verdadeiro mas poderia ela lidar com aquela verdade? Sempre que julgava ser pedrinha seus sentimentos quando saiam pela sua boca pareciam rochas isso quando trata-se de um sentimento que lhe acolhe, que ampara. Caso contrario julgava seus problemas pedrinhas mas sentia carregar montanhas. Antes que pudesse sequer decidir ser sincera ou ser sincera ao seu modo, o que quer dizer que não mentiria, só de que seria capaz de mudar sua certeza sobre esse sentimento, esse amor que parecia espinho que saia da rosa que era seu coração, torna-lo impossível para não lidar de frente com o desconhecido, quando elaborava boas respostas para dizer ouviram uma espécie de briga vindo de dentro da casa e todos os olhos que ali estavam presentes deram atenção aos ruídos que da casa emanava. Conforme foram se aproximando e antes que pudesse se ver quem estava envolvido na encrenca, Fita e Canoa respiraram fundo... - Tônico! A voz de Canoa se propagou por todo quarteirão, Tó se preparava pra acertar um soco quando petrificou, como se havia retomado a consciência do que estava fazendo. Ficou desajeitado, chegou a arrumar a gola do adversário. Um silêncio ruminava entre os dentes dos convidados. que assistiam a aquele espetáculo. Com cara de quem não tinha feito nada demais Tó se aproximou da Canoa e pela forma que a olhava era possível ouvir sua voz de dentro dizer “Me desculpa”. - Quem convidou eles? Voz vinda da plateia.  - O show acabou. Disse uma pessoa qualquer batendo palmas pra espantar o clima.  Canoa sentia erupção vindo de dentro, seus olhos ondas de mar. Não sabia o por que de tanta emoção, sentiu-se irracional, não sabia como lidar com aquela sensação, pegou sua blusa que estava numa das cadeiras colonial azul fosco enquanto passava pela pista de dança. Sequer despediu-se. Passou pelo corredor que chovia samambaias e via ratos, centenas de ratos surfando em direção a saída junto a ela. De fundo a voz de Tó irritava mais aquele cenário dramático. Quando passou pelo portão, o fechou e ficou assistindo Tó se aproximar, ele endireitava a gola, as calças, estava um caco.  - Noa, sabe que, que não fiz por mal. Colocava suas mãos sob as dela que segurava o portão. Eu, eu juro que tentei não, não bater nele. O garoto foi, foi insolente.  Ficaram se olhando. Canoa não expressava nada pelo olhar. Nem uma gota de indiferença, raiva, mágoa. Soltou as mãos e se afastou.  - Não, não vai assim não Noa. Nada a ver. Abriu desengonçadamente o portão.  Saiu pensando se era o certo a ser feito. Sequer olhou pra trás. Os faróis dos carros vindo em sua direção pareciam sóis, queimavam o olhar. A cada passo um poste caia sobre o asfalto disparando os alarmes das lojas, das casas, acordando os cachorros que respondiam uivando e latindo incessantemente. Entrou pela estação, batucando com o bilhete, junto cantava o que parecia ser um axé. Entrou pelas portas desenrolando seu fone amarelado. O que você pediu? Passou na adega da esquina, comprou mais vinhos. Conforme se aproximava de sua casa, os postes caídos no chão levantavam-se, destruídos e iam se refazendo, voltando a sua forma normal, desembaraçando os fios elétricos. O que eu não pediria? Colocou a chave na fechadura, girou duas vezes pra esquerda. Quando a porta se abriu sua sala era floresta, seus quadros, suas pinturas, sofá, mesa, misturadas ao teto. Tirou os sapatos, o taco era terra, se jogou na imensidão verde que se apresentava. Das raízes que consumiam as paredes, que formavam estradas para seres menores, faziam chover grandes folhas do teto. O que eu vou pintar essa noite? Eco. Parecia uma casa abandonada, assim era como ela se sentia. Eu vou pintar ela. 
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his-toria · 4 years
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Canoa e centopeia. Na feira
Ao som de Chico Alvarez acordamos, ao lado da cama o despertador toca incessantemente as 10h14 da manhã, do lado de fora da porta da frente, Rua Santo Amaro dos Cântaros nº10 estrala um Sol avermelhado, refletindo os vidros sujos dos carros estacionados do outro lado da calçada, do lado de dentro o som do trompete ecoa pelos cômodos desorganizados, fazia um mês que Canoa havia se mudado e aos poucos ia decorando a pequena mas acolhedora casinha, chãos de taco, janelas sem grades, uma pintura feita por ela mesma a cada passo, com termostato natural. 
- Que horas são? Falou Canoa, a voz amassada de sono, se esticando pra pegar o relógio que encontrava se do lado da cama que estava no chão por de cima de um plástico. Merda. Estou atrasada! Correu até o varal que fica no fundo da casa, uma espécie de varanda que ia de cara para um quintal robusto com um único pé de pitanga nomeado de Patê. Se jogou pra dentro do banheiro. - Tem certeza que é esse o endereço certo? Fita finalmente apareceu, deveria estar dormindo mas negaria até a morte que sim. - Boa tarde. Isso tá mais pra um templo idiota e a droga do meu celular não quer pegar. Canoa olhava de um lado para o outro procurando se encontrar geograficamente. As pessoas na rua pareciam bailar com seu desconhecimento, já estava tarde para quem cedo madruga, sem espaço para mais carros nas ruas e para as pessoas nas calçadas. Era a terceira vez que o homem ao seu lado lhe oferecia uma capa de chuva, Canoa admirava sua persistência. - Manda ele calar a boca.   - Alguém acordou mal humorada, não é você ferrada aqui então relaxa. Quando estava ansiosa mordia os lábios inferiores e franzia as sobrancelhas. Coçou o cabelo, viu alguém que parecia ter o mesmo interesse que ela se aproximando e decidiu perguntar. Com licença, você também veio pro teste? É aqui? Cutucou o ombro da garota a sua frente.  - Oi! O sorriso subiu o rosto leve feito pétala. Sim é aqui! E estamos atrasadas. Vamos. Puxou Canoa entre os portões cor de cobre. Canoa ficou surpresa, as pessoas na cidade grande normalmente andam de cara fechada e sendo grossas de graça. E correram corredores a dentro atrás da sala número 16 que se camuflava tão bem quanto a poeira no chão, chegaram a se perder duas vezes, o prédio parecia ter 70 andares e todos iguais, paredes lisas bege, com cartazes, folders perdidos, grafites, portas e mais portas. Quando enquanto corriam por um corredor silencioso, acreditaram ter ouvido algo vindo da última porta por qual passaram com muita pressa, voltaram em frente a porta e viram que todos se alongavam. É aqui? - Vieram para o teste? Perguntou um homem com barba cor de caramelo de dentro da sala, as duas concordaram com as cabeças. Ótimo, estão atrasadas. Entrem, se aqueçam. Tshala Muana quem canta, espalhando um ânimo que havia sido assassinado pelo sono que perseguia Canoa, os seus olhos demonstravam desprezo pela forte luz que entrava pelas janelas. Agora todos estavam espalhados dentro da sala vazia. Iam aos poucos abrindo seus corpos. A música começou a levar todos para um plano irreal, como se houvesse uma conexão sendo estabelecida e decretada por essa voz fluída que Tshala dominava. Os ombros de Canoa criaram personalidade. Num movimento circular, um ia pra frente e outro pra trás, sua cintura foi se soltando e seu corpo parecia ter sido possuído por um espirito dançante com um sorriso malicioso. Os braços iam para o alto, tentando alcançar as estrelas no céu que pareciam escorregar de uma grande folha de uma zona subtropical onde alguém corria desesperado por ser perseguido por essa sombra que domina os passos que vibram da terra e sobem nos pés e vai se espalhando pra tudo até chegar na cabeça que é por onde sai em forma de ideia. Agora seus olhos encontravam se ávidos podia se dizer que não era Canoa ali, quem a conhecia diria. Seus pés estavam apressados, iam para frente e seu tronco caia, erguia se na volta e ela ia para trás pondo o tronco aberto a soco, a vento, a beijo. A música já não tocava mais no espaço, mas tocava dentro de seu coração e seu corpo parecia uma espécie de fonte energética promovendo uma outra dança que emergia de fora pra dentro. Todos em sua volta trocavam olhares anestesiados e confesso que pareciam se coçar pra entrar na dança que ela oferecia, no seu suor mostrava sua alma, não incomodou ela o som não estar mais tocando, todos parados ali feito plateia, estava como queria estar e só pararia quando a canção interna cessasse. Pelo resto do teste ela parecia em transe como se a música repetisse o tempo todo na sua mente. Trocaram de sala para que fosse possível efetuar o teste individual. Os inscritos iam desde dançarinos, cantores, artistas plásticos, donos de sebos, brechós, todos com muita ambição pelo cobiçado papel do chefe da gangue, Frederico René do espetáculo “Já É Noite”. Finalizado o processo, estava prometido que na volta comeriam um merecido pastel, Fita a cobrou assim que saíram do prédio. - Por favor, um pastel de palmito? Obrigada. Era possível notar na sua voz uma calmaria indescritível. - Palmito! Na da atendente certa tensão.  Sem pressa fez questão de apreciar o pastel junto ao caldo de cana, seus olhos pairavam feito paraquedas no ar, quando o céu anunciou uma chuva que estava a caminho, o vento parecia um rugido de um Deus zangado, quem sabe Tlaloc. Decidiu contemplar a chuva permanecendo sentada, pediu para a atendente que fizesse mais um enquanto permitia que seus pés se molhassem, as nuvens que passavam pareciam estarem bravas e em pensamento Canoa exclamava que tinham suas razões, concordava sempre com as ações da natureza e defendia suas revoltas, as vezes as inventava. - Sabe o que faltou no macarrão de ontem? Fez bico por que não achava justo ter que puxar assunto com a centopeia. Ele quem foi grosso. - Não, o que acha que teria o deixado mais interessante? Na sua fala era possível sentir remorso. - Palmito. Sabe o que vai tornar essa chuva interessante? - Não. O que? Ele percebeu sua tentativa de troca. - Fita e Caco. Essa chuva pede sua história. Seu olhos brilharam como enfeites do Ano Novo. Mesmo quando não estavam em dias bons sabiam aproveitar uma deixa para se reaproximar, tanto Fita quanto Canoa. A centopeia se preparou pra narrar suas aventuras, sentindo no peito uma brasa por saber que estavam numa boa. “Onde foi que eu parei? Eu disse que o queria? É! Eu quero ficar com você! Lembro que naquele momento já era declarado que fui a óbito. Assim que eu falei ficou tudo escuro e foi aí que me dei conta de que ele já estava comigo. Essa troca durou horas, as risadas em meio a ela eram fogos de artifício e eu ia aos ares. Depois do nosso primeiro beijo você já pode ter imaginado o que eu esperava, nada menos do que uma aventura absurda ao seu lado sem data de validade. Eu não saberia ser metade e não quis fingir ser uma. Ficamos no corpo do Zé por mais alguns meses e tudo parecia ir de bom a melhor. Eu tinha me esquecido o quão irritante Zé conseguia ser, mal reparava nos seus comentários ou resmungos, estava enfeitiçado por Caco e seus monólogos. Até que chegou nossa última noite no corpo do Zé e eu não imaginaria que fosse. Tudo passaria de melhor a pior der repente. Antes de dormir senti que Caco estava inquieto, cheguei perguntar se algo estava acontecendo mas ele desconversava então decidi ignorar. Quando no meio da madrugada senti que ele tentava desenrolar seu corpo do meu e levantar sutilmente, parecia não querer que eu acordasse então fingi não ter despertado e com os olhos entre abertos o vi ligeiro escorregar ombro a baixo. O segui. Ele não olhava pra trás. Como era ágil quase o perdi de vista até que chegamos no dedão do Zé. Não aguentei.
- Espera! Você vai sair fora? Meu coração palpitava e sequer pensei numa abordagem mais delicada. Você tem me enrolado a todo esse tempo pra isso? Sumir como se nada tivesse acontecido? Como se nós não tivesse acontecido?
- Calma. Não. Não é bem isso. Gaguejava mais que as Gagas de Ilhéus e eu não facilitei, falava junto em cima.
- Qual é e eu aqui pensando que existia alguma conexão, o que acha que eu sou?
- Vem comigo. Ele me interrompeu brutalmente. Vem comigo, vamos cair fora. Pegou minha pata virando se em direção a saída.
Eu só conseguia pensar que minutos atrás estaria dando o pé e não teve a postura de me dizer ou de me convidar pra ir junto e der repente “Vem comigo”? E se eu não tivesse acordado? Eu sabia que algo estava errado, toda aquelas histórias, aventuras e finais felizes, não fazia sentido. Enquanto meus pensamentos iam da cabeça aos pés, eu estava praticamente sendo puxado por ele que enquanto caminhava falava um emaranhado de palavras que pareciam entrar por um ouvido e sair pelo outro e antes que eu pudesse me decidir, ir ou ficar, ele se jogou pra fora me levando junto ao corpo dele. Não houve abraço mais sincero. Caímos contra o chão.
- Mas que merda foi aquela? Dei um empurrão no peito dele enquanto se levantava.
Ele ficou com a cabeça abaixada. Virando pra lá e pra cá como se preparasse pra dar sua melhor história mas nada saia. Respirou fundo e desceu entre os paralelepípedos. Fiquei plantado olhando. Minha cabeça rodava. Não era seguro ficar ali. Pensei em me agarrar ao chinelo do Zé. Não valia meu esforço. Pra minha sorte sei pra onde eu posso ir. Segui caminho oposto ao que Zé estava com seus amigos babacas. - Fita! Ninguém me chamava assim, mas pra que nada se confunda fingimos que sim. Quanto tempo que não te vejo por essas bandas, cupim por conta da casa. Senta!
- Oi Tampa. Suspirei. Éramos amigos antigos, por muito tempo dividi uma tampa de Fanta Laranja com ele, fase difícil aquela!  Lugar de arraia-miúda, conhecido por Capa Bar, ele tocava aquele estabelecimento fazia anos e todos que o frequentavam naquela época ainda iam lá, Moscão, Flanela, Fio e até mesmo a senhora Bé. Impressionante como tudo estava do mesmo jeito, tirando as novas bandas contratadas e o cardápio. Tô sem fome, mas obrigado.
- Sendo assim leva pra viagem. O que pega? Limpava o balcão com destreza.
Estava a própria fossa então assim que ele fez a pergunta desabei em soluços e minhas lágrimas caiam em forma de ponto de exclamação nomeando minha confusão interna. Me senti fraco. O que eu podia fazer? Dediquei meu tempo a um romance fadado ao fracasso e ao desmerecimento, me deixando levar pelas histórias e promessas de altas aventuras e a ideia de que com tudo isso viria como bônus um amor sincero. Eu via Caco nos selos de cartões postais presos nas paredes espalhados pelo bar. A música que tocava me trazia na memória sua voz grave e as lembranças vinham em câmera lenta que nem nos filmes. Teve a vez em que não deixamos Zé dormir por apostar corridas “Do pescoço ao joelho, valendo!”, da vez que tivemos uma baita sorte na noite do cinema que Zé levou um bolo da garota do trabalho, sorte por que quando ele ia acompanhado falava o filme inteiro. Como pude ser ingênuo? Imaturo? Tampa me serviu doses ilimitadas naquela noite em forma de condolências, repetindo que era por conta da casa. Beberia até esquecer Caco, estava declarado. As cores foram se confundindo. Minhas patas adormecidas. Quando percebi estava rodando pateticamente no meio do bar, não me lembro o nome da banda daquela noite mas faziam eu me sentir do tamanho de um humano. Vai ver eu gostava mesmo daquele inseto. E eu apaguei. Acordei como se tivesse brigado na noite anterior, meu rosto parecia inchado. Estava no interior do bar, onde Tampa e eu costumávamos passar nossas tarde assistindo corrida de formigas. No primeiro respiro consciente que dei senti o cheiro do Caco num reflexo espontâneo levantei, ainda tonto. - Com calma, com calma. Acordou melhor “Rei da Pedra”? A risada que Tampa dava me lembrava quando éramos mais dispostos.
- Lá vem você com seus larará. Sorri.
- Vai me dizer que não se lembra? - Lembrar de que? Viu como eu fiquei. Faz tempo que não faço isso. Desculpa aparecer assim Tampa...”
- Palmito! Seu palmito senhora. Insistiu. Canoa pegou o pastel e virou se com os olhos esbugalhados sentando no mesmo banco de plástico.
- Senhora? Ouviu isso Fita? Eu pareço com uma senhora.
- Não precisa ser tão exagerada, pra que isso? Pior foi ela ter cortado a história, eu já estava dentro do personagem, encontrando a energia daquele dia, o tempo certo da narrativa, enxergando o cenário e figurino... - Olha lá! Não é a menina do processo seletivo? Ela tá vindo na nossa direção. Disfarça. Falou dando umas cinco mordidas seguidas no pastel. - Oi! O mesmo sorriso de pétala estava ali. Canoa, né? Posso? Apontou pro outro banco de plástico vazio. Canoa terminava de mastigar. Que virada de tempo, não? Você estava ótima no teste. Canoa se engasgou com o pastel, revirava a bolsa pra achar a garrafa d’água. Que mico, pensou. Era quase possível ouvir que Fita morria de rir lá de dentro. - Oi, muito obrigada. Falou com a boca suja de óleo. Senta aí, fica a vontade, quer pastel? Chegou virar pra barraca acenando como quem vai pegar um ônibus pra pedir outro.
- Não, não, não. Obrigada. Estou sem fome. E não demoro, é que te vi aqui e sabe como é. Meu nome é Clarice, moro aqui perto. Passou a mão no cabelo escuro como o céu de uma noite pós chuva forte.
- Sei como é não. Soltou uma risada nervosa mas cá entre nós até que ficou charmosa. Sim, me chamo Canoa. Igual o barquinho. Mora perto e conseguiu se atrasar pro teste?
- Parece que quanto mais perto mais tempo tenho.  
- Cometo o mesmo erro morando ao lado da estação. Os atrasos são intervalos pra verdadeira história. Como estar na coxia antes da cena. A tempestade passou pra garoa fina e o pastel já tinha sido comido, engasgado, pago. Levantaram se. É melhor eu ir, antes que o metrô encha de gente como a gente. - Vou dar uma festa amanhã, caso esteja de bobeira, aparece. Pegou um dos guardanapos da mesa, que estava cheio deles, e escreveu seu endereço. Às 23h. Traz seu goró e me conta mais sobre coxia, cena, atrasos.
Canoa ia responder quando viu que Clarice disparou barraca a fora pondo a pasta na cabeça por causa do chuvisco. Ficou admirando sua ida e enquanto olhava ia juntando o que deixou na mesa. Chave, bilhete, celular, caneta e o guardanapo. Não se preocupou com a chuva, sentia que precisava se molhar, toparia até brincar nas poças mas a volta era dura e o transporte mais ainda. Gostava do vento que percorria as escadarias antes de chegar as catracas, fazia um sussurro agudo no ouvido que fingia ser segredos de mulheres que foram abandonadas nas estações e as consolava com pequenas composições, batucava o bilhete no corrimão. - E essa festa? Tá pensando em ir? Canoa sentia Fita se espreguiçar pelo ante braço esquerdo, devia ter cochilado. - Eu vou. As portas se abriram. E adivinha?
- O que? Próxima estação... - Você vai junto. Primavera Interlagos.
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his-toria · 4 years
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Canoa e centopeia. No sarau
“O que eu sinto anda pelo meu intestino feito centopeia. Centopeia, centopeia, centopeia onde pensa que você vai? E por que é de noite que tem a brilhante ideia pelo meu corpo passear? Ela vive nas pedras, que como eu já disse, roubaram o lugar do meu coração, sussurrou no meu ouvido que tudo em mim lembra a maré.
- Aqui dentro sempre foi essa confusão, Canoa?
Ri pra dentro para que ela pudesse ouvir. Não faz nem dias que chegou e acha que já sabe o que aconteceu por aqui. As guerras declaradas, canções decoradas e compostas, do choro engolido com gosto que chegou a virar uma imensa bola, que inventou gostar de samba.
- Há dias acredito eu centopeia, que eu seja solução. Discorda?” As palmas ecoaram pela sala, no máximo 8 ou 7 pessoas a ouviram com atenção. Canoa desceu do palco e se jogou no sofá pura madeira, bêbada.
- Aliás, eu não discordo. 
- Muito engraçado. Dentro de mim que não deve ser confortável, acredite tentei das mais diversas formas encontrar o que o torne. Inevitável não ser oca. Acha que serei pra sempre assim? Sem formas, me sentindo bordas, beiras, a linha entre o penhasco e o precipício, serei pra sempre isso? Cá entre nós, contigo não me sinto tão só pra falar a verdade...
- Eu só sou um parasita, não entendo de corpos humanos. Você até que leva bem esse “corpo”. A centopeia riu. Mas conta, hoje você está toda melancólica. 
- Não se pode controlar um coração apaixonado. Se controlo demais acaba que por ficar sufocado, tem de deixar ele se virar e de vez em quando tomar conta do comando.
- O que você diz pra mim não faz menor sentido. “Nunca ousei de tirar o controle do meu coração, ele é tempestade, deserto, erupção de vulcão. Sem ele o que resta é carcaça. Com ele sou a própria presa e a própria caça.” Poético, concorda? Poderia subir neste palco! 
- Muito engraçada. Parece fácil pra você. Não tem jeito de quem se apaixona, tenho até medo de imaginar. 
“- Ficaria surpresa se eu dissesse que não sou o único que alojo corpos, até onde eu sei. Foi antes de encontrar o seu que me encontrei apaixonada, não me reconhecia de frente aos espelhos, ao olhar ficava até assustada. Eu não imaginava que duas centopeias nessa vida dividiria o mesmo corpo. Por dentro vocês humanos são labirintos e num passeio esbarrei com ele. Fiquei confusa. Para ele, a outra centopeia, minha presença foi indiferente, já eu não via a anos um da mesma espécie. Nem imagina a raridade desse acontecimento. Por todo seu corpo era possível notar faixas azuis transversais que se misturava com todo o resto, suas antenas negras. Após pousar minha vista nele, o mesmo passou por mim com tamanha agilidade que onde só cabia eu parecia caber mais três. Virei tão sem jeito pra tentar olhar que juro ter deslocado o tórax. Eu passei a procurar a outra centopeia e estendi minha estadia naquele corpo, por que pretendia meter o pé! O maior dos problemas é que diferente de você Canoa, para todas as perguntas feitas por aquele humano, ele exigia uma resposta. Eu podia ser a mais seca e curta possível que para ele todos os pontos finais eram interrogações e então o assunto prolongava, já não aguentava mais. Procurei por dias a outra centopeia e me questionei se valia a pena, conclui que deveria ir embora, recolhi o que era necessário pra zarpar. Senti que perdia tempo naquele corpo e que o humano não aproveitava nossa presença de forma consciente, desajeitado, se já era daquele jeito naturalmente, não imagino o quão pior ficaria se eu o estragasse por dentro... Se bem que o que ele come vai causar um estrago mas neste caso não é problema meu, o que importava era que faltava pouco pra eu sair daquele museu.
Normalmente prefiro sair pelas unhas dos pés, assim fico mais próximo do chão e as vezes dou uma baita sorte de já conseguir outro corpo. Mas não acontece muito, muitos estão só ou terminam seus relacionamentos ou brigam com quem estão, o que é uma pena, aguentar um humano que sofre por outro é insuportável. Humano é tão clichê, tão irritado! Músicas triste, comer sem apreciar, ser grosso sem necessidade, ser melancólico é até que uma característica comum entre vocês, mas quando rompem é como que quatro vezes mais catastrófico. Bem, eu já havia recolhido o que achei que fosse necessário até achar outro corpo quando ouvi pequenas e sigilosas pinceladas por de trás do meu corpo.
- Já vai? 
- Oi?... Parecia que meus ancestrais haviam colocado aquele fantasma, fantasma maravilhoso de morrer, na minha frente pra que eu refletisse sobre minha ida, é ele.
- Já vai? Ninguém aguenta esse humano por muito tempo, né? Sorriu. 
- Nunca me deu motivos pra ficar. Será que fui seca? Pensei. 
- Para onde pretende ir? 
Falava comigo como se não tivesse se esquivado de mim dias anteriores. Nesse momento de trilha sonora tocava Puro Suco, Doce. Maldito humano, pensei enquanto respirava fundo pra não surtar. Parecia que o infeliz sabia que eu estava partindo. Tentei com todas as forças manter meus olhos conectados com os da outra centopeia, mas meu corpo todo parecia escorregar de moleza e não sossegava o olhar, deslizava por todo seu corpo.”
- Espera, você consegue ouvir do pé o que nós escutamos no fone? Que incrível! O homem podia ser um mala, mas tinha bom gosto. Protestou Canoa ficando ainda mais interessada na história que de curta tinha nada, pensou.
“- Tudo é vibração Canoa, além que temos uma audição até que um tanta desnecessária, ninguém merece ouvir tanto. Você nem imagina como que após o som rolar a solto pelo corpo do desajeitado a vontade de ficar era até que suficiente, mas ele sempre pula as melhores músicas ou não ouve por inteira. Isso sim deveria ser considerado crime mundial! Dito e feito, o som foi parado no meio pelo infeliz do humano e enfim respondi.
- Alguém que não seja como esse aqui. Tentei ser engraçada só que rolou um silêncio da outra centopeia que me fez refletir se fui grosseira, percebi que não quando ele riu e concordou inúmeras vezes. Que riso.
- Sim, sim, sim, sim. Você tem razão! Então, boa sorte. 
- Ele é tão bom a ponto de te impedir de ir? Estiquei o assunto de proposito, quase me senti como o humano, talvez agora eu pudesse entender ele mas tive preguiça de alimentar esse raciocino.
- Lembra quando nos esbarramos? Ele falava como quem parecia ter todas as palavras já ditas na língua, me olhava firme. Naquele dia eu planejava ir embora até te ver. Como não te vi antes? Sabe a raridade desse acontecimento? Fiquei petrificado, não podia estragar aquele momento, então fugi de você, não foi a minha melhor jogada.
Concordei com a cabeça e percebi que não lembrava mais por que eu ia embora, sua voz grave, sua fala pausada tinham confundido os meus sentidos. Fui abandonando a pose de quem partia e estava mais pra quem achou sua razão para ficar, me perguntava se era perceptível. E ele voltou a falar.
- Cheguei a voltar no mesmo lugar onde nos vimos fazendo sempre caminhos diferentes pra que a chance de te encontrar aumentassem. Quando hoje por qualquer motivo incalculável te encontro e o pior é que já vai. Senti um certo desanimo na voz da centopeia e sem pensar falei.
- Eu fico. Disse antes que pudesse ouvir o que saia da minha boca. Estava anestesiada, não sentia respiração alguma entrar ou sair. Não entendia. Apressei? Talvez. O bom que eu vi que ele sorria, que sorriso ardido pensei quase que em voz alta. Quando algo interrompeu o assunto. Esse humano errou em meses comigo e justo agora eu podia dizer que finalmente gostava dele, mais ou menos, ao som de Alt J? Filho da mãe, não estava pronta para admitir mas agora ele tinha pago seu desacerto, que som bom. 
Caminhamos de volta, subindo as canelas, a música era como nossas vozes embora eu não faça ideia do que diz a letra, então os instrumentos se tornaram o impulso que faz a gente fazer alguma coisa quando sabemos que precisa ser feito, o instinto não me abandonou, eu vibrava, minhas antenas atentas ao jogo. É inacreditável como é impossível em meses conhecer todo um corpo humano, pode visitar partes e partes, acredite você não conheceu tudo. A centopeia fez questão de desviar caminhos e me levar a um lugar abaixo do que chamam de Acrômio-Clavicular, ele quem me ensinou o nome, não sei o que significa, nem onde exatamente se localiza, mesmo assim, que vista! 
- Bonito, não? Disse ele, a centopeia, ofegante por que só paramos de correr quando a música parou, assim como eu ele entendeu que aquele som serviu de trilha sonora, ficaria em mim marcado para sempre aquele momento. Ficaria nele também?
- Sim. A parte mais bonita desse humano eu diria, o resto... Rimos. 
E conforme o assunto foi se esticando, o dia passando, nosso humano não calava a boca, mas pela primeira vez em meses estava ocupada demais pra ouvir outra coisa que não fosse o som da centopeia falando, em poucos minutos ele me contou uma grande historia onde vivia num corpo de um mergulhador e que por estar próximo demais das beiradas que é por onde saímos ou entramos foi ejetado pra fora devido a uma pressão, ‘Experiência de vida ou morte!’ dizia e mostrava me como que saiu daquela cilada, suas pernas eram ágeis e diferente das antenas a coloração ia para um tom de vermelho marsala a laranja que confundia se com o azul. Me parecia um tanto que sonhador narrando as histórias vividas e as que desejava viver, nele eu via uma alma que eu não enxergava em mim, será que sou vazia a ponto de não compreender esse humano em que eu vivo? Eu quem sou a ignorante me sentindo superior, afinal, eu quem estou dentro dele, logo sou menor ou não? Quem está dentro de mim? Será que dentro de mim existe um humano? Comecei a ficar confusa e me perder nas tantas entre linhas que eu conseguia abrir, perdia o raciocino do pensamento inicial e já era tarde pra tentar resgatar o por que dessa tamanha reflexão. A tempos não me sinto assim, andava indiferente para tudo e com tudo. A centopeia estava contente narrando outra história e me parece feliz demais pra ser verdade, quem esta mais enganado, eu ou ele?
- Ainda está aqui? Disse ele rasgando com toda a sua calma meus pensamentos mirabolantes, agradeci mentalmente por que é difícil parar quando começo.
-Sim, sim. Forcei um sorriso convincente. Grandes histórias, é emocionante o que um ser humano pode nos proporcionar. Este aqui joga Minecraft o dia inteiro, dispensa todas as festas, eu teria ido em todas e feito um estrago se fosse ele. Não sabia dar prosseguimento no assunto e acredito que isso ficou explicito no meu olhar que implorava pra que ele não me achasse desinteressante. Eu juro que sei ser interessante, mas tudo isso me pegou de supetão.
- Minecraft? Fez cara de curioso.  Depois de um tempo tudo se silenciou, parecia até que o humano tinha ido dormi, só se ouvia o meu coração que igual ao seu Canoa, estava descompassado, descontrolado. Por dentro eu ria. 
Ficar em silêncio não me incomoda tenho para mim que é muito mais convidativo do que se parece, o que não se fala e o que não se ouve é tão importante quanto ouvir ou falar demais, gente que fala demais parece temer não ter o que fazer com o silêncio e quem ouve demais e nunca fala me traz uma certa falta de personalidade ou que está tramando algum plano pro governo, tudo depende. Eu me aproximei dele, tanto que chegamos nos tocar. O meu corpo parecia estar em chamas. Eu ia junto ao meu coração decidir como ia prosseguir aquele instante, afinal o que é que eu quero?
- O que você quer? Perguntei como quem não quer nada, olhando pra frente, seus olhos eram perigosos demais pra mim. 
- Depende. Está perguntando pra mim ou pra si?"
- Touché. Interrompeu Canoa.
“Não sabia o que responder e pra falar a verdade, não esperava que ele fosse lançar essa. Não achei grande coisa, qualquer um perguntaria isso pra não fazer o obvio que seria dizer qualquer outra coisa. Mas não digo que não gostei. Era uma deixa? Então...
- Eu quero ficar com você. Ponto pra mim, pensei. Claro que não diria isso em voz alta, teria de explicar pra ele que placar é esse, quanto é que esta.”
- Eu entendi centopeia, direto faço isso. Por um acaso vocês não tem nome? Tô começando a ficar confusa, é homem, é centopeia, você, eu. Santo Amaro, de nome as almas. Se esticou do sofá que faltava despencar pra pegar a cerveja que estava numa pilha de livros que servia de mesas naquele espaço.
- Não, não temos nome. Gostaria de fazer as honras? Já que isso te incomoda tanto. Confesso ter sido um pouco grossa, mas ela não conseguia ouvir uma simples história quieta, tossia, pigarreava, bocejava, eu não dou corda por que quando a Canoa começa a falar da mais voltas que carrossel, chega da enjoo.
- Eu sempre te chamei de Fita.
- E eu nunca respondo quando me chama assim. Talvez eu não devesse ter dado as honras...
- Já sei, a centopeia pela qual você é apaixonada vamos chamar de Caco, o homem de Zé. Zé, Fita e Caco. Ficou interessante, gostei. Deu uma risada do fundo da caixa de riso, até que era fofa rindo. Que fome! O que acha de um macarrão com queijo?
- É uma boa, tá um pé no saco esse rolê. 
- Poe a água no fogo, vou buscar as coisas! Levantou num salto e saiu cambaleando pelo bar. Acertou a conta e saiu rua a fora. 
- Espera, que? Boba...
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