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As camadas do som eram muitas: minha voz, acostumada a passear no vaga planície do silêncio, não encontrou seu volume. Acontece que seis anos se passaram desde que saí da cidade. Quando retorno, se abre uma pesquisa em relação ao som. “Múltiplas camadas” te dá sensação de expansão? Em mim, múltiplas camadas parecem sufocamento. Quando fui ao balcão fazer o pedido, minha voz era volume zero. Fiz força, mas mais forte é a moto, a combustão de vozes nas mesas, o chiado do exaustor do prédio. É que esses anos todos, eu mergulhei no silêncio, e distendi minha corda vocal (a consoante é só pensamento).
Eis a voz, este instrumento, que só me veio depois da flauta. É, me ensinaram a tocar flauta antes de me ensinarem propriamente a falar. Primórdios da infância, raízes dos problemas? Eu não facilito assim. Nos últimos seis anos mergulhei no silêncio e na solitude, ao pé de uma montanha. Foi assim que deixei o instrumento empoeirar. Sem remorsos, aconteceu. Minha voz atrofiou de tanto escutar o silêncio, e para além do que pareça, ela não se sente oprimida por isto. Pois voz, que voz? De que voz estamos falando? O que atrofiou foram apenas as cordas vocais. Aí está a armadilha: o silêncio multiplicou as vozes dentro de mim - tão extenso, tão livre de se correr, tão cheio de vento pra soprar os cabelos. No silêncio, há muito espaço, pois ele é como uma planície. Ali, deixei de ter apenas uma voz e passou a me habitar uma sociedade de vozes, uma imensidão de personagens - que largaram a dualidade bom x ruim e adotaram uma complexidade psíquica. É, talvez hoje eu emita menos grunhidos lá fora, pois criei muitas vozes. Veja, há um saudosismo nesse texto. Quando vivia na cidade, as camadas do som ensinavam meu instrumento vocal ser poderoso e forte - para poder existir. Já no alto da montanha, precisei me abdicar dessa força para encontra o silêncio. Antes, havia força, mas a voz era solitária. Agora, há uma atrofia do instrumento, mas sou acompanhada de um elenco. Percebo que em tudo há um custo - principalmente quando queremos aprofundamento.
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Assim fiquei sentada na sala. Hoje, sem a raiva. O que existia em mim era uma espécie de curiosidade: o que eu desvelei sobre mim, será mesmo meu estado cru de existência? Será que já me desvelei em plena sobriedade? Há dez anos faço uso de plantas-remédios para minhas emoções. Diferente dos antidepressivos e ansiolíticos alopáticos, que amortecem os sentidos e congelam a pessoa no tempo, as plantas por vezes intensificam ainda mais nossas crises, até sermos capazes de encontrar a raíz. Raíz para erradicar da raíz. Não é pílula para virar pílula encaixotada. Lavanda, manjericão, bergamota - com essa simplicidade mesmo.
Só que eu fiquei dependente e tardei a perceber. Foi numa festa que percebi - por que não me dou a permissão de estar como estou? Era noite de pleno eclipse, a Ana fazia um pequeno show na sua nova sala de jantar. Uma casa no alto do jardim botânico, muito úmida, vários instrumentos, sem bebida alcoólica e pessoas íntimas. Acontece que só me notei muda quando saí do portão de casa.
No jardim sentamos todos juntos, numa roda de cadeira, e uns três assuntos paralelos corriam por lá. Escutei minha direita: alguém contava que precisou viajar para o Ceará para terminar de ler Guimarães Rosa. Pensei: sentei no lugar certo. Ouvi também a minha esquerda: as mães se divergiam entre métodos escolares, uma falava que não colocaria o filho na montessoriana pois não colocou criança no mundo para executar tarefas. E lá na frente, tentei ouvir com a testa: alguém falava de Marighella. Eu, que já havia saído muda de casa, observei a todos e torci para não ser observada em minha mudez. Algo acontecia: eu não tinha interesse algum em conversar. Sentia que minhas opiniões eram preciosas - isso, com certo grau de intolerância. Só valeria a pena pari-las em formato de frase se existissem ouvidos atentos, mas não os encontrei. O que fiz então, incomodada com minha própria ausência na roda? Tomei um remédio que eu tinha na bolsa, feito de Bergamota. Uma astróloga me doou e disse que ajudaria em momentos em que eu precisasse falar. Eu tomei, eu falei meia dúzia de frases irrelevantes, e voltei a me calar. Acontece que é assim que eu tenho vivido: se tenho sono, tomo canela para acordar. Se tenho tristeza, tomo alecrim pra levantar. Se sinto vazio, tomo rosas para serenar. Se sinto dureza, vou até a mirra. Assim eu tenho vivido: estudando a maravilha das plantas? Sim, é claro! Desviando-me de passar muito tempo numa mesma emoção? Também. Por isso a curiosidade além da raiva: quem eu sou na crua sobriedade? O que sou, quando não busco me alterar?
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O que eu ganho quando permito a raiva se expressar?
PARTE II
O que eu não esperava é que iria funcionar. A raiva se defendeu tão bem que o vendedor da loja pediu desculpas e reconheceu o erro. Eu quis abraçá-la, eu enxerguei o tamanho da vitória - a raiva estava conseguindo seu espaço. Porém me disse que estava sem tempo para melecações sentimentais, que também estava cansada de pessoas carentes a perseguirem. Espero que ela não tenha dado uma indireta ao meu comportamento. Em silêncio, sorria para a raiva, admirando-a.
No manhã seguinte, ela não acordou ao meu lado. Ficou lá fora, perto da porta, esperando eu a convidar para entrar. Eu, que sempre disse tantos sim's, que sempre paguei para ver. Eu sabia que deixá-la entrar por mais um dia afetaria minhas fronteiras - da mesma forma que ela se sentia cronicamente invadida, eu também tinha esse problema: traçar limites. Será que ela, que lutava tanto por estabelecer fronteira, aceitaria receber limite? O meu limite?
Eu poderia simplesmente fechar a porta. Mas decidi testar minha habilidade de comunicação e lhe disse: "Hoje, o único sinal de alerta que quero receber são dos pássaros avisando que vai chover. O calor será do meu cobertor, que me receberá de pensamentos aliviados - o alívio que vem depois de uma contração. Ontem você me mostrou a faca que carregas por dentro da bota, entre a calça e o tornozelo, e me disse que era bom eu ter uma também. Eu concordo. Só que hoje quero andar nua, não quero lidar com o sangue dos meus pensamentos, quero o branco do nublado. Hoje quero estar tão vazia e vulnerável que não vou poder te receber. Mas outro dia, quando você voltar, te mostrarei a adaga que já terei comprado. Descanse por aí, também."
E assim fiquei sentada na sala. Hoje, sem a raiva.
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O que eu ganho quando permito a raiva se expressar?
PARTE I Acordei acompanhada, seus braços me envolviam tão forte que meu corpo inteiro se aquecia. Seus braços eram compridos, como um cordão, capazes de entrar pelo meu caminho do passado ou do futuro, como se eu fosse uma caixa misteriosa com várias portas. Não é qualquer dia que temos sabedoria para acordar acompanhada da raiva. Ela tocava toda a minha pele, e eu, com os poros já dilatados, deixei-a entrar. Ela me ocupou inteira igual oxigênio, na capacidade de me fazer inspirar e transpirar. Quente como a raiva. Por quê você está aqui? Foi a pergunta que somente de noite me ocorreu, mas nem ousei testá-la. Dizia ela desde o café da manhã que estava cansada de ser boa gente e cansada de ser invadida. Achei os dois tópicos muito complexos para abrir, enquanto eu acabava de repartir o abacate ao meio e buscava cominho em pó - uma combinação de sabor perfeita, igual a nós duas, na mesa. Possivelmente eu era o abacate, um pouco gordurosa e lenta, pois era cedo demais. Eu pouco falava e ela já ardia, já tremia, já exalava um suor inodoro. Então ela me disse que não gostava que pessoas aleatórias encostassem no seu cabelo, que isso a irritava muito, pois ela não era o cachorro babão do vizinho que qualquer um coloca a mão. Ao mesmo tempo ela se contrariava: eu não sou, mas eu já fui. Percebi que ela olhava a todo momento para suas próprias unhas, como se ali ela buscasse garras afiadas, algo para lhe temerem. Depois ela se desmontava dizendo que havia passado muito tempo sendo boa demais para todo mundo e agora lutava para recuperar seu rugido. Conforme eu a escutava, senti minha coluna vertebral se mover. Mais especificamente, eram os ossinhos da cervical se endireitando um em baixo do outro. A voz da raiva alinhava-me a medida que minhas vertebras construíam uma torre ali dentro de mim. Depois ela dizia algo sobre dinheiro: diz que fez uma mudança radical e agora não tinha certeza como iria sustentar a nova forma de viver. Mas também disse que não existia chance de voltar para trás. A compreendi. Levei-a para tomar um sol matinal no jardim, uma péssima ideia. Nós já suávamos muito. Nesse mesmo momento ela recebia uma ligação - era alguém lhe cobrando um dinheiro de longos três anos atrás. Só que era uma grande armadilha: a cobravam para pagar um produto defeituoso que ela já havia feito devolução. Tenho certeza que os vizinhos escutaram, pois ela gritou muito naquela ligação (eu me importava com isso e ela não). Não era um grito descontrolado ou desesperado, era um grito de quem estava recém aprendendo a se defender. Havia uma fúria, que não era sobre 300 reais, mas sobre ela vencer o medo da briga. É, no passado ela teria pago para não precisar se enfurecer. E eu, fiquei ali aprendendo alguma coisa.
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Quando acho que minha dor esta grande, vejo fotos do universo para relembrar minha pequenez
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Não é duro ficar em baixo do seu próprio Sol.
Mas é incômodo para a bondade, sendo ela intrínseca ou não Quando disseram-me que aquele sol era abrasivo demais, o compreendi como um perigo. Até aquela idade, não entendia que o mundo tem uma pele sensível demais, ao ponto que qualquer luz disruptiva possa lhe causar queimaduras - insossas queimaduras, o suficiente para arderem. Até aquela idade, eu mesma não era capaz de tampar o tal do abrasivo sol, então permiti que outros o fizessem. Sem aquela claridade, precisei florir menos. Talvez até deixei de ser suculenta e me transformei em alguma planta de sombra. Essas que a gente coloca num vaso qualquer pra preencher um canto vazio da casa. Decoração. Lá dentro, meu único caminho visível era o da flexibilidade. Bem, eu gostava daquele sol do jeito que era, mas me adaptei sem ele. E assim, como uma linha que pode entrar em qualquer agulha, me fizeram ser deles. Das autoridades. Quando me libertava de uma, não suportava não ter contornos autocráticos, e me metia em baixo de outra. A essa altura eu nem sequer lembrava da história do sol abrasivo, do sol disruptivo, que morava em mim. Eu estava tentando ser uma boa pessoa - o ato mais autoenvenenável que podemos fazer para nossa identidade. O coração até que gosta, não acho que a bondade o fere, de forma alguma. Mas a identidade, coitada, uma planta de vaso paralisada a meses, sem crescer nem morrer. "Só que um dia...." - não foi bem assim. Não foi de repente, nenhuma consciência desceu sob mim em forma de mudança divina. Então, foi assim: com os músculos atrofiados, o rosto deformado, com lagrimas que não apenas saíam dos olhos como também dos ouvidos, com os caninos lixados para sorrir feito boa garota, com as mãos ainda acorrentadas, eu decidi mudar. Nuvens de humilhação me cobriam e eu sequer sei de onde puxei forças para soprá-las. De dentro do meu coração apagado eu soprei as nuvens de humilhação. Gritando, soprando, gritando. Onde a raiva e a coragem dormem abraçadinhas. Minha ilusão naquele momento foi achar que este seria um sopro terminal. Em que seria uma guerra com final, uma história de terror em que no final alguém acende a luz e te abraça. Hoje, tento não sentir pena daquela minha inocência e envio ao meu passado uma imensa gratidão. Acontece que hoje, aquela bondade que fazia bem ao meu coração e castrava minha identidade, ainda insiste em ficar. Ainda não desistiu de mim. Mesmo vendo o quão estilhaçada e deformada eu fiquei por causa dela. Por isso a dureza. Ah, a filosofia dos duros! Para aqueles moles igual caldo, para os flexíveis igual barro, para os bonzinhos cheios de sorrisinho colado na face, para os doadores incondicionais, para os adaptáveis a qualquer relação, para os que encaixam em qualquer espacinho pois são pequenininhos, para aqueles fáceis de conviver pois não incomodam, para aqueles sempre convidáveis, para os que se preocupam e acham isto muito bonito, para os que não são egoístas, para os que evitam brigas, para os que não se importam em passarem invisíveis, para os que "nem era importante o que eu iria dizer", para os não se importam em serem interrompidos, para os que escutam mais do que falam, para os que podem vestir qualquer coisinha, para os que aceitam comida quase passada, para os que dizem tantos desculpas, para os que dizem tantos obrigados, para os que dão passagem mesmo quando estão atrasados, para os que não se incomodam. Para os que está tudo bem, Ah, a filosofia dos duros!
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A gravidade que me ensina a existir
Estou aprendendo a sentir a gravidade em meu corpo. A entender a dádiva que é estar sempre sendo puxada em direção a Terra - será que essa é uma forma da natureza em me ensinar o quão bom é estar viva? Caso contrário, talvez eu flutuaria eternamente sem direção, e meus pés não saberiam onde tocar. Talvez não sabiam a sensação de serem igualmente tocados por um chão. Há dias em que acordo com uma densidade corporal, pareço ter mais quilos nas pernas e as bolsas dos meus olhos se incham. Meu eu do passado acordaria prevendo que há de ser um dia ruim. Mas hoje, eu acredito que estes dias são dias regidos pela gravidade. Será mesmo que ela não se altera de tempos em tempos? Não estou convicta de que os físicos saibam tudo, apesar de agradece-los.
Então, a gravidade tem essa capacidade de me deixar menos suspensa. O que antes seria terrível de imaginar: ser puxada para baixo - hoje não temo. Os riscos do céu e do subsolo são os mesmos. Na medida certa, a gravidade fortalece minhas raízes, e pareço finalmente fazer as pazes com a existência.
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A divisão do caminho também me divide dentro
Duvido se a escolha certa existe. Mas escolher diante da incerteza é imprescindível à saúde. Sendo dentro do padrão de Fibonacci ou não, as árvores começam com um único tronco entremeado à terra. O que as faz criar uma copa larga, extensa e cheia de vida são as ramificações deste galho. De um, abrem-se dois, abrem-se quatro, abrem-se oito... Arvores são cheias de encruzilhadas. O que seria de suas vidas se elas paralisassem a cada galho ramificado? O que seria de um limoeiro se ele ficar indeciso: "Aih, será que faço brotar limões do lado direito ou esquerdo desse tronco? Estou indeciso." E pronto, o limoeiro perdeu o tempo de sua florada. O oposto da indecisão não é tomar decisões precipitadas. O oposto da indecisão é a confiança. Eu já passei muito tempo paralisada diante das bifurcações de meu caminho, como se esperasse um sinal imenso - e até grotesco - da natureza indicando para onde seguir. Ouso dizer que a maior parte das vezes, o sinal não veio. Porque nem tudo se divide entre caminho certo ou errado, vamos deixar de lado nossa mente bicolor. Muitas vezes não há o caminho certo, pois a natureza vai te receber em ambos os lados! Ora, acontece que a cada encruzilhada nosso corpo se divide ao meio. Minhas pernas e quadril para um lado, meu tronco e cabeça para outro: no entre-meio, minhas vísceras expostas. Podemos passar muito tempo com uma ferida aberta? Encruzilhadas são quentes, e também são inflamáveis. Já a decisão, toda colorida de atitude, é curativa. Basta um impulso para ela sacar a agulha e a linha e nos costurar novamente, até voltarmos a ser um. Decisões são remédios para nossa integridade. É muito além de apenas nos movermos para frente.
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A favor dos esconderijos
Por menor que seja sua Liberdade, há sempre uma armadilha do tamanho ideal. Ou um predador atento. É melhor esconder sua Liberdade. Não eternamente, não frequentemente. Mas enquanto ela altera sua consciência, enquanto você ainda se acostuma com sua força, É melhor esconder sua Liberdade. Não se trata de esconder por vergonha ou medo, mas sim, como quem guarda um segredo. Num mundo de aprisionados, o olfato se inverte e a Liberdade exala cheiros repugnantes.
_____________________________________________________ Assim que escrevi esse parágrafo, um passarinho entrou em minha casa, como confirmação do quão vulnerável é a Liberdade. O gato já estava enlouquecido em posição de ataque. O passarinho, talvez um pequeno pardal, rodeava o teto sem encontrar a saída. Há sempre alguma armadilha para caçar os livres, e se não basta a gaiola que minha casa representava à ele, havia o predador. Com o perigo duplicado, o passarinho nem piava. Imensas são minhas janelas e mais ainda as portas da sala. Ficamos cegos quando sufocam nossa liberdade, pois livres também são nossos olhos. Ele não enxergava a claridade lá fora, estava em completo pânico, ouvindo o miado do predador. Na direção contrária a porta, se enfiou num vão entre o teto e as telhas de vidro. Ali, exatamente onde eu havia colocado uma toalha para tampar o excesso de claridade que batia na minha mesa de jantar. O passarinho se intrincou entre vãos e se enrolou atrás da toalha, de jeito que eu não soube como salvá-lo, pois precisaria de uma escada. Uma vez, quando contei a uma amiga que acreditava ser importante proteger a Liberdade e por vezes escondê-la dos assustados olhos lá fora, ela discordou. Disse a mim que precisamos expor nossa Liberdade para inspirar os outros a se libertarem também. Acho fundamentalmente bonita essa exposição, a Liberdade como galeria de arte. Porém, talvez diferente da dela, minha Liberdade ainda é frágil. Igual este passarinho menor que a palma de minha mão, quase do tamanho da arcada dentária de um gato. Enquanto fui atrás de uma escada pela vizinhança, ali ele ficou. Se debatendo entre vidro e toalha, ouvindo os miados viscerais do gato preso no banheiro. É claro, ele não sabia que o gato estava preso. Quando voltei, subi o mais perto possível do teto em que minha altura somada a escada daria. Não encontrei nenhum movimento. Esperei mais tempo, fiquei observando, até sentir uma compaixão intra-animal por aquela Liberdade, que depois de presa, pode ter se rendido à resignação. Creio que uma parte da nossa prisão enquanto seres de sociedade, se dá pela resignação. Disfarçada de aceitação, a nossa bondade nos enfraquece. Tememos nossa própria rebeldia pois a consideramos pequena demais perto do tamanho do predador. Na tal cegueira do medo, não enxergamos o que é que nos prevalece. No caso, o passarinho tinha a altura ao seu favor para escapar - a altura em que um gato jamais alcançaria. Por fim, não sei o que houve. Se ele se enfiou num profundo vão do forro do telhado e se prendeu. Ou se ele achou alguma fresta entre as telhas e fugiu. Assim, a Liberdade confirma sua natureza: não deixa que o outro saiba para onde ela foi. O próprio mistério protegeu a Liberdade, escondeu seu destino. Não me permitiu desvendá-la, pois neste caso meus olhos humanos seriam filosoficamente predadores da mesma.
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Os convidados no porão de minha casa
Será que mesmo em pedaços, a liberdade ainda é capaz de ter voz?
Não considero-me inteiramente livre, como um bloco íntegro, como uma asa unida ao corpo. Há partes minhas que são selvagens, que correm e dormem o quanto quiserem. Outras, são amarradas em cordas de algodão, de cisal, de metal e seus movimentos são roboticamente limítrofes. No inicio do ano fui a uma meditação guiada por uma chilena, de voz tão macia que é difícil transpor o sono (alguma filosofia mora nesse estado entre manter-se acordado enquanto se penca de sono). Ela dizia para pensarmos na nossa palavra do ano, 2025. A minha já estava definida e seria Liberdade. Eu estava há anos esperando ser ousada o suficiente para esse desafio, pois eu levo muito a sério as palavras. Agora já estamos em Abril, e quase mudei minha palavra, de tanta aflição que ela me dava ao olhá-la escrita do lado de minha cabeceira da cama. Por que eu fiz isso comigo? Digo, num mundo de aprisionamentos, quem é que nos avisa que a Liberdade se choca diretamente com a Culpa que nos habita? Ninguém me avisou disto. Bonita era a Liberdade quando passava de bicicleta na frente da minha rua e eu a admirava pela janela. Quando a convidei a entrar, para conhecer sua beleza, senti um arrepio estranho do meu sexto sentido. Ela nem sequer cumpriu uma moralidade de boa hóspede e foi direto pro porão. A culpa e a Liberdade uma de frente para a outra, eu sabia que uma guerrilha começaria. A liberdade - esta charmosa, de movimentos tão elegantes - virou uma ogra viking e dava socos no estomago da culpa, que caía de lado sem conseguir falar. Parece que estou trocando os habitantes da minha casa. Daqui a pouco é Maio e a Liberdade continua ali, desta vez ficcionada nos ladrilhos de minha piscina. Alguns deles são bem reluzentes. Não consigo dar continuidade na rotina com essa mulher parada lá fora. Eu acho que ela está vendo seu próprio rosto espelhado nos ladrilhos: olhos em um, boca em outro, orelha noutro. Não sei o que se passa em sua cabeça.
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A posse e seu sintoma do Cuidar
A posse é esse bicho cheio de fome, sede e dores musculares. Tem no seu escaninho uma série de etiquetas com seu nome - saí por aí costurando-as em tudo que quer para si. As vezes, se o objeto é arredio e não se dá tempo de costurar, mesmo assim a posse dá-se um jeito de colar a tal etiqueta. No mundo fantasioso da posse, tudo tem etiquetinhas com seu nome. E vocês acham que ela é maldosa? De jeito algum. É toda amorosa e cuidadosa. Veja: cuidadosa. Eu cuido do que é meu, diz a posse. De fato, sua fome insaciável de ter para si as coisas é equivalente a sua capacidade de doar-se as mesmas. É seu jeitinho de passar despercebida. Inocentes etiquetas: são apenas seu método de organização. Ah, claro, ninguém se altera só por ter uma etiqueta costurada em si mesmo. Tudo isso porque estava lendo A paixão segundo G.H e empaquei na sua desposse ao mundo. Vejam esse trecho: "O leve prazer geral - que parece ter sido o tom que eu vivo ou vivia - talvez viesse de que o mundo não era eu nem meu: eu podia usufruí-lo." Uma chama de raiva subiu no meu colo quando vi Mundo unido do verbo Usufruir. Como assim usufruir do mundo, não seria esse um pensamento colonial? Estamos aqui para cuidar do mundo. Cuidamos do mundo porque ele é nossa casa. Se não entendermos o mundo sendo nosso, qual responsabilidade teremos com ele? - Meus pensamentos me comiam. E ali estava a planície em que a posse corre solta: achar que para eu cuidar, precisa ser meu. E se não for meu, eu não cuido. Tive medo de abrir meu escaninho e encontrar etiquetas lá. Mas o que encontrei foi uma escultura de um globo mundial imenso posto no meio da minha sala, e na sua frente uma bandeira: "The world is yours" - porque havia reassistido o filme Scarface há poucos dias, e este globo me apavorava. Tenho pavor da posse e encarei a minha própria. Agora, num exercício de desvincular o ato de cuidar ao de possuir, vou testar minha generosidade. Talvez desta maneira eu possa, de fato, usufruir mais do mundo. Assim, como quem não o carrega nas costas, vivendo em leveza e circulando-o livremente. Com responsabilidade.
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Quem aqui, na busca em ser verdadeiro, já atropelou a si mesmo?
Curiosa essa busca, em que por vezes me parece um pecado invertido. Andar na verdade - não há algo um tanto santificado nisto, algo construído na sombra da culpa, um valor moral mal enterrado? Vejo-me obrigando-me a ser verdadeira o máximo possível, comigo mesma ou com outros. Como se eu carregasse uma mesa de jurados nas costas, em que estão analisando a todo momento de zero a dez o quanto eu falei a verdade. Pareço em uma corrida violenta para ser a boa aluna. Nessa corrida de autoaprovação à mesa de jurados, passei o carro por cima de mim mesma, várias vezes. Atropelei-me e até hoje tenho desfalques no meu caminhar por conta disto. Porque eu disse verdades em momentos inoportunos, como uma aristocrata da Verdade, como uma bispa. Sim, dessa vez vou trazer palavras tão ordinariamente cristãs porque se encaixam perfeitamente. Disse verdades feito uma criança que fez catequese. Não parecia ser eu, aprendiz dos ciclos da natureza, observadora dos mistérios da Terra. Passei a verdade por cima dos contextos, como se ela fosse a primordial, a vossa excelência, a maior magnitude andando sob pés - abram espaço para ela passar, agachem-se e curvem-se, para a misericordiosa. Uma grande merda. Quanto tempo eu levei, para entender que a verdade é cheia de ranhuras, e esta é sua graça? Digo mesmo, ela é cheia de contradições e engana-se quem consegue pegá-la pura com as mãos. Por meio de nossas palavras e nossos pensamentos, qualquer tentativa de transpor a verdade em estado cru se rompe. Porque nossa existência humana, por si só, é um rompante. A verdade só existe no estado puro quando é intocada. Eu arriscaria dizer: só existe no estado puro quando nem sequer é olhada. Até o nosso olhar é capaz de alterá-la, imagine então quando a colocamos na nossa boca? Boom - nossos microrganismos, nossas bactérias intrínsecas, fungos alojados no nosso DNA, todos atacam a verdade. Somos rompantes da verdade. Hoje quando escuto alguém me dizer que é verdadeiro, enxergo-o numa soberba sem fim. Tudo bem, você pode comer laranja e jamais mentir dizendo que comeu melão. Mas, verdades se resumem a fatos? Verdades se resumem ao que os olhos físicos acessam? Hoje, me acolho por não dizer certas verdades, até mesmo as factuais. Sim, eu conto mentiras quando preciso me safar de situações perigosas. Ou quando ainda não estou pronta para expor-me e ainda preciso esconder-me, porque sei que lá dentro estou me reformulando. Respeito meu tempo de processamento. Caro humano verdadeiro, tens a certeza que a mentira não existe para vez em quando nos salvar e proteger? Já fui tão rigorosa com o uso da verdade, repenso-a olhando o tamanho das cicatrizes que esse rigor me deixou. Me sinto tão humana escrevendo isto.
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Entrando numa nova década
Cá estou, eu endureci, e digo isso com um alívio profundo nos pulmões. Criei estrutura, disto me contento, pois agora não basta um só sopro nem um só vento - preciso de uma longa estação para me impactar. Sou mais intocável e impenetrável, reconheci que o que aqui guardo não é passível de distribuição. Investi tanto em me conhecer que transformei meu velho chão de grama seca em quartzos espalhados sob a terra. Diferente do percurso de muitos, dediquei-me à alquimia do silêncio para encontrar as palavras, ao invés de precisar conter as palavras para conhecer o silêncio - este é um velho, velho amigo, e que por vezes lhe digo para ir descansar pois preciso de novos amigos, que querem nascer das minhas cordas vocais. Minha mente? Uma pesquisadora de cordas e nós. Desde que insisti que meu maior tesão é a liberdade, ela acatou-me e se fez presente. Dedicou seu tempo para entender o que é que me amarra, onde, quem? Que bonita essa mente trabalhadora em pró de meus ideais. Eu disse a ela que não temo as cordas e nem sisais, pois mesmo que os nós estejam muito atrelados, uma hora envelhecem e se partem. Tenho navegado em marés salgadas e sei do poder do sal em destruir o velho. Mas disse à ela: tenho medo das correntes, essas de ferro e aço. Tenho medo de cadeados. Cadeados me dão pavor. Pois sei que esses precisam ser soltos a partir da sabedoria e não da força. Quero dizer, ela me ensinou isto. E deixou solto no ar, nem disse que sim ou que não, nem se estou em algum destes. Aos poucos também vou aceitando a nova textura de minha pele. Mais dobradiça, fina. Meu coração também anda buscando menos, como se eu enfim encontrasse uma estabilidade aqui dentro. Deve ser por causa da dureza que eu conquistei. Foi tão árduo conquistá-la e ver minha desastrosa flexibilidade sendo contida; tão flexível foi meu eu do passado que ele quase teria me desintegrado para sempre.
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Ver-te existir é mais nutritivo que possuir qualquer fragmento teu
No fogo há brasas tão brilhantes, tão incandescentes, tão incandescentes, que se tornam espelhadas - e neste espelho eu pude ver sua doçura. Não me importa o tamanho do tempo nesta visão, sei que fragmentos de minutos são capazes de gerar histórias. Algumas vozes da minha mente me questionam: são histórias ou são situações? Isto está a depender da fertilidade super-aquecida do coração. Foi assim que criei uma narrativa em que sua rigidez e alta compostura se derretiam. Como quase sem esforço, te vi em generosidade comigo, te vi deixando pedaços de suas cascas pelo chão. Se eu já enxergava sua beleza mesmo escondida por grossas camadas de neve, sobrepostas de invernos aparentemente intermináveis... imagine como lhe enxerguei em beleza quando uma pequena parte se abriu. Ontem no telefone, falei de ti a meu amigo Pedro. "Tem vulcões que passam centenas de anos cobertos de gelo. Quando a lava decide agir, o gelo derrete e toda a terra fica fértil". Gosto como Pedro enxerga o mundo. Foi isto que ele me disse sobre você - e nos adentramos no susto que é pensar em centenas de anos, será que assistirei seu derretimento somente em outra vida, num encontro em outro continente? Contingente é nosso encontro, criando narrativas baseadas num pontual minuto de encontro dos nossos olhos. Retinas são infinitos passíveis de perdição, ilusão e também realização. Em todos esses anos, eu costurei nossos encontros de retinas e construí história. Eu não criei e não menti, apenas passei o fio na agulha e bordei algo abstrato sobre nós. Conhecendo a mim mesma, não seria diferente. Sou magnetizada pela distância, e quando estamos carne a carne em um abraço, eu crio outra distância, algo que me faça ser uma arqueóloga de distâncias, porque elas são quem trás arejamento e eu sou já sou calorenta por si só. Pois bem, vi sua face espelhada na brasa e me era tão doce. Minha boca não era capaz de carregar a dimensão do sorriso que me descia - então parece que vários sorrisos brotavam na minha pele, na minha nuca, nos meus joelhos, e até meus órgãos da barriga foram capazes de sorrir. Se naquele momento meu corpo fosse feito de tecido e alguém o pintasse, eu seria uma estampa de repetidos sorrisos. A causa da alegria se comprova em ser tão verdadeira e boba. Depois, contei nos dedos quantas vezes você perambulou até chegar a mim. Você não fica e não vai (dentro de mim), e eu tenho rezado para que tome um rumo nessa sua encruzilhada. Mas você sempre volta e encontra em mim uma versão cada vez mais preparada, mais decidida e madura. Será que você sentou num confortável lugar de ser expectador do meu crescimento? Foi assim que retomei a pesquisa do significado de amar. Lá dentro da minha literatura emocional, escondida em minhas capas compostáveis, ainda restava algo legível: amar é querer ver o outro crescer espiritualmente. E na contracapa havia: amar é ser expectador do crescimento do outro. Devo ter lido isto em algum lugar e aqui se registrou. Longe de mim negar tais definições, pois estranhamente curiosa é minha admiração ao assistir-te trabalhando. Que raios de paranormalidade é esta, em que o pico do meu olhar romântico é quando te encontra novamente sério, tecendo seus fios profissionais, com sua diplomacia, entregando-se apaixonadamente ao seu talento? Como posso achar mais belo ver-te em apaixonamento por seu ofício do que apaixonado pela minha face olhando a tua? Aqui de novo eu percebo que não me importa o quão carnal pode ou não ser nosso encontro. Não me importa a especificidade do encontro e nem da reciprocidade. Me alimento luminosamente de ver-te existindo.
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Teias são histórias possíveis de serem refeitas
Tão reluzentes quanto a própria teia, elas cuidam do meu jardim. Porém não concordo que sejam inofensivas, as Argiope Legiones, ou aranhas-de-prata. Há algo em seu corpo espelhado que me é tão intimidador: posso ver-me em ousada espera. Assim, ao observá-las paralisadas, reconheço uma verdade sobre mim que é por vezes assustadora. Há tantas coisas na vida que escolhi não caçar, e sim, atrair. Por pura confiança de que em mim habita um imã, um magnetismo. Duas delas estavam na mesma teia. Não sei qual delas era a criadora daquele lar geométrico, amoroso e estratégico, mas creio que duas aranhas não criam a mesma teia juntas, então uma delas era a invasora. (Gosto de naturalizar a rivalidade do mundo natureza, que eis que é uma verdade bruta e abrupta, e que existe num grau de equidade com a cooperação - ambas as forças estão soltas por aí). O alimento estava ali, irresistível, preso na teia. Criando imaginações alucinantes, nos fios feitos de salivas, pegajosas. Mas o tapa entre elas era bem árido. Elas diriam: questão de sobrevivência. Porém a natureza ao redor era tão abundante em abelhinhas e mosquitinhos que creio que houve uma obsessão extraordinária, ou então, um encontro cármico. Brigaram muito. Sendo incapaz de me despessoalizar, encontrei a minha. Despejei meus desejos mais escaldantes naquela abelha e lutei por eles. Lutei contra aquela invasora, que estando eu certa ou não, acreditei que aquela teia era a minha. As duas aranhas se debatiam para ver quem ficaria com a abelha, e conforme os tapas aconteciam, elas balançavam a teia. Elas balançavam muito, elas tinham sangue nos olhos, elas estavam prontas para se matarem se for preciso. A teia balançava mais, a abelha ia escorregando devagar naquela geometria, até cair. Elas continuaram lutar sem nem perceber que tudo já estava perdido. Eu torci tanto por mim, e percebi que não havia mais como ganhar ou perder. A possibilidade de realizar aquele desejo caiu da minha teia do destino.
Praticamente cinco anos se passaram, eu rememorei este mesmo desejo. Ele apareceu para mim numa noite turbulenta - vinha até a minha casa e eu lhe dizia: espere só um momento, estou arrumando a sala. Mas havia deixado bem claro o quanto ele era bem vindo, o quão faminta de abelha eu estava. Não tardou, o zumbido entrou pela janela. Numa fúria, que era a mesma que a minha, depois de eu convencer-me que aquele desejo não mais existiria - ali estava eu, incapaz de sustentar o pedido de espera que eu mesma criara. A abelha voou pela casa toda, zumbindo, voando, tão pequena num cômodo gigante. A abelha parou no vidro da janela, de tantas janelas, de tantos vidros, parou ali, no campo minado de uma teia de aranha. Tarde demais, o zumbido aumentava feito gemido, a abelha era mumificada viva até se calar. De todo o espaço da casa, ela voou para a janela que tinha a teia, entende? Da sala. Eu não fico tão parada quanto pensam, eu estou passando a acreditar no meu magnetismo, brutal, sem piedade e silencioso.
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Quando livros chegam ao mundo
Colocar um livro ao mundo é dar faíscas para a curiosidade. Como existiria o conhecimento sem a curiosidade? Muito mais do que apenas querer saber, o trabalho do curioso é de escavação. Já os livros são cheios de terra - ora fofa, ora dura, mas sempre possíveis de serem cavados. Os curiosos cavam livros por prazer. Vejo as mãos de um leitor: toda calejada. Movido por essa faísca da curiosidade, ele trabalha de enxada nas mãos. Não aceita que o conhecimento seja algo de pronta entrega, pois sabe que isso adormeceria sua consciência. Cavar um livro é, acima de tudo, um exercício intenso contra o sedentarismo da mente. Então toda a vez que um livro chega ao mundo, a Terra fica contente. Pois ela sabe, que depois da escavação, o leitor estará nutrido o suficiente para deixar sementes.
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Sentir é um ato de resistência - anarquia na era da estabilização do humor.
Caras leitoras e leitores, essa é uma hora de exposição. Há observações pessoais, que quando expostas, nos deixam completamente nuas e vulneráveis. Por isso faço uma pré defesa: não joguem tinta por cima desta pele que aqui se despe, pois esta pele é de uma pensante. Compreendo as dores do mundo, sinto-as envolverem-me, mas com muito esforço não as permito que me paralizem: por isso meus pés caminham em direção às raízes, às causas, às influências. Em direção a quê, em direção a esta normalização dos estabilizadores de humor? Sim. Nos ultimos 4 anos, segundo a CFF (Conselho Federal de Farmácia), o consumo de remédios psiquiátricos cresceu 36% no brasil. Algumas notícias parecem celebrar isto, dizendo que é a visibilidade da saúde mental acontecendo. Há quem diga até que é uma reparação histórica já que os transtornos mentais há muito tempo eram negligenciados. Impossível não ler esta notícia e não lembrar de minha adolescência, entre 2010 a 2014. Nossos pais preocupados com a imprudência da juventude: nos questionavam sobre drogas ilícitas e alguns colegas até fizeram PROGRAD. A escola também passava powerpoint explicando todo o dano letal das tais ilícitas - sabíamos decor. O que nossas autoridades adultas não sabiam é que por meio da juventude nós prevemos o futuro. Nem nossos pais e nem os professores tinham olhos por baixo da mesa ou nos corredores: nosso tráfico de Ritalina. Cloridrato de Metilfenidato, tarja preta, um assombroso estimulante mental para foco e concentração, que agrava a produtividade e também torna o jovem mais obediente - pois controla ações impulsivas. Estávamos vendidos à logica do vestibular, da competição capitalista, da castração dos nossos instintos. Me lembro a primeira vez que tomei 1/4 de Ritalina: fiquei em torno de 6 horas com os olhos fixados, pagina por pagina, em uma única apostila. Provavelmente ganhei parabéns por tamanha dedicação. Por um fio eu não me mantive nessa onda da escola, mas sabia que existia. A rebeldia me salvou, ou meu desejo incessante de navegar na minha variedade de pensamentos. Ou então - agora é o momento que a toalha caí de meu corpo - o meu medo de parar de ter sentimento. Porquê havia a Clá, uma amigona das antigas, ela estava parando de ter sentimento. Eu assisti de perto cada mudança. A ela era recomendado antidepressivo, ansiolítico e estabilizador de humor - não tenho certeza, eram vários comprimidos. Eu me lembro exatamente quando ela parou de se surpreender. Nada mais a espantava, nada mais era capaz de lhe dar faíscas de admiração. Logo nós, em nossa amizade, que parecíamos fogo e água - vivíamos borbulhando surpresas de juventude. Chorávamos e ríamos juntas, enxergávamos o mais extraordinário detalhe dentro de uma fria sala de aula, imitávamos nossos professores em suas manias sutis - que só nós percebíamos. Extraíamos sulco de consciência a cada opressão autoritária vinda da direção. Nossa amizade era um barco de palhaçada com sensibilidade, de duas garotas que viviam adversidades em casa, mas sabiam se acolher. Eu vi, a cada mês e ano que passava, os remédios psiquiátricos furarem nosso barco, até ele inundar. Minha amiga Clá estava cada vez mais ausente, dentro e fora, cada vez mais robótica.
Suas expressões afundaram junto com a proa: nem sorriso, nem choro, nem medo, nem indignação? Foi profundamente solitário vê-la se despedindo da sua casa dos sentimentos, que haviam papeis de parede muito coloridos, com pinturas geométricas abstratas, com sua facilidade para matemática. Ela foi e eu decidi ficar. Me olhei no espelho antes de ir para a escola: prometi a mim que não deixaria nenhum remédio tirar meu sentimento. Anos depois, precisei ser ainda mais resistente nesta promessa, mas isso é história para outro momento.
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