Tumgik
jukjec · 2 years
Text
Post 16 - Diário do Caminho de Santiago de Compostela - Etapa 5 - Parte 3
Dia 5 - Parte 3
Data 03/05/2017
Etapa: El Real de la Jara -> Monesterio, Espanha
Distância: 20,7 km
Tempo: sol -> sol
O suplício seguia ladeira acima. Tudo contra mim: sol escaldante de 30 graus, asfalto quente e íngreme, mochila de quase 9 quilos nas costas, os sons irritantes dos veículos que passavam por nós e o tal calcanhar direito que amarrava minha ascensão até o topo onde deveria encontrar a Cruz del Puerto. A distância era de aproximadamente 6 a 7 quilômetros, porém, o desnível me forçava escalar quase 200 metros.
                O trecho era praticamente reto. À nossa direita, montanha, à nossa esquerda, campos.
                A dor fazia o tempo parar e a cabeça pensar muito no que eu estava fazendo ali naquele estado enfermo. Tudo o que eu fazia, como tomar anti-inflamatório, passar pomada, dar banhos de água quente e fria na região do calcanhar conforme receitado pela médica em Sevilla parecia não fazer efeito considerando que todo dia eu acordava com uma missão de cruzar dezenas de quilômetros a pé.
                Bem, havia outra receita que eu teimava em não fazer. Repousar. Talvez aqui a palavra tenha seu significado mais amplo de repousar mesmo e não parar por 10 a 15 minutos a cada X quilômetros.
                No entanto, se assim fosse, todo o meu roteiro, datas programadas e metas estariam fadadas ao descumprimento. Ainda havia quase 900 quilômetros a minha frente e quase 30 e muitos dias de extensa caminhada a serem percorridos.
                No meu lado esquerdo, passo por um grande camping.
                Metas... troféus... vontades alheias... Não estava lá por isso, mas sim por mim mesmo. Isso não estava tão claro ainda, mas estaria em breve.
                Aos poucos, a dor do pé veio para a cabeça onde a ideia se formulava. Desistir era a única saída, totalmente oposta àquela de terminar o caminho conforme o planejado (por quem?).
                No entanto, antes de me decidir, eu precisava terminar essa etapa e, para tal, precisava fazer o mínimo esperado de um peregrino: dar um passo por vez e nada mais.
                O meu mantra “um passo por vez, uma etapa por dia” nunca fez tanto sentido.
Passo após passo, esse "everest" perde força e eu subo.
“Um passo por vez, uma etapa por dia”.
Sinto um segundo coração no calcanhar (de Aquiles do peregrino) pulsar. Por ora, esqueço dele e olho à frente e acima.
“Um passo por vez, uma etapa por dia”.
Sim, abandonei a dor. Deixei-a para trás, sem saber que pagaria um preço alto por isso. Não me pergunte como, mas eu tolerei a dor física por mais de 1 hora enquanto fazia a subida dessa estrada.
“Um passo por vez, uma etapa por dia”.
Desligo a mente e imagens vêm a ela. Lembro de eventos duros do passado, de esforços físicos e mentais (meus anos de faculdade de engenharia) e de amigos e familiares me dando suporte.
Se elas estivessem ao meu lado naquela tortura física e mental, teriam feito o mesmo. Teriam me apoiado como aqueles que ficam nas calçadas apoiando aos berros ou batendo palmas aos corredores em grandes provas de corrida nas cidades pelo mundo.
Então, de seus gritos ouvidos pela mente, caminhei, andei e manquei até avistar a Cruz del Puerto e Monesterio logo atrás.
Agora, poderia pensar novamente no futuro.
                Por ser um escritor amador, não posso retratar com palavras o sofrimento que foi essa 1 hora de caminhada com 1 pé e meio. Havia suado litros de suor sobre o suor das horas anteriores. O pé direito berrava. Sentia que havia uma bola de tênis no calcanhar. O esforço havia sido descomunal para a situação. Realmente, não sei como não me lesionei em outras partes do corpo além do calcanhar direito para, de alguma forma, compensar minha situação de coxo.
                Claro, havia outra solução. Fazer ou desistir são escolhas como o preto e o branco. No entanto, havia a possibilidade de pedir carona, simples assim. Seria fácil obter uma? Não sei. Mas era uma das alternativas que até então eu não avistava nesse “túnel” que eu me enxergava no caminho de Santiago de Compostela. Sem contar que minha teimosia ainda me empurrava para que a meta fosse feita.
                Lembro de termos parado por alguns minutos onde a tal cruz se localizava. Estávamos nas alturas vendo um vale sob nós. Ao olhar para o caminho em direção até Monesterio, percebi que havia um pouco mais a subir até chegar ao centro da cidade. O pé e o calcanhar direitos já não existiam mais, pois eu havia abdicado de sentir dor. Coloquei a vontade sobre ela para poder seguir, com dificuldade, meus companheiros de jornada.
                Seguimos pelas ruas até o centro da cidade passando por casas e coméricos com calçadas estreitas. Esta cidade já era um pouco maior que os vilarejos pelos quais passamos anteriormente. Podíamos ver que as construções já eram maiores daquelas que vimos nos dias anteriores.
                Parecia um caminho sem fim, o sofrimento tivera sido deveras prolongado. Só queria uma coisa, terminar essa etapa e nada mais.
                Meus companheiros haviam reservado mais um aposento privado para esse dia em vez de pegar um albergue público na cidade. Era um pequeno e modesto hotel branco que ficava na praça central da cidade, ao menos era o que parecia ser.
                Lembro-me muito bem, o sol seguia a pino como de costume nesses dias de primavera que antecedem os longos dias de verão.
                Chegamos na recepção, uma mulher nos atendeu. Dêmos nossos nomes, pagamos, tivemos nosso passaporte peregrino carimbado e ela nos mostrou nossos aposentos no segundo piso.
                O quarto era simples, mas era só meu! Sem roncos e outros sons noturnos para quebrar meu sono.
                Conforme fazíamos todos (os poucos) dias até então. Iríamos realizar a rotina básica de tomar um (longo) banho, lavar a roupa e estendê-las. No terraço, terceiro piso, havia um espaço coberto onde poderíamos deixar nossas roupas para secar.
                Após quase 30 ou 40 minutos de arrumação, saímos, como de costume, para tomar algumas merecidas canãs de cervezas ou raddlers.
                Fomos ali na praça central (???) mesmo onde havia o bar e restaurante El Riconcillo com mesas externas onde poderíamos apreciar a vida pacata do meio da tarde. Estariam todos dormindo devido à siesta? Não sei. Embora não fosse um vilarejo como os anteriores, também não era um grande centro urbano. Mesmo para padrões espanhóis, Monesterio deve ser uma pequena cidade (segundo o Wikipedia, não há mais de 5 mil habitantes).
                Tomamos uma mesa para nós próxima de um grupo de gringos (quem sou eu para falar). Ok, eram turistas internacionais. Suas roupas indicavam que não eram dali, com certeza. Suas cores de pele eram muito brancas para aquela região tão ensolarada. Não sei como, britânicos estavam em Monesterio fazendo sabe lá o quê. Você vai dizer: “ora, o que mais senão fazendo a peregrinação?”. Não, suas vestimentas era de turistões mesmo. Camisas floridas, sapatos com meias até a altura do joelho e bermudas estranhas, brega para dizer o mínimo.
                Aí que ocorre mais um evento de choque cultural entre pessoas de países distintos.
                Os turistas têm dificuldade de fazer seu pedido ao garçom que não fala inglês. Talvez qualquer outro turista teria usado a linguagem dos sinais ou o Google Translator para compreender o que cardápio dizia. O garçom se esforçou como pôde para receber o pedido, mas quando não se fala outra língua, ainda mais de outra raiz linguística, não há muito o que se fazer. Não estávamos em Madri ou Barcelona, estávamos em Monesterio, uma pequena cidade da Espanha profunda.
                Quando o garçom se retira, os tais turistas britânicos começam a reclamar do atendimento e do garçom. Acreditavam que por serem turistas, deveriam ser recebidos com sua língua pátria onde fossem, praticamente com um tapete vermelho. No entanto, eu me questiono se não é papel do turista fazer sua parte.
                Eu sei, você pode me questionar se na Holanda eu aprendi alguma coisa antes de ir ou então na Mongólia, países que visitei posteriormente ao caminho. Bem, daí, precisamos analisar caso a caso. A Holanda é um país bem mais desenvolvido que a Espanha, logo, seus habitantes falam o inglês. Já na Mongólia, eu sabia que o choque de cultura seria tamanho que a língua seria a menor de minhas preocupações. Sem contar que eu me divirto em comunicação gestual. Histórias não me faltam em viagens passadas na Rússia que desta vez eu iria visitar com um pacote básico de palavras para não fazer tão feio.
                A arrogância de certas pessoas me irrita, e ali não foi diferente. Pensei eu: “fiz meu trabalho de casa estudando o espanhol para chegar aqui e enrolar num portunhol”. Eu sei, o português e o espanhol são línguas primas, muito mais próximas entre si que do inglês, mesmo assim, o básico não custa. Ainda mais que o turista só ganha ao poder absorver toda uma camada de experiências que jamais teria se fosse a um país como um ser humano praticamente mudo. Ok, o dinheiro faz qualquer negócio, mas nada mais que negócios.
                Voltamos ao hotel esbranquiçado perto do começo da tarde, algo por volta das 17h30. Enquanto meus companheiros tratavam das suas coisas, saí para ir ao mercado mais próximo para comprar provisões para o dia seguinte.
                Nesta caminhada, meu corpo já havia esfriado, inclusive meu calcanhar. Ali comecei a sentir os efeitos colaterais de ter negado minha condição ao “escalar” o morro que nos levara até Monesterio horas antes. No lugar da dor, havia um travamento dos músculos em torno do calcanhar. Sim, eu estava mancando. Andava torto. Quem me visse, jamais poderia acreditar que eu poderia ser um peregrino que usa, obviamente, os pés para tal empreendimento.
                Fiz o que eu pude, comprei água, barras de cereal e frutas para o dia seguinte.
                Na volta para o hotel, vi o holandês das “mangas vermelhas” e seu amigo suíço, um sujeito de óculos, bem sorridente e comunicativo. Estavam numa mesa externa de um bar.
                Conversamos por um pouco tempo, o holandês ainda queimado de dias antes reclamava de seu joelho, o suíço de óculos me dissera que esse não era seu primeiro caminho até a cidade de Santiago de Compostela.
                Deixava minhas compras no quarto quando o senhor alemão bate à minha porta dizendo que iriam comer um jámon ibérico pata negra comedor de bellota.
                O senhor alemão vai num açougue local, compra algumas centenas de gramas dessa carne mundialmente famosa e sai. Sigo-o, como posso, até o outro lado da rua onde iríamos “farofar” num bar. Sim, comeríamos o tal jámon famoso na cara dura enquanto consumiríamos a cerveja local com limão, a tal radler. Estávamos na mesa externa, vendo o sol se pôr com a crème de la crème de porco com uma cerveja espanhola suavizada com um xarope ou suco de limão. Foi sem dúvida, naquele momento, que tivemos um estupendo quality time apesar de minha condição física.
                Saímos dali e fomos em direção ao restaurante Meson Casa Juan. Creio que o guia em alemão do caminho do senhor alemão havia sugerido tal lugar devido à qualidade de suas refeições. Por que não? A mim, só restava segui-los... Ou tentar.
                Nesta hora, senti o peso da fraqueza física. Eu estava mancando muito, eu dava um passo por vez e bem lentamente. Da minha panturrilha para baixo, estava tudo empedrado. Não havia articulações, músculos. Nada, só pedra. Ali bateu o desespero, “como poderia continuar?”.
                Foi difícil acompanhar meus colegas de caminhada até o restaurante. Eles precisaram parar por diversas vezes para que eu pudesse alcançá-los. Agora eu via que havia pago um preço altíssimo por ter negado minha condição.
                Enfim, chegamos ao tal restaurante que ficava a algumas quadras do hotel. Dentro dele, havia um aspecto todo amadeirado. O balcão do bar ficava à direita, as mesas ficavam ao centro e à esquerda. Havia uma lareira ao fundo. E como não poderia faltar, uma televisão de tela plana pendurada na parede mostrando algum esporte ou noticiário para quebrar o clima do ambiente.
                Pedimos o prato da casa, um churrasco de cerdo (porco – o que mais você esperava nessa terra dos famosos porcos espanhóis?).
                O lugar deveria ser realmente famoso, pois várias mesas estavam ocupadas, além do balcão do bar, onde os locais bebiam suas cervejas e comiam petiscos.
                Ficamos ali, não mais de 1 hora. O dia havia sido puxado e precisávamos repousar o máximo que podíamos.
                A volta foi outro suplício. Mais uma caminhada mancando fortemente até o hotel. Andei a passos de formiga até ele. Ao menos, no meio do caminho, pude reparar no céu que estava belíssimo com vários tons de azul. O silêncio era total. A noite parecia ser minha e das luzes das vielas (foto).
Tumblr media
                Num estilo meio Van Gogh, ou quiçá Monet, a cena da cidade à noite era uma pintura. A foto num celular de qualidade mediana e lente borrada aplicou um filtro sem querer.
                Adentrei ao meu quarto, arrumei a minha mochila para o dia seguinte. Fiz os banhos de água quente e fria para tentar recuperar minha perna direita. Passei o que pude do creme para desinflamar o calcanhar. Só um milagre poderia me recuperar para o próximo dia.
                Ajustei o alarme do celular para o dia seguinte. Não precisei de venda ou dos protetores auriculares para dormir. Estava só no quarto.                
Dormi cedo, pois estava podre com P maiúsculo sem saber o que o dia seguinte me aguardava. Ao mesmo tempo, aliviado, sabendo que minha missão estava cumprida e que desistir não seria um problema, mas uma possibilidade.
0 notes
jukjec · 2 years
Text
Post 15 - Diário do Caminho de Santiago de Compostela - Etapa 5 - Parte 2
Dia 5 - Parte 2
Data 03/05/2017
Etapa: El Real de la Jara -> Monesterio, Espanha
Distância: 20,7 km
Tempo: sol -> sol
Os gritos agudos vinham por trás de algumas árvores do lado esquerdo deste caminho rural. Qualquer pensamento era paralisado por essa trilha sonora do inferno de Dante.
Após alguns segundos, recompus-me para entender do que se tratava esse evento. Obviamente, não se tratavam de crianças chorando e gritando, mas de porcos da fazenda local que se dirigiam ao prédio do matadouro ao fundo do terreno. Por ter sido criado em cidades, os sons da natureza sempre me foram distantes, junto com a falta de talento para nomear os pássaros e plantas que me rodeavam ao longo do caminho.
O grunhido agudo dos porcos é terrível, o que me fez ter uma sensação mórbida, pois não se tratavam apenas um porco cujo som seria cessado rapidamente, mas de dezenas que se dirigiam em fila ao matadouro gerando um som sem fim da morte.
Tirei alguns minutos para refletir sobre essa nossa indústria alimentícia sem fim e que jura ser não-cruel. Talvez seja quando estamos distantes de boa parte da cadeia produtiva e nos limitamos a comprar confortavelmente as bandejas embaladas e etiquetadas nas câmaras frias dos supermercados, não refletimos nisso. Também pensei no consumo excessivo que temos pela proteína animal, no entanto...
Tal reflexão era hipócrita da minha parte porque meu almoço não seria nada mais do que um sanduíche com jamón ibérico convenientemente embalado e etiquetado que comprei por alguns euros num mercadinho no dia anterior.
Segui a caminhada ainda impressionado pelos minutos vividos anteriormente, à minha frente, estavam os outros 2 senhores do meu grupeto que não eram fáceis de acompanhar pelo motivo por vocês, caros leitores hipotéticos, já bem conhecido, a tal tendinite.
Por sorte os bastões me ajudavam nesta missão ao me impulsionar para frente nos trechos planos que, até então, era o perfil da etapa.
Não levou muito tempo, chegamos numa espécie de recanto com uma igreja redonda (Ermita de San Isidro) e um espaço para piqueniques ao redor dela. Aproveitamos para descansar um pouco antes de continuar nossa peregrinação.
Comi uma barra de cereal e uma fruta e bebi água, mas, antes disso, tive o cuidado de não pisar nas fezes de cabras que passaram por ali recentemente. Estávamos num campo minado com as “bolinhas” espalhadas por todos os lados feito um campo gigantesco de bolinhas de gude escuras. Eu sei, eu estava com minha bota de caminhada, mas se der para evitar, que se evite carregar consigo tais “presentes” da natureza.
Depois de uns 15 minutos de descanso, com os pés respirando fora das botas (dica importante, quando o pé respira, ele esfria, quando ele esfria e a meia seca do suor, as chances de formar bolhas caem. O objetivo é evitar pontos quentes nos pés), decidimos partir.
Cadarços amarrados, mochila nas costas (pouco mais leve), bastões às mãos e pronto para o trecho final da etapa do dia, infelizmente, o pior deles com elevação de quase 200 metros. Respirei fundo e lembrei do meu mantra, um passo por vez, uma etapa por dia, mas que dia seria...
Seguimos pela rota das flechas amarelas quando chegamos numa fábrica de jamón que possuía um bebedouro e um banco no lado de fora para peregrinos (ou clientes). Aproveitava para encher minha garrafa de água quando reparei que os bancos estavam tomados por peregrinos, não quaisquer peregrinos, eram espanhóis. Seriam aqueles do rádio alto enquanto caminham e da mulher que me fez cara feia por usar o banheiro mais bem “equipado” (banheiro feminino) no bar de Almadén de la Plata dias atrás? Não sei, fiz cara de paisagem, soltei um “hola que tal?” e um “buen camino” para ser notado, ao mesmo sem ser marcado.
Meus colegas me aguardavam no final dessa estrada rural que dava numa rodovia de asfalto, asfalto que seria sem fim e meu fim. Cruzamos a rodovia que nos levaria para o trecho de subida forte até Monesterio. Nenhum carro passando.
Para chegar no lado esquerdo da via, tivemos que pular uma barreira (guard-rail). Ali o nosso fotógrafo oficial teve uma ótima ideia de bater uma foto nossa, não bastava estarmos cansados da etapa, repetimos o gesto para que tal ato atlético pudesse ser registrado.
Continuávamos cruzando este trevo de asfalto quando...
Diante de nós ocorreu o inesperado. Havíamos ouvido histórias aqui e ali de alguém se ferir devido à atropelamentos e tropeços, mas desta vez, fomos testemunhas oculares de um evento nesta estrada.
Vimos uma mulher tropeçar sozinha no asfalto “plano”. Na verdade, o asfalto já estava pouco inclinado devido à subida até Monesterio, mesmo assim, não parecia ser para tanto, mas foi. Ela havia tropeçado no áspero asfalto e, talvez pela falta de equilíbrio devido à mochila e desespero momentâneo, a mulher caiu de cara no chão feito uma tábua. Os braços e mãos ela não os usou. Em plena estrada, não foi um carro que gerou o acidente, mas ela mesma num passo falso.
Felizmente, ela estava num grupo de alguns peregrinos que imediatamente a acudiram. O asfalto parecia ter um rio de sangue, será que teria tido um traumatismo? Ou somente um supercilio aberto gerando tal cena horrorosa do vermelho do sangue se misturando com o preto do asfalto?
Segundo felizmente. Um carro passou naquele momento, parou, colocaram a mulher no carro e subiram a estrada para buscar ajuda em Monesterio.
Estes últimos 4 parágrafos ocorreram em menos de 1 minuto. O susto foi muito grande e serviu para nos alertar para cuidados simples ao fazer o caminho. Creio que os bastões de caminhada a teriam ajudado para não perder o equilíbrio. Pelo menos, eu sentia uma confiança a mais em cada passo ao usá-los. No entanto, vai saber o que os bastões poderiam de fato ter ajudado neste acidente.
O sol estava forte, muito forte. Não havia nuvens no céu.
Depois da adrenalina de minutos atrás, seguíamos subindo a ladeira pelo lado esquerdo da carretera onde havia uma trilha no meio de um parco bosque que servia de guarda-sol deste sol imenso espanhol. Este bosque estava localizado entre a rodovia principal e uma estrada secundária à esquerda.
Não muito tempo depois, decidimos fazer uma longa pausa para almoço e descanso antes da investida final ao cume desta ladeira. Pela primeira, e única, vez, utilizei meu “tapete” isolante térmico para alguma coisa. Desenrolei-o para servir de assento para nossas bundas neste terreno de grama, terra e pedras. Um dos itens mais inúteis que vim a comprar cogitando que algum dia pudesse vir a dormir no lado de fora de albergues. Jamais!
Já comentei (acho que sim) que os aposentos de tais albergues de peregrinos são simples, modestos e até rudimentares, mas entre uma cama ruim e o solo pobremente acolchoado, a cama ruim ganha. Sei que poderia ter experiências espirituais em tal evento, bem como nada mais do que uma noite mal dormida ao relento e no sereno.
Enquanto eu comia meu sanduiche de jámon ouvindo os grunhidos em minha cabeça e tomava litros de água para recompor o corpo, sem antes tirar as botas para que os pés pudessem respirar, o holandês fotógrafo batia fotos formidáveis de gaviões que rodeavam nossas cabeças quentes do sol deste belo e infernal dia. Difícil de explicar, mas o sol europeu arde e queima.
Depois de uns bons 20 a 30 minutos descansando, decidimos partir. Enrolei meu isolante térmico e o ajeitei na mochila. Pus as botas. Preparei os bolsos com barras de cereais. Distribuí a água entre as garrafinhas que possuía comigo. Ajustei a mochila no corpo e ... fui as trancos e barrancos.
Começamos a caminhar e em breve cruzamos a rodovia secundária para que ficássemos à esquerda de qualquer via rodoviária.
Já não havia mais árvores para nos proteger do sol.
A ascensão era dura. Quase 200 metros de desnível positivo ao longo de 5 quilômetros com carros e caminhões servindo de trilha sonora a uma cabeça cheia de dores provenientes do pé direito. Ajustava como podia a pisada, o pé, a perna, o joelho, a forma de andar para minimizar o tendão travado pela fadiga. Se no plano já era difícil, na subida, a dor era ainda pior.
Com a possível primeira desistência do caminho ainda na mente, parecia que esse fantasma estava me rondando na subida sem fim até Monesterio. Quem diria que a peregrina iria tropeçar no asfalto plano e bater seu rosto no chão? Aquele rio vermelho no escuro asfalto ficou gravado na memória.
Bem, isso era passado, eu já tinha o suficiente para me preocupar. Uma tendinite no calcanhar em plena subida no asfalto duro e quente, e quase 30 graus Celsius espanhóis no lombo, sem contar os 15 quilômetros anteriores percorridos para aquecer o corpo.
Pela primeira vez pensei em alto e bom som: “chegou a hora de desistir”. Já não era mais divertido, ao contrário, era doloroso fazer o caminho e as montanhas não mudariam de lugar para me ajudar neste momento, nem em etapas futuras. Neste jogo de tudo ou nada, eu pendia para o nada.
A dor no pé era insuportável, uma dor dilacerante no tendão que fazia questão de me lembrar em pé sim, pé não, pé sim, pé não... apesar de meus bastões de caminhada silenciados.
O que fazer?
A dupla dinâmica (o senhor alemão e o fotógrafo holandês) seguia com certa dificuldade a minha frente...
Até onde iria esse suplício?
0 notes
jukjec · 2 years
Text
Post 14 - Diário do Caminho de Santiago de Compostela - Etapa 5 - Parte 1
Dia 5 - Parte 1 Data 03/05/2017
Etapa: El Real de la Jara -> Monesterio, Espanha Distância: 20,7 km Tempo: sol -> sol
O despertador de meu celular toca, escuto-o apesar de usar os tampões de ouvido. Acordo muito bem, descansado e inteiro, bem inteiro... menos o calcanhar direito. Caro hipotético leitor, acostume-se, de agora em diante será ladeira abaixo, bem, na verdade, ladeira acima.
Tumblr media
Irei poupá-los de spoilers, mas já dando alguns, quem diria que ao levantar da cama teria um dia de sangue, suor e lágrimas. Ouviria o choro de “crianças”, veria um acidente na estrada sem carros, “escalaria” meu calvário, carregaria minha cruz em forma de tendão inflamado e encerraria meu camino (vocês devem estar se segurando na cadeira para chegar no final desse relato). Mas sigamos com a ordem dos fatos conforme se sucederam.
                Visto minha calça-bermuda, minha camiseta de mangas longas de cor acinzentada, ponho o “cachecol” no pescoço, embrulho meu lençol de seda, enrolo meu saco de dormir, ponho as meias duplas sem costura, visto a pesada bota de caminhada, confiro o equipamento, guardo as barras de cereal no bolso direito da perna da calça, celular num bolso, outro vazio.
                Deixo tudo arrumado na cama e decido ir tomar o café da manhã com meus companheiros de peregrinação. À sala de jantar, ou café da manhã, estava ruidosa com as vozes espanholas falando no último volume. Muito falatório, gargalhadas e a televisão, ela sempre lá, de alta definição, sintonizada em algum jornal matinal.
                Nesta hora ocorre um dos momentos “brutos espanhóis”, creio que nesse nível, 2 vezes. Sim, os espanhóis são famosos por serem extrovertidos, intensos e diretos. Creio que a língua ajude muito nisso pela simplicidade da fala, cortando os pronomes pessoais retos como nós também o fazemos, e pela pressa que os espanhóis parecem ter ao falar como se não lhe restassem mais do que 5 segundos de vida.
                Chego à sala das refeições onde sou recebido por café preto, tostadas, mantequilla y mermelada. Tudo se desenrolava bem até que vi meu colega holandês fotógrafo e bebedor de Coca-Cola pedir por um suco de laranja. Pensei eu, “nada mal para hidratar logo pela manhã”. “Un jugo de naranja, por favor”, falo em alto e bom som. O dono da casa, aquele senhor com quem conversei por quase 1 hora sobre tomates no dia anterior, fica possesso e tem um ataque de fúria. Ele me diz que o suco é muito caro e que se fosse me dar o suco, todo o lucro com a minha estadia iria pelo ralo (não sei as palavras exatas, mas entendi muito bem). Todos olham para mim, devo ter ficado mais branco que já sou. Gelo (verbo, não substantivo) imóvel, mudo e sem reação. Nunca insinuei que queria o bendito suco natural amarelo da fruta com casca laranja de graça. Pagaria sem qualquer problema, pois não deveria custar mais que alguns euros. Mas o mal-estar já estava criado. Para que querer concertar o que já estava destruído. Escovo meus dentes, pego minha mochila e me dirijo para o umbral da grande, antiga e fresca casa sabendo que minha fama era de unha de fome e sujeito que leva pousadas privadas do caminho à falência. Santiago era minha testemunha que minhas intenções eram boas em consumir mais serviços do local. Paciência...
                Vocês devem estar se perguntando sobre o segundo caso de bruteza espanhola. Não vou dar spoilers, pois tal evento não tardaria de acontecer diante dos meus olhos incrédulos. Ah, Espanha.
                Antes de sairmos para a caminhada de quase 21 kms, olhamos cada um seu guia de caminhada. Caminhada quase plana até o quarto final onde uma forte elevação nos desafiaria. O sol estava a pino e com vontade de queimar seres deficientes em melanina. Protetor para que te quero.
                Hoje, logo no começo da caminhada, havia um importante evento geográfico, mudaríamos de província pela primeira vez. Sairíamos da Província da Andaluzia para adentrar as planícies da Extremadura.
                Partimos para Monesterio, cidade famosa por seu jámon (de porco, pleonasmo) e nada se ouvia vindo de meus bastões de caminhada. Exceto um “som silencioso” de borracha batendo contra o solo. Sim, não iria mais incomodar aqueles que me rodeavam porque as ponteiras foram revestidas como explicado ontem.
Ao sair da cidade, não tardou muito para vermos as ruínas do Castillo de las Torres à nossa direita (ver fotos, todas minhas). A câmera de meu celular não confere suspiros, mas as fotos de meu colega holandês fotógrafo já dão outro grau ao patrimônio espanhol que ali estava de pé.
Tumblr media
                O outro colega de caminhada, o senhor alemão, tirou de um dos milhares de bolsos de sua jaqueta uma pequena gaita de boca e com ela tocou uma música. Agora tínhamos tudo, um grupo de caminhantes, um fotógrafo e um músico. A música que ele tocara era uma espécie de hino do caminho de Santiago de Compostela. Anos após enquanto escrevo essas memórias, não serei leviano em dizer que lembro da melodia, pois não lembro mesmo. Entretanto, outra “música” veio nos atormentar minutos depois.
Tumblr media
                Estávamos passando por belas paisagens do interior espanhol, pequenas colinas, campos e pequenos bosques seguiam de muros de nossa estrada. Após a melodia da gaita de boca, era a vez dos passarinhos darem a sua contribuição ao cantar para esse trio de peregrinos com suas mochilas.
                Meu calcanhar direito não dava trégua, o que gerava naturalmente um certo distanciamento de meus colegas. Ficava para trás, não muito, mas o suficiente para vê-los como bonequinhos a minha frente.
                Um passo por vez, uma etapa por dia. Esse era o mantra que eu repetia frequentemente para manter o foco no objetivo maior, que era chegar em Santiago de Compostela, a cidade-alvo do camino. Será?
                O destino não tardaria de me mostrar que planejar e fazer são verbos primos de décimo quinto grau. Diferente do que se imagina, o caminho não é um exercício pesado. Por vezes cansativo, mas em 80% do tempo, nada mais do que uma caminhada com uma mochila pouco pesada em trechos planos ou com inclinação leve. Não tenha medo de realizar tal feito caso tenha vontade, minha situação era “única” e não era a regra. Basta ter vontade e estar consciente de seus limites físicos (mas antes vá num médico só para garantir).
                Como viria a ver no futuro, é uma caminhada e corridas seriam punid... Que som era esse? Ouço gritos estridentes, chorosos e desesperados. Na fração de segundo seguinte penso: “como podem estar torturando crianças na Espanha em pleno século XXI!”.
Continua...
0 notes
jukjec · 3 years
Text
Post 13 - Diário do Caminho de Santiago de Compostela - Etapa 4 - Parte 3
Dia 4 – PARTE 3
Data 02/05/2017
Etapa: Almadén de la Plata -> El Real de la Jara, Espanha
Distância: 16,6 km
Tempo: sol -> sol
Tumblr media
Caminhamos um pouco mais por uma área arborizada, não muito densa, de tipos de árvores não muito diferentes umas das outras, provavelmente, uma floresta “criada” pelo homem para algum tipo de cultura específica. Sem dúvida, muito distante daquilo que olhos brasileiros estão acostumados a ver nas ricas, fechadas e verdejantes florestas da Mata Atlântica.
O caminho seguia por uma estrada de terra até que bem larga, provavelmente para permitir o tráfego de veículos rurais. Não faltou muito para que entrássemos no trecho urbano, porém, sem antes passar por pequenas propriedades rurais destinadas às lavouras.
Estávamos num pequeno elevado, podíamos ver o pequeno núcleo urbano abaixo de nós. Neste término de caminho, seria “ladeira abaixo” e nunca a expressão “para baixo, todo santo ajuda” veio tanto a calhar, aqui, ao menos, Santo Tiago, ou Santiago, ajudou.
A primeira construção no lado esquerdo do vilarejo adentrado pelo caminho/rua que utilizamos era o albergue municipal. Era uma construção de 2 pisos, suas paredes eram brancas com detalhes em amarelo, o que era um prenuncio do que iríamos ver na cidade toda. Admito que senti uma sensação não muito boa ao ver o albergue local do peregrino. Havia vários homens no lado de fora, o que me deu uma sensação de que o local era apertado já que estavam ali. Não entrei para comprovar meu sentimento ou intuição.
Hoje, ao escrever esse diário anos depois da peregrinação, posso utilizar o Google Maps e o Street View para me ajudar a relembrar locais, estradas e prédios, vi o prédio do albergue com outros olhos. É, sentimentos são únicos e de momento, são fotografias. Com o tempo talvez as sensações mudem.
Creio que o que me deu na época, foi ver as grades nas poucas janelas no segundo piso da construção. Logo veria que isso é comum em todas as janelas de todas as casas do interior espanhol. Não sei se são de fato necessárias na Espanha, mas vai saber. Também, longe de mim, como brasileiro, querer criticar isso quando temos muros altos, cercas elétricas, arame farpado e toda parafernália tecnológica para nos manter “seguros”.
De toda forma, pouco importava a condição do albergue ou minhas sensações ao ver a fachada do albergue, pois já havíamos feito uma reserva na pousada privada da Molina. Deixamos o albergue municipal para trás e levei comigo um alívio momentâneo.
Seguíamos ladeira abaixo por este “corredor” de casas coladas nas vielas estreitas do vilarejo com estreitas calçadas separando a rua da porta das casas. Para quem já foi para Tiradentes em Minas Gerais, pode ter uma sensação do que é andar por lá.
Não sabíamos exatamente onde ficava a pousada da Molina, tínhamos que seguir até o centro do vilarejo e perguntar. No meio do caminho até lá, vimos uma placa em frente a uma casa no lado direito deste “corredor” que ofertava vagas para peregrinos. Seria ali? Um senhor com semblante sisudo ouve o nome “Molina” e desfere um “no!” (não). Ok, sigamos em frente. O lugar era pequeno e não deveria ser difícil encontrar a tal pousada privada.
Pegamos direitas e esquerdas naquele mini labirinto espanhol de casas brancas quase sempre iguais com fachadas planas, portas verdes ou marrons com janelas gradeadas. Não lembro muito bem, só sei que chegamos, enfim, à pousada da Molina que ficava no lado esquerdo da viela (calle Real, no Google Street View ainda se pode ver a placa do Alojamiento Molina pendurada na fachada).
Como você pode imaginar, a pousada da Molina era de fachada plana, branca e com portas grandes. Momento de esclarecimento, já falei muito em cidades brancas, mas não o porquê. Como já havia sentido e iria sentir ao longo do caminho, a Espanha é um país muito quente com temperaturas altíssimas. Assim, a cor branca das casas é uma das “tecnologias” utilizadas pelos locais para refletir os raios solares que escaldam os espanhóis, turistas e seus peregrinos.
A outra tecnologia é a espessura das paredes, não estou exagerando em dizer que as paredes da pousada da Molina, e de todas as demais, deviam ser de meio metro. Sim, eram muito grossas para que o frescor interno não escape. Basicamente, as casas eram uma geladeira natural de paredes grossas em vez de possuir sistemas de ar condicionado forçando baixas temperaturas. O que faz todo o sentido já que aquelas casas deviam ser centenárias utilizando o que havia disponível a mão, tinta branca e muitos tijolos.
Cruzando o umbral da grande porta da pousada da Molina, andamos por um corredor que nos levou até uma sala de jantar grande juntamente com sua grande mesa. No lado esquerdo, ficava uma grande cozinha e depois os cômodos da dona da pousada e de sua família, creio que seu filho e nora moravam ali também. No lado direito da sala de jantar, havia uma porta que levava para outro corredor. À direita no fundo, o quarto que iria dividir com outros 2 peregrinos, incluindo o holandês fotógrafo. No meio do corredor, havia um cômodo que havia sido transformado num quarto, pelo menos a mim pareceu, ali o senhor alemão ficou. À esquerda do corredor havia outros quartos, talvez 2 ou 3.
Depois deles, havia 2 portas à direita que eram de 2 banheiros imensos. Naqueles espaços poderiam dormir facilmente alguns peregrinos com muito gosto. Os banheiros eram amplos, com louças antigas, chuveiros dentro de boxes, azulejos, espelho e janelas. Sim, os banheiros possuíam janelas grandes para o corredor, mas deviam ser “jateadas” e havia cortinas também. Nada de janelinha basculante para o lado de “fora”. Lembrando que as casas são coladas parede com parede, logo, todas as janelas ou eram viradas para a rua através da fachada frontal ou viradas para dentro, como corredores ou algo mais charmoso a ser retratado em breve.
Seguindo por este corredor, ao fundo, a área de serviço.
Voltando à sala de jantar, agora olhando para frente, havia o “charmoso” átrio da casa ou uma espécie de quintal ou pátio. Havia algumas mesas próximas à porta da sala de jantar, como se fosse um deck ou grande varanda coberta por um toldo, depois um pequeno declive com o corredor dos banheiros e área de serviço à direita. Um paredão à esquerda (que vizinhava com a próxima casa) e uma pequena edícula aberta. Para padrões brasileiros, diria que era uma área de churrasqueira, mas não vi nenhuma ali. Servia de depósito para coisas que não deveriam caber na casa. Ah sim, no fundo também havia um espaço para lavar a roupa. Importantíssimo varal e seu tanque. Esse átrio possuía várias plantas, uma grande árvore e uma horta.
Agora que a pousada estava mapeada, vamos aos acontecimentos. A Molina nos recebeu com o calor espanhol típico, foi extremamente hospitaleira, ela nos mostrou o lugar e falou das regras da pousada. Sem perder tempo, tivemos nossa credencial carimbada.
Ela nos apresentou aos seu marido e família que morava na casa. Deixamos nossos pertences em nossos quartos e, como de costume (mesmo que recente), fomos beber uma cerveja para o relaxamento pós-chegada na pousada e término da etapa do dia. Como a etapa era relativamente curta, perto dos 17 quilômetros, devemos tê-la feito perto de 4 horas. Portanto, a chegada na pousada deve ter ocorrido perto do meio-dia. Uma das fontes de renda das pousadas privadas além da acomodação são os extras como roupas lavadas e serviços de bar. Sim, sentamo-nos em uma das mesas do átrio e tomamos uma cerveja local, bem, o senhor alemão e eu, já o holandês fotógrafo foi na sua tradicional Coca-Cola.
Batíamos papo numa mesa enquanto 2 outras mulheres europeias conversavam em outra. Para minha insatisfação, fumavam muito e baforavam na gente. Apesar do lugar ser aberto, o cheiro vinha até nós.
Depois de conversar por quase meia hora, ou talvez mais, o senhor alemão saiu e o holandês fotógrafo olhava as fotos tiradas deste dia. De repente, chegou o marido da Molina com um cesto cheio de legumes e verduras. Não lembro se passou por ali ou se quis entrar na conversa, só sei que ficamos mais 1 hora falando sobre tomates e seus tipos, como o rosa, coração de touro e o chifre de boi, além de falar de vinhos também. Foi uma conversa bem agradável que iria se contrapor com a experiência da manhã seguinte. Ai, esses espanhóis.
Depois do corpo já hidratado, hora das pequenas obrigações do dia. Tomar banho em um dos gigantescos banheiros por uns minutinhos a mais daqueles tomados nos albergues públicos para relaxar o corpo e tentar recuperar o calcanhar direito que seguia berrando.
Em seguida, fui até o fundo da casa para lavar as meias, cueca e camiseta do dia com sabão no tanque e, por fim, pendurar no varal para secá-las, algo que ocorria muito rapidamente com o calor, sol e secura daquela região hispânica.
Meus colegas de caminhada já estavam descansando após suas obrigações diárias. Aproveitei para fazer compras. Havia algumas coisas na minha lista, algumas rotineiras como comida, mas havia um item que era indispensável para minha paz auditiva.
Saí e busquei pelas vendas próximas, comprei as provisões das próximas 24 horas. Claro, jamais carregue peso desnecessário já que em todas cidades você poderá se reabastecer. Seja leve e leve só o necessário (que belo trocadilho).
No quesito comida, comprei frutas, como de costume, maças e bananas pela praticidade de poder comer a qualquer momento sem se preocupar com embalagens ou preparos. Também comprei os jamóns locais (guarde essa informação para a etapa de amanhã) e alguns pães para sanduíches improvisados.
Na parte da hidratação, comprei água, muitíssimo importante, pois o calor e a secura do ar suga nossa água corporal. Eu me acostumei a levar comigo sempre 3 litros de água distribuídos em algumas garrafas para equilibrar o peso da mochila durante as várias horas diárias de caminhada. Duas de meio litro a 1 litro nas laterais da mochila e uma maior dentro dela.
A segunda parada seria para uma compra mais do que necessária, encontrar ponteiras de borracha para meus bastões de caminhada e dar um fim no som infernal do tec, tec, tec... Encontro uma venda que me pareceu ser aquelas lojas do passado, bem antes das lojas de produtos chineses, onde se encontra de tudo. Pago alguns euros em cada ponteira e saio contente.
Hora de voltar para a pousada da Molina e testar as ponteiras o quanto antes.
Na pousada, instalo as ponteiras nas pontas dos bastões. Embora pareçam de qualidade mediana, elas dão conta do recado abafando o som das pontas metálicas dos bastões. Como já comentei, em trechos de asfalto, o som seco dos bastões contra o piso é no mínimo irritante, para mim e para aqueles ao meu redor. Agora estaria num modo silencioso.
Vejo que meus companheiros de grupeto de caminhada estão acordados e despertos. Decidimos ir a um bar do vilarejo branco para mudar de ares e ver um pouco da vida espanhola do interior.
Saímos da pousada, pegamos a direita e rumamos ao centro (???) e, após algumas centenas de passos na mesma rua da pousada da Molina, chegamos a um bar que ficava numa mini quadra com as ruas limitando suas paredes. O bar era o El Chati(informação que obtive graças ao Google Maps depois de muitas explorações virtuais).
Este bar/restaurante estava numa construção de 2 pisos, ao lado dele, outro bar/restaurante. Entramos, nas paredes, azulejos coloridos até meia altura, depois uma pintura até o teto que geralmente era coberta com vários quadros e fotos. No salão, várias mesas, ao fundo, o balcão do bar também azulejado e com tampo de aço inox, e uma escada que levava ao piso superior atrás dele. O El Chatiestava tomado por locais, na maioria, homens de média e avançada idade.
Éramos estranhos ali, mais altos e muito claros em tom de pele do que a média, sem contar os traços faciais discrepantes e nossas vestimentas que entregavam nossa “profissão” temporária, peregrino. Sentamos numa mesa, pedi uma caña(possivelmente uma Estrella Damn, Estrella Galicia, San Miguel ou Cruzcampo), o senhor alemão, uma radler, o holandês fotógrafo, uma Coca-Cola.
Como (um ótimo) costume espanhol, nossas bebidas foram acompanhadas de tapas (tira gostos), para minha alegria, as deliciosas e frescas azeitonas, provavelmente, oriundas das plantações locais.
Como já reportei, os bares/restaurantes vistos até então possuem algo em comum, por mais modestos que sejam, eles exibem grandes televisões de tela plana em várias paredes do recinto. Ali não era diferente. Os televisores estavam ligados para que os locais pudessem apreciar um dos esportes nacionais, as touradas.
Os senhores, e os mais novos, assistiam às telas totalmente compenetrados como se estivessem sido hipnotizados. Por incrível que pareça, havia silêncio em meio àquilo até que o toureiro fizesse algum movimento naquela valsa da morte, seja a dele ou a do touro.
A cada estocada da espada (eram várias) no lombo do touro, a torcida reagia. Em termos crus, estávamos vendo um açougue esportivo transmitido ao vivo de alguma cidade maior. Não vou julgar, pois compreendo muito bem e respeito as diferenças culturais entre os países, mas era difícil de não sentir um mal-estar naquele balé sanguinário esportivo.
Minha torcida era para que os 2 entes daquela dança saíssem ilesos, porém, parecia não haver graça na minha ideia. Quando criança, via desenhos que retratavam a tourada como um simples olé para lá e para cá com aquele pano vermelho sendo balançado para atrair o touro. Era mais que isso, deveria haver um desfecho mortal.
Lembrei de quando via lutas de MMA na tevê, que foram poucas, o que prendia minha atenção era ver em que estado sairiam os lutadores. A luta é bárbara, a tourada é bárbara, no entanto, ambas embaladas em seus próprios rituais e regras. Um colega uma vez me disse que a tourada representa muito a sociedade e cultura espanhola, intensa, bruta, emotiva e com fogo nas entranhas. Bem, viria a passar quase 50 dias na Espanha e talvez isso faça sentido.
Continuamos na nossa toada de beber algumas cervejas e observar o que ocorria ao redor. Como a casa estava cheia, eu ia até o balcão pegar meu copinho de cerveja aguardando que fosse agraciado com mais algum tira gosto.
Creio que tenhamos ficado ali entre 1 a 2 horas, o pescoço já doía, pois, as tais televisões ficavam no alto, próximas do teto. Depois daquele estudo informal sociocultural etnográfico, decidimos voltar para a pousada. Já estávamos perto do final da tarde, se bem que a tarde aqui enganava já que o anoitecer era bem mais tarde. O sol estava alto ainda, deviam ser 5 horas da tarde.
Na pousada, perguntamos para a Molina por um lugar para jantar. Ela prontamente indicou La Casa de La Cultura. Ok, demos um tempo em nossos quartos antes de nos dirigir para tal restaurante. O quarto estava friozinho a ponto de dar certo desconforto. Dentei um pouco e usei o saco de dormir como cobertor.
No entardecer, caminhamos (eu com muita dor) pelas estreitas calçadas de El Real de la Jaraaté o restaurante. Chegar lá seria fácil, bastaria pegar uma direita e depois uma esquerda. O restaurante ficava num prédio de esquina, suas calçadas eram um xadrez de lajotas brancas e vermelhas. Para tornar a experiência mais agradável, o estabelecimento possuía 2 ambientes, o aberto e o prédio fechado. A escolha foi fácil, ficamos no belo ambiente externo. O céu limpo e toldos coloridos sobre de nós, árvores, arbustos e muros com grades ao nosso redor, além de 2 portões nas 2 ruas de acesso ao local.
Embora fosse modesto como todos os demais prédios da região, o local parecia um sonho. Senti-me num filme. Sem dúvida, era um privilegiado por estar ali mesmo que tendo uma pequena cruz no pé direito.
Escolhemos uma mesa próximo à esquina e logo o garçom veio nos atender, pedimos as bebidas (não vou descrevê-las pois você já deve saber qual cada um pediu, na verdade, a bebida pode fazer parte do menu, então, pode ser que eu tenha escolhido uma taça de vinho em vez de uma cerveza) E, em seguida, foi-nos apresentado as opções do menu do peregrino.
Como entrada, a salada, tipicamente, monstruosa em tamanho. Depois, poderíamos escolher entre cerdo(porco) e pollo (frango) acompanhado de batatas fritas. Por fim, a sobremesa, não me recordo das opções mas sei que tive preocupação com minha intolerância à lactose. Conhecendo minha gula, devo ter fechado os olhos e comi o que veio, seja pudim, seja sorvete ou algum doce local.
Havia um grupo ocupando várias mesas do outro lado deste pátio com diversas mulheres que conversavam no típico volume espanhol, em outras palavras, berrando. Deveria haver quase dez delas tornando o ambiente quase ensurdecedor, apesar de estarmos num ambiente aberto.
Várias vezes a conversa da minha mesa com meus colegas de caminhada perdia o fio da meada. Em uma dessas conversas, lembro de termos falado da grande mulher dinamarquesa que nos acompanhou dias atrás. Aproveitei para contar a história de quando ela se abriu para falar de sua primeira experiência no caminho anos atrás e sua pedra largada ao término do caminho.
O silêncio, pelo menos em nossa mesa, deu prosseguimento à conversa. Penso que todos nós refletimos por alguns instantes.
Já estava escuro, eram passadas as 9 horas da noite, decidimos pagar a conta e voltar para o alojamento. O valor do menu do peregrino era entorno de 10 euros, diria que é a média. Em alguns lugares poderia chegar a 8, já em outros, alcançava quase 12.
Voltamos caminhando pela pacata El Real de la Jara em meio a seu silêncio, vielas desertas, carros estacionados em frente das casas coladas aos seus vizinhos, ruas de pedra, calçadas que mal comportavam 1 pessoa, luzes ao alto em lanternas presas às construções, uma paz sonora, visual e mental que relaxaria qualquer um antes de se deitar para mais um dia de caminhada (foto).
Bem, só não relaxou meu pé. Esse doía e muito. Diria que estava praticamente mancando. Conforme passado pela médica de Sevilha, seguia tomando anti-inflamatórios, passava um creme e fazia os banhos de água quente e frio. Porém, a teimosia demorava a aceitar que só uma atitude poderia resolver isso.
Mas no momento, o que importava era o passo da vez e a etapa do dia. A última havia ficado para trás, já o primeiro, eu sentia a cada dois passos.
Chegamos na pousada. Escovei os dentes, preparei a mochila para o dia seguinte e segui para o átrio com meu pequeno caderno laranja e caneta para anotar as memórias do dia em uma página e meia, algo que deve ter levado uns 30 minutos. Uma das mulheres europeias estava lá, pelo o que pude escutar dela falando, deveria ser holandesa. Infelizmente, voltara a fumar, o que me deixou irritado.
Volto para meu quarto, o holandês fotógrafo estava lá juntamente com o outro ocupante do quarto. Verifiquei o horário despertador no celular, coloquei meu “pijama”, enleei-me no lençol de seda dentro do saco de dormir, pus os tampões no ouvido, guardei meus pertences no saco do saco de dormir e sem perceber, havia dormido.
0 notes
jukjec · 3 years
Text
Post 12 - Diário do Caminho de Santiago de Compostela - Etapa 4 - Parte 2
Dia 4 – PARTE 2
Data 02/05/2017
Etapa: Almadén de la Plata à El Real de la Jara, Espanha
Distância: 16,6 km
Tempo: sol -> sol
Tumblr media
              O guia impresso que carregava dizia que era a Casa de la Postura, um pequeno palacete com jardins ornamentais ao redor dele além da grande piscina. Deveria ser do ricaço da cidade, ou região, talvez dono das fazendas de criação de porcos que passei ou iria passar.
               Cruzamos a pequena ponte e caminhamos por um leve aclive que surgia logo no começo da etapa. Neste ponto, meus colegas de grupeto decidiram fazer mais um vídeo. Como já havia dito, eles estavam literalmente se divertindo enquanto realizavam essa peregrinação rumo à Santiago de Compostela e, como saberia em breve, além dela.
               Desta vez, eu os ajudei na gravação do vídeo muito bem-humorado onde um deles surgia por trás da elevação com talheres de plástico, esses de acampamento, em punho em busca dos famosos cerdos ibéricos (porcos negros e corpulentos da região) comedores de bellotas (bolotas ou castanhas que caem das castanheiras), sim, os porcos são 100% veganos. Deste porco é tirado o mundialmente famoso e delicioso jámon ibérico (presunto ibérico) ou de pata negra, creio eu pela cor do porco, que eu viria a provar num futuro breve.
               Eu já havia ouvido falar do jámon espanhol, mas não estava nessa ânsia de comer esse presunto. Estava aberto ao que estivesse disponível no caminho e região, mal sabia eu que eu caminharia pela(s) capital(is) do jámon ibérico (toda cidade na região se considera a capital desta iguaria). Meus colegas fizeram a lição de casa e pesquisaram por onde passariam antes de fazer a caminhada. Já eu, eu estava na toada do filósofo Zeca Pagodinho: “deixa vida me levar, vida leva eu...”.
               Depois de algumas tomadas, a dupla ficou contente com a gravação onde eles trocaram palavras em alemão num diálogo incompreensível para mim. Inclusive, após devolver a câmera, disseram que na próxima, eu faria parte do vídeo também. Ok, por que não? Não era famoso no Brasil, quiçá meus 15 minutos de fama fossem ocorrer em terras germânicas.
               Agora um spoiler, eu não lembro muito desta trilha, exceto por 3 coisas. A dor no calcanhar direito que me fez andar boa parte do caminho alguns metros atrás de meus companheiros (foto). Uma conversa longa que tive com o alemão sobre sua jornada neste caminho e seus planos futuros nele (que falarei dessa conversa mais para frente, daqui um ou dois parágrafos), e pelo final da etapa que será dito após vários parágrafos.
               O pouco que eu lembro é que esse trecho foi muito ondulado, o sol nos acompanhou em todo o trajeto, felizmente havia muitas árvores oferecendo sombra a estes peregrinos, novamente a natureza foi exuberante decorando as margens deste caminho rural com mais jardins naturais de flores coloridas e desabrochadas com o recente começo da primavera, os rios eram numerosos nesta etapa (nada de lavar o pé com água gelada!) e tivemos que fazer mais uma prova mental e física para transpor um mini calvário após um vale.
               Como já comentei, boa parte do caminho se faz em vias rurais que interligam fincas (ou fazendas) e por causa disso, caminhar aqui é muito bom porque o piso é plano, de terra e não oferece risco para tropeços. Único “problema” são as micro pedrinhas que podem entrar entre seu pé e as sandálias, caso decida as utilizar. Passamos por algumas propriedades privadas que necessitavam serem adentradas através de cancelas (porteiras) no bom modelo “pode passar, mas não esqueça de fechar a porteira”.
               Falemos, então, da conversa com o senhor alemão.
               Esses senhores começaram o caminho de Santiago muito antes de Sevilla, não satisfeitos com os 1000 quilômetros da Vía de la Plata, eles fizeram um aquecimento de 190 km partindo do litoral sul da Espanha. Provavelmente, saíram de Málaga. Por quê? Muito simples, entre essas 2 cidades há o mítico Caminito del Rey.
               Este caminho do rei é uma trilha elevada feita há mais de 100 anos encravada em paredões de montanhas. Soa perigoso? E é! De tão perigoso, o caminho foi fechado, o que frustrou esses 2 jovens senhores aventureiros que me acompanhavam.
Parece que recentemente, a trilha foi reaberta utilizando-se de materiais modernos e estruturas seguras para que os seus caminhantes tenham total segurança, o que também deve ter frustrado muita gente. O caminho era tão perigoso que várias mortes foram reportadas enquanto aventureiros tentavam passar por trechos em que a trilha havia sucumbido. Quem a cruzava buscava adrenalina e aquele troféu invisível que nos guia por objetivos sem sentido. Bem, quem sou eu para julgar. Estava numa empreitada de dar milhões de passos cuja metade seria com um pé doente. Ao menos essa teimosia logo seria vencida e o meu troféu invisível seria jogado à margem do Camino. Mas vamos por partes.
               Depois deste esquenta partindo da costa sul espanhola, viria o Caminho de Santiago de Compostela com sua curta distância milhar quilométrica e, não satisfeitos, os 2 senhores continuariam caminhando da cidade-destino até a cidade galega de Fisterra (ou Finisterra ou Finisterre em castelhano) cuja origem vem do latim quer dizer “fim da terra” já que se pensava que esse ponto era o término do continente europeu em seu lado ocidental. Para muitos, este é o verdadeiro término do caminho. Claro, por que não caminhar mais 80 km depois de tantos passos dados em terras espanholas?
               Apesar da piada, algo me dizia que eu deveria fazer parte disso. Assim, como o vento muda de direção sem motivo aparente, eu decidi fazer parte disso. Isso iria alongar minha jornada no caminho santo por mais 3 a 4 dias, dias que eu usaria para fazer turismo na capital portuguesa como descanso pós-peregrinação antes de pegar o avião de volta para a França, cujo bilhete já estava comprado e servia como limite temporal neste trecho da jornada.
               Sim, assim como meus companheiros de jornada na Vía de la Plata, eu havia feito um esquenta de mochilão antes do Camino e o continuaria por mais 2 meses aproximadamente, mas isso é história para um outro livro.
               “Deixa a vida me levar...”. Havia um plano num pedaço de papel e daí? Poderia mudar conforme meu bel-prazer, seja por oportunidades que surgissem no caminho, seja por obstáculos que despencassem na vida. Como já estão cansados de escutar (ou ler), o caminho é vida, a vida é o caminho.
               Havia me convidado para tal jornada, algo que meus companheiros não se opuseram de forma alguma. Sem saber (e prever o futuro), a vida (e o caminho) se oporia de forma latejante e longa em breve.
               Seguimos caminhando pelo belo interior espanhol num túnel de altura infinita, belas propriedades beirando o caminho rural e o belo céu azul como teto de nossas meditações.
              O trecho final do caminho deste dia possuía vários cotos de caza (propriedades para caça de animais). Achei que isso não existisse por aqui, se bem que comparado ao que veria daqui a pouco na televisão, esse hobby era até condizente com a cultura local (sem julgamentos ou sim?).
              Chegou o final da etapa e a minha última lembrança destes 16,6 km de caminhada. O guia impresso indicava que ao término da etapa haveria um marco em memória de José Luis Salvador. Ele percorreu e sinalizou o caminho para os peregrinos e fundou a Asociación de Amigos del Camino de Santiago de Sevilla. Para quem não sabe, essas associações são formadas por voluntários que, além de dar dicas valiosas sobre o caminho, vender os guias impressos e muito mais, garantem que o caminho seja o mais confortável possível aos caminhantes, principalmente, aos de primeira viagem.
              Por exemplo, ainda em Sevilha, a associação havia me dito que em algum ponto do caminho, a rota havia sido alterada daquilo que o guia impresso indicava, pois, o dono da propriedade por onde o caminho passava decidiu por não permitir mais a passagem dos peregrinos por lá (eu já fiquei ultra preocupado por antecipação). A associação imediatamente interviu para que o caminho pudesse seguir seu fluxo por outra propriedade, estrada ou trilha.
              O marco ficava na beira da trilha. Havia uma grande árvore por trás dele. O sol estava ao alto. Eu parei. Meus colegas pararam também. Tirei meu boné e fiz uma prece.
0 notes
jukjec · 3 years
Text
Post 11 - Diário do Caminho de Santiago de Compostela - Etapa 4 - Parte 1
Dia 4 – PARTE 1
Data 02/05/2017
Etapa: Almadén de la Plata à El Real de la Jara, Espanha
Distância: 16,6 km
Tempo: sol -> sol
              Se acostumem com a sequência de fatos de todo começo de dia, pois aparentemente eu me acostumei a isso também, fui um dos últimos a acordar, se não o último. Olho ao redor, todos já preparando suas mochilas antes de zarpar. O senhor coreano já não estava mais presente, deveria ter saído como de costume antes das 6 da manhã.
               Eram 6 e pouco da manhã, deveria fazer minha rotina matinal de trocar de roupa, ir ao banheiro, arrumar a mochila, colocar as barras de cereal no bolso lateral direito da calça à altura da coxa, pois o esquerdo servia para o “lixo” das embalagens das barras consumidas ao longo do dia. Nos bolsos da calça mais próximos da cintura, eu deixava, no lado direito, meu passaporte e parte do dinheiro, no esquerdo, meu celular que servia de câmera fotográfica (mas que não é). Outra parte do dinheiro eu carregava numa “doleira” que ficava na cintura, outra parte numa mini-bolsa/pochete que eu carregava do ombro até a cintura do lado oposto, a última parte ficava na mochila escondido em algum bolso secreto. Nesta pochete, eu costumava colocar tudo de valor na hora que eu ia em banheiros de albergues ou quando dormia, juntamente com o saco do saco de dormir que ficava colado em mim com outros pertences (olhas as dicas valiosíssimas).
               Tanto cuidado é necessário? Não sei, melhor prevenir do que remediar. Sim, estamos na Espanha, lugar seguro e criminalidade baixíssima, mas para que dar margem para o azar? Sem contar que estou num país estrangeiro, nem tudo se resolve ligando para um amigo ou familiar em caso de emergência.
               E o pé? Já começava doendo pela tendinite e, para piorar, várias bolhas depois de um dia tão extenuante como o anterior. Ao me ver com esparadrapos, o senhor alemão me fala para esquecer isso e usar somente vaselina. Claro! Como poderia ter esquecido dela? Lembro que tinha um tubo guardado e ainda não utilizado que havia comprado numa farmácia em Barcelona atrás do mercado municipal La Boqueria, lugar onde tive uma história engraçada com um político brasileiro presidenciável. Mas isso faz parte do outro livro de memórias da viagem que “abraça” o caminho de Santiago de Compostela a ser escrito no futuro.
               Simples assim, use o máximo de vaselina que puder a ponto de lambuzar, besuntar e tornar o pé um sabão. Não esqueça de pôr principalmente no calcanhar e entre os dedos. Acredite, tenha fé. Se você não crê em força maior, divina ou providencial, sem problemas, cada um tem sua visão de mundo. Muitos peregrinos não são cristãos, a força maior pode vir de você ou não. Este diário, o caminho e o mundo aceita a todos. No entanto, neste caminho santo percorrido por não-santos ou em qualquer outra atividade que demande horas de caminhada, confie, só a vaselina salva. Sabe o que é o pior? Um tubo de vaselina genérica que dura semanas custa alguns euros. Nada de esparadrapos simples ou aqueles especiais que grudam no seu pé por vários dias e que custam vezes um tubo de vaselina.
               Olha, dediquei dois parágrafos para falar disso e sigo para o terceiro. Esta é a maior dica que poderei dar para você, aspirante peregrino, que um dia sonha em fazer algo similar. Eu conheci pessoas quase desistirem por causa de bolha no pé, sim, uma bolha, sem contar outros riscos atrelados a quem estoura elas com alfinetes, alicates ou agulhas. Jamais faça isso! Bolha é uma reação normal do corpo onde há atrito na pele. “Então, se pôr esparadrapo não tem atrito”, você pensa. Ledo engano, o atrito ainda existe e o esparadrapo deixa o local ainda mais quente, pois o calor não se dissipa. A holandesa usava aquelas meias com “dedos” para os pés. Pode ser uma solução. Porém, mais simples é usar vaselina e a cada hora ou duas, parar para descansar e descalçar as botas dos pés para o suor e calor irem embora. Esses calçados de caminhada, são normalmente desenvolvidos para evitar a entrada de água e, portanto, são mais fechados tornando a bota um forno. Pronto, chega de falar da santa vaselina. Deveria haver procissões para ela.
               Pé lambuzado de vaselina, meia por cima, bota. Tudo pronto e certo. Meus colegas, os senhores alemão e holandês (o fotógrafo), tinham o recém-costume de tomar o café, ou o desayuno, de todo santo dia numa cafeteria, que era bar e restaurante durante o dia e noite, uma espécie de “padoca” paulistana, no entanto, bem mais animada como falarei em breve.
               Nem todas abriam tão cedo, mas algumas aproveitavam o fluxo de peregrinos e já iniciavam os serviços às 6 da manhã. Devido ao meu atraso comum pelas manhãs, chegamos imediatamente depois de um grupo de peregrinos espanhóis. Ah, esse grupo.
               A cafeteria estava um caos, barulhenta (necessário falar isso na Espanha?) e cheia de peregrinos de todas as cores, mochilas e equipamentos. Só em bastões de caminhada encostados nas paredes, eu perdi a conta. A cafeteria possuía o balcão à esquerda ocupando quase toda a parede com seus atendentes por trás dele. Toda a área restante era preenchida com mesas e cadeiras e, claro, havia uma televisão grande de tela plana ligada passando o telejornal, bem como uma máquina caça-níquel daquelas bem bregas.
Ambiente reconhecido, agora, precisaria entrar na “fila” invisível. Claro, estamos na Espanha, é preciso falar alto para ser ouvido. O tal grupo espanhol formado por alguns homens e, imagino eu, suas respectivas mulheres faziam um coro pedindo café e tostadas, que são pães compridos tostados na chapa entregues junto com mantequilla (manteiga) ou alguma mermelada (geleia) local. Como falei anteriormente, havia o tal balcão, nele, pessoas comiam e, entre elas, os demais clientes sentados nas mesas do salão precisavam transpor aqueles do balcão para que suas vozes e braços pudessem chamar a atenção dos atendentes ligeiramente brutos.
               Se tivéssemos chegado 5 minutos antes, melhor, se eu tivesse ficado pronto antes, teríamos sido atendidos mais rapidamente. Os atendentes até que eram ágeis em suas tarefas, porém, pegavam um pedido por vez, qual pedido foi pego antes de mim? O do grupo peregrino espanhol, 3 ou 4 casais, que incluía café solo o con leche, jugo de naranja, tostadas e algumas coisas mais do café da manhã local poderia oferecer. Sim, tive que esperar por sei lá quantos cafés, sucos, tostadas e afins.
              É comum ficar impaciente, se bem que ter pressa no Caminho de Santiago com tantas etapas, quilômetros e tudo sendo feito a pé, parece ilógico. A questão é simples, quanto antes começar a caminhar, mais cedo se chega à cidade-destino para evitar o sol, e o calor infernal, da uma da tarde em diante. Embora a primavera houvesse começado somente semanas atrás, o calor que faz na Espanha não se iguala aos dos demais países europeus, ainda mais naquela região semiárida. Pode ser que esteja forçando a barra no termo, mas naquele dia veria uma característica arquitetônica imprescindível nas casas além da pintura branca obrigatória. No futuro breve, também entenderia o porquê da siesta (sesta ou cochilo pós-almoço).
Ok, consegui pedir para mim e meus colegas do grupeto de caminhada, café e tostadas, as quais comi com o máximo de mermelada disponível para que não me faltasse energia. Depois de terminar, hora de ir ao banheiro antes de se “jogar ao desconhecido”. Passei pelo corredor onde, ao fundo, havia um pequeno pátio com os banheiros à direita, uma porta para o masculino e outro para o feminino.
               Adivinha quem mais estava na fila ao banheiro? O holandês chato. Havia algo que o deixava inquieto. Ele queria usar o banheiro para fazer suas necessidades mais “pesadas”, porém, não havia papel higiênico no banheiro masculino. Falei para usar o feminino. Demonstrou certa vergonha e saiu, imagino eu, buscar por um banheiro em outro lugar. Eu também precisei usar o banheiro para tal necessidade, não pensei duas vezes, fui no feminino mesmo. Outro ponto, não havia assento no vaso masculino, o que é muito comum em banheiros na Europa, sim, no masculino somente. Óbvio, homens só produzem urina. Olha, isso é algo que nunca entendi. Como se qualquer pessoa não pudesse ter um algum desarranjo devido a algo que comeu ou bebeu no próprio restaurante.
               Pequena pausa, há 2 coisas que eu não gosto em viagens e nessa eu falei desde o começo. Aviões de hélice e banheiro dito “turco”, este mesmo que você está pensando, aquele que só tem um buraco no chão onde você deve ficar de cócoras. Fora isso, pode vir que não me rendo. Quem diria que meses depois indo para a Rússia e Mongólia, essas 2 “coisas” se mostrariam presentes. A segunda mesmo, uma realidade triste de um país nômade e pobre. Mas sigamos com a ordem dos fatos, ainda mais que essa história ficará para o outro livro.
               Estou lá, vejo o banheiro feminino com assento e papel higiênico na direita, na esquerda, aquele vaso “pelado” e sem papel. Vou no feminino como já disse. Quando saio, uma mulher espanhola do tal grupo de peregrinos espanhóis está à porta visualmente irritada. Baixo a cabeça como se nada estivesse acontecido, lavo a mão e volto ao salão para me reunir com meu grupeto.
               Minha mesa ficava na linha do corredor, o que me dava visão ao pátio com os banheiros, lá vi a espanhola irritada gesticular e apontar para dentro, junto dela havia outra mulher. Quando voltam ao salão, as 2 espanholas sentam à sua mesa e apontam para mim. Aparentemente, fiz algo “imperdoável”, pois virei assunto da tal mesa. Pouco importa, talvez jamais os visse novamente.
               Pagamos a conta e saímos, o holandês fotógrafo ajeitava sua supercâmera em seu peito. O senhor alemão arrumava alguma outra coisa. Hoje, partiríamos nós 3 sem a presença da holandesa que já deveria estar saindo da cidade onde chegaríamos em algumas horas.
              A etapa de hoje deveria ser relativamente leve até El Real de la Jara, comparado à etapa de ontem, praticamente plana apesar de algumas pequenas lombadas. O céu indicava que teríamos um dia ensolarado. A distância desta etapa beirava os 16 quilômetros que deveriam ser transcorridos em aproximadamente 4 a 5 horas de caminhada. Ótimo!
              Já deveria ser perto das 8 da manhã, a cidade começava a mostrar seus sinais de despertar. Já as cegonhas pareciam ainda dormentes.
              Saímos pelo norte da cidade (branca), por onde passamos por uma portela (porteira) e depois pela Plaza de toros até subirmos o Cerro de los Covachos. Este pequeno monte não incomodou muito meu pé, pois antes de sentir algo, já começamos a descer rumo a um pequeno vale. Deveria haver um castelo por ali, ou talvez suas ruínas, mas nada vimos. Passamos reto.
              Chegando lá embaixo deste vale, avistamos árvores, aparentemente frutíferas, e algumas construções, como alguns galpões e prédios agrícolas. No meio, havia uma casa, e que construção (foto)!
Tumblr media
0 notes
jukjec · 3 years
Text
Post 10 - Diário do Caminho de Santiago de Compostela - Etapa 3 - Parte 3
Dia 3 – PARTE 3
Data 01/05/2017
Etapa: Castiblanco de los Arroyos à Almadén de la Plata, Espanha
Distância: 29,5 km
Tempo: sol -> sol -> sol
              Admito, inicialmente, eu (não-santo) havia pensado (pré-julgado) que a dinamarquesa estava numa corrida em vez de uma caminhada, e com tudo que a tecnologia permite para torná-la menos dura. Apesar de não ter dito em meus relatos anteriores, ela sempre demonstrava pressa, que ela queria fazer mais de uma etapa por dia (e eu sofrendo com uma, pense 2!!!). No entanto, ao escutar seu relato, mudei meu olhar sobre ela e me atentei ao consciente míope que tinha (sigo tendo).
              Vi a dinamarquesa pela primeira vez há 36 horas, passei no máximo 7 horas próximo dela e não mais de 2 horas conversando. É, o estado de espírito com que os peregrinos chegam aqui é diferente. Não há tempo para nos abrirmos como torneiras, no caminho, somos represas. E quem diria que tudo começou com uma péssima piada, minha, de empilhar pedras no caminho.
              Os 2 senhores terminam seu vídeo, colocamo-nos em marcha por mais um breve tempo. A “rampa” estava diante de nós, decidimos fazer mais uma breve parada antes do Calvario com seus 100 metros de subida com intensa inclinação.
              Antes de começar, o holandês chato passa por nós com velocidade, agora ele possuía bastões “naturais” feitos com 2 galhos compridos e grossos. Acenos de cabeça, sorrisos amarelos e vá...
              Não havia mais o que esperar, o calor era forte. O céu estava límpido num azul anil. A rampa era de terra e pedregulhos. Cada um no seu tempo, começamos a subir. Engatamos a primeira, lentamente e sem parar.
              Já estava suando pela milésima vez, calça comprida, manga comprida, boné, bota, cachecol esportivo no pescoço e óculos de sol nos olhos. Parecia loucura toda essa vestimenta num dia tão quente, mas já havia visto o que o sol poderia fazer no dia anterior ao ver o holandês das “mangas” vermelhas.
              Escrevendo essas memórias agora, não sei o que me passou na cabeça naquele momento, só sei que foi um suplício. De longe, a mais difícil etapa do caminho de la Plata. 2 subidas intensas, trecho longo no asfalto e sol do começo ao fim. Embora o corpo (e o pé direito) estivessem cansados pelos quilômetros percorridos e o desconforto no corpo que pedia por um banho urgentemente. Bem, eu lembro de uma coisa que pensei, e pensei sem parar. Repetia para mim mesmo meu mantra mental, e muitas vezes vocal, “um passo por vez, uma etapa por dia”. Por sorte, estava com meus bastões de caminhada que ajudaram a distribuir o peso da ascensão.
              No meio da subida, um dos senhores aponta para uma placa. Leio e não creio. A moral foi temporariamente para o chão. Tiro meu boné em respeito e faço uma reza. A placa dizia que ali, anos antes, um senhor havia falecido enquanto realizava o caminho de Santiago. Logo mais saberia o que ocorreu para que seu caminho na vida terminasse assim, mas não vou pular a ordem dos fatos.
              Concentração, mantra, bastões, calor, grupeto, o que teria acontecido com esse peregrino que sucumbiu, subida, sol, tec, tec, tec, vejo uma estrada ou trilha mais larga. Não sei quanto tempo se passou, mas passou. O Calvario havia sido deixado para trás, a inclinação amedrontava, no entanto, sua brevidade foi uma benção.
              Meus companheiros de caminhada naquele dia já estavam com outro semblante olhando para o horizonte, além de um estranho estar por ali também. Enfim, chegamos ao final do Calvario e, para celebrar, fomos agraciados com uma magnífica vista do parque de um lado dele e com a vista da cidade “branca” do outro. Neste ponto, havia um mirante com um painel mostrando o parque e seu pontos principais.
              Aproveito e tiro uma foto (foto). Meus companheiros de grupeto decidem tirar uma selfie dos 2 lados (essas fotos eu não tenho, preciso pedi-las ao holandês fotógrafo).
Tumblr media
              O homem estranho estava fumando enquanto admirava o local. Possuía uma aparência jovem e cabelos compridos além de roupas escuras. Então percebi, era um peregrino também pois vi sua mochila cargueira não muito longe dele. Ao ver que éramos todos “iguais” neste caminho, ou seja, peregrinos, o estranho deixa de ser estranho ao se apresentar e indica sua nacionalidade, suíça.
              Depois de mais alguns minutos apreciando a vista que tínhamos à nossa disposição, decidimos descer até a cidade “branca” que se encontrava ao pé deste morro, porém, em sua outra face como dito anteriormente. Sim, enfim chegaríamos a cidade-destino do dia chamada Almadén de la Plata.
              Como dizem em terras brasileiras, para descer, todo santo ajuda. No caso, o santo São Tiago e a gravidade (não se engane, descidas demandam muito das panturrilhas, não deixe de usar seus bastões de freada, digo, caminhada).
               Enquanto descíamos, os 2 senhores (o alemão e o holandês fotógrafo) que me acompanhavam me avisaram que gostariam de pegar uma pousada privada após 2 dias duros. Sem dúvida, como iria ver futuramente, há suas vantagens ao se pagar um pouco a mais.
               Andávamos por vielas estreitadas por casas pintadas de branco neste trajeto em queda livre. Logo entenderia o porquê da cor uniforme das casas. Era óbvio. O guia impresso do senhor alemão indicava uma pousada privada logo à frente. Chegando lá, uma placa dizia: sem vagas. Ficou claro que independentemente do que meus colegas queriam, o caminho, ou a vida, queria outra coisa. O caminho nos levara ao albergue municipal.
               Seguimos as flechas até o centro da cidade, se é que podemos chamar de cidade. Era um vilarejo com algumas centenas de casas, por mais que elas fossem coladas parede com parede, ainda assim não eram muitas.
               Chegamos no que deveria ser o centro da Almadén de la Plata com sua igreja igualmente branca. Então percebi um som estranho e ensurdecedor vindo dos ares. Parecia bambus rangendo. Aqui? No meio do vilarejo? Bambus? Aí que a dinamarquesa apontou para a torre da igreja, ninhos de cegonhas. Informaram-me que nesta época do ano, as cegonhas migram e decidem fazer seus ninhos em lugares altos como torres de igrejas. Não contei, mas deveria haver uma dúzia delas, talvez mais. Não sei se o som sai da garganta ou se é do bater dos longos bicos, talvez os dois juntos, mas o que posso dizer é que o som muito alto, principalmente quando dezenas delas fazem juntas amplificadas e ecoadas pelas paredes das vielas.
               No caminho para o albergue municipal já víamos os demais peregrinos em mesas de bares e restaurantes descansando, comendo e bebendo. Como reconhece-los? Trajes, traços e idiomas. Primeiro, ninguém anda com sandálias com meias nos pés e roupas de acampamento no meio da tarde, digamos que não seja muito fashion. Segundo, basta olhar os traços físicos das pessoas, olhos, cor de pele e cabelo, porte físico. Não quero generalizar, mas principalmente em vilarejos, tende-se a ver uma menor mistura do povo local com outras nacionalidades. Terceiro, e último, o volume das conversas. Basicamente, há mesas com pessoas “mudas” e outras com megafones. Na primeira não-espanhóis e, na outra, os locais.
Não faltou muito para chegarmos à frente do albergue municipal. Ele era grande com 2 andares e tinha um formato em L pegando a esquina entre 2 vielas. Posso estar enganado, mas me pareceu que este prédio foi adaptado, não sei se foi um antigo colégio ou hotel.
               Entramos na recepção, havia um balcão vazio. Ficamos perdidos porque não havia alguém para nos receber, dizer as regras do lugar e, sim, carimbar nossa credencial de peregrino (não sabia eu que essa ausência do cuidador era mais comum do que o imaginado). Um peregrino já instalado, passou por nós e nos informou que a cuidadora do albergue chamada Nieves voltaria mais tarde, numa dada hora, perto das 6 da tarde. Até lá, poderíamos deixar nossas pesadas mochilas e bastões no alojamento.
               Brevemente, vejo que “todo mundo” da minha onda de peregrinos (saídos de Sevilla 2 dias atrás) estava lá. O coreano com equipamentos high-tech, o holandês das mangas vermelhas e alguns outros rostos conhecidos de desconhecidos. Eu sei o que você, leitor destas memórias, está se questionando. O holandês chato estava lá? Ainda não, mas não levou muito para ele aparecer.
               Antes que eu me esqueça, o albergue possuía a seguinte disposição física. Entrando pela recepção, os banheiros e chuveiros ficavam à esquerda da recepção. À direita um corredor que levava às escadas do segundo andar. À direita novamente, alojamento com dezenas de beliches para os homens. À esquerda, o espaço que deveria ser uma cafeteria com muitas mesas redondas, um balcão para buffet, uma porta que deveria levar para a cozinha e uma máquina de refrigerante e snacks para os que planejaram mal no quesito comida ou para o petisco fora de hora. À esquerda da entrada da cafeteria, havia mais uma porta levando para uma despensa ou parte da cozinha que, então, levava ao átrio interno onde poderíamos ter acesso ao tanque de lavar roupas e o varal. No segundo andar, havia o alojamento para mulheres e outros mais, caso o alojamento debaixo enchesse.
               Tínhamos algumas horas até a vinda da cuidadora do albergue, o que fizemos? Sim, tomar uma caña (copo de cerveja pequeno, provavelmente 200 ml) num bar do vilarejo. Tal prática já estava se tornando um costume. Todo o grupeto concorda, voltamos até perto do “centro” para parar num bar que havíamos passado pouco antes no caminho ao albergue. Pegamos uma mesa no lado de fora, assim como outro grupo de espanhóis que falavam alto, nível megafone. Pegamos nossas cervejas, radlers e tudo o que tinha direito. Ficamos ali papeando, bebendo e esperando o tempo passar. Pressa? Aqui não é o lugar para isso.
               Aproveito o momento para conversar com o suíço. Ele deveria ser um pouco mais jovem que eu, falava tantas línguas que eu nem lembro mais. Italiano, alemão, inglês e espanhol (não me recordo se francês também). Ok, quem conhece a Suíça sabe que lá o povo é ao menos trilíngue. Como nos comunicamos? Por incrível que pareça, terminamos nos falando em espanhol, pois ele havia passado não sei quanto tempo viajando pela América do Sul e queria conversar na língua de Cervantes.
               Nesse ínterim, a dinamarquesa conversava com os 2 senhores que me acompanhavam desde ontem. Depois saberia que ela iria de fato fazer 2 etapas num único dia amanhã de manhã (e em outros) para poder se encontrar com uma amiga no meio do caminho. Como suas agendas não fecharam, a dinamarquesa decidiu começar do “começo” e acelerar o quanto pôde para se juntar à sua amiga em algum ponto no futuro. Acredite, isso é bem comum. Iria conhecer outra pessoa bem mais para frente que estava na mesma “corrida”. Seu companheiro não dispunha de tanto tempo para fazer tudo assim como ele.
               Por vezes você deve pensar que a Europa é rica e chique em tudo. Pois bem, no interior da Espanha, assim como no interior de quase todos os países que conheci, a estrutura é bem mais simples. As cadeiras externas eram de plástico. As mesas não tinham nada demais. A cerveja era barata. A caña não deveria custar mais do que alguns poucos euros, 2, talvez. O bom da Espanha é que não importa onde você esteja, os bares sempre lhe dão um pequeno agrado em forma de comida. Amendoim ou, minhas preferidas, azeitonas. Sempre frescas e suculentas. Não sei se eu bebia por causa da cerveja ou por causa do possível acompanhamento. Isso iria se repetir em todos os lugares que eu viria a ir.
               Apesar de ser extremamente simpático e gente boa, o suíço tinha um hábito irritante a este que vos fala. Sim, fumava. Enquanto conversamos por essa 1 hora e pouco, ele não parou por um minuto. Isso é algo que me incomodou e muito. Paciência. Recordo-me que ele me pagou uma caña e me contou que após o caminho Vía de la Plata, ele iria realizar outro caminho. Não lembro se era o do Norte, Primitivo ou algum outro. Só sei que ele iria emendar alguns caminhos na sequência.
               Passado certo tempo, voltamos para o albergue. Seguimos com o rito clássico: banho, lavar roupas e estendê-las no varal. Ao chegar no tanque, peguei pouco de fila para lavar a roupa. Usei meu sabão em barra que ganhei de um argentino no albergue de Sevilha e depois estendi minhas roupas no varal deste átrio ou pátio.
               Todos estavam limpos, menos malcheirosos e com um semblante plácido. Decidimos dar uma pausa onde cada um faria o que quisesse até perto das 18 horas, quando a Nieves chegaria e, depois, sairíamos para jantar. Aproveitei para dar um cochilo breve.
               Acordado, encontro meus colegas de caminhada na recepção juntamente com a simpática senhorinha Nieves. Ela nos apresentou o lugar, falou das regras de horário (o albergue fecharia as portas à noite, geralmente entre 21 e 22 horas e, na manhã seguinte, deveríamos sair até as 8 horas), cobrou a taxa do albergue (o valor era de 6 ou 7 euros) e carimbou nossas credenciais, ou passaporte, de peregrinos.
              Neste momento ela revela algo que me surpreendeu. Ao ver que minha nacionalidade era brasileira, ela afirmou: “você é o primeiro brasileiro a fazer a Vía de la Plata”. Não pude acreditar embora o caminho em si seja bem menos conhecido e mais duro que os demais. Sem contar o fato desse caminho ser geralmente feito por aqueles que já fizeram um dos outros caminhos primeiro, como o caminho Francês, Norte ou Português. Vai saber, se Nieves estava certa ou não, isso nada mudaria meu caminho ou dor no pé. No entanto, admito que naquele momento me senti mais cheio de mim, o desbravador brasileiro em meio à Andalusia e Extremadura, antes de chegar na já conhecida Castilla y León. Em breve conheceria a prova da minha desconfiança.
              Um dos senhores do grupeto, o alemão, aproveitou para pedir recomendação sobre uma pousada privada na próxima cidade. A Nieves prontamente ligou para tal pessoa na próxima cidade-alvo, El Real de la Jara, para realizar a reserva. O senhor perguntou se eu gostaria de me juntar a eles, pensei comigo, trocaria a vida do albergue público por um conforto a mais? Decidi experimentar, haveria ainda muitos dias pela frente e não me faltaria oportunidades para mais estadas em albergues públicos.
              Aproveitamos para solucionar um mistério, o homem que havia morrido no Calvario. Nieves nos disse que se tratava de um peregrino idoso, bem passado dos 60 anos e com diabetes que tentou subir esse monte em pleno verão quando as temperaturas passam dos 40 °C à tarde. Difícil julgar, porém, não há como não pensar que isso poderia ter sido evitado. Vai saber...
               Ficamos, o suíço e eu, na frente do albergue aguardando pelos demais terminarem suas arrumações antes de ir jantar. Enquanto isso, neste belo entardecer com céu azul puro, parecia haver uma festa ou evento religioso de um grupo de 20 ou 30 pessoas no meio de uma praça que servia de esquina entre 2 vielas. Havia uma menina de branco, decoração e pessoas cantando e berrando.
               Com a vinda dos demais, decidimos voltar para o bar onde havíamos bebido algumas cervejas à tarde, Casa Concha, para jantar. Além do mais, é bem possível que o menu do peregrino fosse similar em todos os restaurantes dali, ou seja, escolher para quê? Caminhamos alguns metros e, desta vez, sentamos no lado de dentro. Comemos os vários pratos, bebemos cerveja ou vinho, o holandês fotógrafo tomou sua coca, e os espanhóis na mesa do lado faziam aquela balbúrdia rotineira.
               Papo vem, papo vai, conversas das outras mesas em decibéis próximos aos de aviões a jato até que a dinamarquesa nos lembra que deveríamos ir. Sem dúvida, o dia havia sido duríssimo (sim, vocês sabem muito bem disso), sem contar que ela mesma teria um dia pesadíssimo amanhã.
               Pagamos a conta e voltamos ao albergue. O senhor coreano já estava dormindo, deveria ser perto das 8 da noite. Após escovar os dentes, pré-arrumo minhas roupas, comida e água para o dia seguinte para que a saída fosse a mais rápida possível. Porém, desta vez, sem o barulho infernal das sacolas plásticas zip lock.
               Vou para a cafeteria com meu caderninho (aquele da foto da primeira publicação) e uma caneta para relatar o que ocorreu neste dia. Outros estão lá com seus celulares, câmeras e livros. Depois de quase meia hora, olho ao redor. Meus companheiros de grupeto estavam lá ainda. Decidi me recolher. Desejei-os uma boa noite de sono e fui para a cama. Como o alojamento era bem grande, ninguém precisou dormir no “topo” do beliche, o que geralmente gera ruídos adicionais quando alguém se movimenta nele.
               Ajusto o horário do celular para acordar amanhã, confiro meus pertences no saco do saco de dormir próximo de mim, coloco os protetores auriculares e durmo rapidamente.
0 notes
jukjec · 3 years
Text
Post 9 - Diário do Caminho de Santiago de Compostela - Etapa 3 - Parte 2
Dia 3 – PARTE 2
Data 01/05/2017
Etapa: Castiblanco de los Arroyos à Almadén de la Plata, Espanha
Distância: 29,5 km
Tempo: sol -> sol -> sol
Tumblr media
              Entramos no parque, tudo o que se espera de um paraíso, ele proveu. Pelo menos, segundo os desejos de um caminhante. O primeiro trecho dentro dele seria em declive suave, ou seja, para baixo todo santo ajuda, inclusive São Tiago. O parque contava com árvores de porte médio e copa larga, o que nos agraciaria com sombra sempre que precisássemos.
               Falando em árvores, muitas eram de um tipo incomum para olhos brasileiros (não que eu seja um especialista, como vocês já bem sabem). As árvores estavam “tosadas”! Sim, da base do tronco até o alto antes dos primeiros galhos, as árvores estavam “magras”, “esbeltas” e “finas”. Que coisa estranha. Isso não poderia ser natural. Só poderia ser por obra do ser humano.
               Essa árvore em espanhol se chama alcornoque (ou sobreiro em português) e é utilizada para a produção de cortiça através da casca em torno do seu tronco. Já tinha ouvido falar disso em programas de televisão, porém, jamais havia visto com meus olhos. Esse processo de extração gera uma visão singular de um parque “natural”.
              Seguimos ladeira abaixo, o pé doía, mas depois da última subida, o que eu sentia agora não era nada. O estado de espírito do grupo era outro, ter transposto tal subida, no calor e asfalto era algo que traria energia para qualquer um e, se além disso, tivéssemos como prêmio um passeio no silêncio de num parque verde e descendo na sombra, a cereja do bolo era maior que o próprio bolo (foto).
              Após alguns minutos de caminhada, chegamos na casa do guarda florestal, segundo o guia impresso, Casa florestal La Morilla. O espaço era grande, deve ser também o centro de visitantes do parque. Apesar de tudo fechado, havia algo importantíssimo ali, uma bica d’água onde poderíamos recarregar nossas garrafas com o líquido da vida.
              Com as garrafas cheias e as mochilas mais pesadas, continuamos a descida até que um dos membros do grupeto nos lembrasse que deveríamos parar para a grande pausa do dia. Comer e descansar os pés de nossas botas pesadas, duras e tecnológicas. Os pés precisavam de um ar.
              Aqui vem (mais) um momento para conhecer os peregrinos, fazer piada e dar risadas. A dinamarquesa se afasta para fazer suas necessidades, já o holandês fotógrafo não se afasta tanto assim e é capturado enquanto tira a água do joelho (não se preocupe, não é a foto deste segmento do diário, embora eu a tenha). Sentados debaixo de árvores, na sombra, o vento sopra, como meu típico sanduíche, deixo os pés ao relento, puxo as mangas da camiseta e as calças até o joelho. Demo-nos mais 10 minutos de descanso. Logo o “fundo” do vale chegaria e dali para frente seria mais uma subida.
              Deste ponto em diante, já não havia mais tantas árvores próximas à trilha, somente campos com jardins naturais com flores multicoloridas que emitiam um zumbido fortíssimo. Sim, as abelhas estavam na sua árdua tarefa de polinização em plena primavera europeia. A imagem era belíssima com vários contrastes, a terra marrom preenchida com um capim ralo, flores com suas cores dégradés que seguiam por vários metros até sumirem em árvores ou no céu andaluz azul e limpo daquele dia ensolarado (segunda foto).
Tumblr media
              Cruzamos um riacho cuja água estava gelada, minha vontade era de pôr os pés ali, mas até secá-los, levaria muito tempo e o grupo queria seguir viagem. Para evitar que molhássemos as botas ou os pés, havia tocos de madeira pouco mais altos que o nível da água por onde poderíamos pisar.
              Não faltou muito para chegarmos em outro riacho, no entanto, desta vez, havia uma ponte. E no segundo plano da vista, ruínas (???). Não sei bem ao certo o que eram, se casas de fato antigas ou somente abandonadas, mesmo assim, a imagem era belíssima.
              Espere um pouco, há alguém na ponte. Não podia acreditar, ele novamente no “meu” caminho. O jovem holandês chato aparecera não sei de onde no momento que passamos pela ponte. Os dois senhores que estavam comigo trocaram algumas palavras em alemão, o que quase gerou uma gafe por parte deles pois o holandês chato sabia falar alemão e retrucou alguma coisa na língua germânica. O que se passava? Por algum motivo, os dois senhores também não haviam ido com a cara dele.
              Paramos ali por alguns poucos minutos de conversa, realmente, esse rio parecia perfeito para relaxar os pés. Eu ensaiei uma retirada de botas quando a dinamarquesa me alertou que o choque térmico entre o pé quente e a água gelada poderia ser fatal ao poder gerar rachaduras ou similar. Em se tratando de pé, tudo é gravíssimo. Ok, desisti. Porém, o jovem holandês, não. Ele tira suas botas, puxa as canelas de suas calças para cima e relaxa nas águas do riacho.
              Momento certo para partir e se afastar desse cara. Aproveito para perguntar aos dois senhores o que eles falaram entre si a ponto de o jovem holandês entrar na conversa. Disseram-me que de fato falaram dele, porém, nada demais, ele que quis entrar na conversa, talvez para mostrar seu nível de alemão. Digo para eles que sabia do conhecimento do jovem no idioma germânico e que deveríamos ter cuidado para evitar certas gafes ao falar em línguas paralelas. Nunca se sabe se o peregrino vizinho não fala a sua língua. Na verdade, não é sempre assim e eu teria uma noite divertidíssima semanas depois por causa disso (como de costume, manterei a ordem cronológica dos fatos).
              Apesar do meu ranço com o jovem holandês, não estava ali para criar inimizades. Longe de ser santo, mas se for para teimar com alguém, não a milhares de quilômetros de casa, num caminho meditativo e num ano sabático. Se bem que...
              Batemos fotos das “ruínas” e continuamos nosso caminho. Após algumas curvas e com as montanhas em ambos os lados tornando a trilha um corredor, voltamos a subir mesmo que de forma suave. As sombras eram escassas e o sol estava sobre nós a todo o momento.
              Nesta hora, os dois senhores decidem parar para fazer um vídeo de sua aventura neste caminho, algo que eu veria algumas vezes. Estes vídeos eram pequenas encenações de um teatro cômico do que eles passavam ao longo do caminho. Sim, eles estavam literalmente se divertindo enquanto faziam o caminho até Santiago de Compostela.
              Para não aparecermos nas filmagens, a dinamarquesa e eu prosseguimos uns 50 metros onde iríamos aguardá-los. Então, aconteceu.
              Pelos menus cálculos, já havíamos caminhado 25 quilômetros, provavelmente o que viria a ser uma das etapas maios longas e difíceis de todo o caminho devido à distância mais a altimetria. O primeiro “everest” já havíamos transposto ao longo de 16 quilômetros de asfalto. O que já seria extenuante ficou ainda pior com minha dor lancinante no calcanhar direito abafada pela bota e calor de 30 graus. Agora teríamos o segundo “everest”, o cerro del Calvario (colina do Calvário, é, o nome já indica o que estaria por vir). Em palavras mais simples, uma “parede” com desnível de 150 metros ao longo de 4 quilômetros apenas. O final não seria nenhum pouco fácil.
              Enquanto aguardávamos as filmagens da outra metade do grupeto, eu vi algumas pedras perto da trilha e empilhei uma pedra sobre uma outra pedra bem maior e plana tentando recriar o que outros peregrinos fazem ao longo do caminho, colocar uma pedra sobre a outra até que outro peregrino em seguida venha e continue com o empilhamento de pedras. Ás vezes, essas pilhas ficam até que bem altas.
              Também há outra tradição de se pegar uma pedra no primeiro dia de caminhada como o símbolo de um fardo emocional, físico ou psicológico e carrega-lo até certo ponto do caminho onde você a abandona assim como seu fardo. Admito que pensei em fazer isso, porém, eu já tinha o meu calcanhar direito como uma grande pedra, se não na mochila, no pé. O simbolismo de uma pedra já estava sendo totalmente sentida pela concretude da dor no meu calcanhar.
              Ao realizar o meu “feito” de empilhar uma pedra pequena sobre outra gigantesca, quis mostrar à dinamarquesa essa minha piada de última hora e totalmente contextualizada ao caminho.
              Ela muda completamente o semblante e começa a me contar sua história no caminho de Santiago de Compostela anterior, o que seria o primeiro. Ela foi fazer o caminho a convite de uma amiga após ter terminado um relacionamento não muito amigável. Como a tradição diz, ela pegou uma pedra logo no começo do primeiro dia e a carregou ao longo de todo o caminho Francês até que em certo ponto, como manda o figurino, deixou a pedra para trás, assim como o passado que ela não queria esquecer. Catarse pura simbolizada através de uma ação de abandono de pedra.
              Para mim, a expressão repetida por todos os peregrinos "o caminho é vida e vida é caminho" resume muito bem o que se passa enquanto se anda em terras espanholas. Aqui temos uma versão reduzida e concentrada da vida em amizades e inimizades, sorrisos e dores, obstáculos físicos e mentais, redenção. Sem contar o estado emocional dos peregrinos. Muitos vêm já transbordando.
              Como já falado e repetido, o dia estava sendo duro, todos os elementos geográficos e físicos se fizeram presentes neste dia, bem como o holandês chato, porém tudo havia sido compensado pela passagem no parque El Berrocal e pela espontaneidade da dinamarquesa em se abrir e dar seu relato de seu primeiro caminho anos atrás.
1 note · View note
jukjec · 3 years
Text
Post 8 - Diário do Caminho de Santiago de Compostela - Etapa 3 - Parte 1
Dia 3 – PARTE 1
Data 01/05/2017
Etapa: Castiblanco de los Arroyos à Almadén de la Plata, Espanha
Distância: 29,5 km
Tempo: sol -> sol -> sol
Tumblr media
              Acordei cedo, talvez, mais cedo que todos, exceto o senhor coreano com os equipamentos high tech. Levanto, troco de roupa, do “pijama” prático para a vestimenta básica, camiseta de manga comprida, calça de secagem rápida com possibilidade de virar bermuda, esparadrapos nos pés e meias compridas de dupla camada para reduzir a chance de ocorrência de bolhas nos pés.
               Dobro/enrolo o saco de dormir e o lençol de seda (a ser explicado em breve, muitíssimo importante).
               Depois, tomo meu café da manhã (sanduíche de atum) e preparo outro para mais tarde. Coloco barras de cereal no bolso lateral à altura da coxa, transfiro a água do garrafão para as garrafas de água de 500 ml metálica e plásticas (tática para distribuir melhor o peso).
               Ajeito a mochila para colocar tudo dentro de forma organizada, saco de dormir embaixo, roupas em cima e, no topo da mochila, água e comida. Aqui eu decido me desapegar dos “geniais” e barulhentos sacos zip lock, porém, guardo três deles. Um para os remédios, outro para equipamentos variados e outro para meias e cuecas. Os demais itens de vestuário iriam dobrados ou enrolados dentro da mochila do modo mais organizado possível.
               Vou ao terraço no lado da cozinha para buscar minhas roupas que ficaram ao relento. Para minha surpresa, estavam quase secas, mas ainda geladas com as baixas temperaturas das noites andaluzas. Voltando ao alojamento, penduro o que posso na mochila com os alfinetes para a secagem final enquanto caminho.
               Uma ressalva, na transição de cada parágrafo acima, uma passada no banheiro para ver se meu intestino funcionaria para eliminar tudo daquilo que me fez mal no dia anterior. Aparentemente, nada mais sobrou para sair ou meu corpo continuava lento assim como minha habilidade para ficar pronto rapidamente. Em uma das idas ao banheiro, escovo os dentes, passo protetor solar no rosto, mãos, pescoço e nuca, todos expostos ao sol menos os dois últimos que ficariam protegidos com meu boné tipo legionário e seu capuz que envolve a cabeça. Apesar da proteção do tecido, melhor garantir e ter dupla proteção com o filtro solar.
               De forma surpreende, fui um dos últimos a ficar pronto e sair do albergue, senão o último. Os parágrafos acima que você, caro leitor, levou minutos para ler, eu devo ter levado ao menos 1 hora para realizar. Desço as escadas e vejo o recém-formado grupeto (os 2 senhores e a dinamarquesa) me esperando com aquela cara de estarem ali uns 10 minutos.
               Como derradeira ação, despedimo-nos do atencioso JM.
               Ao pisar na rua, dor no calcanhar direito, a sensação de dor não esperou e já se mostrou presente antes do que imaginava. E só me faltavam 29,5 quilômetros pela frente até Almadén de la Plata, sem contar a variação altimétrica de quase 200 metros até o quilômetro 16 para descer 100 metros e depois subir novamente 100 metros no último quilômetro da etapa. Calma, um passo por vez.
               Seguimos pelas vielas da Castiblanco de los Arroyos por algumas centenas de metros até alcançarmos a carretera SE-185 ao norte da cidade. Aqui não teríamos novidade, estrada quase que retilínea em aclive e asfalto por quase 16 quilômetros. Difícil de não antever a dor a ser sentida devido à inclinação que sobre esforçará meu calcanhar e a dureza do asfalto que não absorverá nenhum impacto das minhas passadas, sem contar os bastões de caminhada com suas pontas metálicas que fariam a trilha sonora (tec, tec, tec) nas próximas três horas ou mais.
               Meus companheiros caminhavam à minha frente, talvez 50 metros (foto) e eu nada poderia fazer para reduzir a distância, simplesmente o meu pé não me deixava acelerar o passo. Parecia como se eu estivesse carregando uma bola de ferro no pé, uma âncora presa à cintura, ou, forçando a barra e aproveitando o lado religioso do caminho, carregando uma cruz.
               Nessas horas iniciais de caminhada, fiz de tudo (que tinha) para aliviar a dor. Vesti minhas sandálias, no entanto, as pedrinhas do asfalto viviam se alojando entre ela e meu pé calçado de meias dando aquele desconforto completo. Conhece o termo “pedra no sapato”? Pois bem, a ideia é a mesma se eu disser “pedrinhas na sandália”. Não demoraria para eu vestir as botas novamente. Também caminhei fora do acostamento, no trecho de terra adjacente ao asfalto, porém, o problema das tais “pedrinhas” era maximizado à décima potência.
               Para distrair minha ascensão neste morro asfáltico, vários ciclistas passaram por nós, meus companheiros de grupo e eu, desejando um “buen caminho”. Quando eu digo vários, eu quero dizer dezenas. A Espanha possui uma cultura ciclística muito forte, tanto amadora quanto profissional, e não seria diferente na forma de se realizar o caminho. Sim, caro hipotético leitor ciclista, é possível fazer a peregrinação sobre duas rodas a ponto de você ganhar seu certificado de conclusão em Santiago de Compostela (até mesmo sobre quatro patas!). Entretanto, deixarei para depois quando terei conversas com ciclistas peregrinos.
               Outra distração enquanto meu calcanhar latejava feito uma feriada aberta era um simpático cachorro vira-lata que nos seguiu por alguns minutos correndo para cima e para baixo repetitivamente que me chegou a dar inveja pelo fato dele ter quatro patas e eu somente dois pés, dos quais um estava enfermo e em condições desfavoráveis para a peregrinação. Até meus companheiros, cheios de saúde nos pés, sentiram o peso de caminhar morro acima por uma distância tão grande nas condições impostas, inclinação e dureza do solo e uma mochila nas costas. Aparentemente, só o vira-lata estava se divertindo.
               Posso ser repetitivo, mas quando se tem o calcanhar machucado numa atividade física a pé no meio de um morro sem fim, a mente derrapa porque a cada dois passos você é lembrado de que algo está errado. Sem contar que o sol andaluz da manhã não dava trégua. Para piorar a situação, um som se impôs ao silêncio dessa rodovia pouco movimentada e ao som irritante das pontas de meus bastões de caminhada ao bater no asfalto. Uma música alegre subia o morro também.
               Olho para trás e entro em estado de espanto. De novo, eu estava sendo seguido, só pode. Aquele grupo de espanhóis me alcançara pelo segundo dia consecutivo. Aparentemente, eu havia contado errado, não eram somente três, estavam em maior número, especialmente a mulher espanhola com seu fatídico rádio à tiracolo que fornecia a trilha sonora mais imprópria para uma peregrinação, sem contar o papear megafônico entre eles. Novamente, não havia o que fazer senão deixar este grupo passar para não os ouvir o mais rapidamente possível, o que não seria difícil com minha lerdeza forçada.
               Quando retomo o foco de peregrinação percebo que havia me aproximado de meus companheiros, pois os 2 senhores estavam batendo fotos dos jardins naturais de beira de estrada. As flores eram numerosas e coloridas. O holandês fotógrafo usava com gosto sua câmera profissional para gravar em imagens as belezas deste país. (Enquanto continuo a escrever este diário em 2021, posso dizer que tais fotos nunca vi. Preciso falar com ele e pedir suas fotos, não somente para a minha curiosidade, mas também para enriquecer este diário caso um dia ele se torne realidade).
               Volto a conversar com os 2 senhores para conhecê-los mais e para tornar a ascensão menos angustiante. O alemão já era aposentado, o holandês fotógrafo estava encostado por algum problema de saúde. Já eu tive que explicar o que fazia ali com pouco mais de 30 anos.
               Decidimos fazer uma parada para descanso de alguns minutos, aproveito para trocar o calçado novamente. Segundo a médica de Sevilha, deveria parar para descansar com frequência para não sobrecarregar o calcanhar, mas como fazê-lo se o grupo não poderia esperar? Dias depois saberia muito bem como resolveria isso.
               Passados alguns minutos, nos colocamos em macha novamente. Creio termos passado quase das três horas caminhando neste morro que mais parecia o monte Everest, a dor no calcanhar era lancinante, parecia que eu possuía uma bola no calcanhar. Eu sentia as paredes internas da minha bota fazerem pressão contra ele de todos os lados. Meus colegas seguiam na minha frente e eu, sem querer ficar para trás, apertei o passo atropelando a dor a ponto de esquecê-la. Não deveria faltar muito, não poderia faltar muito, já estávamos horas nesta estrada inclinada e seu fim deveria chegar. O guia impresso não poderia estar errado...
               E não estava. A inclinação começou a reduzir a ponto de acharmos que estávamos na mais plana das planícies. No lado direito, vimos 2 muros que faziam as laterais de um portão aberto, em frente deles, dois potes de barro grandes de quase dois metros de altura. À esquerda da entrada, uma guarita abandonada. Enfim, ou Aleluia, havíamos chegado à entrada do Parque Florestal de El Berrocal. Embora ainda tivéssemos quase 14 quilômetros pela frente, saber que o último aclive havia terminado era um alívio. “Último” no sentido de “passado”, pois ainda haveria outro nesta etapa com suas emoções.
               Aproveito para entrar na guarita vandalizada e suja, fedendo a algo (morto?), para trocar o calçado novamente (não se perca, pois eu já me perdi nas vezes que fiz isso). Coloquei a bota e apertei o cadarço dela para que ficasse o mais presa possível para evitar deslizamentos do pé dentro dela.
               Saio da guarita, adentro ao parque e recebo a maior recompensa por ter chegado até aqui. A aridez do asfalto havia ficado para trás, sua cor acinzentada misturada à terra marrom e seca paralela ao acostamento também, timidamente aliviada por arbustos e árvores. Agora era hora de abrir os olhos com vontade e ver aquilo que o guia impresso dizia: “uno de los tramos más bellos del camino en su recorrido por la Sierra Morena sevillana”. Ele não estava errado, viria a ser um dos trechos mais belos do caminho.
0 notes
jukjec · 4 years
Text
Post 7 - Diário do Caminho de Santiago de Compostela - Etapa 2 - Parte 2
Dia 2 – PARTE 2
Data 30/04/2017
Etapa: Guillena à Castiblanco de los Arroyos, Espanha
Distância: 19 km
Tempo: sol -> nublado -> sol -> nublado -> chuvisco -> tempo aberto
     Sim, estávamos no meio do caminho até Santiago de Compostela, na verdade, bem no começo dele, aspirando horas, dias, quiçá até um mês, de meditação caminhante quando um grupeto de 3 espanhóis irrompe o silêncio da jornada. Não somente falavam alto, o que pode ser um pleonasmo para o povo espanhol, mas um deles, no caso, uma mulher, portava um aparelho de som portátil preso ao ombro através de uma tira. Apesar da estética “oitentista”, estávamos em 2017.
    Futuramente, falarei de outro caso em que um peregrino me disse escutar música ao longo do caminho, longe de mim dizer o que está certo e errado na peregrinação, ditar regras e determinar como o espírito meditativo se obtém. No entanto, a experiência é única, provavelmente mais de 95% do caminho é em meio à natureza ou área rural, este último, praticamente o que há de mais “natural” para habitantes das urbes. Ou seja, você pode escutar a sua música preferida em qualquer dia da sua vida, porém, não é sempre que se tem tempo, recursos e saúde para peregrinar, e, quando os planetas se alinham, alguém o faz com trilha sonora artificial?
    Não há nada de mais verdadeiro senão o cantar dos pássaros (e em breve das cegonhas), o farfalhar das folhas das árvores que fazem coro ao sopro do vento da primavera. Admito que por vezes, eu quebrava o silêncio para enviar áudios para amigos para relatar trechos do caminho, mas jamais perto de outro peregrino. Creio que a lei do silêncio é soberano. Quando não falamos, pensamos, quando pensamos, meditamos e assim segue o peregrino, ou, pelo menos, este que vos fala.
    Neste caso, o absurdo do desperdício do caminho era ainda maior pela imposição ao outro. Assemelha-se ao bárbaro que leva uma caixa de som à praia para atrapalhar o sossego de todos, obrigando o mundo a escutar o seu gosto musical. Sim, a mulher nos obrigava a ouvir sua música sem qualquer pudor.
    Fiquei revoltado, assim como fico agora ao lembrar do momento. Peregrino não é santo, seja pelo desrespeito de alguns e falta de paciência de outros (eu).
    Embora tenhamos nos conhecido há pouco tempo, nem uma hora atrás, entreolhamo-nos, os 2 senhores e eu, e nos comunicamos pelos olhos. Desaceleramos o passo até que a música se dissipasse a nossa frente.
    Seguíamos subindo, o meu guia impresso indicava que a inclinação era próxima daquela sofrida horas antes, entretanto, sem o atoleiro, o trecho atual parecia um paraíso. A trilha era de chão batido e ainda limitada por cercas nos 2 lados, estávamos num túnel sem teto. A caminhada rendeu, tanto em quilômetros como em conversas. Descobri que um dos senhores, o mais velho, provavelmente perto dos 60 era alemão, enquanto o outro, um holandês de 50 e poucos. O primeiro falava inglês, já o segundo, pouco. Eles se comunicavam basicamente em alemão e qualquer conversa entre o holandês e mim ocorria através do senhor alemão. (Para não confundir o hipotético leitor dessas memórias, chamarei esse holandês de holandês fotógrafo pois ele possuía uma câmera fantástica).
    O senhor alemão contou que esse caminho peregrino não era seu primeiro, já era seu segundo (ou terceiro?) e que os 2 haviam se encontrado no primeiro caminho quando o senhor alemão saiu da Alemanha em direção à Santiago de Compostela e o holandês fotógrafo fez o mesmo, mas saindo de sua cidade na Holanda. Sim, eles caminharam aproximadamente 3 meses. Não se espante, é “comum” entre os europeus fazerem isso.
    Neste trecho, passamos por diversas portelas (ou portões de fazendas) por onde deveríamos passar. Sim, estávamos passando por propriedades privadas, o importante a notar aqui é o respeito que os peregrinos possuíam com aquilo que não é seu. Deixar um portão aberto poderia acarretar na fuga de animais, o que irritaria os donos das propriedades e provável proibição passagem de peregrinos por elas. Peregrinos são santos? Não, só no último dia entenderia o vandalismo dos “santos” caminhantes que enxergaram um souvenir único ao passar pelos miliários. Mas mantenhamos a ordem dos fatos.
    Depois de uma parada para comer e mais alguns quilômetros, deixamos o barro para trás e chegamos numa estrada asfaltada. Cruzamos ela e seguimos paralelamente a ela. Tec, tec, tec. Não precisou andarmos muito para chegarmos num povoado chamado de Urbanización da Colina, depois por um belo hotel no lado direto da estrada (será que já deveria queimar as fichas aproveitando uma cama confortável e ter o silêncio como companheiro de quarto?).
    Seguimos reto até chegarmos em Castiblanco de los Arroyos, povoado pequeno, até menor que Guillena. Não faltou muito para chegar no albergue municipal no começo da tarde. O prédio de 2 pisos era maior do que do albergue do dia anterior. Aparentemente, a construção dividia espaço com outro órgão local, talvez escola. Ao ver o tamanho do local, relaxei, pois sabia que espaço não faltaria para mim ali.
    Na entrada, havia alguns homens, 3 ou 4, e um deles era o muito solícito JM. Sim, era assim que deveríamos chamá-lo. Falei solícito? Bem, foi depois da comprovação de que éramos peregrinos. Precisamos mostrar nossa credencial de peregrino para que ele começasse a falar do lugar e das regras do local. Depois de assinarmos o livro do albergue, pagarmos a modesta taxa para ficar ali e termos nossas credenciais seladas, ou carimbadas, JM nos mostra o local.
    O térreo não seria utilizado. Subimos as escadas. Primeira coisa que vimos foi o móvel de madeira onde as botas (com e sem chulé) deveriam permanecer. Recebemos jornal para rechear as botas e assim sugar sua umidade. Tanto no lado direito quanto esquerdo atrás da escada, havia banheiros. No lado direito, uma porta onde ficava o alojamento com os beliches. No lado esquerdo, uma porta levava à cozinha e, através dela, o terraço com o tanque para lavar roupa e o varal.
    Momento para seguir com a rotina de todo recém-chegado no albergue: banho, comer e lavar roupa. Bem, não tão rápido. Os 2 banheiros tinham fila para tantos peregrinos. Quando entrei, vi que o banheiro era amplo com chuveiro, privada e pia. Havia ganchos na porta para pendurar os pertences. Nessa hora que os chinelos que não soltam as tiras e não dão cheio (não falarei a marca) entram em cena para garantir um pouco mais de higiene para os pés. Não sei se tanto assim, ao menos a consciência ficou mais tranquila. Acredite, o lugar é limpo e bem cuidado, mas é muita gente passando em pouco tempo. Então, melhor garantir.
    Fui ao terraço para dar uma olhada. Lá vi um holandês com “mangas” vermelhas. Sim, aspas na palavra mangas porque, na verdade, eram seus braços (muito) queimados pelo sol da Andaluzia espanhola. Conversei com ele e tentei falar o óbvio de que ele deveria cuidar com o sol e passar protetor solar. Além disso, sugiro utilizar mangas compridas para proteger os braços. Mais quente, sim, mas como a peregrinação demanda horas por dia de caminhada, o calor era um dos cuidados a serem tomados e que pode ser remediado de outras formas. Esse homem branco, talvez mais do que eu, responde-me com um sorriso largo ao olhar para os braços, “agora eu já tenho mangas compridas”. Ok, ele estava levando na esportiva. Quem seria eu a querer dar de pai. Vi que uma de suas pernas estava esticada, ele comenta que possui um sério problema no joelho e que isso lhe dava muita dor ao caminhar, mesmo assim, não deixava de fazer seu caminho.
    Antes de continuar, não se confundam com os personagens reais dessa jornada. Já cruzei por 3 holandeses, o jovem holandês que me abandonara no caminho, o holandês fotógrafo e, agora, o holandês das “mangas”. Não utilizarei seus nomes, não por receio de ser cobrado por direito de imagem, bem, citação, mas por outro motivo a ser dito no término do livro.
    Os 2 senhores com quem caminhei me chamaram, o senhor alemão e o holandês fotógrafo. Comer seria em breve, primeiro, precisaríamos ir ao mercado para comprar mantimentos para o dia seguinte pois era domingo e essa pequena cidade não possuía nenhuma grande rede de supermercados com horário estendido de atendimento.
    Não tivemos muito sucesso na primeira venda, fomos num outro. Pego frutas (maçãs e bananas, água, pão e outros). Ali, bato papo com o espanhol da venda enquanto os demais faziam suas compras. Ele me diz que eu tenho um espanhol europeu. Provavelmente por não usar termos e sotaque comuns entre os cisplatinos e vizinhos do cone sul. Só deixo claro que fui com um portunhol bem do mequetrefe. Ok, nunca se deve negar um elogio.
    Voltamos ao albergue, deixamos os mantimentos para, já em seguida, almoçar. Decidimos ir no restaurante de tapas que passamos para ir ao mercado. Sentamos no lado de fora, os 2 senhores e eu. Ao redor outras mesas eram ocupadas por locais que falavam alto. O restaurante tinha um “jeitão” de restaurante espanhol pela decoração e atmosfera. Ao longo do caminho, veria vários lugares como esse. Difícil de explicar, mas indo em um, entende-se.
    Somos atendidos por um homem nos seus 30 anos que nos pergunta o que queremos para beber. Um dos senhores, o alemão, vai direto ao ponto e pede uma radler. O que era isso? Cerveja com suco de limão, normalmente, improvisado com xarope de limão. Depois aprenderia que isso era na verdade uma cerveja bebida por ciclistas na Alemanha. A palavra radler quer dizer ciclista em alemão. Ok, vamos provar, 2 radlers. O holandês fotógrafo pede um refrigerante tipo cola (a primeira de muitas que o veria bebendo).
    Vamos no menu do peregrino. Tudo estava ótimo, tamanho da porção e sabor, terminamos com um café. Sinto algo, acho que a ensaladilla (salada de batatas ou a nossa maionese) não caiu muito bem. Dou uma desculpa e deixo os 2 senhores para poder voltar para o albergue para poder ir ao banheiro. Pensando agora e sabendo o que eu sei, quanto aperto por algo tão simples...
    Vou ao banheiro “correndo”. Depois de lidar com as necessidades fisiológicas, era hora de cuidar da roupa. Nada bom, já eram quase 4 da tarde e o tempo estava nublado. Lavo a roupa e as penduro para secar. Havia vento, mas não era quente.
    Volto para o alojamento, deveria haver uns 20 a 30 peregrinos. Sim, estava nessa onda que me acompanharia nos primeiros dias até que começassem a ter a primeiras “quebras” ou os mais apressados querendo fazer mais quilômetros por dia. Em outras palavras, o espaço em albergues poderia ser um problema nos próximos dias. No entanto, não deveria pensar nisso agora, como dizia meu mantra “um passo por vez, uma etapa por dia”.
    Faço o que todos fazem, tirar um cochilo pós-almoço. Levanto depois de 30 minutos ou 1 hora. Vou no varal, roupas bem úmidas ainda. Isso não seria bom. Decido tirar as roupas dali pois o tempo parecia indicar chuva.
    Os 2 senhores se levantam e me chamam para jantar. Sim, jantar. Já estava ficando escuro.
    Voltamos para o mesmo restaurante do almoço. Não queria gastar com mais um menu peregrino. Entretanto, 1 prato individual do menu custava pouco menos que o menu inteiro. Então, vamos comer tudo de novo: entrada, prato principal e sobremesa. Com uma radler para acompanhar e um cafezinho no final.
    Novamente, sinto “algo” no estômago. Volto para o albergue. Vou ao banheiro. Abuso dos remédios que tinha comigo e bebo muita água para hidratar. Dia seguinte teria quase 30 quilômetros de caminhada e não poderia ter contratempos intestinais.
    Volto ao varal para pôr a roupa para secar novamente sabendo que teríamos uma noite nublada e fresca. No alojamento, falo com a dinamarquesa do dia anterior. Após conversar sobre bolhas no pé e afins (sim, isso é papo de peregrino), ela pergunta se pode se unir ao nosso grupeto de caminhada do dia seguinte. Claro, eu acabara de entrar num outro grupo horas antes. Todo mundo seria bem-vindo, bem, quase todo mundo.
    Nesse papo com ela, também aprendo algo importantíssimo para o peregrino, como cuidar dos combros ao se usar mochila. As mochilas de caminhada possuem uma fixação que abraça a cintura para que o peso da mochila seja apoiado no quadril e não nos ombros. Ela diz que ao prender corretamente, fica-se com 1 a 2 dedos livres entre os ombros e as alças da mochila. Depois disso, as dores passariam em poucos dias (spoiler, funciona). Uma coisa é a mochila do dia a dia com um laptop pesando alguns quilos em breves deslocamentos na cidade, outra coisa é carregar de 8 a 10 quilos por 15 a 30 quilômetros. Os detalhes fazem a diferença.
    Hora de dormir, comecei os preparativos para organizar as coisas para o dia seguinte. Ali percebo uma de minhas genialidades cair por terra. Sim, o menino gênio e engenheiro que vos fala teve a maravilhosa ideia de usar sacos plásticos com fechamento zip lock para embalar, organizar e separar camisetas, meias, cuecas e calças dentro da mochila. Eu tinha 2 receios: 1) querer puxar uma coisa na mochila e vir as outras juntos, 2) caso chovesse, garantir que as roupas ficassem secas. A prova da redundância dos itens “e se...”. A mochila, apesar de permeável, seria a primeira proteção contra chuva. Além disso, eu possuía uma capa para ela e uma capa para mim que também ficaria sobre a mochila. A ideia era boa, mas sacos plásticos num alojamento daquele fazem tanto barulho quanto uma bomba. Sim, todos olhavam para mim quando mexia em minhas coisas. Em respeito aos peregrinos daquele dia e dos futuros, deveria dar um jeito nisso.
    O tal jovem holandês que na noite passada havia desenroscado a lâmpada que o incomodava, utilizava uma lanterna de cabeça com luz vermelha para ler seu livro. As luzes já haviam sido apagadas e ele achava que sua luz vermelha não era luz. É verdade que o efeito é outro, mas é luz. Ponto final. Esperar que o mundo seja coerente é a maior das ilusões.
    Coloco o despertador para mais cedo do que o planejado para ter mais tempo para o intestino funcionar na manhã seguinte antes de sair para a caminhada (já adianto, não funcionou).
    Fecho os olhos e durmo, mas sem antes sofrer com os roncos emitidos em frequências que os protetores auriculares não protegem. A noite de sono não foi boa, acordei por diversas vezes, ademais dos ruídos noturnos, creio que ainda não estava acostumado a dormir no saco de dormir.
0 notes
jukjec · 4 years
Text
Post 6 - Diário do Caminho de Santiago de Compostela - Etapa 2 - Parte 1
Dia 2 – PARTE 1
Data 30/04/2017
Etapa: Guillena à Castiblanco de los Arroyos, Espanha
Distância: 19 km
Tempo: sol -> nublado -> sol -> nublado -> chuvisco -> tempo aberto
Tumblr media
     Não sei como, o despertador do meu celular toca às 6 e eu acordo tranquilamente mesmo com os protetores auriculares nos ouvidos. Achei que esses tampões de orelha, cruciais para uma boa noite de sono considerando o ronco generalizado dos peregrinos, iriam me impedir de ouvir o alarme, grande preocupação que tive na noite anterior.
    6 horas? Sim, decido acordar “cedo” pois a matemática entre número de peregrinos e número de banheiros não fechava. Precisava arrumar tudo para sair sem deixar nada para trás e com calma, fazendo tudo no seu devido tempo. De longe, o caminho não é uma corrida, porém, a quase falta de vaga no albergue no dia anterior me assustou um pouco e não queria passar por isso novamente.
    Além disso, conheço e reconheço minha lerdeza pelas manhãs, inclusive do meu aparelho digestor. Logo, imaginei que ao acordar cedo, isso daria mais tempo para meu corpo “funcionar” enquanto eu possuía um banheiro disponível em vez da natureza.
    Aproveito para ir no terraço onde se encontrava o varal para buscar minhas roupas que oxalá foram secas pela noite. Infelizmente, não. Continuavam úmidas e geladas, pois a temperatura à noite caía muito em relação a do dia. Pego o que é meu, devolvo os grampos de roupa para a dinamarquesa e faço o que ela dissera no dia anterior, pendurar as meias na mochila para secarem durante o dia ao longo dos 19 km que iria percorrer hoje.
    Momento desapego. Dizem que um dos ensinamentos mais aprendidos, claros e metafóricos é o de se caminhar com a mochila leve. Ou seja, viver com pouco. Pois bem, depois de sentir nas costas e nos ombros o peso de uma mochila com sobrepeso, decido me desfazer do repetido e redundante. Sim, deixo 2 pares de meias novas high tech para trás, jogo 2 cuecas fora (inclusive a molhada), eu me desfaço de uma camiseta de manga curta, abandono a segunda pele da perna e “esqueço” a camisa para sair (sair onde? No próximo país da minha viagem pós-peregrinação, Portugal? Até lá, haveria mais de 1000 km e seria estupidez minha carregá-la esperando que a fosse usar). Ou seja, itens chamados de “e se...”. E se eu sair à noite? E se eu precisar do 4º e 5º pares de meias? E se ficar tão frio ao ponto de precisar de mais uma camada de tecido nas pernas? Jamais esses itens seriam usados e o futuro iria comprovar. A busca incessante pela certeza é a mais pesada dos enganos (mas teve mais itens inúteis que carreguei comigo).
    Agora sim, mochila mais leve. Talvez meio quilo, pode não parecer muito, mas nos quase 20 mil passos deste dia que se despertava, meio quilo a menos faz toda a diferença, sem contar que o meu pé direito que não estava em sua melhor forma.
    O sul-coreano parece já ter partido. Os demais peregrinos numa agilidade fora do comum se levantam e se ajeitam num piscar de olhos enquanto eu estava agindo em câmera lenta. Precisava me apressar, pois como dissera o cuidador do albergue no dia anterior: “vocês precisam sair até as 8 da manhã” num tom que tangenciava a expulsão. Como eu disse, esse senhor era muito estranho. No entanto, ele estava certo, os albergues possuem horários e regras bem rígidos que fazem o maior sentido, exceto o modo pelo qual ele se expressava. E mais estaria por vir em minutos.
    Tudo quase acertado, vou tomar o sub café da manhã oferecido pelo albergue, café preto e uns bolinhos. Bem, não era muito, mas cavalo dado não se olha os dentes, principalmente, porque veria que o café raramente estava incluso. O holandês reclama dos dentes do cavalo e decide partir para comer seu café da manhã numa lanchonete/bar/restaurante (tal estabelecimento tradicionalíssimo na cultura espanhola, a meu ver, será amplamente descrito no futuro). Eu complemento o café modesto com um sanduíche de atum improvisado na hora.
    Corpo nutrido, hora de conferir tudo antes de partir. Olho ao redor. Todos já foram! Mesmo sendo um dos primeiros a acordar, consegui ser um dos últimos a sair. Evento que não deixaria de se repetir por diversas vezes.
    Falo com o cuidador do albergue que deixarei algumas peças de roupas aqui. O cuidador me responde forma agressiva: “o que farei com isso?!?” Na melhor das minhas intenções, respiro fundo e faço a réplica: “estou doando caso algum peregrino necessite”. Embora seja verdade que peregrinos emprestem ou doem equipamentos entre si, dificilmente alguém precisaria de algo já no segundo dia. Mesmo assim, vai saber. O cuidador do albergue resmunga algo. Decido treplicar seu gênio irritante: “se não tiver onde deixar, jogarei fora”. Ele percebe a situação e volta atrás. Diz que fará algo.
    Deixo o albergue para trás e sigo através da adormecida Guillena seguindo as flechas amarelas marcadas em paredes, muros e latões de lixo.
    Passo pelo prédio de onde seria o albergue público local no meu lado direito, felizmente fechado para reformas. O aspecto da construção era horrível, parecia uma prisão com poucas janelas dando uma sensação de claustrofobia só de olhar.
    Sigo caminhando e volto a pensar no dia de ontem comparando com o de hoje.  Novamente, deixado para trás pelo holandês, ele em seu passo e sua fome por um desayuno (café da manhã), e eu no meu caminho. É claro o fato, mas indigesto de aceitar. O dia de ontem foi a primeira vez, até mais de uma e também não seria a última. Teimava em me prender a isso. Bem, a teimosia se vence pelo cansaço dela através de eventos repetidos em doses homeopáticas.
    Caminhando chego num rio, Río Rivera de Hueva, onde deveria cruzá-lo andando sobre pedras, pelo menos o guia impresso assim indicava. Penso bem, olho ao redor e vejo uma ponte um pouco mais para frente. Sim, por que sofrer? Cruzo a ponte, caminho algumas centenas de metros. Perco-me por 10 segundos, tiro o guia da mala. Quem vejo logo atrás de mim? O holandês (déjà vu?). Ajudo-o a encontrar o caminho de terra paralela à estrada de asfalto cuja dureza faz as pontas metálicas de meu bastão de caminhada fazer o insuportável barulho “tec, tec, tec”. Seguimos juntos até seu passo apertar. Cada um na sua, e eu, para trás. Dor é dor, individual, solitária e onipresente.
    A trilha fazia uma curva a ponto de voltar para a estrada, cruzamos ela, havia um posto. Antes de seguir viagem, o holandês queria fazer uma parada fisiológica no banheiro. Decido esperar. Seguimos por ruas laterais até chegar na trilha, claro, sempre seguindo fielmente as flechas amarelas.
    Era isso, chegamos a uma trilha em formato de corredor devido às cercas de 2 propriedades rurais que delimitavam o caminho. Dali em diante, não teríamos mais a cidade para nos apoiar.
    Tal corredor era um caminho rural em aclive que estava completamente encharcado, melhor, enlameado. Parecia uma saboneteira de terra criada pelas chuvas na região dos dias anteriores.
Sim, aclive. Outro ponto muito importante a se destacar no caminho é a variação altimétrica da etapa. O guia indicava que Guillena ficava próximo ao nível do mar enquanto Catiblanco de los Arroyos próximos dos 370 metros. Acredite, a distância da etapa é secundária se considerarmos outros 2 fatores preponderantes na dificuldade do trecho. Um deles é fixo, a altimetria devido à geografia local. O sobe e desce afeta muito as pernas em sua plenitude. Coxas, panturrilhas, calcanhar, etc. Daí a uso “obrigatório” (não mando em ninguém) dos bastões de caminhada para poupá-las. O outro fator é variável conforme o dia, a meteorologia. No entanto, deixarei isso para outro momento.
    Ia no meu passo, com as botas pesadas envoltas em botas de lama calçando minhas botas. Sim, a lama era funda. Se estivesse chovendo, este trecho seria quase impossível.
    O holandês acelera e, sem dizer nada, some do radar. Olho para trás, um senhor me segue. Penso se a informação do cuidador do albergue era verdadeira, de que a próxima cidade possui um pequeno albergue. Haveria lugar para mim? Um passo por vez, tinha algo pior para lidar no momento. Sim, é possível que alguém esteja numa situação pior que a sua pois vejo um espanhol empurrando sua bicicleta aclive lamacento acima.
    Para minha sorte, meu pé direito não dói muito apesar desta 1 hora de tortura movediça com ascendência constante. Para cada 2 passos que dava para frente, sentia voltar 1 (engraçado que meses depois estaria em situação semelhante numa duna na Mongólia, mas isso é papo para outro livro).
    Passado o trecho da lama que meu guia carinhosamente chama de Toboganes (penso que a tradução é desnecessária), pareço ter chegado num ponto plano (foto). Ando por um caminho entre árvores frutíferas, no caso, laranjeiras (essa foi fácil de acertar, mas não se acostumem). Pássaros cantam coroando a chegada desta meta. Felizmente, isso se repetiria sem cessar, caminhando ou não.
    Nesse plateau, eu me surpreendo ao encontrar o holandês ao celular tentando conseguir sinal para falar. Passo por ele. Ele me faz um sinal com os olhos. Sigo e deixe-o para trás.
    Pouco tempo depois, eu no meu caminho e ritmo, vejo 2 senhores batendo fotos de vacas. Pareciam amigáveis (os senhores) e decidi segui-los. Quem diria que esses 2 iriam fazer parte do meu caminho por tanto tempo? Renovar a fé com o desconhecido, deixar para trás as expectativas.
    Fazemos as perguntas clássicas iniciais para se conhecer enquanto andávamos. De repente, ouvimos um som de rádio ao fundo. Ué? Aparentemente, alguém que não queria se ouvir.
0 notes
jukjec · 4 years
Text
Post 5 - Diário do Caminho de Santiago de Compostela - Entreato
Pausa para respirar e explicações
Data 13/09/2020
Local: Joinville
Distância: 0 km
Tempo: Nublado
     Tendinite no pé direito, bolhas no pé, caminho bloqueado pelas águas de um rio, um (quase) ataque de cão, túneis que não levavam a lugar algum e albergue (quase) sem vagas. Eu sei, o primeiro dia foi pesado e pode ter até assustado o hipotético leitor dessas memórias e aspirante peregrino do caminho. No entanto, não se preocupem (alerta de spoiler) porque os próximos dias não foram tão difíceis quanto esse, embora outras adversidades de ordem menor, persistentes e contínuas tenham ocorrido e me acompanhado em minha jornada.
    Por exemplo, ao chegar no albergue ao término da etapa 1, o “fascinante” e engraçadinho cuidador do albergue nos disse que tal bloqueio da trilha pelas águas do rio engordadas pelas chuvas da região raramente ocorriam. Na hora pensei: “por que os Amigos do Caminho de Sevilha não me disseram nada?” Claro, na vida queremos um manual para tudo, porém, não é assim que funciona. Não era para ser a etapa mais difícil, mas acabou sendo. Paciência.
    Além disso, gostaria de fazer alguns esclarecimentos antes de prosseguir com o dia 2. É provável que eu devesse ter feito mais uma publicação chamada “prólogo 3” ou esticar o prólogo 2, mas evitei de deixar a publicação muito longa, apesar de que a Etapa 1 tenha tido quase 8 páginas no Word e, por causa disso, dividida em 2 partes.
    Preciso falar do calcanhar do pé direito, das sandálias e das próximas publicações.
    Eu havia o dia certo para começar a caminhar conforme meu “plano”. No entanto, antes de começar uma caminhada tão longa, era preciso ver se meu calcanhar de Aquiles direito daria conta do recado. Creio que ninguém morra de dor do pé, mas melhor garantir.
    Utilizo meu seguro-viagem que me recomenda ir para um hospital (vou contar a versão curta, já que a longa me levou primeiramente para um hospital no meio do nada). Chegando lá, sou bem recebido, a médica me ouve com meu portunhol avançado e dá seu diagnóstico. Inflamação do tendão do calcanhar direito. Sem raio-X, nem nada, ela prescreve um anti-inflamatório, pomada e repouso. Eu retruco dizendo que estava por começar a peregrinação até Santiago de Compostela amanhã. Ela sem saber que eu iria começar de Sevilha na Vía de la Plata diz que não havia problema contanto que eu descansasse com várias pausas ao longo das caminhadas. Estranho a resposta dela até que ela me pergunta de onde eu iria começar. Respondo categórico. Daqui. O quê?!? Qual é a distância? 1000 km de Sevilha até Santiago de Compostela. Você irá fazer tudo?!? Esse é o plano a menos que a minha condição não permita. A médica de média idade pensa, reflete e me diz. Ok, mas faça muitas pausas para repousar e realize banhos de água quente e fria no calcanhar para que ele se recupere. Pode deixar. Ela sabia que não conseguiria convencer um peregrino que viajou meio mundo a desistir desta empreitada aos 48 minutos do segundo tempo. (Se você achou esse parágrafo confuso, é porque eu dei um “que” de José Saramago, com todas as vênias. Agora pense num livro todo assim, pois bem...).
    Outro ponto, as sandálias estilo apóstolo com tecnologia tipo século XXI. Eu teimoso, querendo poupar peso na mochila e, por consequência, nas costas, não comprei as tais sandálias tão faladas e comentadas em livros, sites e blogs. Carreguei um monte de tralha inútil (a ser dito na próxima etapa) e não cuidei do principal numa jornada longa como essa de realizar o caminho santo, os pés. Se esses não estão bem, não adianta dinheiro, mochila, cajado, concha, carimbos e afins.
    Sabendo do erro que havia feito, vou na Decathlon de Sevilha e falo com um lojista muito simpático que me indica a sandália mais popular da Europa, uma básica de uma submarca dessa loja. Visto elas e ando para lá e para cá. Era isso, elas seriam minhas companheiras quando meus pés não dessem conta das botas.
    O vendedor muito espirituoso sabendo da minha jornada que iria se iniciar a poucos dias, conta de sua história de peregrino. Ele havia o feito várias vezes e numa delas de barraca, algo que aparentemente não pode ser mais feito. Eu preocupado sem ter o guia do caminho, pergunto a ele onde poderia encontrar um. Ele indica algumas livrarias e também fala da associação do caminho local que eu viria a visitar dias depois. No entanto, ele me faz uma ressalva. “Se não encontrar o guia, vá sem ele. Siga as flechas e vá tranquilo”. Sua sugestão não me agradou, parecia fácil para ele dizer isso. Então ele completa. “Um dos caminhos que eu fiz foi assim, sem guia”. Sim, ele havia se entregado àquilo que o dia iria lhe proporcionar, sem saber de fato onde iria chegar após acordar. O destino final da jornada era sabido, mas o caminho era incerto (e não é?). Sem saber, ele me enche de energia. Disse para ter calma e ir tranquilo. Depois de agradecer por sua ajuda, ele me diz: “Ulltreya”. Nada entendo. Então ele me explica que se trata da saudação do peregrino quando cruza outro. Então, este responde àquele com um: “Suseya”. Entendido.
    Depois de comprar as sandálias, eu as utilizei pelos próximos dias até começar o caminho dias mais tarde. O plano seria zarpar no dia após a ida ao hospital, mas pensei bem e decidi postergar o começo da peregrinação para dar aos pés um pouco mais de repouso. No entanto, nenhum dia a mais do que o 29 de abril pois Sevilha iria realizar a Feria de Abril, uma festa tradicional e de arromba que reúne milhares de sevillanos e turistas. Desta forma, os preços dos hotéis e albergues vão para as alturas. O meu albergue iria ficar ao menos 3 vezes mais caro do dia para a noite. Com essa diferença poderia passar 3 dias no caminho (sim, o custo da peregrinação é baixo, mas direi mais sobre isso no futuro). Meio que sem querer, a tal festa me expulsou e a peregrinação iria começar pela força da providência (ou da inevitabilidade).
    Por fim, as próximas publicações serão “interessantes” para eu escrever. Tanto no prólogo quanto na primeira etapa da peregrinação, eu relatei os acontecimentos como um diário bem detalhado, escrevendo longos parágrafos em várias páginas (8 páginas de um caderno pequeno para a etapa 1) o que simplificou meu trabalho ao transpor para este projeto blog/livro. Mas, no final da segunda etapa, eu percebi que estava levando muito tempo para escrever à mão (mais de hora) e resolvi encurtar o processo registrando somente tópicos que preencheram não mais do que 2 páginas para cada etapa. Sim, agora a minha memória será usada ao máximo para juntar os pontos, ou melhor, os tópicos como uma ponte tentando visualizar meus dias que começavam às 6 horas e que terminavam às 22 horas. A qualidade da narração vai cair? Não sei. A ver...
    Esclarecimentos feitos, creio que posso continuar com a segunda etapa.
0 notes
jukjec · 4 years
Text
Post 4 - Diário do Caminho de Santiago de Compostela - Etapa 1 - Parte 2
Dia 1 – PARTE 2
Data 29/04/2017
Etapa: Sevilha à Guillena, Espanha
Distância: 22,2 km
Tempo: Nublado à sol
     Vejo novos ciclistas vindo e faço um sinal de X com meus bastões de caminhada indicando bloqueio. Com o holandês convencido com nossos argumentos de que haveria um jeito de dar a volta, retornamos pelo primeiro trecho alagado onde os ciclistas nos aguardavam. Aparentemente, era um casal de irmãos alemães perto dos seus 50 anos.
    Lembro que perto do jipe abandonado, havia um caminho em direção à uma propriedade rural próxima da Autovía A-66, esta rodovia ia paralelamente à trilha oficial da etapa do dia.
    O holandês olha em seu guia do caminho em alemão, o ciclista italiano olha um mapa em seu celular e os irmãos alemães pensavam no que fazer. Sim, um deles informa, havia uma saída até a rodovia. Os ciclistas partem enquanto o holandês e eu caminhamos até a propriedade rural onde havia um grande galpão onde deveriam guardar tratores e outros equipamentos.
    Minutos depois, havia uma bifurcação. À direita, um caminho em meio às plantações. À esquerda, a rodovia. Então, o holandês decide verificar o caminho à direita para ver se esse seria nosso “atalho”.
    Fico aguardando quando de repente ouço latidos, então, vejo o holandês caminhando lentamente para trás. Quem diria, o melhor amigo do homem agindo como treinado e para o seu “homem” e não para qualquer homem. Felizmente, logo aparece alguém para evitar que o cachorro ataque meu “amigo” holandês. Aproveitamos para perguntar sobre o caminho para Guillena, o dono do cão nos diz que deveremos pegar a rodovia. Penso o que eu faria se o cachorro nos atacasse, pois cada um carregava alguns quilogramas nas costas, bem, melhor não.
    Quando menos esperamos, o ciclista italiano parece voltar para nos dar as boas novas. Ele nos avisa que há um túnel por debaixo da rodovia A-66 para depois seguir numa estrada secundária em direção ao término da etapa.
    Os ciclistas seguem viagem enquanto, nós, os peregrinos a pé, seguimos em nosso passo. Já no outro lado da rodovia, paramos numa área de repouso para comer e descansar. Após 15 minutos, continuamos caminhando até ver outro túnel para voltar ao lado “certo” da trilha.
    Para ficar claro, a autovía A-66 está a alguns metros acima da plantação, pelo menos uns 5 metros, para permitir o tráfego entre os 2 lados através de túneis por onde pessoas, tratores e carros podem passar (quem sabe até para evitar inundações nela).
    No entanto, após dar a volta numa plantação para chegar ao tal túnel de retorno, que estava bem enlameado e ainda molhado, vimos que era um túnel que não dava para lugar algum.
    Sentimos na pele que cada passo errado para trás são 2 para frente. Voltamos à estrada secundária ainda no lado “errado” da rodovia e caminhamos mais um pouco até avistar outro túnel. Esse deve ser o certo, pensava eu. Depois de mais um tempo caminhando, defrontamo-nos com mais lama e água com alguns centímetros de profundidade. Novamente, o túnel não levava a lugar algum. É provável que os túneis tivessem sido feitos prevendo a expansão das estradas rurais no futuro, mas, no momento, não serviam para nada, exceto como abrigo ou armadilha para peregrino.
    Desta vez, doeu o peso da realidade. Estávamos tão próximos, mas não dávamos conta de achar o caminho. É difícil ficar dependente das flechas para guiar.
    Hora de parar e pensar. Decidimos seguir pela estrada secundária até o fim, pois ela precisava levar-nos até Guillena conforme o ciclista nos disse. Enquanto o holandês perdia suas esperanças, eu ganhava bolhas, pois desde minha aventura passando o banhado uma hora antes, eu não usava meias com as sandálias e isso foi suficiente para aparecer bolhas devido ao atrito sandália-calcanhar (olha a dica).
    Um passo por vez...
    Decido repor os esparadrapos para evitar novas bolhas, meus pés estavam uma lástima. Molhados, inchados, enrugados e agora bolhas. Meus esparadrapos eram fracos e finos, o holandês, então, oferece um mais reforçado. Aceito e agradeço.
    Ao devolver o esparadrapo, o holandês me avisa que decide se separar novamente. Por quê? Ficaria sozinho até o fim desta etapa? Bem, sozinho nunca estamos, mas a presença de outro peregrino naquele momento faria muita diferença.
    Meio que perdendo os nervos, digo para ele que não deveríamos nos separar até cruzarmos a rodovia, ainda mais depois de tudo que passamos nessas últimas horas de ajuda mútua, cada um ajudando o outro nem que somente pela presença. E assim, de repente, seria largado ou abandonado (sim, bateu o desespero). Mais ou menos como um trato, ele concorda, depois de passar a rodovia, se ele assim quisesse, ele poderia se desgarrar do grupo e seguir só. Mas o futuro breve mostraria ao holandês suas limitações.
    Alguns poucos minutos se passaram e enfim chegamos num viaduto que passava por cima da Autovía A-66 e uma placa de trânsito nos mostrava a direção certa. Sim, bastava-nos tomar a estrada indicada para em 4 km chegar em Guillena. Isso me confortou como um banho quente num dia de frio. Não víamos setas amarelas, mas chegamos num ponto de “certeza” novamente, aquela que todos buscam enlouquecida e cegamente.
    Nesse trecho, basicamente todo de asfalto, caminhamos no acostamento. Apesar de não molhar os pés ou enchê-los de barro, por incrível que pareça, andar no asfalto é péssimo. Ele é duro, muito duro, fazendo que seus pés sintam todo os impactos da caminhada. Normalmente, isso não ocorre em nosso cotidiano, mas lembremos, eu já havia caminhado quase 18 km naquele dia.
    Quem diria, o futuro se tornou presente e o holandês por vontade própria reduz sua velocidade e fica atrás de mim. Seu vigor físico foi extenuado pelo mental e nada mais o fez desgarrar deste “grupo” até a chegada em Guillena. Seu individualismo me foi claro, esse peregrino não é quem espero ter como parceiro de caminhadas. Era só o primeiro dia, porém, tais atitudes vieram a se repetir com ele e outros caminhadores. Acredite, até o último dia me rendeu... Bem, vamos por partes.
    Outro problema das estradas de asfalto é o seu trânsito. Fora todo o desconforto do corpo após esse dia, o som dos carros passando a metros de vocês é horrível. Felizmente, segundo meus cálculos de cabeça, menos de 10% do Caminho Vía de la Plata é em piso asfáltico.
    Faltando menos de dois quilômetros para a cidade-alvo, um refúgio? Uma trilha lateral à rodovia, um alento para os pés? Que nada, mais lama e alagamentos devido às chuvas, por consequência, mais cansaço desnecessário. O holandês teimou e foi por lá, eu com os meus problemas físicos de até então, decidi que sentiria a dureza e secura do piso da estrada. Haveria muito chão de terra pela frente (quase 980 km) e não seriam esses que me deixariam mais iluminado na peregrinação.
    Era final da tarde, chegamos no vilarejo de Guillena, casas baixas e vielas estreitas em seu centrinho e alguns prédios pequenos ao redor. Hora de encontrar o albergue privado, pois o municipal estava fechado (que bom! A ser explicado amanhã).
    O guia em alemão do holandês apontou para o lugar correto. Havia um senhor de barba comprida em frente à porta. Mal perguntamos se poderíamos entrar, ele nos responde de forma direta: “o albergue está cheio”. O quê? Depois de tudo que passamos, teríamos chegado tão tarde assim a ponto de não conseguir ficar no albergue? Realmente, comecei o caminho com o pé esquerdo.
    Bem, respirar fundo e ver o que o guia do holandês dizia. Deveria haver outro lugar. Quando estávamos prestes a sair, o senhor de barba comprida diz: “esperem”. Ele olha para os lados, um outro grupo de peregrinos chega 2 minutos depois de nós e pergunta se há vagas. O senhor de barba informa que o albergue está cheio e fala que há uma pousada privada logo a frente.
    Fico impaciente, há vagas ou não? O senhor de barba pergunta: “só são vocês dois?” Respondemos que sim. Ele, então, abre a porta do albergue e põe uma placa na porta dizendo que não havia mais vagas.
    Enfim, ele se apresenta. Informa seu nome e, sem querer, sua origem. Seu sotaque alemão quando falava inglês era carregado. Ele diz que é um cuidador voluntário do albergue e que ficaria ali alguns meses. Também notei seu estilo meio louco, matuto, piadista e chato. Tudo que ele falava tinha um ar com essas características do momento que eu pisei no albergue até minha saída na manhã seguinte. Ele mesmo era um peregrino muito experiente, ele viria a nos contar que já havia feito o caminho diversas vezes, mais de 5!
    Como era de praxe, ele nos mostrou onde deixar as botas/calçados sujos, enlameados e cheios de chulé na entrada. No primeiro piso, alguns quartos e banheiro, no segundo piso, igual e, no terceiro, um terraço onde poderíamos pendurar nossas roupas recém-lavadas e molhadas.
    O albergue possuía várias regras. Um banheiro era só para mulheres e para o cuidador, um pequeno luxo que ele se dava já que o outro banheiro era para os peregrinos homens. Estes estão geralmente em bem maior número do que as mulheres no caminho, desta forma, um banheiro bem mais “usado”, se é que você me entende. De toda forma, o lugar parecia novo e bem arrumado. E como todo albergue, havia horários para entrada e saída.
    Tudo foi novidade para mim, chegou enfim o primeiro fim de dia no caminho. Fila para tomar banho e “limpar” o banheiro com rodo, fila para o tanque onde iria lavar minhas meias e roupas usadas neste longo dia e depois arrumar minha “cama”. O cuidador piadista arma a minha cama dobrável e a do holandês no corredor no primeiro piso. Essas camas-estepes salvaram nossa noite.
    Ao redor vejo uma mulher grande de origem dinamarquesa com quem troco algumas palavras. Ela diz que já está em seu segundo caminho após ter feito o caminho Francês anos antes. Ela me dá várias dicas valiosíssimas, inclusive sobre bolhas nos pés, elevação da trilha, grampos (que ela me empresta) e alfinetes (que ela me doa) para pendurar suas meias e roupas de baixo ainda não secas em sua mochila enquanto você caminha. Sim, bater foto de um peregrino de trás no meio da peregrinação é meio engraçado, o que menos se vê é a tal concha famosa com a cruz de Santiago pendurada, ela fica escondida atrás de cuecas, calcinhas e meias. É a vida, somos varais com pernas. Também avisto um peregrino sul-coreano que me chamou a atenção com seus equipamentos ultramodernos.
    Depois de tudo ajeitado, o holandês e eu saímos para comprar suprimentos para o dia seguinte. Encontramos um mercado aberto cuja atendente era uma representante da Andaluzia com cabelos compridos e negros, sorriso largo com um batom rojo (vermelho) da cor vermelha da bandeira espanhola que poderia ser avistado a quilômetros de distância. Comprei algumas barras de cereal enquanto o holandês procurava por chocolate. Achamos outro lugar aberto onde comprei frutas e água.
    Voltando ao albergue, encontramos alguns peregrinos (poloneses?) que recém-chegaram e puderam entrar pois haviam reservado um quarto. Eles estavam todos molhados e nos confessaram que eles haviam cruzado o “rio” que engoliu a estrada rural. Assim como o holandês havia planejado, eles colocaram as mochilas sobre as cabeças e cruzaram o rio com a água no peito. Heróis! Porque sobreviveram para contar a história.
    O sol começava a descer, os dias eram longos na primavera espanhola e era hora de pensar no jantar, a grande refeição do dia. O cuidador matuto disse que iria na praça central a 100 metros do albergue onde havia um restaurante, o holandês, a dinamarquesa e eu decidimos ir também. O cuidador decide ficar em uma mesa sozinho (ele era estranho), enquanto nós, os peregrinos, ficamos em outra do lado de fora.
    Ali jogamos conversa fora falando do dia e das próximas etapas. Novamente a dinamarquesa serviu de guia adiantando como seria as refeições. Falarei mais delas em breve, mas o que eu posso adiantar é a quantidade. Muita comida. Na entrada, um prato de salada com uma cabeça de alface e tomates cortados. O prato principal foi bisteca com batatas. E, por fim, a sobremesa. Para o arremate final, um cafezinho solo (preto ou sem leite) que foi recusado pelos demais da mesa pois tiraria o sono deles. Eu aceitei porque depois do que havia passado hoje, nada tiraria meu sono.
    O vento da primavera do final da tarde soprava gelado. Hora de voltar para o albergue para começar a operação sono. Subo no terraço para verificar as roupas que, apesar do vento andaluz, continuavam geladas e úmidas. Torcer para a lua dar uma mão durante a noite. Lá de cima havia uma bela vista do entorno de Guillena.
    Última passada no banheiro, escovar os dentes e deitar. Ao me deitar, colocar o celular para despertar às 6 da manhã e me preparo para pôr os protetores auriculares para dormir quando vejo o holandês reclamar de alguma luz e barulho. Vejo-o levantando e indo para a cozinha desrosquear a lâmpada e mexer no aquecedor de água. Quem diria, dia seguinte você “faria” luz.
    Hora de dormir com satisfação de missão cumprida. Passou a pressão do primeiro dia (passou mesmo?) e tive vários aprendizados de “sobrevivência” de peregrino. Ponho a venda nos olhos e protetor auricular nos ouvidos.
PS: Calma, apesar dos desafios desse primeiro dia, não desista de ler a continuação ou de fazer o caminho até Santiago de Compostela, caso assim deseje. Na próxima publicação irei explicar muitas coisas.
0 notes
jukjec · 4 years
Text
Post 3 - Diário do Caminho de Santiago de Compostela - Etapa 1 - Parte 1
Dia 1 – PARTE 1
Data 29/04/2017
Etapa: Sevilha à Guillena, Espanha
Distância: 22,2 km
Tempo: Nublado -> sol
Tumblr media
        Volto ao diário depois de 2 dias (eu disse que escreveria em todo final de noite, mas nem sempre era possível), pois a primeira etapa foi muito difícil e durou mais tempo que o previsto como será comentado a seguir.
        Acordei às 7 e pouco da manhã (normalmente peregrinos se levantam às 6 horas) porque queria passar na catedral de Sevilha perto das 9 da manhã quando já estaria aberta para pegar meu primeiro carimbo. Depois de arrumar minha mochila, comer e tomar café, era hora de dar o primeiro passo, o primeiro de muitos.
        Ao chegar à porta do albergue e ver o dilúvio que caía no lado de fora, dei meia volta e papeei com a recepcionista do albergue que me perguntou sobre onde eu iria daquele jeito e tão cedo. Claro, num albergue turístico como aquele, quem acordaria àquela hora e usaria aqueles trajes “estranhos” para um turista? Botas, casaco corta-vento, chapéu legionário, bastões de caminhada e uma concha branca presa à mochila. Pode parecer óbvio, mas ela era venezuelana e não sabia que o caminho poderia partir dali.
        Essa conversa de quase 30 minutos me fez evitar o temporal que caiu na região, ou talvez nem tanto (efeitos dela em breve).
           Faço uma segunda tentativa de começar o caminho.
        A chuva aliviou, era hora de ir. Admito que senti um receio para concretizá-lo, pois uma vez fora do hostel, não haveria mais volta. Sairia do conforto do mundo moderno. Claro que a civilização não ficaria intocável e inacessível, ela sempre estaria ao meu redor, no entanto, com uma relação mais fria do que o habitual. Afinal de contas, a caminhada não é no Alasca e que bom que não o é, que bom que é na Espanha.
        Dado o primeiro passo, tudo ficaria mais fácil. O próximo seria dado na catedral de Sevilha a poucas centenas de metros do albergue para que a minha credencial de peregrino fosse selada ou simplesmente carimbada. Passo pela catedral todo equipado e em meio aos fiéis que estavam numa missa. Um segurança/assistente carimba minha credencial e me deseja “buen camino”. Saio pela puerta San Miguel, a porta do peregrino segundo o segurança, com muita vontade, uma mochila pesada e 1000 km pela frente, sim HUM mil quilômetros.
        Começo a caminhada no perímetro urbano de Sevilha, indo à esquerda da porta. Sigo em direção ao primeiro rio que será cruzado pela puente (ou ponte) de Triana que me leva ao bairro com o mesmo nome. Depois dela, pego a calle (ou rua) San Jorge à direita e depois a Castilla. O interessante deste trecho é perceber como nossas cidades são poluídas visualmente. Fora das cidades, as famosas setas amarelas indicando o caminho ao peregrino quase que brilham por se destacarem em meio a natureza ou vilarejos espanhóis. Na cidade, elas se escondem, o que torna a vida do peregrino de primeira viagem, e pouco confiante, mais confusa.
        Passando por aqui, continuo a ver a cidade acordando, bares e lojas abrindo, carros passando e eu destoando com minhas vestimentas e objetivos para o dia. Enquanto caminho nesta rua curva à esquerda, passo pela a sede da associação dos Amigos del Camino de Santiago de Sevilla onde eu adquiri alguns itens dias antes que valem a pena serem citados.
        Além de tirarem todas as dúvidas sobre o caminho e tentarem tirar o medo (sem sucesso) que abate o inexperiente peregrino, a associação vende o guia deste caminho (algo que não consegui encontrar em livrarias e que será falado com mais detalhes no futuro) e a famosa concha do peregrino com a cruz de Santiago. Já a credencial do peregrino, uma espécie de passaporte utilizado para carimbar os pontos de passagem e comprovar que você é um peregrino (também será explicado em breve), não tem custo, no entanto, os voluntários da associação pedem uma contribuição voluntária para manter o espaço.
        Sigo “curvo” na calle Castilla até a carretera (rodovia, aproveite, a aula de espanhol é grátis) Cádiz-Huelva. Antes de cruzá-la, passo pelo primeiro miliário do caminho, ou seja, marco de distância dali até Santiago de Compostela. O número era grande, 1.000 km. Bato uma foto (que acho ter perdido) e sigo para Camas, primeira cidade fora de Sevilha.
        O caminho segue ao lado da rodovia por pouca distância até a puente de la Señorita, antiga ponte ferroviária, que me fará cruzar o Río Guadalquivir.
        Ali acontece o primeiro encontro com outro peregrino. Ao me deparar com a sinalização de bifurcação do caminho após a ponte, entre “Río” e “Camas”, um holandês da minha idade se aproxima e se apresenta e, depois de um breve diálogo, ele decide tomar o caminho “Río” que seguia quase rente ao rio. Eu, com o calcanhar de Aquiles fatigado e uma recém-adquirida tendinite no pé direito, prefiro o caminho urbano, possivelmente menos acidentado (sem saber, a providência iria me dar uma mão por ter sido conservador). Com um “até mais tarde”, nós nos despedimos.
        Passo por Camas onde faço um rápido descanso e como uma banana (uma das milhares por vir). Ali vejo o segundo peregrino, talvez o maior estereótipo deles. Um senhor idoso, com barba comprida e branca, bastão de madeira e ... um par de tênis de corrida alaranjados novos! Por essa não esperava. Talvez eu nunca mais o veja pois ele estava num passo muito lento (sem saber até então, ele era um gênio por seguir nesse ritmo).
        Continuo a caminhada, passo pela cidade, transeunte ou outro olha para mim e um senhor num bar berra para mim “buen camino”. Chegando em Saltiponce, próxima cidade, eu faço a segunda parada de descanso numa praça quando de repente vejo o peregrino holandês, aquele da ponte, de bermuda e sandálias e com suas botas penduradas em sua mochila. O que houve? Logo mais seria explicado.
        Volto a caminhar, minutos se passam e vejo o holandês vindo de uma rua lateral ao do caminho. Apesar de seu passo mais rápido, creio que ele se perdeu. Conversamos um pouco e, como já era perto do meio-dia, decidimos parar em algum lugar para que ele pudesse almoçar e eu tomar algo.
        Foi ali, então, que ele me contou que o caminho do “Río” estava alagado a ponto de molhar toda a sua roupa até a cintura. Providência? Quem diria, a minha tendinite me tirou dessa, mas só dessa. Ele me diz que esse é o seu segundo caminho até Santiago de Compostela após ter realizado o caminho Francês anos antes. Além disso, ele não havia se perdido minutos antes, mas sim desviou seu trajeto para ver um monumento romano. Eu mesmo havia passado por um teatro romano no centro da cidade (dica de turismo: se você gosta de caminhar e história, esse é o lugar. Não seriam poucos os conjuntos arqueológicos avistados).
        Depois do almoço, sinto o calcanhar latejar após 3 horas de caminhada. Decido calçar as sandálias que são mais leves e, quando vestidas com meias, evitam as bolhas (olha a dica). O problema é transferir os quilos das botas que estão no pé para a mochila.
        Novamente, com seu passo mais rápido, o holandês decide se soltar de nosso grupo recém-criado após alguns minutos caminhando, o que faz todo o sentido, já que cada um deve ir em seu próprio ritmo. Dizemos “até logo” mais uma vez.
        Os próximos quilômetros na avenida Extremadura seriam monótonos se não fosse pela dor no calcanhar que se anunciava a cada passo com o pé direito. O que me acompanhava era o “tec tec” das varas de caminhada batendo no asfalto dessa avenida, som que irrita após alguns minutos apesar da grande ajuda que elas fazem para poupar suas pernas. Esse trecho ainda era urbanizado, principalmente por galpões de indústrias.
        Aqui acontece o primeiro momento de “desligamento” mental do presente. Dizem que é preciso de algumas semanas para entrar no estado de meditação enquanto se caminha, mas em poucas horas eu já entro no estado de “autoflageção” mental. O cérebro nunca para, somente nós mesmos. Acredite, não é preciso estar numa sala quieta, escura e de olhos fechados para meditar, o processo repetitivo e lento de uma caminhada é mais do que o suficiente.
        Eram passadas das 13 horas, fazia quase 2 horas que estava com as sandálias nos pés e, enfim, após passar por baixo da Autovía A-66 (rodovia), cheguei na primeira parte de caminho de terra deste primeiro dia de caminhada (foto). Deixaria a civilização para trás e entraria no caminho de isolamento entre plantações de hortaliças (ou algo similar). Esse caminho rural era, na verdade, o caminho da companhia de água e esgoto de Sevilha. Daqui em diante, seguiria em linha praticamente reta e em terreno com poucas elevações (tópico a ser muito bem explorado nos dias seguintes).
        Caminhava só até Guillena. A saída tardia de Sevilha para o selo inicial me fez perceber que eu talvez fosse o último a chegar no albergue e, por consequência, não haveria vaga para mim (sim, isso ocorre). Porém, como o mantra já oficializado por mim dizia, e eu em voz alta o repetia, “um passo por vez”. Primeiro, chegar em Guillena. Chegar?
        Depois de algumas centenas de metros desse estágio rural, lembro-me de fazer algo que me foi dito enquanto estivesse na Espanha, berrar no meio da cidade. Não tive coragem até então, no entanto, os campos de hortaliças e outras plantas cujos nomes nunca saberei eram as testemunhas perfeitas. Meus pulmões não tão fortes soltaram mais do que voz presa, porém, não suficientes para assustar os veículos da carretera a 200 m à minha esquerda.
        Sandálias não pareciam muito eficientes, pois parece que elas escorregam por não ficarem tão presas aos pés, sem contar as micropedras que entram entre a sandália e seu pé. Eu sempre acostumado a usar tênis fechado fora de casa, teria que me adaptar e acostumar.
        Então, como que por força externa ao da natureza, o vento sopra, mas desta vez a favor. Lembro-me de inúmeras vezes quando ao andar ou pedalar, essa ajuda não vinha, ou se vinha, era vento contra. Parece que sabendo da condição deste peregrino coxo, o vento pôs-se no sentido norte, facilitando os passos deste que vos escreve. Por 15 min ou mais, um sopro divino, previsto ou inevitável, empurrou-me para o passo da vez e, depois, ao próximo...
        Leves subidas e descidas desse caminho quase plano impediam uma visão ampla do que estava por vir. E por que deveria sabê-lo?
        Com meias e sandálias, agradeci por conseguir saltar algumas poças, porque se há algo que me tira do sério é ter o pé molhado (ah se eu soubesse o que estaria por vir). Parei para repousar os pés, comer algo. Um ciclista, aparentemente italiano, passa e pergunta se estou bem. Respondo que sim e digo "buen camino".
        Pouco tempo depois, chego a um ponto um pouco mais alto de onde avisto a primeira “pedra” no caminho. Bem, antes fosse pedra.
        Vejo a caixa d'água prevista no guia, porém, também vejo um espelho d'água de algumas centenas de metros que juntara os dois lados da plantação. No meio dele, o tal ciclista empurra sua bicicleta. Desespero? Calma, ainda estava longe para definir a situação.
        Vou me aproximando da “pedra” molhada. Um jipe de vidros quebrados está abandonado na margem esquerda da estrada, no lado direto, uma cerca elétrica delimitando um terreno. Também passo por um caminho de terra na esquerda logo depois do jipe. Sigo reto em direção ao espelho d'água, ou melhor, à inundação que engoliu 200 a 300 metros da estrada rural com alguns pontos de terra aparecendo como micro ilhas aqui e ali. Sim, as chuvas dos últimos dias, e provavelmente desta manhã, que caíram na região de Sevilha encheram o rio local.
        Não pensei duas vezes, tiro as meias dos pés, recalço as sandálias, levanto as calças até os joelhos, guardo os documentos num lugar seguro e preparo os bastões. Eu iria cruzar o alagamento. Talvez, em outros momentos, bater-me-ia o desespero e refugaria. Não desta vez. Claro que pensei que o acaso, ou a providência, poderia me dar sua graça com um trator para salvar o dia, no entanto, ele não veio.
        Cruzo a inundação com água pelo joelho. Nada muito forte, mas um tropeço custaria uma mochila 2 vezes mais pesada. Logo mais, sinto um pouco a correnteza da esquerda para a direita, bastões dão apoio e, após quase algumas centenas de metros, atravesso a primeira e mais longa parte inundada.
        Caminho mais uns 50 metros em trecho de terra e avisto o ciclista italiano, ele estava parado esperando algo ou alguém em outra parte alagada do caminho. Desta vez o alagamento não possuía mais de 20 metros de extensão, mas sua profundidade era indeterminada.
        O que o ciclista estava olhando ou aguardando? Quando do nada, vejo no lado esquerdo, em meio a mata ciliar, um homem vem pela margem do rio/alagamento com água quase pelo peito. Eu o reconheço, era o holandês! Pela segunda vez a água lhe pregaria uma peça e, pela terceira vez, o veria.
        O holandês vinha segurando um galho de quase 2 metros de comprimento, ele me diz alguma coisa e depois parte novamente em direção ao “rio”, que na verdade era a estrada rural, para verificar quão fundo era esse alagamento. Ele entra e a água barrenta chega a bater em seu peito (estimo que o holandês possuía quase 1,80 m de altura) antes de começar a baixar quando a estrada se elevava. Quem diria, tão perto, mas tão longe.
        Ele volta e decide cruzar esse “rio” reforçado pelas chuvas com sua mochila sobre a cabeça. O ciclista e eu o desencorajamos devido ao perigo de se afogar, ou no mínimo pisar em falso deixando sua mochila ser levada pela correnteza.
        Por que o primeiro dia estava sendo tão duro? Em breve, aceitaria o significado de que a vida é o caminho e o caminho é a vida.
(Continua...)
1 note · View note
jukjec · 4 years
Text
Post 2 - Diário do Caminho de Santiago de Compostela - Prólogo 2
Dia 0 Data 28/04/2017 Cidade: Sevilha, Espanha
Tumblr media
          Não lembro exatamente quando decidi fazer o caminho de Santiago de Compostela, talvez quando morava na França, porém, acredito lembrar quando devo ter escutado sobre ele pela primeira vez.
          Durante minha época de universitário nos anos 2000, em algum papo com um amigo, ele contou sobre sua febre de ler livros de literatura enquanto lia livros acadêmicos, dentre eles, ele leu o famoso livro de Paulo Coelho, “O Diário de um Mago”, cujo personagem principal realiza o caminho como parte do enredo, assim como o próprio autor o fez na década de 80 (livro que eu ainda não li). Para quem não sabe, esse livro é o motivo pelo qual meio mundo ficou sabendo do caminho e deseja fazê-lo.
          Do nada, decidimos. Um dia iríamos fazer o caminho de Santiago de Compostela juntos, sem motivos ou prazos para tal.
          Muito tempo se passou e meus pais decidiram fazer o famoso Caminho depois de ouvir que algum conhecido o havia feito. No entanto, nunca o fizeram (até o momento), apesar de terem realizado alguns treinos, lido sobre o tema e comprado alguns equipamentos básicos.
          Mais tempo se passou, conhecidos fizeram o Caminho, outros comentaram que o fariam ou que sabiam de alguém que o havia percorrido recentemente. Parecia que a peregrinação era como ir para Buenos Aires, todos haviam ido, exceto eu (destino tão próximo que nunca visitei).
          Como já dito anteriormente, morei na França onde conheci outras pessoas que tinham o mesmo sonho. Foi aqui que alguém me indicou ver o filme “The way”, principal motivo de envio de peregrinos da América do Norte, segundo pesquisa empírica minha. O sonho parecia estar lá, mas não a obstinação. Talvez daí a vontade, fazer aquilo que outros só falavam, vivenciar o sonho dos outros.
          Pois bem, estava no lugar e hora certa, morava na França, meu curso iria acabar em setembro de 2015 e por que não terminar minha temporada na Europa com chave de outro realizando o mágico Caminho de Santiago de Compostela? Para essa época do ano, o caminho mais indicado era o Francês com destino ao noroeste espanhol na região da Galícia, cuja capital é Santiago de Compostela. No entanto, a peregrinação foi abortada umas 3 vezes, pois outras oportunidades se abriram e se fecharam na França de outubro de 2015 até o final do ano seguinte.
          Ao voltar para o Brasil, e deixar a França e seus benefícios para trás, no final de 2016, eu me decidira em fazer o caminho em abril de 2017. Até lá, voltaria a pular as 7 ondinhas em praias brasileiras na virada, iria a casamentos de amigos e aguardaria o nascimento do meu sobrinho. Agora era a hora de tomar cabo dos eventos, até um ponto.
          Abril de 2017, volto à Europa, faço as últimas compras (apressadas e desnecessárias) e começo a vida de turista pré-caminho. Grande erro. Abraçar o mundo é perigoso, bem como o orgulho ou a teimosia, que quase me custou a peregrinação antes mesmo de começá-la e que me custaria muito nas semanas seguintes.
          Mas vamos seguir a ordem cronológica dos fatos.
          Antes de começar o caminho em Sevilha, eu fiz turismo na Espanha passando por Barcelona, Madri, Granada e Córdoba. Enquanto as visitava, fiquei dia e noite com minha bota (pesada) de caminhada para me habituar com ela além de evitar mais peso na mochila com um calçado secundário de passeio. O uso e abuso da bota acabou por fadigar meu calcanhar direito em Madri. Fadigar é outra palavra para distender, estirar e/ou inflamar meu tendão de Aquiles. Isso tudo ocorrendo dias antes de começar a “Vía de la plata” (ou também chamado Mozarábe).
          Ah claro, por que esse caminho em vez do Francês? No meio das postergações, uma brasileira na França me comentou dos monumentos romanos que poderiam ser vistos ao percorrê-lo. Busquei no Google e, imediatamente, gostei dele. Engraçado, nunca mais vi essa brasileira (c’est la vie).
          Para situar você no meio disso tudo, darei uma breve descrição sobre os caminhos até Santiago de Compostela. A peregrinação é livre e não possui somente um caminho pré-determinado. Diferentemente do que se pensa, não é um caminho exclusivo e isolado do mundo, são estradas, geralmente, rurais que se interligam passando por vilarejos do interior espanhol. Você pode sair da sua casa e tomar qualquer trajeto até lá. No entanto, há caminhos “clássicos” (que eu assim os chamo) através da Espanha, Portugal, França e Alemanha (depende de onde você parte) que lhe oferecem toda a logística para realizar o caminho como pousadas e restaurantes. Sem contar as famosas flechas amarelas orientando seu caminho com destino a cidade-alvo na Galícia.
          Os caminhos “clássicos” são:
O caminho Francês saindo da França na cidade de Saint-Jean-Pied-de-Port, o mais tradicional, popular e cheio de todos os caminhos
O caminho do Norte que passa pela costa norte espanhola
O caminho Português saindo de alguma cidade portuguesa ou da fronteira norte de Portugal com a Espanha
 O caminho Primitivo, trajeto mais curto saindo do interior espanhol
A “Vía de la Plata” que será longamente descrito ao longo deste livro
E muitos outros. Para mais, sugiro visitar o site España Fascinante (https://espanafascinante.com/camino-de-santiago-espana-fascinante/)
            O mais importante que se deve saber é o tempo (dias, semanas, meses) que você terá para caminhar e, de acordo com esse tempo, escolher de onde começar dentro desses caminhos por pura questão de comodidade. Nada impede de você começar de onde você quiser, porém, talvez não exista a infraestrutura ou descontos para peregrinos em seu trajeto (a ser falado mais no futuro).
          Voltando a mim, eu, querendo ser “diferentão”, escolhi o caminho partindo do sul espanhol, da província da Andaluzia. A “Vía de la Plata” é um caminho audacioso, mais longo que o usual caminho Francês, com 1000 km em 37 etapas, mais desgastante e “perigoso” por ser menos povoado que os demais caminhos. Ou seja, isso faz com que não haja flexibilidade nas etapas diárias. Esse caminho de peregrinação estabelecida sobre uma via romana antiga, prateada pelas pedras brancas, começa em Sevilha e termina em Santiago de Compostela (ou onde tiver que acabar).
          Talvez a ideia de caminhar 1000 km tenha soado algo em mim, uma cifra bonita para se carregar como troféu (invisível e por vezes idiota).
          Já é tarde, estou escrevendo por mais de 1 hora em minha cama do albergue em Sevilha e preciso descansar. O caminho começa amanhã (ou já começou quando sai da minha casa no Brasil?) e espero sentir durante todo o caminho aquilo que senti ao ver a placa com a flecha amarela pela primeira vez no vilarejo de Baena quando viajava de ônibus de Madri para a Andaluzia. Indescritível o que senti! Olhos marejados e um turbilhão de pensamentos. Talvez tenha enfim me enxergado no caminho.
          Chegou minha vez. Sem motivos claros, talvez por uma sucessão ou construção de eventos, eu me decidi em realizar o caminho do santo e de muitos não-santos (a ser explicado no futuro). Quem sabe naquele momento, fui cumprir a promessa de outros ou, então, simplesmente caminhar, o que mais fiz e ainda faço na vida. Talvez esse seja o meu porquê.
          Ultreya e suseya! (Saudação e réplica de peregrinos quando se cruzam ao longo do caminho)
0 notes
jukjec · 4 years
Text
Post 1 - Diário do Caminho de Santiago de Compostela - Prólogo 1
Anos depois
Data: Agosto de 2020
Cidade: Joinville, Brasil
              Primeira pergunta que você, como leitor, deve me fazer é: por que contar essa história? Há tantos livros sobre o tema Caminho de Santiago de Compostela, guias, mapas ilustrados, sugestões de etapas e itinerários, lista de materiais, etc. ou, então, diários de peregrinos contando suas dificuldades e adversidades passadas durante seus caminhos.
              Pois bem, penso que todo mundo tem aquele familiar que passou por algo grave ou triste que poderia facilmente se tornar um livro ou filme, desses que vemos ganhar prêmios mundo afora. Assim, talvez a minha história, longe de ter sido triste (spoiler), possa ser contada com o objetivo de entreter o hipotético leitor, e, quem sabe, a ponto de quem sabe se tornar um livro. Sem contar que das três coisas que devemos fazer ao longo da vida segundo o dito popular, parece-me mais fácil escrever um livro no momento do que plantar uma árvore ou ter um filho.
              Já adianto que não haverá muita informação sobre o caminho como esses guias do mercado, mas caso venha a fazer o caminho, sugiro adquirir um. Não falarei de equipamentos a levar, geografia, relevo, clima, nem darei dicas quentíssimas de peregrino ou, pelo menos, não espere de uma forma muito estruturada. Conforme eu conto os dias no caminho, fragmentos de dicas serão passados aqui e ali, especialmente quando eu via que minha mochila estava malfeita. Acredite, todo mundo se torna um peregrino expert em 2 dias na estrada. Mesmo assim, se tiver interesse, eu li o livro-guia “O guia do viajante do Caminho de Santiago – Uma vida em 30 dias” de Daniel Agrela que descreve o caminho Francês.
               Continuando no gerenciamento de expectativas enquanto escritor, melhor falar já tudo o que não vai ter nas próximas dezenas de páginas. Não espere eu falar do nome das árvores, dos pássaros, das plantações e das flores vistos ao longo do caminho. Isso iria enriquecer muito ao livro e, abusando do trocadilho, até floreá-lo, porém, fui criado em cidade e não sei o nome de quase nenhuma espécie da flora e da fauna. Caso tenha interesse nestes pontos, sugiro ler o livro “Compostela – Muito além do Caminho de Santiago” por Beto Colombo e Mhanoel Mendes que também realizaram o caminho Francês.
               Forma de escrita. Como você deve ter visto até aqui, o livro será no tom de conversa unidirecional com notas feitas no dia da realização da respectiva etapa, geralmente, pouco antes de dormir à noite, por isso a narrativa fará parecer que eu ainda estou na Espanha. No entanto, este livro está sendo compilado e escrito quase 3 após a ocorrência dos eventos. Assim, a história será contada de forma híbrida, com notas da época, mas com reflexões de anos depois. Vamos ver no que vai dar.
               Por fim, quero esclarecer que esse livro poderá ser a parte 1 de 2 livros toscamente chamados neste momento de: “O diário diário de 1000km” ou “Diários de uma tendinite” (spoiler) e o segundo será “World Tour 2017” (título a ser trabalhado). Esse segundo livro, na verdade, abraça o primeiro com fatos anteriores e posteriores à realização do Caminho de Santiago de Compostela. Inclusive, eventos ocorridos dias antes do começo da peregrinação foram determinantes ao insucesso dele.
              O “World Tour 2017” foi como chamei o mochilão feito em alguns países europeus e um asiático. Devido às estações do hemisfério norte, mais precisamente o calor, coloquei o caminho logo no começo da viagem. Não se preocupem, durante este diário, falarei brevemente do que se sucedeu nos dias pré-caminho para não os deixar perdidos até o segundo livro. Claro, se o segundo volume tiver histórias suficientes para ser escrito. A ver...
1 note · View note
jukjec · 4 years
Photo
Tumblr media
Manual do usuário com “DOs & DON’Ts” deste blog para gerenciamento expectativas.
Antes de ler qualquer post por vir, leia este primeiro para entender alguma coisa deste blog.
Este blog falará de diferenças culturais internacionais ou domésticas (quem sabe um dia), não há certo ou errado, somente aquele desconhecido diferente. Não espere dicas, mas poderá vir. Mas irá aparecer: erros, gafes e desencontros. Os posts se dividem em algumas categorias:
Posts antropológicos: discussões bem humoradas de viagens realizadas no além-mar, extra-muros ou nas calçadas tentando decifrar e entender o porquê das coisas (infelizmente não sou filósofo, nem sociólogo). Irei além dos esteriótipos.
Rapidinhas culturais: aquela sequência de informações mal absorvidas que divertem e confundem (inclusive a mim). Acredite, um clássico.
Perspectivas poéticas: tentativas amadoras de poetizar as experiências de viagem, ou seja, djavanear.
Crônicas de turismo: discutir o comportamento do turista enquanto visita.
(”novo”) Capítulos de um futuro livro: posts que compilados deverão se tornar um livro sobre o Caminho de Santiago de Compostela e outros.
(lista não exaustiva)
É isso, tenha a mala sempre pronta e aperte os cintos, pois o andarilho mais confundido com guia turístico vai andar... 
O lema deste blog: há mais entre uma estação de metrô e a Torre Eiffel do que simplesmente belos jardins...
0 notes