Tumgik
kittybull · 4 years
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* 𝖈𝖆𝖓𝖊𝖘 𝖕𝖚𝖌𝖓𝖆𝖈𝖊𝖘 .
A felicidade para alguém como Kitae era fadada à contaminação. Uma noite regada à bebida e companheirismo revelou-se como um evento catastrófico — uma fotografia manchada por nuvens negras, ocultando todo e qualquer sorriso que pudesse ali existir. Era como saborear a infância em sua essência mais nefasta, onde brincadeiras se confundiam com o odor pesado e inebriante do álcool, onde os dias encontravam seu fim em brigas que explodiam como fogo. 
A fúria consumia seu âmago como uma doença, cortante e fatal. Havia socado alguma coisa (não conseguia recordar-se o que, sua visão eclipsada pela angústia), e seus punhos pingavam vermelho. A ira era habitual de si — mas não aquele revirar de seu estômago, a bile subindo por sua garganta enquanto seus olhos ardiam, o desejo de deixar-se chorar gladiando com a necessidade de manter-se forte.
Era irônico, até. Nunca tivera uma família. Não havia ninguém com quem se importasse e, por consequência, ele não importava para ninguém. Era um grande vazio, encoberto por veias saltadas e cicatrizes. Enquanto seu pai bebia, enquanto sua mãe lhe abandonava à própria sorte, enquanto seu treinador contava o dinheiro que Kitae trazia para si, Abel havia feito algo. Ele não ligava para a quantidade de vezes que Kitae fugia do hospital, ou a extensão de sua ficha de delinquências juvenis. Abel nem mesmo parecia ligar para suas grosserias e falas ariscas. Abel lhe oferecia pirulitos, e Abel cantava London Bridge Is Falling Down até que Kitae caísse no sono.
O jovem rapaz não possuía muitas boas recordações, muito menos de sua infância e juventude. Mas, se ali existira alguma luz, esta era denominada Abel. E, agora, via-se em frente à uma porta trancada, ouvindo o desespero do homem que tanto admirava enquanto confortava sua filha, a irmã que nunca pudera ter. Não devia ser assim. Não podia ser assim. Estava tudo errado, fora de lugar, e sua visão parecia girar, como se estivesse em um mundo ao qual não pertencia.
Pela primeira vez, suas habilidades de gatuno foram usadas para uma boa finalidade. Com alguns grampos, fora capaz de destrancar a porta maciça atrás da qual Abel havia se escondido. Foi o primeiro a entrar no quarto, passos lentos e silenciosos. Seu peito se contraiu ao finalmente observar a única figura que lhe oferecera amor. Seus ímpetos dirigidos pelo ódio foram esmagados por uma dor que o deixara sem ar. Queria abraçá-lo, mas não podia. Queria ser egoísta, e trazê-lo para perto, e protegê-lo como ele um dia havia feito consigo — mas não podia. Deitara à sua frente e, ao notar que ele tamborilava o chão, Kitae fez o mesmo. As batidinhas dos nós de seus dedos eram mais frágeis, espaçadas, ocas, enquanto murmurava a canção de ninar que aprendera anos antes.
Passara a madrugada acordado ao lado do professor, a dor em seu peito crescendo exponencialmente — o tinha por perto, mas não pudera trazer paz à mente de outrem. Pela primeira vez em anos, Kitae sentia a necessidade de render-se às lágrimas. Não o fez. Esta foi uma lição difícil que Abel nunca havia lhe ensinado, mas a vida havia o feito em seu lugar. A dor apenas torna-se útil quando transformada em um punhal, e alguém iria pagar.
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