Tumgik
ianuviedo · 1 year
Text
Tumblr media
Dois por Engano é um romance de Ian Uviedo publicado em 2023 pela Diadorim Editora.
"Alberto e Melissa se conhecem, se apaixonam, vivem o que o amor pode durar, se separam e se esquecem – seria uma trama simples não fosse uma história contada por Ian Uviedo, que manuseia o passado e alguns dos traumas da América Latina para delimitar os pontos de intersecção entre o corpo e o estado, entre a violência e o prazer, valendo-se dos afetos como o cenário ideal para um breve tratado sobre os esquecimentos."
TRECHO DA ORELHA DE MARÍA ELENA MORÁN
Com um talento inusitado para a construção de imagens precisas, cujo sentido mais profundo e surpreendente surge nos interstícios e nas relações não explícitas entre os episódios, Uviedo não dá trégua no feitiço. Você que está prestes a começar este romance feito de dobras, tome cuidado: pode haver um nocaute à espreita, esperando entre os vincos.
0 notes
ianuviedo · 2 years
Photo
Tumblr media
Café-teatro é um romance de Ian Uviedo publicado em 2022 pela editora Laranja Original.
Trecho do prefácio de Mário Bortolotto:
“Ian nos proporciona com esse livro muito mais que uma simples narrativa noir, mas sim uma espécie de “Último Tango” de Bertolucci, só que nesse é a mulher quem dita as regras e quem embaralha as cartas. É um “Blow Up” filmado em P&B por Leos Carax. Denis Lavant ficaria perfeito no personagem do fotógrafo. Escrito com elegância e um distanciamento quase que análogo ao personagem, o livro é um mergulho por vezes sufocante em um mundo onde a beleza parece espreitar a cada esquina, mas que, por ser também relutante como qualquer mulher misteriosa e que nunca coloca todas as peças na mesa, não permite que a fotografem e que lhe roubem a alma e os seus pecados mais secretos. Alguém vai ter de pagar por isso.”
Assista aqui a live de lançamento com as participações de Ian Uviedo, Mário Bortolotto, Helena Machado, Julia Codo e mediação de Germana Zanetinni.
Escute aqui o episódio do podcast Rabiscos sobre o livro.
0 notes
ianuviedo · 4 years
Text
ELEFANTES
o mundo tem cada dia menos elefantes
em são paulo mesmo já não há mais elefantes
em botsuana, outro dia, morreram quinhentos e seis elefantes
depois de tomarem água que definitivamente não era para elefantes
e os caçadores de marfim continuam firmes na sua guerra aos elefantes
tudo bem que ano passado a china proibiu comércio de produtos derivados das presas dos elefantes
mas ainda tem muita gente que anda por aí ostentando colares enfeites sem se importar com os elefantes
o mundo tem cada dia menos elefantes
dá pra sentir no ar o peso da ausência dos elefantes
se um amigo vem contar fadiga falo logo sobre os elefantes
que é difícil viver num mundo com cada vez menos elefantes
se minha mãe vem chorar ao telefone eu lhe conto uma história de elefantes
ignorando por um segundo que o jeito que levamos nossa vida é que a deixou sem elefantes
uma vez eu era criança e meu pai me levou ao zoológico municipal e lá eu vi três ou quatro elefantes
fiquei impressionado com o tamanho da orelha da pata da tromba chifre do olho do órgão dos elefantes
o mundo tem cada dia menos elefantes
no instante em que escrevo esse poema sobre elefantes
exatamente agora alguém aperta o gatilho e dispara nos elefantes
sem se importar que todas as pessoas adoram histórias de elefantes
sem se importar que ainda existem pessoas que nunca viram elefantes
quando penso nisso fico triste tanto pelas pessoas quanto pelos elefantes
se afastar para morrer é um hábito muito comum entre os elefantes
então sou eu quem chora pela solidão dos elefantes
os amigos dizem que não devo me preocupar tanto assim com elefantes
que no mesmo número que morrem elefantes nascem elefantes
mas não tenho certeza acho que a dor do mundo é essa saudade de elefantes.
1 note · View note
ianuviedo · 4 years
Photo
Tumblr media
0 notes
ianuviedo · 4 years
Text
O MAIS ESCURO DOS INVERNOS
O ministro norte-americano da saúde Dr. Bright diz que a população deve se preparar para o inverno mais sombrio da história moderna.
Esta noite, sonhei com a praia. Ondas revoltas contra os rochedos, ao longe, e uma mulher saindo da água. O céu está limpo hoje, mas continua frio. Fumei na cadeira do jardim, de olhos fixos no azul, mas logo voltei pra dentro. Estamos em maio e as formigas vieram com tudo. Como o computador estivesse descarregado, passei um longo minuto observando uma trilha delas na parede da cozinha. Bebia café, acho. Um mês e seis dias nos separam do tal inverno. Se faz este tempo no outono, posso imaginar. Quero falar sobre as minhas novas obsessões, se é que posso chamá-las assim, ao abrigo da  luz, entocadas, quase não crescem. De todo modo são os lápis. Dois deles: o primeiro, um alemão produzido em Berlim com madeira reflorestada, quase dourado de tão marrom. O outro, um 2B revestido de  papel azul e produzido na índia. Quando uso o apontador de mesa, as pontas dão gosto de ver. Adiante deles, declinei do moleskine e tenho usado um caderno sem capa e de pauta azul-claro. Tantos tons claros quase desaparecem com os textos quando os ponho sob o  lustre da sala. Foi-se o tempo das capas pretas e das canetas rígidas contra o canson. Inaugura-se então o fugaz, o silencioso. Por isso escrevi no cabeçalho da primeira página o título o invisível diário. São as minhas obsessões. De resto, só consigo escrever sobre pessoas sozinhas. Deixei um homem perambulando por Manhattan, outro trancado num apartamento com um gato e ainda outro martelando caixas para construir móveis. Volto a fumar, paro. A verdade é que não estou só. Teresa é a própria estação, às vezes tento formar a palavra outono com as letras de seu nome. Quase some no jardim quando usa o suéter marrom e as meias pretas. Conto para ela que ali costumava ter um pé de cana, e que eu mesmo cheguei a chupar um bagaço, mas tive que arrancá-lo quando descobri que o comportamento da cana é nocivo para as outras plantas: expandidas, suas raízes se embaraçam nas raízes alheias, sufocando-as feito uma jiboia para reter todos os nutrientes da terra pra si. As outras então secam, murcham e morrem. Nada que um facão não resolva. Teresa passa a mão na terra e diz que ficou a fim de tomar cachaça. Nós estocamos garrafas para quando chegar o tal inverno. É importante que se diga que é domingo. Que o sol se espalha pela grama e pelas pétalas da quaresmeira, o gato se espreguiça sobre o concreto e a sala escurece no meio da tarde, restando só o piso rajado pelas persianas e as luzinhas do DVD. Abro uma mineira e Teresa sonhou com uma casa vazia, em que cada quarto guardava a memória de alguém. Por coincidência, acorda e me encontra diante das notícias, e nos perguntamos com os olhos quanto tempo isso tudo pode durar. A recomendação é viver um dia de cada vez, mas o oposto também é verdadeiro. Depois que encontrei as chaves, temos visto todo pôr-do-sol sentados na murada da varanda do quarto. No final do mês passado crepúsculos surpreendentemente vermelhos assustaram a população. No invisível diário, registro com que velocidade isso também ficou para trás, como tudo se alterou para ser exatamente como era. Durante a semana entramos no ritmo automático do trabalho, Teresa precisa fazer videochamadas com o diretor regional e eu estou às voltas porque logo tenho que fechar a revista e dois entrevistados ainda não mandaram nada. A realidade se limita ao portão, e por um minuto esquecemos que não é normal, que há algo acontecendo, que quando o outono acaba a história está mudada para sempre. É a hora do chá, de enrolar outro cigarro e conversar amenidades. Quero falar sobre as obsessões de Teresa. Desde que o isolamento começou, há dois meses , tem tirado autorretratos todos os dias. Sobre sua escrivaninha, crescem os livros teóricos todos grifados e cheios de fita adesiva colorida. Herança de uma família de professores poloneses, que consideravam o livro um objeto como qualquer outro, podendo ser arremessado, carregado e descartado, de acordo com suas próprias dimensões (confesso que tenho certo pudor acadêmico: um chato). Também está guardando os filtros de todos os cafés que tomamos, para contabilizar ao final da quarentena, e já são muitos. Diz que consegue vê-los sobre o chão da bienal ou costurados no manto de um boneco de Olinda. Quando o sol vem, ela conversa baixinho com os pés de maconha que plantou, meio feliz porque as chuvas pararam, reduzindo a possibilidade das plantas sofrerem uma mutação e tornarem-se hermafroditas, meio triste por que o tal inverno soa ameaçador para sua necessidade de luz. Os pés também brotaram antes do isolamento. Fotos, café, plantas: Teresa quer estar em contato com o tempo que passa, sem perdê-lo de vista, quer vestir e pintar o tempo para que possa vê-lo quando apartar-se dele. Sou o oposto, em poucas palavras registro sonhos e notícias no o invisível diário e a única constância desses dias é quando a noite cai e visto os mesmos paletó e cachecol pretos. Teresa pergunta se estou conseguindo escrever e respondo que vez ou outra me pego pensando no homem perdido por Manhattan, o que eu poderia fazer por ele, mas que aparentemente essa história não passa pelo lápis indiano, muito menos pelo outro. Prédios e muros não atravessam a pauta azul-claro. Teresa grava suas histórias num gravador de fita e depois as transcreve para o papel, seus dois livros foram escritos assim. Observo. Para mim, a literatura se dá entre a mão e a folha. Maldição é esta lareira: o responsável pelo projeto construiu uma chaminé sinuosa, e quando acendemos o fogo toda a fumaça desce e a sala fica contaminada pela nuvem preta e tóxica. É tão patético que chega a ser cômico. Agora a lareira serve de descanso para livros e lp’s que sobraram das prateleiras. Se ficamos bêbados, colocamos marvin gaye para rodar e dançamos na sala. Depois acordamos com um gosto amargo na boca, arrependidos. Lembro de lennon e yoko e digo que vou passar o dia na cama. Inventamos filmes, histórias, mentiras. Lá no fundo, queremos morrer. Bom que tenho comido tão pouco que dormir não é nada difícil. Os dias são cheios de apagões. Manifesto pessimismo, falta de esperança e medo do pior, mas não sei qual é a verdade, nem sei qual a minha verdade, se me sinto bem, se me vejo de fato no espelho. Desisto de uma vez por todas dos três textos inacabados, e Teresa encheu uma A3 de anotações, gráficos e formas geométricas: um novo projeto. Sempre que lembro, procuro regar o jardim. Então sonho comigo mesmo criança, posso me ver num parquinho de brinquedos vermelhos no meio do nada, e faz um dia muito claro, todos os contrastes estão gritantes,  um homem vem na minha direção e abre um guarda-chuva, nesse instante estou outra vez subindo as escadarias do metrô e entrego uma moeda ao homem sentado nos degraus, que me pede para  guardar a moeda, que aquela é uma moeda muito rara, mas ao olhar para a palma da mão só vejo um revólver 38 e finalmente começa a chover e a água me encontra correndo pela avenida, com a arma em punho, ofegante. Apalpadelas no escuro do quarto, tento alcançar o invisível diário, mas não encontro nada. Melhor desistir. Antes de fechar os olhos, lembro da espingarda de vovô, que um dia caiu aos meus pés quando fucei em seu armário. Só aí me viro e abraço Teresa. Seu corpo está morno. Um carro passa lá fora. Beijo seus cabelos encaracolados. Quando a noite chegar quero proteger Teresa do mais escuro dos invernos. 
0 notes
ianuviedo · 4 years
Photo
Tumblr media
0 notes
ianuviedo · 4 years
Text
DOIS CORAÇÕES
UM
Foi numa dessas tardes em que Marla decidia andar nua pelo apartamento. Sábado. Os móveis com marcas de vinho, e as garrafas apoiadas no parapeito do janelão da sala. O calor sussurrava, chuva no fim da tarde. Por enquanto ainda se ouvia o rumorejar dos botecos lá embaixo, carros de som, barulhos da rua. É depois que estoura o caos, o grito da cana, a cidade borbulha. Embora eu estivesse lá, observando-a, é de Marla sozinha que lembro, sozinha e nua, pé ante pé sobre o tapete, assobiava um samba, é possível, fazendo escorrer a janela no trilho, entrar a fresca da tarde. Marla é o objeto de estudo do meu desejo. Observando-a. Quando dois corações se amam de verdade. Suas omoplatas se projetam feito duas asas costuradas. É tão delicada quanto um relógio esmiuçado. Translúcida, atravessa os raios da tarde. E tem pés masculinos. Duros, nodosos, raiados por tendões nervosos. Mais do que nela, seu sangue grego está na sombra, o nariz alongado, ombros estreitos, trejeitos de estátua, esta sombra, que primeiro dilui na parede e então desce para a agitação das samambaias e dos pacovás apoiados nas cadeiras de palhinha. 
Foi numa dessas tardes em que Marla decidia andar nua pelo apartamento que o pardal entrou. Ouvimos o grito de alguém. Entrou feito um tiro, derrubando a garrafa vazia, e se aninhou numa poça de sangue aos pés da estante. Levantei da poltrona e me aproximei. Marla apoiada ao vidro, sem reação. O pássaro assustado, eu também. Não pode haver no mundo maior felicidade. Asa quebrada, sujo, tremendo. Um coração exposto no meio do dia.  Na infância isso era comum. Vamos cuidar dele, bicho de estimação, filho, coisa e tal. Só restou um amargo na língua. Era como se o pássaro já estivesse lá antes. Marla se desprendeu. Fiquei afastado.
E foi o que vi: uma mulher nua com um pássaro morto nas mãos.
DOIS
Deve ser ódio, mas pode ser desejo. O jeito que Pedro me olha. Sabemos que a nudez é intransponível, que depois da linha da boceta, do contorno dos ombros, não existe mais nada. A sombra, talvez, e mais nada. Lembro que era sábado, que a sala guardava vestígios da noite anterior. Estava de ressaca também o apartamento, se são os móveis lembranças, carimbamos neles marcas de copos, cinzas, impressões digitais. Pedro e eu éramos duas plantas na estufa, as paredes embaçadas, calor batendo, e o olhar dele, nada além do olhar dele, que afinal era o que configurava o clima, me fez levantar do sofá, esticar os dedos até um cigarro que havia sido apagado pela metade, colocá-lo na boca e abrir as janelas com os dois braços, como quem se crucifica. Tudo é alegria, tudo é ilusão. 
Pedro tem ombros de nadador e as madeixas de quem esconde uma grande fragilidade. Seus objetos são dispostos como reflexos de uma personalidade íntima, que só ele finge conhecer, já que é algo que só finge ter. É uma farsa, em todos os sentidos. Gesticula com atenção, passando os dedos pelo cabelo, devagar, abotoando a camisa até o terceiro botão somente, enchendo de vinho uma taça equilibrada sobre uma pilha de livros; tudo encenado, cria a obra que enfim lhe distancie do que um dia foi na adolescência: um ninguém. Não me engana. Então abri a janela para respirar, para respirar dele. Para dizer às ruas que logo eu seria delas outra vez, que no vagão seria passageira, que na feira seria freguesa e que em casa não seria nada, uma vez despida de qualquer circunstância. Mesmo não sabendo quem era, que papel exercia para Pedro,  indo e voltando de seu apartamento, me mantendo nua como única forma de manter as coisas em movimento, era onde eu estava, e se não fosse aquele maldito pardal entrar, Deus sabe lá quando aquilo terminaria. 
Ao julgar pela cara que ele fez quando se aproximou do bicho, a incapacidade de ir adiante, feito um jogador de xadrez perplexo frente à sagacidade do oponente, vi que a única forma de afastar-me de Pedro era embaraçando-me com o pássaro que, ferido, lhe feria. Que bom que não seria se eu tivesse um amor. Esperei o homem recuar, nunca se sabe quando podem tentar atacar. Daí agachei junto à estante, onde o passarinho tinha se enfiado, e o abracei entre os dedos. Nunca saberemos o que o fez entrar ali. Estava machucado desde antes. O fato é que, assustado, morreu. Morreu em minhas mãos, e eu o invejei. 
0 notes
ianuviedo · 4 years
Photo
Tumblr media
0 notes
ianuviedo · 4 years
Text
TEU EXÍLIO
Domingo e a ladeira da rua. É prudente cortar os pés de mamona, um outro ramo atravanca a saída pra varanda. Do despertar, próximo às sete, quando Vito passa em sua lambreta de pães doces, cannolis e caçarolas italianas, até o fim do sol vir lamber o estúdio, instalar o frio, não pensar em nada. Uso galochas pra chuva, o blusão azul, e vi um siamês perto do poço, ao arrancar as ervas daninhas. Leite quente, travessas de atum, mas ele não volta. Tudo bem.  Procuro não pensar em nada. A engrenagem range. Vito traz, com seu sorriso moreno, o maço de chesterfields dos domingos, a motoca feito um pontinho no pé da ladeira, e volto pra casa, para a cantoria de casa, ouço a toada do joão-de-barro que constrói nos galhos mais altos quando a parceira se vai, surpreendida por chumbo ou tempo. No alto é sempre bem melhor para quem vive só, diziam. A minha ergui com tábuas que a maré trouxe, por isso esse gosto de sal, as cracas no alpendre, e com sacos de cimento que vendem por quase nada no cais. O mezanino e o estúdio vieram depois. Já faz tanto tempo. À noite, respondo aos e-mails dos meus professores. Querem saber em que passo estou. Abro sacos de amendoim e me desdobro em rodeios teóricos, gambiarras dialéticas, para adiar outro dia. Já acertei muitas traves na vida, nunca que a torcida vibrou, e então a tv passa campeonatos de 1995, é o que se pode fazer quando se joga consigo, e vibro igual, torço igual, como se fosse. A madrugada veste ruídos — passos no forro, um grave circula a casa, e a mensagem dos mensageiros-do-vento é clara, mas ainda assim subo as persianas porque quem sabe o siamês decidiu voltar; mas não, a lua prateia a copa das figueiras, o barranco cacareja espuma no lago. Uns calmantes resolvem tudo.
Vejo você e os objetos que te orbitam. Uma caixa de osso que guarda ingressos de peças, filmes, forrada de veludo azul. Um espelho de bolsa com uma margarida cravada no tampo. Potes de geleia abrigando ervas, raízes, zínias secas, líquens. Uma Pentax K1000 de filmes esbranquiçados pelo sol daquela tarde. Abro a imagem: vejo mais de você, em nosso país. O sobretudo cinzento, puído de brechó, os coturnos azul-petróleo, um sorriso esfumado debaixo dum arco daquela antiga vila operária que visitamos. Você atirando em patos de barro na quermesse do Largo, um brinde de pelúcia, um gritinho, o bafo dos fornos do passado nos esquenta as mãos, o seu anel que um dia comparei a um planeta ou um lírio, a unha na carne, papéis de embrulho, nós dois no nosso país. 
Depois sonho em derrubar esta casa a marteladas.
Domingo e os chesterfields de domingo. A memória é esta sala de paredes vazias. Perna de pau, chuteira furada, parado no meio-campo da adolescência. Camisa dez, que sonho. Afinando a arte de chutar vazios, meia-lua no estúdio, recebo passes, dou assistência, comemoro. Monto a mesa no jardim e espero por Vito junto com a noite, há uma garrafa do destilado local, embaçada e com rolha, que disponho para nós. Ele traz minha correspondência amarrada com elástico. Na língua ainda nos enrolamos. Sua presença se dá por janelas fechadas, diálogos eriçados e palavrões. Bebo, fumo, esqueço. Tem dinheiro escondido na gaveta com o álbum de fotos da família, a medalha de bronze e uma agenda com números de seis dígitos, e tudo mais o que tem valor. É prudente cortar os pés de mamona, abrir caminho pra tomar a fresca. Luzes de carros passam na estrada, no fundo da paisagem. Há muito que a correspondência são contas, promoções, poucos amigos visitam. A coisa está preta. Do fundo da poltrona é Vito quem me sorri, quando entramos e estamos espalhados no cômodo. Quero me livrar dos livros. Não são importantes. Ouço que cobras-majestade foram encontradas no terreno vizinho,  os cães voltaram cheios de suturas, chorosos. Um deus-nos-acuda. Enquanto eu dormia. O siamês passeia na cabeça, ainda. Mais morto, porém, no céu estrangeiro. Essa casa construí em sangue e suor, sem ter onde cair, e o prazer de hoje é ter o fogo que imagino como real. Sem você, quero destruir tudo. Quero voltar de trem. Faz sentido.
Eu era o magrelo no banco. Antes do teatro, das cadernetas. Asco pelo que rolava debaixo das arquibancadas. Porra na terra batida, nuvens freadas, quando tentei cegar, olhando pro sol. Ontem foi a vez do espelho. Usei a chave inglesa, à mão, e enterrei os cacos ao lado do poço. Sem deixar de perguntar — nem por um segundo — o que você acharia disso. Sou um relógio atrasado em relação ao lugar de meu nascimento. Sempre estivemos, nós, em horários diversos, na vida. Mesmo quando ainda existiam caminhadas pelo calçadão e latas de cerveja à beira-mar, era manhã pra você e noite pra mim. As circunstâncias são só a assinatura do que sempre existiu. Vito prefere as cartas. Corto o morto, desanimado. Um, dois, três bocejos e ele se vai. Olho pra luz cíclope da lambreta na estrada, acompanhada de carros. A segunda-feira será úmida. As serpentes-majestade rastejam ao lado. A essa altura, toda a vizinhança sabe da minha história. Me olham misericordiosos, finjo desdém. Imagino outras ferramentas pra demolição. Esta casa que construí, aqui não havia nada, faz tanto tempo. Vito ri às voltas, eu sei, todos o respeitam. Traz cigarros, a correspondência, as notícias, os doces. 
Se não se prioriza, as plantas morrem sobre seus próprios eixos. Hoje vi uma revoada indo pro norte. Bebi sozinho pela primeira vez em muitos dias. A vida acontece entre parênteses. A morte é um impedimento. Mergulho o  rosto na banheira, com novas essências. Quem sabe amanhã resolvo o problema com as mamonas. Quem sabe amanhã termino de destruir o lugar. Espero que você esteja bem. Nunca que eu ia esquecer seu aniversário. Quem sabe amanhã seja outro dia. 
0 notes
ianuviedo · 4 years
Text
O DOCE NADA
UM
Trovoava. Eram seis horas da manhã e a praia estava vazia. Laura dormia no quarto e eu estava sentado na varanda, esperando que a água fervesse. Era novembro, e por isso o dia ainda não havia amanhecido completamente. Alguns barcos começavam a aparecer no horizonte, meio lentos, azulados, as redes pendendo feito véus. A chaleira apitou, enchi a garrafa térmica com café, me servi uma caneca e saí pra praia. Poças formadas pela chuva da madrugada sujaram meus pés e encheram a barra da calça de água, areia e folhinhas. Nuvens muito escuras me coroavam. Prossegui até que a água molhasse os meus pés e a barra da calça. O vento oeste tornava tudo ainda mais frio. Tomei um gole do café e lembrei da minha mãe. Ela dizia para ficarmos longe da praia em dias como esse, e falava sobre pessoas atingidas por raios nas praias em dias simplesmente nublados. Sobre pessoas que iam até a água avisar os outros e acabavam elas mesmas mortas. Eu não queria pensar sobre a morte, porque apesar do clima, eu estava achando aquela manhã muito bonita. E eu não conseguia pensar na morte como uma coisa bonita. Pelo menos não muito. Eu ficava feliz que a gente tinha conseguido alugar uma casa tão perto da praia e que ainda teríamos uma semana lá. Eu detestaria por exemplo ter que atravessar ruas, esbarrar nos outros, desejar bom dia, tudo pra tomar um café olhando para o nada. Provavelmente eu nem poderia levar o café comigo. Nem estar descalço. Aqui era acordar, abrir a janela da sala, botar água no fogo e ir pra varanda contemplar a manhã sozinho, sem nenhuma interferência de nada muito distante do sono. A gente estava a menos de um quilômetro do mar. Náufragos, embarcações, animais conhecidos, animais desconhecidos, submarinos abandonados, toneladas de lixo, pianos destruídos, cadáveres, plantas, ossos, correntes, minérios, petróleo, bombas, aviões — repousam a menos de um quilômetro de nós. O sopro que vêm do mar é o sopro de tudo isso. Depois de uns quinze minutos começou a garoar, estouraram trovões, e eu voltei para dentro. 
Laura ainda dormia. Seu braço direito estava fora do colchão. Não tinha uma cama na casa, dormíamos num colchão de casal direto no chão, que estava sempre coberto de almofadas, cobertores, lençóis e roupas. Poderia ter colocado o braço dela de volta, mas achei que isso a acordaria e eu não queria companhia naquele momento, além de saber que é ótimo dormir enquanto chove lá fora. Me servi mais um café e voltei pra varanda, que é assobradada. Agora já amanhecera completamente, isso era claro, mesmo o dia estando escuro. O sino dos ventos produziu um acorde perfeito, parecia que alguém tinha tocado um piano em algum lugar. Como se fosse combinado, um cargueiro, lá longe, soltou um longo apito, parecido com o da chaleira, mas um tanto mais grave. Uma vez que o da chaleira serviu para fazer o café que me despertaria, o do navio pareceu ter o mesmo efeito em tudo ao redor um pouco depois. Escutei janelas se abrindo nas casas ao lado, crianças falando, barulho de louça, panela, gente indo fazer seus cafés para aproveitar a praia frustrada pela chuva. Laura também acordou nessa hora. Me perguntei se as pessoas estavam sabendo que tinham acordado por conta do apito do navio ou se nem tinham dado por isso. 
—  Julio? —  Ela me chamou.     
—  Já vou.
Enchi duas canecas e fui pro quarto. Laura estava sentada no colchão, as costas apoiadas na parede, bocejava.  Deixei uma caneca ao seu lado e abri a janela. Nossa vista era maravilhosa, mesmo na chuva. Quando virei Laura me olhou com uma cara estranha.
— Nossa, como você está pálido!
Olhei para as minhas mãos, surpreso.
— Normal.
Fiquei apoiado na janela, olhando para Laura.
— Você não vai me dar um beijo? — Ela diz.
Vou até ela e beijo seu pescoço, seu rosto, sua boca, seus cabelos e suas mãos. Beijos leves, quase toques. Laura se levanta e vai até a janela. Ela usava só um suéter marrom velho e uma calcinha preta. 
— Eu acho chuva na praia o momento mais íntimo da natureza.
Concordei com ela.  
DOIS
Botei a mesa: pão italiano, café, suco de manga, uma jarra d’água, manteiga, uvas, pêra. Enquanto Laura tomava banho, acessei um aplicativo de rádio no meu celular e sintonizei numa estação qualquer. Anunciavam a possibilidade de uma crise econômica generalizada. Pensei na Grécia. Nos Emirados Árabes. Na França. Na União Europeia. No Congo. Na China. Eu só queria esquecer de tudo isso.Troquei de estação. Em uma delas encontrei Satie. Laura saiu do banheiro, agora com um vestido de girassóis.
Eu tinha levado a mesa para a varanda, ignorando um pouco o frio, para que pudéssemos comer vendo a praia, e possivelmente ficar por ali até o anoitecer. Eu ficaria. 
— O que você pensa assim, olhando para o mar? —, Laura disse, molhando o pão no café.
— Hoje mais cedo lembrei daquela história dos cavalos afogados.
— Não conheço.
—  Acho que aconteceu no século dezoito. Um navio cargueiro que começava a afundar durante uma tempestade e precisou se livrar do peso. Decidiram jogar a carga no mar, que, no caso, eram cavalos.
— Que horror.
— Sim, mas não sei. Só gosto de pensar que em algum lugar por aí, no fundo do oceano, tem vários esqueletos de cavalo em decomposição. 
A chuva aumentou. Dois garotos passam correndo pela praia, tentando se proteger da chuva com as camisetas. Lembrei da minha mãe de novo e desejei que aqueles garotos chegassem bem onde quer que estivessem indo. 
— E você? Do que se lembra?
— Do meu avô e da ditadura na Argentina. 
— As duas coisas?
— Era ele quem me contava as histórias da ditadura.
— Você se lembra da ditadura argentina olhando para o mar?
— Eu poderia ter dito qualquer outra coisa, mas agora que você começou com essa história dos cavalos, vai ter que ser isso.
— Continua.
— Um dos métodos de execução mais utilizados era jogar os prisioneiro no mar. Levavam eles de helicóptero e jogavam lá de cima. 
TRÊS
A chuva diminuiu lá pelas quatro horas da tarde, deixando o oceano achocolatado. Era novembro, e por isso a noite demoraria pra chegar. Laura deitou na rede azul da varanda com uma prancheta, folhas de papel e canetas pretas. Tinha deixado um copo d’água, suas aquarelas e um par de pincéis no chão. 
No armário da cozinha encontrei um pacote de massa, duas latas de molho e cebolas roxas. Na geladeira, a carne de ontem. Voltei pra varanda e disse que ia até a cidade comprar umas coisas, Laura maneou a cabeça mas não respondeu nada. Na verdade eu só precisava beber alguma coisa. Tinha estacionado a brasília branca num descampado que ficava a uns cinquenta metros da casa. Pus os chinelos, um casaco e fui até lá. Minha última incursão à cidade tinha sido uma semana antes, e agora o carro estava cheio de bosta de pombo, água, sementes e folhas. 
Embora já fosse tarde, o céu se encheu de uma luz matutina. Fachos cítricos por detrás do branco abafado, tão branco a realçar todos os contrastes, delineando contornos da vegetação e das colinas como se as recortasse e as enchesse de textura e cor. Como se o céu branco ocupasse o lugar de noites rompidas pela aurora. 
A estrada até a cidade desce um trecho da serra e é bastante estreita —  são vinte minutos, talvez um pouco menos, descendo a observar o oceano à sua esquerda se perder junto de rochedos obscuros, portos improvisados e imensidão; descendo sob a sombra da encosta, pedras cor-de-giz, galhos e folhas avançando para a estrada, devagar, a terra vermelha cravejada de cruzes de pau e santas de gesso azul desbotadas pelo tempo.
Naquela tarde eu estava particularmente tenso e atento em razão da chuva. O sol do alto verão, em outros tempos, apagara a faixa que divide as mãos da estrada, e carretas e caminhões passam por você e por centímetros não arrancam seu retrovisor ou te empurram desfiladeiro abaixo, de modo que quando se chega ao pé serra, sente-se um alívio quase físico que se estende por cinco quilômetros numa estrada plana cercada por árvores dos dois lados. A cidade fica diametralmente oposta à praia em que estávamos hospedados, mas o caminho de volta era mais tranquilo, por conta de algumas entradas que desembocam em estradinhas de terra distantes da morte.
Ao ver as primeiras casinhas de madeira erguidas ao pé da serra e que sinalizam o começo da cidade, abri a janela do carro e acendi um cigarro. Fazia frio. Era bom não saber qual dia da semana era. E, se soubesse, que diferença teria? Aqui todos os dias eram um único dia. Um rio de águas correntes e doces, cristalinas e barrosas, de aclives e declives, de braços e mananciais, de secas e cachoeiras, de peixes e serpentes brancas, ainda assim um único grande rio. Essa subtração da consciência em relação ao passar do tempo talvez aconteça pelo fato de que na praia podemos ver o horizonte —  uma faixa longa, sem qualquer ruído. Em São Paulo tudo se resume a um painel de paisagens mutiladas, intervalos no espaço que demandam intervalos no tempo. É uma vida de cortes secos contra uma de planos-sequência.
Um pouco antes da saída que dá acesso à rua do mercado, me surpreendeu o trânsito. Pensei em acidentes por causa da estrada enlameada ou uma árvore caída. A dois carros de distância, um caminhão de carga viva —  bois — bloqueava minha visão do que acontecia lá na frente. Fumei e esperei. Nuvens escuras reapareciam. Depois de algum tempo um motoqueiro passou pela fileira de carros explicando o que tinha acontecido. Foi frio em sua declaração:
— Bateram num cavalo lá na frente.
QUATRO
Garoava. As pessoas tinham saído de dentro dos carros e formavam um semicírculo diante do animal. Um rastro vermelho se estendia, um pouco tomado por sementes e areia, dos meus chinelos até os beiços do cavalo. Os pêlos, marrons e brancos, agora mesclados por uma única tarja preta, eram realçados pela luz dos faróis de um carro com pára-choque igualmente ferido. Encostado no meriva prateado, um homem de camisa social, calvo e intranquilo, com as mãos metidas no bolso da calça, simplesmente olhava para o que tinha feito. No banco do passageiro, uma mulher trazia expressão muito semelhante. As pessoas sussurravam, pareciam falar sozinhas, naquela tarde gelada. É o tipo de situação que coloca em xeque o ideal civilizatório. O que se pode fazer? Fui até o homem e ofereci um cigarro.
— Ele apareceu na minha frente!
É claro que ele não precisava me dar qualquer explicação. E também era claro que ele não dizia aquilo para mim, mas para si próprio. De todo modo, recusou o cigarro. Tive a impressão de que a mulher chorava, mas era difícil ter certeza. Olhei para o alto da encosta, atrás de nós. Havia uma casa meio escondida entre as folhagens. De tijolo aparente, telhas de plástico e um tecido estampado fazendo as vezes de porta principal. Roupas penduradas nas árvores, um triciclo, cães. Garrafas de vidro, galões, bonecas. Ainda olhava quando dois adolescentes surgiram de dentro da casa, seguidos por mais dois homens e uma mulher. Nossos olhares se encontraram e logo desviei o meu. O casaco já estava encharcado pela garoa e meus pés marcados de lama e sangue. É domingo, pensei, sim, só pode ser domingo — este dia ateu. Quando os quatro homens desceram, lembrei dos garotos que corriam na praia. O homem calvo parecia mais tenso.
— Puta merda! — Declarou um garoto.
— O cavalo apareceu na minha frente.
Todos falavam agora. Por trás das árvores era possível recortar uma nesga do oceano ao fundo, borrões cinzentos anunciavam uma noite chuvosa. Alguns barcos insistiam na superfície, vagueando, e mais ao leste, bem longe, já perto da baía, vários mastros erguiam-se e confundiam-se à luz daquela tempestade distante.
O cavalo estava morto.
— Era o cegueta — conferiu um dos homens, ao abrir as pálpebras e revelar olhos perolados —, e não tem mais jeito, não.
Para ser franco, o cavalo não era grande coisa. Magro, coberto de feridas e desfalques no dorso, e cego. Não tive oportunidade de ver sua dentição. Outras pessoas apareceram nas portas das casinhas à beira da estrada. Naquele momento, tudo isso me parecia um problema de ordem prática antes de sígnica. Nem mesmo aqueles que aparentemente eram proprietários do cavalo cego demonstravam sequer aflição, tristeza. Era só um evento absurdo numa tarde nublada. O mais racional a ser feito, ao menos em primeiro lugar, seria arrastar o cavalo para o acostamento e descongestionar o trânsito. Além do quê, estava chovendo. Sem dúvidas quem estava mais aflito era o homem calvo encostado ao carro. Os homens da casa circulavam a carcaça do bicho, as pessoas falavam, e o homem gesticulava continuamente, sem no entanto conseguir dizer nada.
Pensei que eu deveria ter levado a velha Olympus 35 comigo, porque um registro seria a única possibilidade de interferência minha naquela situação. Com o celular não seria a mesma coisa, mas ainda assim viria a calhar. Poderia inspirar Laura a uma aquarela, quem sabe. Corri até a brasília branca para buscar o telefone e percebi a longa fila que se formara atrás do meu carro. O celular não estava no porta-luvas, como imaginei, e comecei a procurá-lo em todos os cantos, debaixo dos bancos, no recuo da maçaneta, no cinzeiro, nas dobras dos bancos, passei para as minhas roupas, os bolsos do casaco, bolsos da calça, não estava em lugar nenhum. Lamentei tê-lo deixado a sós com Satie e Laura. Quando pousei os pés na estrada para voltar à cena, ouvi a partida dos carros na minha frente e vi a fila aos poucos começar a andar.
Fui avançando devagar. Os dois adolescentes e os dois homens haviam carregado o corpo do cavalo até uma arena, bem ao lado de uma das casinhas ao pé da serra. A mulher que eu vi sair da casa reaparecera e, no momento em que passei com o carro, ao vê-la cobrir o cavalo com um tecido azul e preto e se benzer, fui invadido pela vontade de estacionar e ir conversar com aquela gente. Mas era só uma paisagem ao passar. Quando retornei, com uma garrafa de rum ao meu lado, já não havia meriva, nem cavalos, nem ninguém. Apenas a estrada, tocada pelo crepúsculo. 
CINCO
Anoiteceu e de fato chovia. Sentados na varanda, Laura e eu, sobre a mesa o cinzeiro, carne fatiada e dois copos de rum com gelo, e nós dois, olhos parados nas luzes dos barcos, ouvindo o rumor do oceano dentro do escuro. Laura deu um gole longo, encostou as pedras de gelo nos lábios e entrou na casa. Não sei se o cavalo da tarde, o copo de Bacardí, mas alguma coisa me deixava triste. Andamos pela vida como quem adentra descalço num amplo salão de madeira, e, de um momento para o outro, se há qualquer descuido, temos de nos equilibrar em fios ou pisar num chão de vidro, com medo e delicadeza; se há qualquer descuido a ternura se torna insuportável, violenta. É um bicho que às vezes circunda as nossas noites, e tudo que podemos fazer é permanecer quietos, com a respiração suspensa. 
Então assim eu me encontrava, sozinho na varanda, imóvel, com medo. Medo de que da porta para dentro todas as coisas que me diziam respeito tivessem se alterado completamente, se desprendendo de mim. Sentia que qualquer movimento de cabeça acionaria o fio da guilhotina. Afinal, essa viagem não era mais nada senão uma tentativa de consertar um pedido de casamento meio frustrado. Quem era eu? Laura já tinha sido casada. Quando estávamos nos conhecendo, em noites de passeios noturnos pela Praça da República, ou quando afogávamos em vinho e brasas o nosso sexo, quando tudo é leve e pequeno, ela me contava com tranquilidade sobre seu ex-marido, sua ex-sogra, e no começo isso não me incomodava, até que de repente, ou o meu amor se expandiu, ou nela se instalou uma vontade cruel de torturar-me, até o ponto em que me mostrou fotografias e eu adoeci por vários dias. Era um inválido perto dela. E o pior, eu não tinha nada para falar sobre o meu passado, eu o detestava, tinha asco da minha história, me interessava conversar com ela sobre fotografia, sobre pintura, todos os personagens da minha vida repousavam numa névoa de causalidade. Talvez para romper com essa distância entre nós, numa noite eu tentei pedi-la em casamento. Ou melhor, sugeri que fossemos morar juntos. A coisa toda foi muito triste. Depois disso, eu afundei no silêncio, e ela falava, falava. De tudo que disse, eu conseguia me lembrar da frase:
— Você tem que entender algumas coisas.
Provavelmente, sim. Talvez fosse mesmo a hora de entender que ela não precisava de mim como eu dela. O que ela precisava era de alguém que a observasse, a assistisse. Por isso todos os gestos pareciam calculados, seu corpo e sua movimentação pela vida, no fim, eram a sua grande obra, e eu, naquele instante, era seu público, e amanhã seria outro, como ontem havia sido. 
O riscar dos fósforos para acender velas coloridas na penumbra do quarto, a pele branca contra o céu escuro num ancoradouro, a saliva nos seios tocados pelo abajur de luz vermelha, a forma como se vestia, o jeito que falava, os livros de Strindberg e Svevo, os cadernos manchados de café, tinta e cinzas, pés descalços se afastando para o banheiro depois de arrebatar o prazer ao gozo da carne, espasmos e convulsões quando minha língua em você, os gritos sufocados, os ombros crivados de marcas de arcada dentária, mãos amarradas nas costas, violência, um urubu circundando a torre da igreja, as memórias da infância, uma criança de olheiras, uma criança brincando entre os lençóis dependurados no varal como grandes bandeirolas, a maquiagem enquanto fuma, o aluguel, a arte, a tristeza —  eram estes os objetos cênicos de Laura, e o que me cabia era olhá-la sapateando nas minhas esperanças. Claro que esta tentativa de tentar resumi-la à uma atriz pode muito bem ser um respiro da minha própria vaidade, que, por sua vez, é produto do meu medo, ou, pior, da minha covardia. Meu erro era não acreditar na minha história, e buscar em Laura a justificativa disso. Ela, pelo contrário, exigia insígnias e patentes para tudo que já tinha vivido. Eu sempre usei do passado para pensar sobre o futuro. Modas, tendências, movimentos, eu me subtraía de tudo isso. Usava dos objetos culturais do passado para me pensar no presente. Mas existia uma contradição nisso. Ali, sentado sozinho olhando para o escuro, percebia o meu egoísmo. O que eu queria é que Laura também condenasse suas experiências, e assim estaria solta do que viveu para construir um futuro comigo. De algum modo, isso me parecia uma tentativa de manipulação. O lado positivo é que essa minha incapacidade de lidar com “passados pessoais”, digamos assim, lançava nossas conversas para temas abstratos e profundos, e sempre chegávamos a alguma coisa de interessante, mesmo que tudo o que estivéssemos fazendo fosse elaborar uma fuga. Basta uma alteração simples para que duas pessoas que se amam passem a se odiar completamente. Então caímos dos fios, o vidro se quebra aos nossos pés, o bicho sente o cheiro do nosso medo. 
Tomei um susto quando Laura se aproximou por trás de mim e beijou-me no pescoço. Logo depois, relaxei. O fato dela ter voltado me deixava livre outra vez. Assim como livre está um touro quando se abrem o portões pesados das arenas espanholas. 
SEIS
Laura trouxe um lençol branco e o amarrou num dos pilares da varanda. Quando o vento da chuvarada o agitou, percebi que ela o havia pontuado com vários riscos vermelhos. Laura parou na minha frente, encheu seu copo de rum e o ergueu no ar. Propôs um brinde:
— Estamos na praia, meio à tempestade! Temos uma garrafa de rum! Somos piratas e essa é a nossa bandeira!
Ela voltou para sua cadeira, satisfeita.
—  Hoje, quando você foi comprar esse rum, por que demorou tanto?
— Um certo trânsito.
— Eu fiquei pensando na sua pergunta.
— Qual?
— “O que você pensa, assim, olhando para o mar?” — , me imitou.
— E então?
— Então que eu dormi e sonhei uma lembrança. Uma coisa que aconteceu há muitos anos e eu tinha esquecido completamente. Foi na época em que morei em Portugal. No verão, eu costumava descer de bicicleta até a Praia de Salema, uma prainha vazia afastada da cidade. Eu saía de casa de manhã bem cedo e só voltava quando começava a anoitecer, e era muito raro que tivesse alguém por lá além de mim. Quer dizer, pelo menos eu achava que não tinha ninguém!  
— Como assim?
— O que houve é que eu realmente criei uma rotina. Certa noite, num bar em Porto, algumas amigas me disseram que também costumavam ir até lá anos antes, mas desistiram quando notaram a presença de voyeurs que as observavam quando tiravam a roupa e entravam na água. Achei aquilo engraçado e disse que nunca tinha visto ninguém. Ao que parece os meninos se entrincheiravam meio às falésias, em silêncio, armados de binóculos. Minhas amigas disseram para eu não voltar mais lá, que havia outras praias maravilhosas — até melhores! — e mais seguras. Na manhã seguinte, que estava nublada por conta das chuvas da madrugada, montei na minha bicicleta e fui devagar até Salema, pensando se aqueles garotos já teriam me observado alguma vez, e me perguntando se, mesmo com aquele clima, eles estariam lá. Afinal, eu estava cumprindo com a minha rotina. No caminho, me lembrei de uma viagem que fiz pra Bahia, em que um índio quis me mostrar as armadilhas para caçar pacas e jaguatiricas. Um revólver fica apoiado meio às folhagens de uma árvore, um fio de nylon enrodilhado no gatilho, que desce para virar outro nó abraçado ao tronco da árvore e seguir tensionado pelo chão para que se enrole numa outra árvore. Quando um bicho esbarra com as patas no fio o gatilho é acionado. Acho que me lembrei disso porque onde a armadilha ficava instalada era curiosamente parecido com onde instalados ficavam os voyeurs em Portugal.
De todo modo: cheguei à praia no mesmo horário de sempre, estendi a esteira de vime na areia, apoiei a térmica de café na bolsa, acendi um cigarro e fiquei olhando para o mar. Dava pra ver que chovia na distância, e o horizonte se resumia a um emaranhado cinza, mas olhando num ângulo reto acima de mim, nuvens mais claras esmaeciam em azul, isto é, ao avançar da manhã, em algum momento, o sol apareceria. Quando cheguei, porém, ventava muito e eu não tinha muita opção senão ficar enrolada na manta. Depois de horas o sol despontou sobre as areias, meio gelado por detrás das nuvens. Tirei o maiô e entrei na água, de olhos fechados. Estava fria, mas mesmo assim mergulhei, voltei à superfície e deixei a água escorrer no meu cabelo, nos braços, nos seios. Fiz todo o movimento como se de fato me lavasse, ou melhor, como se me livrasse de algo. Tudo muito devagar. Mas então voltou a garoar, o mar rugiu em ondas enormes, eu fui pra areia e me vesti. Neste dia voltei pra pensão antes do anoitecer. Você compreende, é claro, que mesmo eu gostando de estar sozinha, existe algo de opressor na solidão estrangeira. Só falo isso porque no dia seguinte aceitei o convite das minhas amigas de ir a outra praia. O tempo de novo estava nublado, e, assim que a gente botou o pé na areia, eu percebi que aquilo não era pra mim. Tinham crianças correndo, pessoas sentadas nas pedras e na areia, alguém tocava uma música em algum lugar. Até mesmo a presença das minhas amigas me incomodava. Eu senti falta de Salema. E, bem, contrariando as expectativas, no terceiro dia o sol explodiu! Eu mal conseguia dormir por causa do calor e da luz se infiltrando nas persianas. Peguei todas as minhas coisas, mais uma garrafa de vinho do porto e pedalei até Salema que, naquele ponto, já havia se tornado um lugar dentro de mim. Naquela manhã a praia estava especialmente maravilhosa. O mar calmo, o sol forte, e lá em cima, no topo da falésia, onde eu imaginava que ficavam os voyeurs, a vegetação estava tão linda, agitada pelo vento, as cores tão intensas, tão vivas. Estendi a esteira de vime, tirei toda a roupa, abri a garrafa e fiquei lá, bebendo e passando protetor, bebendo e lendo. “Lendo” é um modo de dizer, eu fui à Portugal pra estudar pintura e em todo lugar que ia levava comigo um livro do Hopper.  
0 notes
ianuviedo · 5 years
Text
ODE A HUDINILSON, O URBANO
tudo que pesa está no ar. desamparado, fortuito. atravessei o bairro no 701A rumo ao trabalho  e ruas vazias nunca estão realmente vazias.
a fragmentação do corpo o converte em paisagens  abstratas matrizes para reprodução e                               investigação de possibilidades.
um detalhe sustenta a estrutura de toda fantasia. no caminho a chuva assume o nome deste mês e se infiltra.
resolvi ignorar tudo. o presente se limita ao instante: o reflexo do teu rosto na cafeteira. Um canto de breu na memória.
toda matéria indica o centro. sem delimitações ou arestas. tenho quase orgulho do cansaço quando vejo seus braços o peito um pedaço do pescoço e agora um olho.
atravessando o bairro nas luzes do 701A  já nos vejo perdidos decididamente perdidos querendo encontrar aquele canto da cidade onde a vida tem acesso à beleza que caçamos com nossos livros.
quantas ilusões serão necessárias para que tudo volte a ser como nunca foi?
0 notes
ianuviedo · 5 years
Text
POEMA CONTEMPORÂNEO
Ainda existem quartas chuvosas e ainda existem garrafas de Chilano e ainda existem janelas para telhados pós-industriais e ainda existem orgias premeditadas e ainda existem caminhadas desligadas e ainda existe o mercado do chinês que usa luvas e ainda existem minhas camisas listradas e ainda existem meus gatos sobre os colchões e ainda existem coisas que são as minhas coisas e que definitivamente não são as minhas coisas e ainda existem os bilhetinhos dela em papel vermelho e ainda existem as nudes que ela manda e ainda existe a nudez da minha namorada e ainda existem olhos verdes num sol sebastiano e ainda existe Dylan e uma adega na rua de cima e ainda existem os talentos inexplorados e ainda existe a grana dos meus pais e ainda existe a possibilidade de dar pra trás e ainda existe a possibilidade de abandonar tudo e ainda existem envelopes pardos e ainda existem paralisias noturnas e ainda existem terrores que chamam por mim e ainda existe o texto pra revisar e ainda existe o freela pra entregar e ainda existe a grana do busão e ainda existe uma lágrima perfeita e ainda existem memórias mal resolvidas e ainda existem os discos de vinil e ainda existe você visitando a minha livraria e ainda existem as tuas curvas e ainda existem meus ímpetos suicidas e ainda existe meu quartinho na Vila Buarque e ainda existe o esperma enfurecido e ainda existem manchas no edredom e ainda existem fascistas nas janelas e ainda existe o desejo da originalidade e ainda existe ansiedade ao lado do telefone e ainda existe paixão que emagrece e ainda existem minhas unhas pintadas e ainda existe a bagunça que me consome  e ainda existem papéis e papéis e papéis e ainda existe muita frustração  e ainda existe muito ódio e ainda existem sonhos com o circo e ainda existem fotos compradas em sebos aqui perto e ainda existem ressacas paralisantes e ainda existe a Praça Roosevelt e ainda existe muito medo da morte e
ainda restam muitas coisas que garantem minha juventude.
0 notes
ianuviedo · 5 years
Photo
Tumblr media
tarkovsky
0 notes
ianuviedo · 5 years
Text
SONO EM SÃO PAULO (PARTE 4)
Segunda-feira, duas e quarenta e um da madrugada. O solstício veio, a noite está quente. Escrevo na sala, Helena dorme ruidosamente no sofá. Retorno para esse texto e a realidade se alterou. Nem eu, nem vocês, são mais os mesmos. Não importa. A consciência, na verdade, parece ser a única que se importa com a manutenção constante da identidade. Em oito anos todas as nossas células já se renovaram. Olho, nos álbuns de família, fotos minhas na infância.  A memória ajuda na ilusão. Outra pessoa, qualquer pessoa. Esse sempre é o caso.
Helena divaga longamente sobre a memória. Seguindo, ao meu ver, a tradição intelectual de pintores abstratos como Kandinsky, usa de seus quadros como plataforma para elaborar teses, pensar através da cor, do movimento, da imagem. Sua pintura se dá em camadas de sedimentação. Outra noite, voltávamos para cá, andando pela Avenida Pompéia, e conversamos sobre isso. Eu, mais do que pensar escrevendo, acredito que penso melhor falando. A memória é um dispositivo do presente, foi o que eu disse. Todas as experiências estão mortas, são inacessíveis. Se nos relacionamos com ela, é usando as ferramentas do agora, o único tempo real. 
Na produção de um filme, por exemplo, levam dias para filmar uma cena que, no contexto da ficção, se passa em uma hora. A reinvenção do tempo. Há metafísica nesse pensamento. Mas agora é tarde, as brasas amornaram no interior, o vento balança as folhagens lá fora, os tremores silenciaram, Helena suspira e acorda, a noite assume outro ritmo.
 Então há o sono. Segunda-feira, duas e quarenta e um da tarde. Ainda é tempo para escrever sobre as dores, hoje que é véspera da véspera do natal e Helena se prepara para ir ao rádio gravar seu programa para janeiro do ano que vem. O corpo todo se altera no espelho. Se deixarmos, os resíduos da vida se acoplam à nossa constituição e vamos ganhando formas brutas, pesos ao caminhar. O que ainda me acompanha, acima de tudo, é essa maldita dor nos dentes. Não é exatamente nos dentes, mas sim na gengiva, consigo ver no espelho a ferida logo abaixo dos dentes inferiores da frente, uma ferida branca e mole que solta pus e sangue ao menor toque de dedos. Agora parece que a ferida construiu um espelho na parte de dentro do meu lábio: feridas se roçando continuamente, um festival de bactérias, descendo pra garganta, ganhando o coração. Quando escovo os dentes o sangue se sobressai em relação à brancura da pasta. Há manchas vermelhas, meio apagadas, na porcelana alva da pia. 
Dr.Fincher disse, naquela tarde, que se eu não tratasse logo disso, aos quarenta anos não teria nenhum dente na boca. Fiquei pensando se não era mais uma das suas hipérboles típicas, mas uma amiga disse que não. É difícil dizer. Ele também falou que eu deveria tirar uma fotografia panorâmica, em raio X, dos meus dentes, em um consultório que fica no andar debaixo da mesma galeria. Lúcia, desde aquele dia, já foi e voltou pra Berlim e já arrancou os sisos, e eu não consegui reunir motivações nem para tirar a tal da foto. Uma solução para a dor é como um guarda-chuva. Saímos de casa com ele quando chove, mas se deixa de chover quando estamos em nossos compromissos, geralmente o esquecemos, porque não há absolutamente nada que confira utilidade à ele, a não ser a ocorrência da próxima chuva, no geral tão incerta quanto a própria vida. Quando a dor não se pronuncia, quando o sangue não banha as bochechas, ignoro que preciso fazer alguma coisa. É o tipo de processo que inevitavelmente nos escapa, não está relacionado com nenhuma patologia ou qualquer trauma, é só uma coisa besta, sem peso, que se arrasta pelos dias junto com a gente.
0 notes
ianuviedo · 5 years
Photo
Tumblr media
tarkovsky
0 notes
ianuviedo · 5 years
Text
SONO EM SÃO PAULO (PARTE 3)
São Paulo, 2019. Onze e vinte da noite, vinte e quatro graus, primavera. Amanhã é o solstício de verão. Dentro de duas semanas o ano acaba, e com isso, resta apenas mais um ano para o fim da segunda década do século vinte um. Este ano morreram João Gilberto, Anna Karina, Toni Morrison, Robert Frank, Antunes Filho, Francisco Brennand, entre outros que fizeram e registraram o século vinte. As pessoas que inventaram a realidade em que vivemos estão morrendo. As outras já se foram, em especial nos últimos trinta anos do século passado. Agora o século vinte e um está desamparado, navegando à sua própria sorte. Os primeiros dez anos tem sido conturbados - assim como os primeiros dez anos de qualquer coisa. Alguns dizem que isso não vai durar muito mais tempo. Isso, a humanidade.
Helena diz que só chega depois da meia-noite. Louis Armstrong e Ella Fitzgerald se convidam para dançar com doçura e malícia. As dores prosseguem em seu movimento. Eu escrevo, me levanto, estico os braços em direção ao teto, estalo os dedos, me jogo no colchão, tiro uma caixinha de fósforos da bolsa e observo um deles consumir-se quase até o final. É sexta-feira e não há absolutamente nada pra fazer. Não quero descer as escadas. Acho que hoje é o primeiro dia em duas semanas que não coloco uma gota de álcool no sangue (sabem como é, para esterilizar as bactérias). Consegui controlar o impulso de sair e fazer a ronda dos bares, como quase sempre faço quando Helena fica até tarde no trabalho - hoje, no caso, ela tem a festinha da firma -, e acabo voltando muito mais tarde do que ela, bêbado e deprimido, para adormecer ao seu lado. Há uma festa no vizinho, escuto o portão abrir e fechar várias vezes, vozes perdidas em conversas rasas. Gente. Postergo a pauta que preciso escrever até segunda-feira. Me levanto outra vez. Uso meu lápis indiano para anotar algumas frases no caderno de papel quadriculado. Coisas inúteis, festim. 
Escrevo que as dores prosseguem em seu movimento. Acredito que muitas delas estão relacionadas à reativação das atividades sexuais entre Helena e eu. O sexo foi o que nos amarrou, antes de tudo. Quando ela ainda morava no apartamento térreo da Rua Avanhandava, em um quartinho sem luz natural, muitas coisas foram inventadas e descobertas sobre nós mesmos. Os lenços que eu usava para amarrá-la nas grades da janela de meu quarto ainda estão aqui, vejo-os agora. Arrastamo-nos pelo chão, nos torturamos, soltamos palavras no ar feito a fumaça dos cigarros, e até emagrecemos devida à regularidade das nossas fodas diárias. Encontrei essas anotações num caderno, sobre isso:
"Acontecimentos estranhos, talvez insólitos, no viés da imagem, nesta madrugada - diversos valores acerca de uma única grandeza: o sangue humano.
- Levarei todo meu sangue pra você. No meio das minhas pernas. - Helena disse ao telefone.
À distância nos comunicamos sempre de forma obscura, emitindo desejo através do silêncio. Muitas vezes, ao telefone e em mensagens, eu prometi meu sangue para Helena nos cálices que roubamos do cemitério. Me referi às marcas que ela deixara no meu pescoço e nas costas, às arcadas dentárias em seus seios, ao filete vermelho que com saliva ela verte em delírios noturnos. Se o que ela dissera significa que havia menstruado, nada poderia me deixar mais satisfeito.
Noite dessas, depois de fodermos em meu quarto, minhas mãos aninhadas em sua boceta, meti e retirei um dedo melado do seu sangue viscoso. Sem pensar, aproximei o dedo da boca dela para que o chupasse. Assim fez. Comemoramos com um beijo.
Na madrugada de ontem, por outro lado, me restou a bonança de sua pequena tormenta. Apenas em uma das vezes que coloquei os dedos em sua boceta, consegui trazer comigo teias e fibras rubras, que fiz questão de misturar à minha saliva para depois cuspir nos seios de Helena.
Ela exibindo o cu pra mim, sob o jeans, enquanto eu fumava na área de serviço e ela, escorada na pia da cozinha, conversava com sua senhoria; a cabeça cheia de cachaça e ela levantando a blusa transparente acima dos seios; mais tarde, exibia-se para mim em seu vestido de seda preta e eu despejava conhaque em seus lábios - Helena esquenta o meu sangue da mesma forma que um encantador de serpentes faz os répteis se agitarem por dentro das paredes. Nunca havia sentido isso, pelo menos não que me lembre, eu que há poucos meses levava uma vida estéril, sem tesão, assexuada.
De todo modo, a madrugada de hoje, antes da minha viagem - escrevo estas notas dentro de um avião -, era vermelha. Quando Helena dormiu, depois do baseado e de eu tê-la deixado sozinha por uns instantes, fui ao banheiro e no espelho percebi que a ferida em meu peito parecia pulsar. Espremi-a. Minha ferida sobre o lado oposto do coração. O sangue escorreu, se emaranhando nos pêlos."
Depois do aborto, as coisas esfriaram um pouco. 
Se instalou um receio contínuo, e o prazer consignou-se imediatamente ao medo de que acontecesse novamente de gerarmos um rombo financeiro e um desentendimento sexual, nossas crias. No mesmo apartamento da rua Avanhandava, em alguma noite desse ano, eu estava sentado em uma cadeira de praia na cozinha com um moleskine preto na mão - talvez o mesmo em que escrevi as anotações sobre o sangue. Isso foi antes do aborto, mas de algum modo eu já pressentia a corrente fria que se aproximava de Helena e eu. Escrevi que, num primeiro momento, o amor, os corpos, são como uma semente. O afeto e o amor afloram aos poucos. As raízes e as folhagens se espalham em galhos quebradiços pelo piso, sobem às paredes, se infiltram entre as frestas da janela do quarto e descem pra cozinha, rastejantes, e assim prosseguem, até ocupar toda a casa, todos os cômodos, todos os móveis reincidindo chuva e terra, frutos flutuando na água da latrina, todas as janelas obscurecidas pela vegetação, e então você já está num ônibus, a caminho da festa de natal da família de sua esposa, cheio de dúvidas e preocupações.
O que eu cogitava em meu moleskine era a capacidade da mata atlântica de retornar ao estado de semente única. Me perguntava se era possível retroceder de forma não-espacial, mas sim temporal, para que as demolições não causassem impressões indeléveis no resultado. Não cortar as plantas, nem varrer as sementes ou salgar o solo. Mas sim assistir, como em um filme, de trás pra frente, a vegetação voltar ao ponto em que era apenas potência, ao ponto em que Helena e eu fodíamos três vezes ou mais por dia, sendo essa a primeira coisa a ser feita ao acordar, e só levantávamos da cama para comprar cigarros e cerejas no mercado do outro lado da rua.
Mas já tomei as providências necessárias, argumentei com meus orientadores, resisto às afluentes do tempo. Meu pensamento é o único cenário possível para as mudanças que desejo. Para as mudanças que, creio, se aproximam. 
0 notes
ianuviedo · 5 years
Photo
Tumblr media
ren hang
0 notes