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Contos da Pracinha
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napracinha · 5 years ago
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No Hebdomadário
“Polícia corre pelo amor de Deus eles foram pela rua da farmácia” assim gritou desesperada à beira da janela do DPM de Jardim da Penha uma das três pessoas que viram o carro encostar à beira da praça, que ficava de frente para o supermercado, e um sujeito alto, forte, se aproximar e abraçar duas crianças que estavam brincando. Sequestro? A PM agiu rápido e entrou em perseguição. Acionou outras viaturas. Na altura da Reta da Penha já havia duas viaturas, na altura da Avenida Vitória, três. O carro porém perdeu o controle perto da Praça Costa Pereira no centro logo depois de furar o sinal. O casal de crianças veio a falecer no local junto à dupla de sequestradores, que veio a se descobrir depois, ser um casal.
Pouco antes, enquanto a perseguição acontecia, uma mãe começa a se desesperar ao sair do supermercado e encontrar uma aglomeração de pessoas – apavoradas, em burburinho – ela havia pressentido algo. Logo com alguns segundos descobriu que duas crianças haviam sido raptadas. Uma delas o seu filho. Mas e o outro? Dois flanelinhas informaram “levaram o Piva também”.
Piva chegara em Jardim da Penha há uns cinco meses. Não dizia muita coisa, parecia vir fugido, mas ninguém o procurou por todo aquele tempo. Foi um dos flanelinhas que na primeira noite o perguntou “Não vai pra casa, Pivete?” ao que respondeu com raiva “Pivete não, João Júnior”. E só disse isso enquanto ria o flanelinha, “Nem Pivete nem João Júnior, Piva”, pois João Júnior não sabia que quanto mais se se zanga com um apelido, mais ele pega – pois a função do apelido não é facilitar o nome, mas irritar o dono. Como era garoto sagaz, ficou por ali. Passaram-se alguns dias, e os flanelinhas da praça a ele se acostumaram. Começou a ajudar-lhes com alguns serviços. Pensaram até em denunciar para o DPM, mas quem iria se importar com aquele pivete sem rumo? “Sem pai? Sem mãe?”; “Veio de Cariacica?” alguns o perguntavam, “Responde, Piva” ao que ele unicamente dizia “Meu nome não é Pivete, é João Júnior” e no que os flanelinhas prontamente começavam a rir dele e emendavam uma zombaria qualquer “Piva sim senhor, viu...se achar ruim é pior”. E João Júnior se acostumou aos flanelinhas. Vivendo entre eles, ganhando algumas moedas, ganhando um espetinho ou um pastel de um morador ou outro nas noites de quinta e sexta, conseguindo papelão para se cobrir nas noites de frio. Não se acostumou apenas aos flanelinhas, mas rapidamente pareceu se acostumar ao cimento da calçada para dormir. Acostumou-se também a algumas crianças, uma delas, Belmiro Della Fonte Donatoli, filho de mãe divorciada, funcionária pública, 36 anos, que havia se tornado seu amigo ocasional de jogos na praça. Foi o Belmiro que estava com João Júnior quando do sequestro. A mãe iria no supermercado comprar algo, Belmiro sabia que ela iria demorar e a pediu para que ficasse brincando na praça com o amiguinho. Belmiro inclusive não o chamava de Pivete, mas de João Júnior, em respeito ao amigo pobre, sem endereço, sem rumo, sem teto. A mãe de Belmiro, inclusive, parece que havia acionado a assistência social ao saber da situação do amigo do filho para que algum órgão ou alguém tomasse uma providência, mas ninguém apareceu, ou ao menos não apareceu a tempo. Para os flanelinhas, que faziam questão de usar o Piva e não o João Júnior, o nome da criança, possuía pouca importância e logo quando dos minutos iniciais do sequestro, avisaram ao PM que havia ficado no DPM que Piva havia sido levado junto. O PM demorou a entender até que interrogando mais acabou por saber do nome certo.
A imprensa chegou então ao bairro. Presenciou o momento que o desespero da mãe se tornou loucura ao saber do destino fatal do filho, e do seu amigo. Não conseguiu conversar com a mãe, obviamente, mas conversou com dois flanelinhas. Eles contaram da breve biografia miúda de João Júnior – conseguiram, talvez por tristeza, enfim dizer o nome que ele havia tanto insistido para que usassem no lugar de Piva. Na edição do jornal semanal, no sábado, saiu a notícia estampada na capa, com o nome do casal de sequestrador e das duas crianças: Belmiro Della Fonte Donatoli com idade, endereço, fotografia e tudo mais; João Júnior, um flanelinha, sem idade, foto ou endereço. Foi a única vez, provavelmente na vida, por causa de sua morte, que o nome de João Júnior havia ganhado existência e registro em um papel. E nunca mais se soube nada dele.
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napracinha · 5 years ago
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A Concha Mestra de Yemanjá
Ela estava — como que solitaria en el diván del mundo* — naquele píer à tarde. Debruçada sobre o parapeito de madeira, contemplando a baía de Camburi, Jardim da Penha, a orla, Mata da Praia, o aeroporto, Jardim Camburi, Porto de Tubarão, seu olhar ia até o final da praia e voltava — também percorria a silhueta rochosa do Mestre Álvaro. Enquanto fundeava seu olhar diante das coisas, seu cabelo, contra-paisagem, enorme, caía como uma cachoeira de Matilde até a sua cintura, e o vento, o vento o modulava e o fazia bailar para um lado e outro.
E eu perguntei, quem és tu?
Ela me disse — que era aquela que eu ainda não conhecia, mas que um dia iria conhecer, mas que não tivesse pressa, que o tempo tem a sua bitola secreta que parafuseia algum dia todos os encontros, disse-me, que dali a alguns anos não estaria mais naquele píer assim como anos antes não poderia imaginar que estaria ali naquele exato momento, que ela veio para cumprir um trabalho que ela mesmo procurou, que ele seria curto, mas que a lembrança daqueles anos seria longa, que ela veio feliz, mas que o entorno, aquilo que ela não podia intervir, interveio em seu sorriso, e que, no meio desse redemoinho que trazia tristezas, ela inter-viu, no interior das coisas, uma tristeza que se desdobraria por mais anos...
E eu perguntei, és tu adivinha?
E ela me disse — que não previa, que não podia prever, que não acreditava em previsões, a não ser, a não ser que, houvesse um sentimento que previsse uma dor ao lado que se aproximaria cada vez mais e viesse a se instalar no centro do corpo, e isto porque, ela sabia, sabia porque, havia se tornado uma mestra de sentimentos terríveis, que esse mestrado ela havia obtido nos estudos dos cotidianos insensíveis e que, por mais que soubesse desse sentimento, em nada ela poderia ensiná-lo, a mim, ou a ninguém, disse-me também, que a maneira de lidar com todas as transtornações da vida era uma, era um fechar-se em uma concha, de mar...
E eu perguntei, concha?
E ela então virou-se para mim, esticou o braço em direção a mim, abriu a mão, mostrou uma concha reles miserável sem nada demais, como aquelas que existem aos milhares na orla daquela praia, mas assim ela me contou — que eu não achasse que todas as conchas como aquela, que ela agora segurava em sua mão, fossem todas iguais, reles conchas, e que nem pensasse também que ela fosse como todas as outras mulheres, porque ela talvez havia sido muitas vezes não apenas a pessoa mais triste de Jardim da Penha mas talvez a pessoa mais triste de todo o mundo, que ela acordava triste, tomava o café, mas já no almoço estava com fome, que ela comia, porém a tristeza mantinha-se insaciável, que ela não sabia o que a tristeza queria dela, que estava angustiada, que sua ansiedade se antecipava de tal forma que ficava ansiosa só pela ansiedade que estava prestes a chegar, e disse mais, que quase não sabia mais como lidar diante de tantas coisas, que decidiu um dia andar pela praia, que a areia pesada da praia de Camburi enquanto a fazia afundar ainda mais os pés na areia ao mesmo tempo deixava a sua cabeça mais leve, que ela um dia se cortou ao pisar em uma concha, que houve sangue, e que ela então, que ela havia desistido de andar descalça na areia por uns dias e andaria no calçadão, que iria até aquele píer, no qual eu e ela estávamos agora, e que de lá, se apoiaria no parapeito de madeira e não pensaria em nada, ou que não tentaria pensar, até que então ela...
E eu apenas disse: você?
E ela me descreveu — que em uma tarde de sábado, cinza, ela saiu andando, muito triste, se achando a pessoa mais triste do mundo, e que, fora até o píer, sentou-se na escadaria, olhando o mar, e de costas para Yemanjá, e que, ali sentada sozinha, como se a escadaria fosse o divã do mundo, ela chorou, até que, uma onda pequena e veloz se formou diante dela, que esta onda se arrebentou contra os degraus e que uma concha dali saiu das águas e veio em sua direção, e que, ela sem entender como, agarrou a concha e fechou a mão como se aquilo não pudesse fugir, e que, ela então sentiu, ao agarrar a concha, que não era a concha que estava fechada em sua mão, mas que sim ela agora parecia ter se fechado dentro daquela própria concha, e me disse assim, que ela se sentiu bem, e que virou a cabeça para trás, e viu Yemanjá, e que ela parecia ter por um momento achado que Yemanjá havia também virado a cabeça, mas ela então se levantou, saiu do degrau de pedras e veio sentar-se em um dos bancos de madeira que circundava a figura azul marinha de Yemanjá, e que ela sentou, segurando a concha, e ficou ali fechada, em segredo, ela apenas e Yemanjá, e que se sentiu bem, como nunca antes houvera sentido...
E eu perguntei, uma concha mágica?
E ela me confessou — que quando se sentia triste, antes do encontro com a concha, ela se fechava, que quando havia um problema, solucionável ou não, ela se fechava, que ela se fechava quando terminava um namoro, que se fechava quando precisava ir embora de um lugar que gostava para ir a um lugar que precisava estar apenas por precisar, que ela se fechava quando um namoro parecia começar mas não começava, que ela se fechava quando não entendia um autor ou livro, que ela se fechava quando o seu time perdia de formas vexatórias, que ela ficava muito triste quando passavas horas e horas de sua vida na fila do supermercado da pracinha, e que portanto, por tudo aquilo e muito mais, que ela se fechava, ela e só ela, com toda a sua tristeza, que ao se fechar, ela se sentia a pessoa mais triste que havia no mundo como só ela haveria de ser, que ela se fechava a tudo, e principalmente, que ela fechava o coração para sentir, mas ela me disse também, que desde que teve em mãos a posse daquela concha, que quando ela se sentia triste, ela a colocava em uma das mãos, cerrando o punho, e que a tristeza parecia ir embora, mas apenas enquanto ela estava em silêncio, e que precisava estar em silêncio, mas de alguma forma, que ela não poderia falar enquanto estivesse em posse da concha, mas que devia abrir o coração para que sentisse...
E eu disse, mas falas tu agora! Não tens a concha?
E ela me contou, que um dia veio andar a praia, que decidiu voltar a andar na areia e se se sentaria na areia para realizar todo aquele procedimento mágico, e que, ao andar para procurar um cantinho em toda aquela extensão da praia, ela segurou as sandálias com uma mão, enquanto segurava a concha na outra, mas que novamente, como antes acontecera, uma concha qualquer em que ela havia pisado ferira-lhe a sola do pé, e que, na dor, ela sem perceber, abriu a mão e a concha de Yemanjá escapara-lhe, indo se misturar a todas as outras, e que ela se desesperou e saiu pegando todas as conchas ao redor de seus pés, mas parece que nenhuma mais era aquela, ou como se, ao se misturar com as outras conchas, aquela concha havia perdido o seu encanto, e que, mais ainda, pegara todas aquelas conchas e atirara ao mar indo logo depois ao píer, à escadaria, se sentar, e pediu à Yemanjá para que atirasse aquela concha mágica novamente em suas mãos por meio de uma onda veloz, mas que, disse-me assim, que ela esperou por muito tempo, e não veio onda alguma muito menos a concha, e que então, ela levantou-se da escada, veio sentar-se no mesmo banco no qual havia se sentado quando estava da posse de uma concha mágica, e então olhou para Yemanjá, e que, ela então...
Então o quê?, perguntei eu
E ela me respondeu — que ao fechar os olhos e a mão, que ao ficar em silêncio, ela se sentiu dentro de uma concha, daquela mesma concha mágica que havia um dia obtido, e ela então compreendeu que a concha atirada pelas ondas por Yemanjá apenas veio lhe ensinar a se fechar quando se está triste, mesmo que essa tristeza seja a maior tristeza do mundo, e que, portanto, aquela concha que ela me mostrara no início de nosso encontro era uma concha qualquer, que ela pegara por lembrança pois estava indo embora de Vitória, mas me disse por fim, que talvez aquela concha mágica estivesse agora no fundo do mar até que outra pessoa, tão triste quanto ela um dia esteve, um dia viria ali se sentar nas escadarias por estar triste, e então, ao cair uma lágrima no oceano, Yemanjá sentiria imediatamente, pelo toque de uma lágrima amarga em um mar de sal, a presença da pessoa triste nas escadarias e enviaria a concha mágica para ensinar que, quando se está triste, é preciso se calar, fechar a mão, a boca, os olhos, mas deixar aberto o coração.
Então eu fui embora. E ela também.
 *Um dos versos do Canto II de Altazor, do Huidobro.
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napracinha · 5 years ago
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FLUXOS SENIS ou Sobre a Saudade de um Gesto
Sábado final de tarde 
Será que quem fez viu alguma foto dela?; Como pode ser possível?; Tão real?; Sim, até mesmo aquele jeitinho de ficar em pé deixando o corpo cair apoiado sobre a perna esquerda enquanto a mão fazia aquele ligeiro gesto da altura do peito indo até a cintura quando repreendia a amiga dela!; Como pode parecer-se tanto?; Meu Deus, ou eu vi coisa demais?; Ou foi a iluminação noturna?; Amanhã de manhã volto pra ver se vai estar lá do mesmo jeito!; Não é possível! Ou foi efeito daquela cerveja de brinde que o garçom trouxe? Só porque era de graça? Pilantrinha o garçom, se Miro pedir cerveja de brinde de novo...; Meu Deus que horror, ainda bem...velho...agora vou tomar a Mussielo, Francisco...hé hé...Meu Deus estou rindo sozinho, o que vão dizer “esse velhote pinguço!”? os jovens desse bairro, sabem nada...até se perdem — Mas que se danem...agora eu se eu passo pela Mussielo, Eugênio? Você é Francisco? Você foi o que, Mussielo?...hé hé diabos estou conversando com a rua...
— Viu, viu nada né? Vi...ele quebrou ali pela rua...Paulo, Paulo, você deve ter endoidado, mas hoje o sábado foi animado, só faltou a Joana passar, igual Joaninha, já tem três anos de viúva...coroa linda...ela já descobriu será que tenho andado no calçadão de Camburi só pra encontrar...ela tá lindona...L-I-N-D-A! Tá morando sozinha? Mora é com filho?...
— Seu Miro — diz o garçom — desculpa interromper, é que...
— Nada, nada...tava pensando em voz alta, vão fechar agora? Eu tô indo também, um coroa como eu...quase seis da noite...agora quem assume são os garotos né? Você viu o Paulo saindo hoje por uma rua diferente, Zuna?
— Notei, não, Seu Miro...mas por que? Alguma preocupação?
— Nada, nada não...é que ele sempre vem e volta ali pela Anísio Fernandes, ele mora ali ao lado da Pracinha do Carone...o que será que esse velhote treteiro tá arrumando?
— Pode ser que ele tenha ido passar no supermercado...
— O Paulo? PAULO? — quase gritando — ele odeia esse supermercado aí, o joelho dele é estourado, não aguenta ficar na fila não, nem mesmo a preferencial...
Sábado à noite
Cheguei; Ufa; Rua; Caralho; Sono; Vou tomar um banho; Paulo saiu mais cedo, eu devia ter ido com ele, pinguço sem vergonha, deve tá com algum rolo; Eu vou é dormir cedo e acordo duas da manhã; Procurar o uro pra receitar um remédio que diabo acordar pra urinar...; É; Sono...; Mas amanhã...amanhã vou passear no calçadão; Será que ela vai estar lá?
Domingo de manhã
Nossa e é mesmo ein?; Nossa; É você, Maria? Maria!; Claro que não, mas olha, olha, lembrar lembra; Ela tinha uns 32 anos na época; De quando tinha 32; Sim; De quando veio de Domingos Martins; Saudade; Meu Deus eu vou...; Vou dar uma volta; Calçadão; Depois volto por aqui pra dar mais uma olhada...
— Cansei; Duas horas rodando por aqui igual otário; E essa dor de cabeça?; Será que foi a cerveja de brinde?; Horrível!; Nem água de coco cortou; Hum...; Paulo andando no calçadão? Esse velhote, é algum rolo; Já que não vi Joana, vou seguir esse sacana; Ele vai entrar pela rua do Clube dos Oficiais?; Andando na praia pleno domingo?; Joelho parou de doer?; Ééé malandro...(nossa de novo eu falando alto e sozinho...)
Mas o que...; Mas por que ele anda passando pela Pracinha do Epa?; Aí tem coisa!; O Paulo de rolo?, aí duvido!; Ué, mas o que diabos?!; Ele parou ali...o que ele tá vendo?; Parece que tá até apaixonado, hummm; Ali tem coisa...
Caramba; ele ficou uns vinte minutos parado ali...;
Uma semana depois, outro sábado, depois do almoço
— Paulo, deixa eu te perguntar, antes da primeira, antes do primeiro copo, bebe não, bebe não...vamos esperar o Gio chegar...
— Perguntar o que, Miro?
— Argh...espera aí, espera aí porque eu comentei com Gio, ele quer saber também...
— Ô Zuna, aquela cerveja de semana passada...aquela de brinde...tá enfiando cerveja estragada na gente é? Olha o estatuto do idoso ein seu sacana...mim respeita ô, uma merda de dor de cabeça...
— Viu, aí, Zuna...eu também...
— Você também o que, Miro?
— A dor de cabeça...que inferno...horrível...
— Ah vá, vocês dois! Hoje então não vai ter brinde não...só a de costume? Gelada? gelada?
— E eu vim aqui pra tomar chá é, Zuna? Há há há
— Olha aí quem tá chegando, puxa a cadeira, Gio...
— Paulo, Paulinho do Banestes...aposentado, gente boa...você ein! Miro me contou, cheio dos mistérios...a coisa da vitrine...
— Que conversa é essa, Gio? Paulo disse o que?
— Domingo passado...na Praça do Epa, ele me falou que você ficou quase uma...
— Sim, foi lá pro início da década de 80. O pai dela tinha morrido, venderam a fazenda em Domingos Martins, ela se mudou com a mãe pra Jardim da Penha. Eu ainda morava lá em Goiabeiras...foi ali naquele bar antigo, como é? Não lembro, lá perto da saída da UFES, ela tinha começado a estudar lá, química, eu lembro, sem querer naquele dia decidi ir tomar uma aqui em Jardim da Penha, eu quase não saía de Goiabeiras, era início de março, ela estava lá naquele dia com duas amigas. Eu tinha ido sozinho, sexta à tarde...elas bebiam pouco, ficaram mais conversando, mais de uma hora, aí escuta, caramba, teve uma hora que ela se levantou, a amiga dela disse algo, e, é, ela fez aquilo...eu nunca me esqueci, sabe? A amiga disse algo sobre elas irem à noite numa festa, ela assim, então, não disse nada não, apenas levantou o braço, meio que até da altura do peito, e baixou, desenhando quase um círculo, até a altura da cintura, caramba, Gio, foi tão lindo isso que ela fez...eu lembro perfeitamente, eu fiquei olhando aquilo, eu não tinha visto nunca uma mulher tão linda como aquela aqui em Vitória...
— Nunca tinha ouvido isso, Paulo, você já tinha ouvido, Miro?
— Pra mim também é surpresa...mas e aí, você a conheceu? O que foi que aconteceu depois?
— Nada ué.
— Como assim nada?
— Aí Maria voltou, elas pagaram a conta e foram embora. E eu voltei a frequentar aquele bar até o final do ano. Eu frequentei todas as festas que os alunos da UFES faziam. Foi aí que decidi fazer engenharia, estudei naquele ano, me preparei, cinco anos estudando ali na UFES só pra ver se a encontrava...e
— E? E? Encontrou?
— Não, eu acho que ela tinha mudado de curso, Miro, ou mudou, ou era alguma assombração...ou ela mentiu...
— Paulo, mas como você soube do nome dessa mulher? Do caso do pai dela?
— Ué, eu estava sentado uma mesa atrás. Eu ouvi elas conversando...ouvi tudo...
— Mas olha que safado curioso você ein...
— Gio, vocês não entendem...foi a mulher mais bonita que eu vi em Vitória...nunca a encontrei...Maria, entrou no curso de Química, morava com a mãe, era de Domingos Martins, perdeu o pai...e aquele gestinho com a mão...
— Zuna, trás lá mais uma gelada...que estou ouvindo cada coisa hoje...
— Hummm...peraê, Paulo, seu malandro...já tinha esquecido, perguntei uma coisa e você veio com outra...num era isso não, o que Miro me contou, você tem até mudado de rota, que diabos foi que você estava parado domingo passado ali perto do Epa? Na entrada da Mussielo?
— E esse pilantra do Miro tá sabendo disso como?
— Eu te segui, seu sacana...eu estava no calçadão domingo, vi você entrando ali pela rua do Clube dos Oficiais...
— Aé, mas que putaria tá virando esse bairro...então
— Então o que?
— Teve um sábado que eu saí daqui desorientado, fui andando, inventei, nem lembro mais, eu sei que, sei não, acho que entrei na rua errada e saí na Pracinha do Epa...aí passando numa loja ali por perto, sabe, caramba...eu vi uma manequim...
— Manequim? Como você sabe que era uma manequim? Ela falou algo?
— Manequim de loja, Miro, larga de ser tapado...
— Manequim de loja? Você fala esses bonecos?
— Sim, Gio, ué...
— Zuna, vem cá...
— Fala, seu Miro...
— Olha aí o motivo do velhote, há há há, tá apaixonado por uma boneca...
— Mas puta que pariu viu, apaixonado não, caceta, é que...
— É que o que, Seu Paulo?
— Tem uma manequim ali na loja, Zuna, ela tá assim, meio que, vou levantar, assim, meio que com o braço pra baixo, perto da cintura, que me lembrou uma mulher...
— Ah meu Deus, corta a cerveja de Paulo há há há
— Corta primeiro a dele, Zuna...fica me chamando de safado, e fica cercando mulher casada...seu velhaco...
— Que história é essa, ô Paulo? Tá me seguindo também é?
— Ih, aê, Zuna...lembra o que eu te disse? Que eu achei que esse esperto tava se engraçando pro lado da Joana...
— Mas que vagabundos vocês, a mulher é viúva...
— Há há há...você a conhece, Gio? Conta pra ele, Zuna...
— A Joana num é viúva não, seu Miro...
— Como assim não é?
— Num é não, o esposo dela teve um início de derrame há uns três anos, ele não sai mais de casa...por que o senhor achou que ela fosse viúva?
— Aí eu vou perguntar pro Gio que foi quem me contou...
— Opa, pera lá, Miro...eu te disse que achei, ACHEI, que ela fosse viúva, porque sempre passava por aqui sozinha e sempre vestida de preto...aí o restante é de sua cabeça...
— MAS PUTA QUE PARIU, VIU, VOCÊS!
— Calma, Miro, há há há, olhaê, Zuna...querendo me sacanear dizendo que eu me apaixonei por uma manequim, enquanto ele, há há há, ao menos a boneca não é casada...
— Mas o senhor está apaixonado mesmo pela boneca, seu Paulo?
— Claro que não, Zuna, claro que não...é que, ela, ela me fez lembrar de alguém que eu por pouco, quase havia esquecido...é isso, na nossa idade, o medo é esquecer, e o melhor é recordar, daí que fico olhando pra ela, só pra isso mesmo, pra lembrar, lembrar melhor. E mais.
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napracinha · 5 years ago
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Os imortais de Jardim da Penha
Praça Regina Frigeri Furno, ou Pracinha de Jardim da Penha – por ser talvez a mais famosa de todas do bairro, e também Praça do Epa, era sexta à tarde, Plínio, 8 anos de idade, reaparece na quadra depois de duas semanas sem dar sinal. Ele senta no banco e fica vendo alguns amigos jogarem bola. Dois deles, Rafael, 7 anos e Evandro, 8, deixam o jogo e vem se sentar perto de Plínio depois que o veem chegar. Também se aproximam dele Camila, 7 anos, e Jenny, de 8. As duas garotas sentam de um lado, os outros dois do outro. A pergunta primeira era, claro, sobre o sumiço.
— Fala, Pli, tava onde moleqe?! — fechando o punho e dando uma porradinha de comprimento na mão também fechada de Plínio.
— O meu avô, Rafa, ele se mudou.
— Mudou pra onde, malandrinho? — pergunta Evandro.
— Então, não sei, foi o que pai me disse. Mas vô Gustavo não apareceu mais em casa tem mais de uma semana. Tá todo mundo triste lá, pai disse que ele saiu pra passear num furgãozinho branco, foi ver uns amigos e parece que não volta. Eu perguntei hoje ele de novo, “cadê vô, Pai?”, mas ele disse que vô Gustavo foi fazer uma viagem...
— Nossa, Plínio, eu sei onde seu avô deve estar — disse com firmeza Camila — minha avó se mudou há uns dois anos também e nunca mais apareceu. Sabe que meu pai disse? Que ela foi morar numa casinha que tem lá no alto do Mestre Álvaro, lá no altão — fazendo um gesto com a mão apontando para o alto — seu avô deve ter ido pra lá também ein.
— E a gente pode ir lá? — olha Plínio curioso para Camila.
— Pode não, isso eu sei...dizem que se você...
— Engraçado, eu sei de coisa diferente — entrou na conversa a Jenny interrompendo Camila.
— Engraçado o que, Jenny?
— Tem nada de Mestre Álvaro, a casa fica sabe onde? Lá no mar, ali de Camburi dá pra ver...
— Que conversa é essa, Jenny? — pergunta Rafael.
— A Giovana, lá da escola, ano passado, os dois avós dela foram embora do apartamento que eles moravam. A mãe de Giovana disse que foi mudança, a igual aí o avô do Plínio e a avó da Camila, mas tem nada de Mestre Álvaro não, eles tão velhinhos, não aguentam subir aquele ladeirão, né? Foi a Giovana que me disse, esse furgãozinho branco com as luzinhas vermelhas, eles são o transporte pros avós, daí vem, pega, e leva até ali na beira da praia...
— Quem te disse isso, Jenny? Foi a Giovana? — pergunta Plínio.
— Sim, quem mais? — responde Jenny com firmeza — aí...sabe o que acontece? Vem um barquinho, à noitinha, dá coberta e comida pros vovozinhos, colocam eles no barco e levam lá lonjão, tem um bairro lá no meio do mar...vocês nunca viram aquelas luzes à noite lá lonjão? Lá na praia de Camburi?
— Sim, isso é, as luzes. Eu vejo sempre. Quer dizer que meu vô Gustavo está lá é? E você sabe de mais coisa? A gente pode ir lá?
— Olha, Plínio — explica Jenny — criança pode ir lá não. Muito perigoso, eu mesmo fico imaginando se um dia minha vó for pra lá, não quero que ela mude...
— Ah sim, Jenny — diz o Evandro — meus avós também se mudaram pra lonjão, mas eu ainda vou visitá-los.
— Longe onde? Lá nesse bairro do mar? — pergunta Plínio.
— Não, é lá em Viana.
— Certo, certo, Viana é o que, Evandro? É bairro? — pergunta Camila como se nunca houvesse escutado sobre o lugar.
— Sei o que é não, sei que é longe, viu, Camila...lonjão.
— Então meu avô foi morar no mar? — começou a pensar Plínio em voz alta — vou falar com papai, vai que ele inventa de ir lá...
— Sossega aí, Plínio — diz Rafael — se seu vô mudou, é porque talvez ele queira ficar sozinho. Você só tinha ele? E a vó?
— Essa mora lá então, me disseram, desde antes deu nascer, conheci só o vô Gusta mesmo, que morava com a gente.
Aproxima-se dos cinco reunidos o Marcinho, metido a sabido, de doze anos. Pergunta novamente ao Plínio sobre o sumiço no que ele explica tudo de novo. Ele conta o que tinha se passado e o que acabou de ouvir. Marcinho dá uma risada, mas logo para pois vê que Plínio está triste, mas mantém um pouco o riso e diz:
— Seus bobos, morar no mar? Quem mora no mar é marinheiro ou quem mora em ilha. Seu avô era marinheiro, Plínio?
— Não ué, aposentado. Mas ele não era marinheiro não.
— E como alguém vira marinheiro já velhinho? Vocês realmente não sabem? — pergunta Marcinho olhando para todos — os nossos avôs, alguns dizem que eles na verdade quando somem assim é porque morreram e foram enterrados sem a gente saber.
— Credo, Marcinho, credo, minha vó não morreu não, ela tá viva sim, só não vejo mais — responde meio chorando a Camila.
— Camila, isso é o que dizem sabem, também não acredito nisso não. Esses velhinhos aqui que a gente vê nas praças, andando na feira, eles não morrem. São imortais.
— O que é isso, imortal, Marcinho? — pergunta Rafael.
— Imortal é quem não morre. Morre nunca. Vai viver em outro lugar, sabe? Meus pais são assim. Meus tios me disseram isso. Não é só os avôs e avós não, os pais, as mães, nossos irmãos...sei lá, não sei se todo mundo, mas eu acho que quando a criança não encontra mais o pai a mãe ou algum dos avós, eles foram viver em outro lugar.
— No Mestre Álvaro é? — levanta a hipótese o Evandro.
— Aí eu já não sei não, Evandro...mas alguns aí são imortais...mesmo que você não veja mais nenhum deles...
O tempo. O tempo entra em Jardim da Penha. Dá umas voltas. O tempo se perde entre as praças, entre as ruas, toma a contra-mão, mas avança. Seis horas da noite, Plínio vai até aos bancos da praça onde havia deixado o filho Daniel enquanto fazia compras, e o encontra conversando com os seus amiguinhos.
— Pai — pergunta Daniel — tava falando pra eles aqui que vô se mudou semana passada pra bem longe não foi?
— Foi sim, filho. Foi — responde o pai — agora vamos pra casa. Dá até logo pros seus amigos...
— Eu tô achando que ele morreu e você não quer dizer — diz Isadora, amiga de Daniel, olhando para Plínio de forma fulminante.
— Morreu não, Isa. Foi mudança sim. Ele se mudou pra Viana. O avô de Daniel só queria mais descanso. Muito agitado aqui o bairro.
— E Viana é onde, seu Daniel? — pergunta Isadora por fim ao Daniel.
— É longe, Isa. Lonjão.
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napracinha · 5 years ago
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O Apartamento Que Faltou Sangrar
Sérgio era um homem de quase cinquenta anos, cabelos grisalhos, um terno cinza surrado que o acompanhava por quase todos os dias em seu trabalho no escritório de despachante que ficava em uma das principais avenidas de Vitória. De fato, o terno não era exigência de vestimenta, vestia pois há alguns anos antes chegou a ser gerente de um banco particular, e como bancos particulares não aposentam funcionários, logo quando os cabelos grisalhos começaram a aparecer, a diretoria o chamou a uma reunião, avisou da dispensa e teve de recolher seus pertences, que não passavam de papéis inúteis e uma ou duas canetas vagabundas afinal. Estes não duraram nem um mês, mas não o terno. Continuou a usar como roupa de trabalho no emprego que conseguira graças a um empresário, dono de uma revendedora de carros, que havia se tornado amigo enquanto Sérgio era gerente de banco — uma amizade originada pelas taxas e mais taxas de empréstimo de juros baixíssimos facilitadas para aquele cliente. Assim que foi despedido, contatou o agora amigo, disse-lhe que procurava uma ocupação, ao menos até conseguir se ajeitar e voltar para sua terra natal, Colatina. O empresário ligara-lhe cinco horas depois, uma vaga para auxiliar em um escritório de despachante, dar entrada e acompanhamento em documentos de veículos, essas coisas. Sérgio aceitou. E foi para o novo emprego com a roupa antiga.
O terno era um vínculo sentimental com a sua vida antiga. Teve de vender o carro para conseguir se manter por no mínimo mais uns sete meses no apartamento de Jardim da Penha. Prédio novo, condomínio caro, com o dinheiro conseguiria quitar, além dos débitos de moradia, a escola do filho de onze anos até o final do período. Logo acabasse o ano letivo, ele e esposa e filho, voltariam para Colatina, onde tinha uma casa, que estava alugada e já havia informado ao morador que romperia contrato pois não tinha outro lugar para ficar. O aviso de encerramento de contrato deu-se sem problemas. Assim, tudo parecia estar solucionado em meio aquele ano turbulento. Sua esposa pensava em retomar em Colatina a vida de empresária de panificação – que havia deixado de lado quando há três anos o esposo conseguiu transferência para Vitória como gerente de banco. Mas vocês sabem, banco privado não facilita para o lombo de ninguém. Nem o de Sérgio.
Naquele abril o verão havia se estendido para além da conta na Grande Vitória. Em uma das tardes daquele mês Sérgio desceu suando bicas no ponto de ônibus da Pracinha do Epa. De terno, o terno cinza, possivelmente, era uma forma de se aplicar um flagelo, de se expiar por aquelas mudanças repentinas e terríveis que se passaram nas últimas semanas de sua vida. Andar tão elegante em um ônibus público, com domésticas, estudantes de escolas públicas que não pagavam a passagem, pensava ele — era como que uma humilhação. Uma humilhação que ele não aceitava, mas como sabia ser temporária, se submeteria à mesma. Desceu suado, e decidiu passar rápido no supermercado. Ligou para esposa perguntando se ela queria algo e pedindo, talvez, uma bandeja de peito de frango. Comiam frango incansavelmente, talvez o consumo desse tipo de carne poderia até ser contado pela quantidade de granjas devoradas. No novo emprego, deixaram de comer carne de boi — aquele tipo de carne era como um sacrifício ritual para saciar a fome do condomínio altíssimo da imobiliária. Comprou então seis latas de cerveja, um pacote de biscoito recheado e duas bandejas de peito de frango. Ficou por quase duas horas na fila do supermercado. Quase desistiu. Continuou pois encontrara-se com uma vizinha e ficou ali conversando com ela. No caminho, na esquina do seu quarteirão, parou para conversar com Denguinha, a senhora que vendia água de coco em Jardim da Penha.
Denguinha mostrava uma destreza de mestra no manejo do facão. Em duas ou três talhadas certeiras arrancava o tampo do coco. Sérgio ficou ali sentado olhando para ela, e se antes conversava sobre os fatos do bairro, dos moradores, dessa vez, como se um espírito insuflasse-se-lhe uma necessidade futura, interessou por uma conversa de facão.
— Com quem você aprendeu a usar o facão assim, Denguinha?
— Cê acha que eu não estou cortando direito? — perguntou como se sentindo criticada.
— Não, entenda, não é isso, é o contrário, sua habilidade, é muito boa. Primeira vez nesses dois anos que fui notar isso, você corta com segurança, com rapidez. Muito impressionante — elogiou Sérgio e ela sabia que ele não era um homem de conversas falsas.
— Ah sim, obrigada. Foi com meu pai, ele criou a gente lá em Manguinhos só com dinheiro da venda de coco, quando ele estava perdendo força nos braço, eu fui ajudar ele, já que meus outros dois irmãos haviam partido pra Linhares, trabalhar com móveis, aprendi com pai, sabe? Ele que me deu as dicas...mas... — hesitou continuar Denguinha falando ao que Sérgio percebeu.
— Mas o que, Denguinha?
— Não tem mistério, não Sérgio, na verdade o que você chamou de, foi como? Segurança, isso, a segurança nesse caso, não veio da prática, mas do ódio, entende? Meu pai dizia que era preciso ter raiva de cortar coco, pra cortar algo, é preciso ter raiva.
— E você tem raiva disso?
— Tinha no início, talvez o suficiente pra aprender a cortar coco, depois o ódio, o ódio passou, e ficou só a sabedoria de retalhar...
— E se eu te perguntasse que raiva é essa você ficaria com raiva? — Sérgio esboçou um sorriso de canto de boca ao procurar saber mais.
— Raiva ué, raiva de estar nesse emprego, de cortar coco. Raiva de achar que ganha pouco, mas depois, como disse pra você, acostumei. A raiva deve estar aqui ainda perdida em algum nevro, um pouco na mão direita, não sei...mas ela deve estar aí... — meio que terminando a explicação, chegara mais dois clientes. Para não atrapalhar, Sérgio pagou pela água, se despediu. Disse que outro dia conversaria mais.
Naquela noite Sérgio sonhou com facões.
Sérgio realmente voltou algumas vezes, em média uma vez por semana. Falava dos projetos, da mudança, do emprego. Disse inclusive que conseguiu juntar até mesmo um pouco de dinheiro nos últimos dois meses. A vida passou sem saltos de maio até o último mês da primavera. Chegando início de dezembro, Sérgio diminuiu as andanças pelo bairro. Passava sempre com as caixas de papelão, eram para embalar a mudança, respondia à Denguinha, que achava engraçado aquele senhor de cabelos grisalhos, de terno cinza, passar com aquelas caixas debaixo do braço. É porque ela costumava ver mais os estudantes moradores de república nesse entre e sai doído mudando-se sempre para uma república mais barata. Sérgio, aquele que chegara para morar em Vitória, em um apartamento novo, com carro sedan, agora queimava a sola de borracha do seu sapatinho de luxo transportando caixas de papelão. Sua esposa o ajudava a fazer as embalagens enquanto o filho passava os finais de tarde com seus amigos vadiando na orla de Camburi. O casal colocou alguns objetos, pertences, à venda em páginas de internet. Era visível o constrangimento de Sérgio passando com aquelas panelas, vasilhas, indo até a praça para entregar o acordado com o comprador. Na volta, mais algumas caixas de papelão. Reclamou tanto do atendimento daquele supermercado pelos dois anos, mas ao fim era o supermercado que o ajudava na mudança lhe fornecendo caixas e mais caixas de papelão.
Foi o primo de Minas, que morava há alguns anos em Colatina, e fazia frete, que veio um fim de semana para começar a levar algumas coisas, dado que ele tinha apenas um utilitário não muito grande. Calculara duas ou três viagens para conseguir levar tudo. Mineiro que se porta em um litoral como fagulha de ferro diante de ímã, não aguentou ver aquele mar e ficou toda à tarde de domingo tomando banho e deitado na areia. Voltou com o corpo brilhando de minério como se fosse purpurina. Era quase um corpo festivo em carnaval. Na segunda de manhã partiu. Naquela mesma semana, Sérgio procurou a imobiliária, que já estava a dois meses de aviso, de que ele iria deixar o apartamento. Eles agendaram a visita do técnico para avaliação quatro dias depois. A visita se deu em um sábado de manhã. À tarde Sérgio procurou Denguinha, para voltar ao assunto dos facões.
— Denguinha, como você amola esse facão?
— Lá vem você com interesse de facão ein, Sérgio...engraçado que se você me perguntasse isso há dez dias, eu nem saberia responder, mas agora sei...
— Ué, como assim, Denguinha, entendi nada! — puxando um dos banquinhos de plástico para perto de Denguinha e sentando de costas para a rua.
— Sim, assim, eu não saberia explicar mesmo não, é que, passou um professor de filosofia aqui, acho que é da faculdade, uma conversa toda engraçada, e nem lembro mas a gente acabou falando de facão também, ele me contou uma coisa engraçada, uma fábula, é, a palavra foi essa, fábula, de um tal de açogueiro da machadinha, que cortava, e enquanto ele cortava ia afiando o machado.
— Uma fábula? Esses povo de filosofia, viu...e será que não é alguma invenção dele não? — perguntou rindo.
— Bem isso eu sei lá, parece que é uma fábula chinesa ou armênia, não lembro, japonesa? — parou pensando alguns segundos tentando lembrar — acho que chinesa..ih, não sei, mas isso que você disse aí, engraçado, ele falou algo disso também, que filósofo é pra ficar contando umas estoriazinhas sim...que eles ensinam contando as coisas.
— Amolar amolando? Não parece confuso isso, Denguinha?
— Parecer parece, mas depois que ele foi embora, fiquei pensando, cê sabe que de fato nunca afiei esse facão? É como se fosse isso mesmo, ele vai se afiando enquanto vou usando...mas por que você quer saber de facão, Sérgio? Já está de muda?
— Então, Denguinha, é isso mesmo, acho que semana que vem já consigo me mudar. Hoje veio um puto da imobiliária, uma conversinha danada, disse que no contrato estava umas coisas assim e outras...pior que perdi a minha cópia de contrato, será que era isso mesmo que estava escrito? Eles mudaram? Não sei, mas esses putos, olha, imobiliária, ô coisa desgraçada viu, vou tentar dar um jeito, enfim, sobre o facão, meu primo disse que a minha casa lá em Colatina, o antigo morador deixou a chave há um mês com meu primo, mas cresceu um mato, até a figueira que estava pequena, uns arbustos, disse que a coisa tá feia, e meu primo quando entregou a primeira parte da mudança lá, comentou comigo “só na base do facão mesmo pra cortar esse mato, tá igual selva”, aí lembrei, vou ver com Denguinha, sobre facão.
— Então, Sérgio, facão novo acho que vem amolado, essa marca aqui é boa, compra um, traz aqui pra mim, eu uso em uns dois cocos e já vou ter como saber se está bom, ok? Aí te digo se precisa amolar ou não.
— Tá certo, Denguinha. Segunda de manhã eu corro lá na loja e compro um. Quarta é meu último dia no emprego — disse Sérgio já se levantando do banquinho.
— E quando é seu último dia aqui em Vitória?
— Acho que sexta, mas te aviso...
— Seu filho ein, Sérgio? Ele vai sentir falta né? — interrompeu Denguinha.
— Sim, minha esposa acho que não, ficava mais em casa, ia mais no supermercado só, mas ficava tanto tempo na fila, que ficava puta e até isso deixou de ir, meu filho tem os amiguinhos dele aí na praia, mas ele acostuma. Vai correr na beira do Rio Doce agora...como antigamente — disse rindo alto e começando a ir embora.
— Certo, então quando você comprar o facão me traz aqui, ok? — se despediu Denguinha fazendo o gesto de joinha com o braço.
Na segunda na hora do almoço, Sérgio, que costumava almoçar perto do trabalho, almoçou em Jardim da Penha. Passou antes e deixou com Denguinha o facão novo. Ela achou muito bonito. Era um Corneta, 18 polegadas. Rígido, firme. Quando usado, sua lâmina parecia dar tapas no ar, vibrava e sossegava no mesmo instante. Muito preciso. Denguinha era só elogio ao facão quando o devolveu para Sérgio ao final do dia. Disse inclusive que esse facão fez até mesmo ela pensar em comprar um novo para substituir o antigo que possuía. Sérgio agradeceu muito ao favor que ela fez. Na quinta-feira de manhã, eles viajaram. Bem cedo. Quase nenhum morador de Jardim da Penha presenciou aquela partida. Sérgio já havia avisado a todos os seus conhecidos. Quinto meio-dia já a família já estava em Colatina desembalando as últimas coisas da terceira leva da mudança. No sábado ele reapareceu em Jardim da Penha, encontrou-se com Denguinha, disse que havia vindo para fazer alguns pequenos reparos no apartamento, e provavelmente voltaria na segunda para entregar a chave na imobiliária. Sérgio passou a tarde de sábado sozinho no apartamento. Os vizinhos escutaram estranhos ruídos, chegaram a pensar o que poderia ser, dado que estava vazio de móveis, mobília, a não ser os embutidos da cozinha e quarto. E bem, como eram reparos, pensaram, pode ser ele tendo de arrancar uma coisa ou outra. Sábado à noite ele voltou para Colatina.
Na madrugada de domingo para segunda, Sérgio voltou silenciosamente em Vitória. Na portaria, acordou o porteiro que tirava um cochilo. Pediu-lhe um favor. Passou na imobiliária às cinco e meia da manhã, sem o vigilante perceber, Sérgio atirou as chaves do apartamento dentro de uma sacola com o endereço e número de contrato anotados em um papel para eles saberem de qual unidade alugada eram aquelas chaves. Voltou para Colatina no mesmo momento. Na viagem ia relembrando os dois anos em Vitória. O início feliz, a praia, a pracinha na sexta, a sinuca, os bares, a ida com a esposa em alguns shows, o filho que gostava do calçadão. Uma vida sem adultério porém com muito minério nos pulmões. Isto era uma das coisas ruins que levava: uma irritação desenvolvida nos pulmões por ter inalado tanto pó de ferro durante aqueles anos. E principalmente se recordava das coisas ruins, da demissão, do ônibus lotado indo para o novo emprego tampão, o terno cinza, a imobiliária, sim, a imobiliária é que lhe trazia as piores recordações. Retomaria a vida em Colatina, não sentira saudades do sol da capital, mas talvez da brisa do mar.
Denguinha chegou com o seu carrinho de coco às oito da manhã na esquina que vinha trabalhando há uns cinco anos. Antes mesmo de atender o primeiro cliente, o porteiro do prédio de Sérgio apareceu com aquele pacote, estreito, amarrado em papelão. Disse que fora o Sérgio que pediu para entregar somente a ela. Era o facão. Um facão Corneta 18 polegadas. Não aquele que ele havia comprado, mas outro. Novo. Isto ela pôde confirmar com o pequeno bilhete que Sérgio havia deixado junto escrito em letras de forma:
DENGUINHA ESSE FACÃO CORNETA 18 POLEGADAS É NOVO. COMO VOCÊ GOSTOU, DECIDI COMPRAR MAIS UM NA MESMA LOJA QUE COMPREI AQUELE MEU E ESSE É DE PRESENTE E AGORA VOCÊ TEM DOIS. O OUTRO QUE VOCÊ AVALIOU ESTÁ AQUI COMIGO EM COLATINA. FORTE ABRAÇO. SEU AMIGO, SÉRGIO.
 Denguinha, se fosse mulher de chorar, teria chorado. Agradeceu ao porteiro, mas ficou mais agradecida ainda a Sérgio pelo presente, mesmo que ele não estivesse ali por perto. Com três ou quatro cocos cortados, ela percebeu que o facão novo era tão bom quanto o anterior que ela havia testado para Sérgio. Tentou se lembrar, mas parecia ser a primeira vez que ganhava um presente. Lembrou-se do seu amigo, e cogitou que talvez pudesse ficar muito tempo sem notícias dele. Mas não foi o que se passou. Na mesma semana ela já teria informações sobre ele, e isso no jornal noturno do estado, mesmo que não haviam citado o nome, mas pelo endereço e pelo ocorrido, ela sabia que falavam do Sérgio. O motivo? Na segunda à tarde foi um funcionário da imobiliária no local. Ficou assustado com o que encontrara no apartamento, mas teria certamente se assustado muito mais se aquele local fosse feito de carne e sangue e não de concreto e madeira. Sérgio usou o facão para retalhar o apartamento de cima em baixo. Deu facãozadas violentas, não foi preciso perito nenhum para saber que se tratava de marcas feitas por um facão dado os sulcos em todos os lugares, onde fora possível. Decepou o cano do chuveiro, o alumínio do box, retalhou os armários embutidos do quarto e da cozinha, cacetou as torneiras de inox e os mármores das pias com o facão. Também retalhou as portas todas. As janelas de vidro foram poupadas, talvez porque isso indicaria aos vizinhos e ao porteiro, o que eram afinal aqueles ruídos que haviam escutado dias antes. O funcionário, enfim, tirou fotos, voltou à imobiliária e todos ficaram incrédulos diante do ocorrido. Tentaram ligar para Sérgio, mas ele não atendeu as ligações. Chamaram um investigador e ele conseguiu descobrir o endereço de Sérgio, mas não conseguindo informação nenhuma com Denguinha, pois o caso do local retalhado de facão apareceu no jornal da terça à noite com a chamada de “O apartamento que faltou sangrar” e, vendo tudo isso, e de todo o problema enfrentado por Sérgio nos últimos meses, Denguinha decidiu que não iria falar nada sobre o seu amigo. Inclusive vendo o jornal, as conversas sobre o facão fez todo o sentido para ela. Vendo as imagens até mesmo disse a si “Ele realmente aprendeu a cortar. Olha esses cortes, cortou com raiva”.
O caso chamou a atenção de todo o estado. Na quinta-feira, após diligências, e pressão da imobiliária, dado que o dono era amigo do secretário de segurança pública, a polícia militar apareceu na porta da casa de Sérgio em Colatina. Tudo foi filmado ao vivo no plantão. Sérgio recebeu a polícia com o facão na mão. E disse que não pagaria nenhum real a mais para aqueles putos, aqueles putos ele se referia à imobiliária. O estado parou para ver aquele homem, de cabelos grisalhos, mas não mais de terno cinza, balançando no ar o seu Corneta 18 polegadas.
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napracinha · 9 years ago
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As sete armações de Vulcão
Desde que seu esposo José Maria falecera há dois anos, a senhora Maria José tinha por distração e ocupação vigiar obliquamente os movimentos dos carros, pedestres, ciclistas, crianças, bichos, as folhas dos coqueiros, o vento e tudo aquilo que passava na avenida do litoral. Obliquamente porque seu apartamento dava visão transversal. Ela não morava propriamente na avenida, mas uma rua atrás. Religiosa como era, apreendera da mãe e cultivara o costume durante muito tempo com seu marido, coincidentemente seu oposto no nome mas parceiro na vida, de ir às missas e celebrações religiosas em todas as igrejas do bairro. Até naquela igreja que ficava meio escondida em uma casa. A igreja foi feita na casa construída ou já fizeram a casa pensando na igreja? Ninguém tem resposta para isso.
A religiosidade daquela senhora podia ser comprovada no seu estranho gesto de orar aos desconhecidos que estavam nas ambulâncias que passavam na avenida. Por isso ela sempre olhava para confirmar ao ouvir se era mesmo ambulância porque os sons de viatura são bem parecidos, e pela idade da senhora Maria, ela precisava do visual. Mesmo que houvesse o risco de não ter ninguém na ambulância ou por ela estar indo pegar o necessitado ou mesmo, há quem diga, de não ter ninguém dentro e a sirene não passar de um mero estratagema para se conseguir passagem nos engarrafamentos da capital. Esse risco ela desconsiderava ao orar. No caso de ser uma viatura, a legalidade se apresentava antes da piedade: a oração era para que a polícia conseguisse pegar o ladrão. Alguns poderiam bem questionar o estranho paradoxo que surgiria ao informarem-na que o paciente da ambulância fosse um bandido que houvesse se estrupicado na perseguição. Talvez ela dedicasse oração à polícia antes, e depois deixasse umas frases de intercessão para o fora-da-lei. Vai saber...
Seu filho morava no bairro ao lado. Entre a mãe e ele tinha o aeroporto. Era casado e tinha duas filhas. Uma delas, Itaciba, gostava tanto de bicho que socorria todo aquele que achava na rua. Ela não era tão religiosa quanto à avó, mas revelava igualmente uma caridade e cuidado de forma um pouco mais prática. Um dos bichos que ela chegou um dia carregando nos braços do apartamento era um vira-lata de médio porte, de cor meio avermelhada. Esse cachorrinho chegou com nome. Dizia Itaciba que ele estava em frente a um dos quiosques, meio desmaiado e tossindo um pouco. Ele soltava uns pequenos golfos de pó brilhante. Sem maldade, e não tanto por causa da cor de fogo, Itaciba deu o nome ao coitado de Vulcão.
Sua mãe, ao que parece, ficou um pouco confusa. Era a primeira vez que Itaciba levava um animal desse porte. Havia levado um ou duas vezes uns gatinhos bem pequenos que logo depois eram doados. Passarinhos, alguns. Mas cachorro, Vulcão foi o primeiro. O pai, que trabalhava numa empresa bem perto de casa, chegou algumas horas depois e mais do que recriminar a filha, procurou considerar como positivo aquele gesto de adoção. Itaciba contou-lhe a estória do achado e o porquê do nome. O pai deu uma olhada e conseguiu notar que nos dentinhos brancos de Vulcão havia alguns pontos luminosos por causa do pó. Era minério. Mas ele não quis contar para a filha. A questão é que Itaciba e todos os outros da casa sabiam que Vulcão não poderia ficar ali. O prédio não permitia animais, apesar de terem um síndico que de vez em quando agia quase como um. Ele lembrou que a mãe morava sozinha. E que ela gostava de cachorros. Como ficaram com piedade do cachorro, ao invés de tentar doá-lo, decidiram conversar com Maria José para ver se não haveria problema. O prédio dela não proibia animais. Bastava descobrir se ela, naquela altura, aceitaria uma doação e o compromisso de cuidar. Se aceitasse, Itaciba continuaria a ter contato com Vulcão.
Deram-lhe um banho e na mesma noite levaram até ela. Aprovou no ato. Bastou olhar os olhinhos de Vulcão – que havia quase virado um depósito orgânico de minério – e disse ao filho e às netas que ali seria sua nova casa. Logo no outro dia, tratou de levá-lo ao veterinário. Esse contou que alguns animais da cidade tinham uma sensibilidade maior ao ar infestado e pesado da cidade, mas que com alguns cuidados, com uma boa alimentação, Vulcão (nome que no veterinário provocou bastante compaixão) seria um cachorro saudável.
Foi tanto cuidado que nas primeiras semanas o significado do nome Vulcão se justificava por outra característica: suas erupções intensas de energia no apartamento. Criava um percurso todo particular no apartamento. Corria ao redor da mesa de centro, subia no sofá, depois descia e dava uma volta atrás do mesmo sofá. Daí corria para a cozinha, rolava, e parava de frente para o vasilhame que tinha a ração: balançava o rabo e comia. Aos poucos a energia de Vulcão, mais do que cansar Maria José, acabou por contagiá-la. Com uma coleira, ela fazia longas caminhadas no calçadão. Quando cansava, sentava em um dos bancos e caso passasse uma ambulância, podia até mesmo orar discretamente. As suas netas, Itaciba e Aurora, a bela, mais velha, também quando visitavam a avó, saíam para passear com Vulcão. Mesmo tendo crescido, aquela sensibilidade em relação ao ar continuou lhe seguindo: bastava uma ida ao litoral e um pouco daquele ar o fazia pigarrear. No apartamento, devido à posição, o pó não castigava tanto. Davam um xarope e ele melhorava. Com essa boa dedicação, Vulcão quase não expelia mais pó.
Quando ia ao supermercado, para não deixa-lo só no apartamento, Maria José levava Vulcão e o deixava amarrado em um dos corrimões de metal. Vulcão, por estar em muita atividade, acabava por fazer amigos. Se tinha algo que chamava atenção era sua capacidade de quase dialogar apenas pelo olhar. Mesmo se não fosse capaz de latir, ele ainda poderia participar desse estranho comércio entre homens e animais. Com o latido, no entanto, ele se comunicava apenas com os bichos. A senhora Maria evitava de fazer compras com muitos volumes pois, precisava de uma mão sobrando para administrar Vulcão pelas calçadas. E comprar pouco significava ficar também na fila dos caixas de dez volumes – chamados de caixas rápidos, o que não condizia em muito com a velocidade, porém...
As idas às missas não ficavam prejudicadas com a presença de Vulcão. Como costumavam demorar menos que as idas ao supermercado, Vulcão ficava sem atividade canicísmica ao ser isolado em um dos quartinhos no fundo do apartamento. Mas teve um dia, que o padre ficou um pouco mais empolgado e até quebrando aquele ritual milenar do culto que pressupunha um certo horário de duração, ou era aconselhado, não se sabe, (aqui pecamos por falta de conhecimento), a missa se arrastou uma hora a mais. A senhora Maria acabou por se distrair e não se preocupou tanto com o horário. Foi no caminho de volta que lembrou da punição mais demorada a Vulcão naquela noite. Para piorar, ao chegar no apartamento, descobriu que a ração havia acabado. Por ter vivido um tempo na rua, Vulcão tinha desenvolvido a resistência ou habilidade de consumir comidas ou até mesmo aquilo que chegasse próximo a uma ideia de comida. Ao soltá-lo, Vulcão foi direto à lixeira e acabou comendo rapidamente um pedaço de lasanha congelada que Maria José tinha posto pra comer antes de ir à igreja mas acabou desistindo, talvez uma proteção do divino, dado que ao chegar na boca, notou que tinha um cheiro estranho. Esqueceu de olhar a validade quando comprou. Faltava uma semana para estar vencida, mas pelo cheiro, ou fedor, já estava vencida era há muito. Acabou por jogar ao lixo. Mas pense: na caixa da lasanha, que era gosto de carne bolognesa, dizia-se que podia ter pedaços de camarão ou outros frutos (estranho sinônimo para bicho) do mar. Carne?...
Por isso ter se passado às nove da noite, ela sabia que ainda teria uma hora para ir ao supermercado antes que fechasse. Ela também estava com fome. Compraria algo para ela e para Vulcão. Para despistá-lo, deu-lhe um pedaço de biscoito com água e sal (que tinha até gordura trans) e que Vulcão não recusou. Ele também foi junto e ficaria, tradicionalmente, amarrado numa das barras. E isso foi numa sexta. E sexta, competia com a quarta, em questão de movimento na praça. Particularmente naquela sexta, muita gente. Praça, como se diz, apinhada. Naquela noite a noite seguiu a beleza do ocaso que vez ou outra tinha uma coloração meio rosa, meio rosa claro, ou, como um maldito presságio naquela sexta, uma coloração vermelha que bem podia lembrar fogo, erupção...uma cor vermelha que adentrou o céu da noite.
Vulcão foi amarrado e Maria José entrou no supermercado. Na pressa, ela não confirmou se a extremidade da coleira ficou bem amarrada. Parecia que aquela sexta era o dia do esquecimento. Com a coleira folgada, Vulcão agitado por ter à sua frente aquela miríade de barraquinhas convidando com todos os cheiros possíveis tudo aquilo que é vivo e que possa ter fome, o cachorro deu um pinote e sem muito esforço conseguiu se libertar. Para ele, bastava agora relembrar os tempos de assalto como bom vira-lata, ou, no modo introjetado de alguns cachorros que quase viram gente, sair em busca de comida. Pedir ou roubar.
Vulcão atravessou do supermercado até à praça. Seu lado antropológico inclusive lhe indicou a faixa. Os carros pararam e ele pôde passar em segurança. Infelizmente, tudo o que veio depois, inverteu toda a distribuição de classificação zoológica: Vulcão agiu com aquela perversidade que algumas pessoas possuem, e as pessoas, algumas, agiram com a animalidade de alguns cães. Enquanto isso, Maria José acabava de entrar na fila...
I
Na primeira barraca que chegou, a de espetinho, apesar da fome e da pressa, Vulcão chegou discretamente. Fez um levantamento de possíveis doadores ou vítimas e foi em direção a uma moça que estava sentada no banquinho de plástico ao lado do namorado. Ele deu um latido e sentou esperando alguma resposta. Notou que ela estava no final de um espetinho. Seu sentimento de vira-lata, no entanto, mandava esperar um pouco mais. Esqueceu que fosse cão ou gente e parou feito estátua apenas contemplando e sua paciência revelou ser boa estratégia. A vendedora trouxe mais um espetinho para a moça enquanto seu namorado seguia apenas com uma lata de cerveja. Os dois já haviam trocado palavras sobre o cão pidão, deram até uns “chispas” e nada que desse resultado. Parece que ele quis esboçar uma ação mais forte, pensou em chutar Vulcão? De qualquer forma, sua namorada mostrou que o cachorro só estava, até aquele momento, pedindo com os olhos. Vulcão que estava há alguns metros, se levantou, deu dois passos e dessa vez fez uma intimação a partir de algo que ele tinha descoberto: tinha um pedacinho de carne que era apenas de gordura, e ele sentiu que ela evitaria esse pedaço. Aquela gordurinha tinha de ser dele. Ela olhou para o cachorro, e depois para o namorado, que em algumas discussões o sujeito levava a alcunha de cachorro, logo, ela estava olhando para um cachorro que agia feito humano, e trocava os olhares com um humano que, às vezes, agia feito um cachorro. Era óbvio que ela jogaria aquele pedaço fora. Mas por que não entregar de boa fé a Vulcão? Percebendo sua intenção, quando ela esboçou o movimento com a mão de lançar à lixeira, Vulcão atirou-se na direção do espetinho. Para evitar, ela levantou a mão ainda mais. E conseguiu lançar o espeto no balde de lixo. Mas o salto de Vulcão, tão forte, acabou por empurrá-la. Seu namorado que estava do lado, tentando salvar a namorada e tentando salvar conjuntamente a lata de cerveja que estava pela metade, a segurou por trás, mas mesmo assim, na pressa, a cerveja escapou-lhe da mão e derramou na roupa dos dois. Puto da vida com o cachorro, certamente ele iria atrás se não houvesse, no movimento, ter pisado de mal jeito e torcido o tornozelo. As pessoas que estavam do lado presenciaram a cena. Os namorados olharam putamente para Vulcão, mas naquela noite, apenas o cachorro parecia poder falar. Deu algumas passadas de distância a eles, mas virando, encarou a moça pela última vez e disse com os olhos
“Era apenas um pedacinho de gordura! Não precisava jogar fora, sua egoísta do cão!”
Como a praça estava muito cheia, Vulcão sumiu em correria no meio do povo e partiu para a segunda barraca.
II
Era de cachorro-quente. Novamente aquele método: observar para depois agir. Tinha um menino que estava com o pai. Aqui nessa barraca, tudo foi mais ligeiro. Vulcão se aproximou indicando que um pedacinho daquele pão talvez não fizesse falta. O menino notou a atitude do cachorro, e sem considerar qualquer caridade, pegou a lata de refrigerante que já estava vazia e a atirou em direção a Vulcão, que rapidamente desviou do lançamento e saiu em fuga. Não antes sem passar rente à cadeira na qual o menino estava sentado. A velocidade foi tanta que acabou por desequilibrá-lo e ele foi ao chão. Como crianças e bêbados tem o estranho dom ainda não explicado nem pela antropologia ou pela física de cair sem sofrer maiores danos, a queda assemelhou-se a um deslize. O suficiente para produzir algumas escoriações superficiais. O pai levantou rapidamente o menino. Ele sabia que não havia mais mercúrio na farmácia e que merthiolate ardia. Foi por causa do merthiolate que ele olhou para Vulcão. Esse parou alguns metros depois, e fitando o pai e o filho, esbravejou com os olhos:
“Era só um pedacinho de pão, seu guri mimado do cão!”
Como se tratou de apenas algumas escoriações, e não de uma mordida, o pai não esboçou nenhuma perseguição ao cachorro, mas ao menos chamou a atenção do filho em não ficar atacando os animas de forma tão gratuita. Será que ele usou aquele ditado de que cachorro também é gente?
III
Na barraca de crepe, Vulcão passou entre todos os que estavam sentados. Olhou um, olhou outro. Nessa ela teve um relativo sucesso, mas foi atacado de forma traiçoeira. Um cliente havia acabado de comer um crepe, e como estava de dieta, comeu mais o recheio e largou a borda feita só de massa para o cachorro que acabava de chegar agitado. Um senhor que estava sentado atrás dele balbuciou algumas palavras de interdição por dar comidas à cachorros de rua. O rapaz respondeu que esse estava com coleira. Que talvez o dono tivesse deixado ele escapar e que poderia estar com fome ou assustado, pois o coitado estava bem agitado. Eles não sabiam do que havia acabado de acontecer nas duas barraquinhas anteriores. Vulcão tendo ganhado o pedaço de crepe, se posicionou melhor, aquele jeito quando os cães deitam para roer melhor o osso, e quando esboçou a mordida do primeiro pedaço, aquele senhor havia chegado com o espeto do crepe e de maneira bem sorrateira, aplicou no lombo de Vulcão. Esse deixou rapidamente a posição, se levantou e foi em direção à mão do terrível homem. Como ele estava segurando o espeto, Vulcão não conseguiu o morder diretamente. Seus dentes não chegaram a cravar, mas deixaram alguns pontinhos no mindinho do senhor. Enquanto ele reclamava do cachorro, o rapaz reclamava com ele por aquele gesto de pura maldade. Depois do ataque, novamente Vulcão se distanciou. Dessa vez olhou para o rapaz e depois para o homem. Para cada um deixou uma frase com os olhos:
“Obrigado, bom moço. Terás lugar no paraíso onde bichos e gentes vivem juntos!”
“Você, seu maldoso, espero que um dia seja espetado por aquele Cão!”
IV
A barraca de pão com calabresa. Sobre o pão do cachorro-quente, não tinha tido sucesso. Seria bom mirar agora no recheio e esquecer o pão? Nervoso, agitado pela espetada no lombo, Vulcão viu uma senhora que lembrou um pouco sua dona. Ela estava prestes a acabar de comer o pão. Já tinha pagado a conta. Estava de pé com o seu esposo. Prestes a ir embora. Os dois andavam bem devagar. Mas como Vulcão havia chegado quase tarde, o pedaço que havia sobrado era bem pouco. Ela notou que ele estava com fome e jogou um pedaço de linguiça. Vulcão foi certeiro e abocanhou aquele pedaço. Sem poder elogiar muito com os olhos, foi em direção a ela de forma bastante amistosa. Ela se agachou e lhe fez um afago na orelha. Ele deu uma pequena lambida em sua mão como prova de agradecimento. Chegou a pensar se seu destino seria ser bem tratado apenas por senhoras. Ela então foi embora. Vulcão calculou que ali havia bondade demais já distribuída e concentrada num simples pedaço de linguiça e decidiu arriscar na próxima barraca.  
V
A quinta barraca vendia doces. Vulcão não era diabético. E quem sabe depois de um pedaço de linguiça, um doce não cairia bem de sobremesa? Uma cocada? A barraca estava mais vazia. Algumas pessoas. Um jovem barulhento com os seus amigos, muito conversava. E notou a presença de Vulcão. Vulcão notou a presença dele. Tinha uma cocada nas mãos e o pedaço ainda estava bastante grande. Quebrou um pequeno pedaço e levou à boca do cachorro. Quando ele fez o gesto de mastigar, o jovem puxou novamente o pedaço e Vulcão mordeu os dentes e engoliu o ar. Rindo, o jovem fazia graças para os seus amigos. Pegou o pedaço do guardanapo, rasgou e jogou na direção do cachorro. Papel ele já tinha mastigado uma vez. Não passaria por aquele desrespeito novamente. Será que cachorro tem memória? Bem, no caso, o rancor Vulcão inventou naquele mesmo instante. Quando se aproximou o papel, dessa vez, não havia obstáculo algum para uma mordida. Só não fez aquele barulhinho de “croc” porque mão não é feito de açúcar e coco. Mordeu, e soltou. Nem foi tão forte. Mas o recado estava dado. Vulcão invertera a situação. Quem era o alvo da risada daqueles amigos do jovem era ele mesmo. Será que Vulcão deveria lhe oferecer um pedaço de papel com a pata e depois puxar de volta? O jovem revoltado se levantou e correu atrás de Vulcão, que já tinha previsto a corrida e correu muito mais bem antes. Parou mais a frente, do outro lado da rua. Fulminou:
“Então pensa que sou bode pra comer papel? Nem pra limpar meu rabo isso serve, seu filhote de cão!”
Vulcão, depois dessa barraca, atravessou a rua. Só restavam mais duas naquela pracinha vizinha. Uma era de bolo. A última, novamente de espeto.
VI & VII
Como a praça era menor, Vulcão pôde contemplar tudo de uma única vez. Mas como sua passagem havia levantado um certo burburinho na praça, uma certa agitação, ele viu que agora as investidas não podiam contar com a paciência ou esperança. Só restou radicalizar. Canilizar, na linguagem dos cães. Um pedaço de bolo de abacaxi, tão cheiroso, culpa do abacaxi, estava sobre a mesa. Vulcão tomou o cheiro como caminho. O banquinho ao lado serviu de apoio para o salto. Foi tão rápido que aquele cachorro que todo mundo havia visto chegar, não deu mostras de pré-ação. Era agir ou agir. No pulo, quem estava nos bancos se levantou. Vulcão sobre a mesa como se estivesse no alto de um púlpito dando um sermão a todos. Sua cabeça balançava de um lado a outro, a cada um ele deixava um olhar canino de tristeza e reprovação:
“Hoje fiquei preso além da conta. Minha dona o fez certamente por distração. Mas senti fome. Quando eu era apenas mais um vira-lata na orla, comia os lixos que apareciam. Respirava o mesmo ar imundo que vocês respiram. Nós animais somos iguais a vocês na contaminação. Um dia fui achado expelindo cinzas, pó. A garota que me achou me levou de um bairro a outro, de um cuidado a outro. Vivi além do esperado. Cães também tem uma esperança. Uma esperança de achar um lar, de ganhar um osso de verdade ou de plástico parar roer, de achar um cantil com água e ração. Mesmo a coleira da servidão, estranhamente, pode ser libertadora. Eu ouvi um dos seus cantando que o amor escraviza, mas é a única libertação. É, é isso. Uma pena que não entendo muito de MPB. Que diabos é MPB? Eu só queria coleira, osso, água e passeio. Mesmo respirando esse pó de vez em quando! Agora esse bolo de abacaxi. Está bom. Mas já comi hoje lasanha estragada, que é de bolognesa e dizem que pode conter frutos do mar e camarão. Não que eu tenha lido. Eu não consigo ler, mas ouvi minha dona reclamar dessa lasanha. Comi um pedaço. Ela tomou de mim o restante. Saímos para comprar comida. Vocês, diabos, pobres diabos, também sentem fome. E usam outras coleiras, talvez até pior do que as nossas. Bem, eu comi um pedaço de lasanha. Consegui um pedaço de linguiça, quase um pedaço de crepe, quase uma gordurinha de carne, e um puto quis me dar guardanapo para comer. Sei que esse bolo de abacaxi me dará uma queimação do cão, não é por menos que vocês falam desse mesmo jeito quando tem queimação nas tripas, pois bem, é, agora ou eu acabo com a fome, antes que ela acabe comigo. A fome, que extermina por dentro, muitas vezes vem é por culpa do que está aí fora!”
Tendo dito isso tudo isso com o olhar, em quase dois segundos, afinal o tempo dos cachorros também é diferente do nosso, Vulcão pulou da mesa após ter mastigado o pedaço de bolo. Foi em direção a uma jovem que estava na outra barraca com as amigas. Sem piedade alguma, com a melhor de suas miras, agarrou aquele espeto todo, com gordura e sem gordura, era um espeto misto, e saiu em direção àquela rua que diziam bem antigamente ser coberta de lama.
                                                            ***
Vulcão, com medo daquele tanto de inimigo que conseguiu arrumar em metade do círculo da praça, decidiu atravessar a rua e procurar um lugar tranquilo para comer. Lembrou que ouviu uma vez sua dona dizendo que igrejas são protegidas por Deus. Mas se nem a gente que é gente entende teologia direito, imagina Vulcão. Será que igreja protege só gente ou bicho também? Mas gente não é um bicho de Deus? Na dúvida, deixou a questão teológica para depois. Importava agora mastigar aquele espeto. E depois voltar para casa. Diziam que nesse bairro, os únicos que não se perdem são os cachorros, pois eles vão pelo cheiro. E o cheiro das coisas, das pessoas, mesmo com perfume diferente, é sempre o mesmo. Enquanto isso, Maria José enfim conseguiu sair do supermercado. Primeira coisa que viu foi que Vulcão não estava mais ali. Um dos rapazes que passa o dia nas calçadas disse que viu o cachorrinho atravessar a rua e ir em direção à praça. Ela repetiu o caminho. Perguntou às pessoas se haviam visto um vira-lata com uma coleira perdido. Coincidentemente, o grupo que ela encontrou havia sido os marcados pelas armações de Vulcão: um homem com o tornozelo torcido; uma criança com o braço escoriado e mais preocupado com o merthiolate que iria arder; um senhor com o mindinho meio-que-mordido; um jovem, esse sim, com a mão mordida. A estes se juntaram as quase-vítimas da outra pracinha: algumas pessoas assustadas com aquele cachorro agitado, que os havia olhado com tanta reprimenda e reprovação, que pensaram mesmo, por um momento, que aquele cão sabia até falar. Todos eles informaram à Maria José para onde Vulcão havia fugido. Ele havia carregado um espeto junto.
Não chegou a dar prejuízo financeiro para ninguém, mas deixou a estranha marca de sua passagem em algumas pessoas. No entanto, ninguém confessou de boa fé o que haviam feito a Vulcão. E até chegaram a concordar que esse nome era o único possível para aquele cachorro que parecia prestes a explodir. A senhora Maria José perguntou se podia fazer alguma coisa por eles, mesmo sem saber que ali estavam os que maltrataram o seu cachorro. Ficaram todos aliviados ao saber que Vulcão tinha as vacinas em dia. E ela deixou o endereço para no caso de alguém precisar de algo. Ninguém se ofereceu a ajuda-la a procurar Vulcão. Nesse ponto é compreensível o fato de quererem evitar contato novamente com aquele bicho. E infelizmente, a única senhora que poderia ajudar, a que não maltratou Vulcão, tinha ido embora. Ninguém sabia da existência dela. O rapaz que deu o pedaço de crepe, depois de ter discutido com o senhor, decidiu ir embora. Maria José atravessou a praça. Pensou em chamar a polícia para ajudar na busca e acabou desistindo. Estava ficando tarde. Ela chegou a atravessar para a outra praça, foi até ao cruzamento, e se tivesse andado um pouco mais, no caminho que ela conhecia tão bem, pois ali havia uma igreja das quais ela frequentava, e teria encontrado Vulcão. Lembrou que o cachorrinho era muito esperto. Talvez ele achasse o caminho de volta sozinho, mas logo de manhã cedo ela sairia à sua procura. A noite realmente estava diferente. Às vezes, parece que vai chover, mas não é nuvem de chuva, é chuva feita pelos homens daqui da terra mesmo e que mandam ao espaço como fumaça.
Mal sabia a senhora Maria José que Vulcão, ao morder afoito o último pedaço de espeto, mordeu igualmente um pedaço de pau que acabou ficando atravessado em sua garganta. Ele estava justamente na porta da capela e começou a rolar no chão, desesperado, tossindo, tentando fazer aquele pedaço de graveto sair de sua garganta. Se debateu alguns minutos. Como era tarde, e naquela rua o movimento era mais de carros, ninguém viu Vulcão se agitar em seus últimos minutos como se fosse explodir, realmente dessa vez, feito um vulcão. Maria Jose, após ter telefonado ao filho e contado o que se passou, estava olhando pela janela. Via o céu alaranjado pela fumaça. Ouvia as sirenes de uma ambulância ou outra que poderiam estar carregando alguém que, a depender dos seus gestos nesta vida, poderia se encontrar com Vulcão naquele outro suposto lugar onde bichos e gentes vivem em paz. E apesar da sirene, Maria José não esboçou mais nenhuma oração. Decidiu deitar e se cobrir com a manta, pois, fazia frio. Vulcão, que tanto havia inalado aquele pó em vida, agora inerte, era coberto por aquele mesmo pó que se espalhava todos os dias e todas as noites pela cidade - o pó. O horror. A fina camada brilhante de minério. 
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napracinha · 9 years ago
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A dor de Filipinho e o tiozão apressado da van
Naquela manhã, Filipinho quase não conversou com ninguém na escola. Não fez barulho. Não quis o cantinho da leitura, que tanto gostava; não quis o cantinho dos brinquedos, que tanto o incitava. Nem quis a sopinha do recreio. Filipinho sabia que algo o incomodava, mas com cinco anos a gente só sente e não sabe como dizer o que é. O que é o quê? Nem é dor de amor também. Filipinho gostava certamente de Lucililinha - uma garotinha que morava quase de frente pra Avenida Araceli, mas distante umas duas ruas e rodelas de distância da casa de Filipinho. Eles iam juntos, e voltavam juntos. Ele descia primeiro. Ela logo depois. 
Lucililinha havia estranhado o silêncio de Filipinho. A professora também. Ele fazia tanto barulho. Foi um dia estranho pra ele. Qual criança não padece de acordar tão cedo? Nós mesmos, adultos, que sabemos que temos de sair da cama para fazer mil coisas chatas. Não gostamos. E ainda ter de sair de casa assim como o sol sai no céu, imagina aquele menino de 5 anos. E pior, no dia que inventaram de soltar bomba às cinco e meia da manhã. Se Filipinho naquela idade ao menos soubesse palavrão, ele teria xingado. Cocô! Talvez ele tenha pensado um palavrão. Cocô mesmo. No lugar de pólvora, cocô que tinha nas bombas ou cocô na cabeça dessa gente. Tinha uma fumaça danada espalhada na cidade. Fumaça que não era nem de pólvora, nem de cocô. E gente gritando às seis da manhã! Quanto mais a manhã avançava, mais estúpido ficava o dia. Era um duro golpe pra todos. Imagina isso na cabeça de Filipinho. 
Amuado. Filipinho parecia guardar as energias apenas pra correr em direção ao portão quando a aula acabasse. A aula acabou no mesmo horário, mas a van do transporte falhou na hora da chegada. As crianças aguardaram uns dez minutos a mais perto da saída. Daí chegou aquela van buzinando. Buzinou naquela manhã mais que o habitual pois estava com pressa, pois tiozão estava atrasado. Mal sabia Filipinho que o tiozão da van estava envolvido com uma carreata junto daquela gente que tinha cocô na cabeça. A moça que trabalhava com tiozão abriu a porta rapidamente e as crianças iam subindo na maior algazarra. Era quase uma disputa com a buzina para quem ganhava no barulho. E a van barulhava na rua, e as crianças faziam um buzinaço de barulho dentro da van.
Filipinho procurou o banco quase no fundo. Lucililinha se aproximou e perguntou porque ele estava tão calado naquela manhã. Filipinho apenas disse que sentia alguma coisa, mas que não sabia explicar o que era. Estava com medo, inclusive, de falar. Falar podia fazer cair qualquer coisa. 
Tiozão então deu a partida para fazer o percurso daquele dia. Todos os dias. Mas especificamente naquele dia, tiozão tentou mudar um pouco a rota pra ganhar tempo. Alguns pais e mães milimétricos tinham ligado. Passava dez minutos e as crianças não apareciam. Tiozão entrou na Alziro vindo da Hugo louco igual viola de cego. Pra não fazer o retorno lá embaixo, pois a primeira criança que ele entregava morava na pracinha, essa pracinha aqui das nossas estórias, tiozão quebrou na primeira abertura da rua. Só deu um problema: tiozão na pressa entrou afoito demais e acabou subindo com o pneu traseiro no canteiro central. Não foi muito forte, mas a van deu uma chacoalhada. A criançada lá dentro se amarrou na sensação. Mesmo Filipinho que estava tão tristonho, por alguns segundos ficou contagiado. E deu um grito de ê.
Ê! Só foi o tempo de uma vogal. Filipinho levou a mão à boca. Lucililinha olhou assustada e chamou a ajudante de tiozão: “Olha, Fifinha, abriu a janelinha, o Filipinho!”. Preocupada, Fifinha pensou que fosse a janela da van, com medo que eles pudessem fazer alguma coisa, afinal tinha ar condicionado, e mesmo que a van permitisse abrir a janela, por questões de segurança, a janela se alguém abria, Fifinha ia e fechava. 
“Não, Fifinha! Não é essa janela, não. É a janelinha na boca de Filipinho!”
Fifinha assustada olhou pro garotinho de cinco anos que sorriu um riso preocupado. A janelinha que acabara de abrir era o dente de leite que tinha acabado de voar. No grito, Filipinho quando fechou a boca, o fez com mais força. Era aquele dente molenga que ficou a manhã inteira cambaleando na boca de Filipinho. 
Saiu um pouco de sangue. Mas descendo da van, a mãe de Filipinho foi logo percebendo e tratou de pegar o menino no colo. Não era coisa grave. No outro dia, Fifinha entregou o dente que tinha caído na van para a mãe do aluno. Mas não falou nem da pressa nem da barbeiragem de tiozão. Naquele 12 de maio, foi um duro golpe. As crianças na van comemoraram a breve turbulência. Filipinho acabava de ver cair o primeiro dente. Ficou assustado. Não sabia que uma queda de um simples dente podia fazer sangrar. Imagina quando cair coisas maiores, quanta dor não haverá nesse mundo?
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napracinha · 9 years ago
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Pastel de cone com catupiry
Saí do curso às 18:20. Como ficaria tarde para tomar café, liguei pra Li e perguntei se ela não queria ir na pracinha pra comer algo. Disse que não, mas como tinha de comprar uns dois tomates, combinou ao menos de se encontrar comigo e enquanto eu ficasse lá na praça, ela resolveria supostamente de maneira rápida, com uma breve ida ao supermercado, a falta do fruto.
Nos encontramos. Nos beijamos. E enquanto eu estivesse ali comendo, ela voltaria e voltaríamos depois juntos pra casa. Como era quarta, e parece que quarta era o dia mais cheio da praça, pedi o pedido de sempre, um pastel de frango com catupiry e provavelmente tinha dois ou três clientes à minha frente. Sentei num desses banquinhos de plástico, e ao lado um senhor, sentado, deu um riso e eu sem saber o porquê daquilo, bastou olhar com curiosidade e ele devolveu:
“Perdão, é que a forma como você pediu o pastel me fez lembrar o rapaz que esteve há alguns anos nesta barraca e fez um pedido que ficaria famoso até hoje. E eu estava sentado quase que no mesmo lugar, foi numa quarta, e foi quase nesse mesmo horário. Mas não se preocupe, não me entenda mal, foi a forma apenas como você fez a entonação. Fisicamente, não há parecença”
Pelas palavras iniciais, dava pra perceber que se tratou de algum gesto criminoso, ou no mínimo, um fato bem estranho. Respondi que não me importava, mas a curiosidade, no ímpeto, me fez perguntar o que o tal rapaz havia pedido e o que ele havia aprontado depois. 
“Pensei que todos os moradores desse bairro conhecessem o caso do Pastel de cone com catupiry. É um clássico”
“Sou novo, moro há uns dois meses e apesar de vir nessa barraca, antes mesmo de ter mudado pra cá, nunca ouvi de nada parecido. Que diabos é um pastel de cone com catupiry?”
Quando disse essa última frase, aumentei um pouco a voz, e o dono da barraca, Gerêncio, que trabalhava com mais um, e que era talvez o gerente (afinal com dois, se um era o dono, o outro no mínimo era o primeiro e único subordinado direto), pois, Gerêncio me olhou um pouco com espanto pro meu lado, mas então esboçou um sorriso como se dissesse “já não me importo”.
“Se você tiver tempo, te conto”
“Bem, estou esperando, o pastel, e também minha namorada que foi ali ao supermercado”
“Esse supermercado aqui da praça?”
“Isso”
“Xii, há tempo”
“Mas ela só foi comprar dois tomates”
“Moço, pode ser uma caixa de fósforos, mas não há como fugir da fila. Ela vai demorar mesmo, acho que dá tempo de contar. Pois...
[naquele tempo]
Na quarta, saía depois das sete. O almoço era cedo e quase não comia durante à tarde. Então emendava um pastelzão e um caldo na pracinha. Foi o roteiro daquele dia. Conversava com Gerêncio sobre o futebol capixaba. Tinha sonhado que o Brancão sentava o ferro no Fluminense na final da Copa do Brasil. Segundo jogo em casa. O sonho tinha uma parte provável que era o Flu levar ferro - até o Serra já o espancou lá no RJ, a outra parte que era complicada, pois, sabe, aí encostou uma picape com o pisca alerta ligado. O rapaz que desceu veio até à barraca, não antes sem ter dado uma circulada ao redor, como se fosse conversar com o amigo que havia ficado dentro do carro. Veio até o Gerêncio e pediu
“Oi, boa noite, sai pastel pra entrega?”
“Sai sim. De que o senhor quer?”
“Dois de queijo e um de cone com catupiry”
“Mas ein?”
“Digo, carne, carne...cone? fiz alguma confusão, perdão”
Eu meio que já ri. Cone com queijo? Será que ele tava querendo comer um cone? Quase isso, o desejo estava bem próximo disso...
“Tá. Só um momento. Vou preparar”
“Calor né?” Disse o rapaz me olhando enquanto Gerêncio cuidava da frigideira. 
“É” meio sem graça e querendo rir do pedido dele, mas sem deixar transparecer...mas pra não ficar tudo em silêncio, puxei conversa com Gerêncio....
“Cadê o Pistula?” perguntei enquanto ele desembalava os pastéis do plástico pra fritar.
“Foi lá no supermercado comprar um óleo pra deixar de reserva”
“Então a gente pode continuar falando mal do Fluminense. Ow” olhei pro rapaz, “Você não é Fluminense não né?”
“Sou não. Pra ser sincero, nem torço. Tenho paciência, não. Gosto de outras coisas” respondeu vagueando o olhar...pois logo logo ia descobrir do que o sacana gostava...
“Aqui, senhor. Seus três pastéis” 
“Dá quanto?”
“Doze reais”
“Tá” disse tirando o dinheiro do bolso e dando o sinal pro amigo no carro.
Pegou a sacola e logo dando de costas, partindo em direção ao carro, Gerêncio me olhou e comentou rindo “Cone..”
“Sim, o cone”
“Isso, cone? Já se viu?”
“Não, Gerêncio, pera lá, to falando do cone ali da barraca, olha lá”
Foi tão rápido, ele entregou o pastel para o motorista, e na maior naturalidade, levantou o cone pela ponta, deu a volta até ao lado do carona e jogando na carroceria, entrou no carro e o motorista disparou. Só deu pro Gerêncio virar e olhar aquela pontinha laranjada que ficou pra fora. No automático, deu um grito “ô ladrão!” 
Dois policiais que trabalhavam ali no DPJP andavam por perto, e ouvindo Gerêncio gritar o “ô ladrão!” vieram na rapidez perguntando “Onde? Onde?”
“Ali naquela picape branca”
Um policial saiu correndo e conseguiu observar mais ou menos para onde o carro seguia. Entrou ali pela rua da farmácia. Enquanto o outro policial e eu e mais Gerêncio ficávamos surpresos e ao mesmo tempo do que tinha acontecido. Certo é que pro policial, tinha um ladrão naquele carro e até aquele instante, só eu e Gerêncio sabia que era um cone.
“Mas como pode ein?”
“Pior que nem posso sair daqui. Nem sei se vale a pena correr atrás disso”
“Calma, senhor” disse o policial olhando pra Gerêncio. Vamos acionar alguma patrulha.
“Sei lá, ok, agradeço a atenção” e pensando que talvez por ser um cone velho, nem valia a preocupação...
Durante esse tempo, juntaram mais algumas pessoas próximas a barraca para saber o que estava acontecendo. Muitos escutaram o “ô ladrão” sem o “pega, ladrão” e além do mais, vendo o policial por perto e o outro que saiu correndo, com certeza, alguma coisa tinha se passado e já era motivo para o início de aglomeração...
Pelo rádio, o policial que saiu correndo conseguiu avisar uma rádio patrulha que estava lá por perto da Lama. Eles iriam tentar interceptar por aquelas saídas. Mas nem precisou. Não passa cinco minutos, e quem desponta na curva quase de frente do supermercado, era a picape. Eu avistei primeiro, e inclusive vi a pontinha do cone na carroceria. Gerêncio que rodava meio cismado, mais pela estranheza do fato do que pelo furto, viu dois segundos depois, mas foi o suficiente pra avisar o policial que estava por perto que ali vinha o ladrão. No pulo, o policial nem sacou a arma. Instintivamente, pulou diante do carro, e deu ordem de parada. Deram um breque. Policial mandou descer. Dessa vez veio o comprador de pastel, ou o ladrão de cone mais o motorista. 
“Desce, desce. agora, os dois” depois que encostaram o carro. O policial trouxe os dois e perguntou pra Gerêncio se era ele ali o ladrão. “Sim, é ele sim”. Como viu que os dois não ofereciam resistência a fuga, conseguiu ligar para o outro policial que chegou logo de imediato meio ofegante. O que aconteceu depois, eu lembro, acho que até das pontuações, a conversa do policial com o rapaz do cone deve ter sido a mais estranha que já se passou nessa praça. Bem, ao menos das que presenciei.
“Então são vocês os ladrões de pastel. Vai dizer que roubou porque tava com fome?”
“Fome um pouco, mas num foi pastel, não, Senhor”
“Como assim não foi pastel?”
“Foi mesmo não” interveio Gerêncio, foi o “cone”
“Cone? Como assim cone?” virando pro dono da barraca. “Mas eles não estavam aqui? Você mesmo não gritou “ladrão”? Você além de pastel tá vendendo aqueles cones de pizza?”
“Cone de pizza, não, senhor policial, é esses cones aqui de trás da barraca que a gente põe pra dar mais segurança”
Se virando então novamente pro rapaz, o policial meio na ironia “Então rouba o cone e passa logo depois na frente pra fazer o que? fazer o que? deboche?”
“Foi deboche não. Esse jumento de meu primo aqui que se confundiu e entrou na rua errada e acabamos vindo parar de novo”
“Jumento é você que me põe nesses rolos. Essa porra desse bairro todo parecido. Essas rodas que vocês chamam de praça...”
“Olha a boca, rapaz” Disse o policial para o amigo, que era primo, e que falou pela primeira vez na história toda.
“Bem, errado ou não, você sabe praticou um crime, não é?”
“Crime assim, mais ou menos, não sei se posso ser chamado de ladrão”
“O que você quer dizer com isso? Você então não roubou um cone? Eu tô até vendo ele daqui” olhando na direção do carro. A pontinha do cone pra fora.
“Então, não sei se o senhor policial sabe, mas roubo de cone não é bem roubo. Quem não pratica que chama de roubo, ou não entende, não me entenda mal, é meio que uma certa atividade quase que esportiva”
“Agora você decidiu fazer hora. É roubo sim. Tem dono. É da barraca, se pegou, é roubo”
Respondendo, o rapaz saiu com uma espécie de discurso, que já era ao mesmo tempo de vítima e defesa dele mesmo...
“Não sou só eu. Eu dei azar que meu primo novo no bairro confundiu as praças. Isso é coisa antiga. Talvez seja a primeira vez que você esteja num caso como esses. O que vocês chamam de roubo de cone, a gente chama de transfusão de posse. Calma, calma que eu explico. Povo fala que o que se acha na rua não tem dono. Algumas coisas tem. Mas cone, todo cone, com cone, é diferente. É meio provocativo, sabe? Só quem já passou a mão em um, com o carro em movimento, quando alguém desacelera enquanto o outro abraça o coitado do cone ali no relento, pode me entender. E olha, usura né? Ele tem quatro cones aqui. Com três já é o suficiente. Eu peguei esse. Não ia pegar se tivesse só um. Vou dar a dica pro senhor policial: você já trabalhou na avenida aqui da praia? pois é, fica lá no sábado de manhã. A guarda municipal coloca aquele tanto de cone, sempre tem alguém que voltando de uma festa, pra fechar com chave de ouro a farra, passa a mão em um cone. É de lembrança. Esse mesmo de hoje, que eu peguei, mas agora devolvo porque não tem mais graça, era uma lembrança. Era o cone da barraquinha de pastel”
“Como assim lembrança? Então você tem mais de um?” interrompeu o policial.
“Uns seis, sete. Mas a gente devolve. Não é pra vender não. Depois se coloca em algum lugar por aí. E não pense que é só eu não. Já que vocês estão me chamando de ladrão, saiba que tá cheio de ladrão de cone nesse bairro. Eu dei azar de ter feito isso no meio do povo. Foi uma adrenalina até boa. Ia demorar mais o efeito se o jumento aqui do lado tivesse prestado atenção e não tivesse confundido as ruas...”
“Jumento é teu pai” interrompeu também o primo...
“Se você gosta tanto de cone assim, porque não compra? Pela internet tem loja que vende cone, eu acho” perguntou já o policial meio que confuso com tanta ideia desmiolada que estava ouvindo. Já recebe pouco, e pra ouvir isso, o pouco ficava mais pouco ainda...
“Não, não, com todo respeito. Que isso? Qual a graça? Receber cone via sedex??? O carteiro chega, chama no interfone “Senhor, tem um cone aqui para recebimento” Não, não funciona assim. A gente não sai pra roubar cone. A gente sai pra comprar pastel, igual hoje. Tava com fome. Ou melhor, tô. Nem deu tempo de comer. Mas se aparece um cone assim, meio que de bobeira...”
“Mas por que um cone??? Tem tanta coisa aí pela rua. Não estou dizendo pra vocês roubarem objetos diferentes. Mas por que cone?” perguntando o policial meio que sem paciência, e meio que sem paciência também, o ladrão, ou nos dizeres dele, um esportista, respondendo...
“Não, não, tem que ser cone. Eu ein. Roubar o que? Lixeira? Ela é até laranjinha, algumas, mas num dá graça não. Conheço um mesmo que roubou uma e levou pro carnaval pra servir de isopor gigante. Por causa das rodinhas, sabe? Ajuda no meio do povo. Aí sim foi roubo, mesmo que ele tivesse devolvido. Pior, tinha muito sentido. Fazia todo o sentido. Roubar uma lixeira pra servir de congelador ambulante. Cone não. Pra que a gente pega os cones? Pega porque primeiro eles meio que provocam. Cone tira muito a atenção, senhor. Eles ficam na rua. Às vezes impede o trânsito, proíbe a passagem, sei lá. Incomoda. Talvez seja isso. A gente fica incomodado, e leva o cone embora. Principalmente se tiver mais de um. Porque um só, sozinho, também tem graça, mas num fica nenhum outro de testemunha. Agora quando tem aquela fila, uns cinquenta, eta...a gente precisa abraçar um...”
“De qualquer forma, com teoria ou não, o senhor praticou um roubo” e virando pra Gerêncio, o policial perguntou que só poderia dar prosseguimento ao boletim de ocorrência se ele fosse prestar queixa...
Assustado com o roubo que não deu certo, o rapaz olhou pro dono da barraca dessa vez não com o olhar encantado quando gente do tipo dele vê um cone, mas com um olhar de piedade por ter aprontado uma besteira dessa sem tamanho...e do lado de lá, Gerêncio pensou, já que o cone tinha voltado, que o caso era bizarro demais pra tomar tanto tempo, decidiu acolher o cone de volta. Parece que não se importava muito. Respondeu ao policial que deixasse pra lá. Que liberasse os dois. Não antes sem passar um pito daqueles na frente de todo mundo que estava acompanhando, menos Pistula que chegou duas horas depois, dado que ficou preso na fila do supermercado, mas que veio a saber de toda a história, sem no entanto, ter visto a cara dos desportistas que “abraçam cones provocativos”...
[no nosso tempo]
“Foi assim então, ou mais ou menos assim. Eu via muito esses dois aqui pelo bairro. Acho que se mudaram. Todavia, eu, Gerêncio, Pistula, e os cones estão aí ainda...ali atrás, vê? é um daqueles ali”
Ri da história. E quis confessar inclusive ao senhor que contou-ma, que a dita parecença que o fez lembrar da história, não se deveu só ao pedido, é que uma vez, eu também vi um cone e...
Li chegou logo depois que terminei de comer o pastel. “Li, moça. Aconteceu algo?”
“A fila, Ando, a fila. PQP! De novo”
“Num te disse?” me olhou o senhor contador...
Paguei o pastel. Agradeci ao Gerêncio e também ao senhor pela história. Repeti rindo “cone com catupiry” e de mãos dadas com Li, estávamos prontos pra ir embora. Não antes, apesar de achar que o dono da barraca havia superado aquele causo, pude notar, ao passar do lado dos cones, uma fina cordinha branca que amarrava todos eles. Que bom. Minha mão coçou como antigamente, como deve ter coçado a do rapaz aquele dia. Li, sem entender minha risada, perguntou
“Foi o que, Ando?”
“Nada, Li, é que os cones...bem, deixa pra lá.”
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napracinha · 9 years ago
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O preço do pão é a sua maciez
Ine gostava de sair pra comprar pão às 17:25. Segundo os cálculos que ela fazia, cálculos quase baseados na longa experiência de ter trabalhado muitos anos em Vila Velha pegando os transcóis fornalhas da vida, esse horário, de 17:25, era o pico do engarrafamento do centro de Vitória até à ponte da passagem. O que isso tinha a ver com comprar pão? É que o povo em pé no ônibus, os que moravam em Jardim da Penha, além de ter ficado uma puta viagem em pé dentro dos coletivos, além de ter sobrevivido à mais uma curva do Saldanha, e com ônibus cheio, o vendedor de pão de queijo também não aparecia, tudo isso, é, tudo isso, logo, quem já descia no ponto do Mãozinha, nem pensava em tomar banho, ver jogo da Champions ou sentar no sofá, ou o que quer que fosse. A ideia era peregrinar pelas padarias. Qualquer uma delas. Melhor, algumas. Em umas, se você comprava dois pães de sal, podia de ficar sem dinheiro pro restante do mês. Isso explica porque algumas padarias só tinham movimento depois do dia 27. As padarias enchiam como abelhas enchem as colmeias (uma péssima analogia, pois). Comprar pão em Jardim da Penha era a Ave Maria dos crentes e também de ateus (essa já parece ser boa). Porque se tinha fome, e na fome, só se pensa na fome. E pensando na fome, você dobra o tamanho da fome. Vira fome de barriga e fome de pensar que se tem fome.
Ine escolhia a padaria não mais perto, mas a de melhor custo benefício (andar um pouco + se paga um pouco menos). Escolhia dois pães aparentemente belos, novos e macios. E depois percorria até ao caixa. Um dia deu seis da tarde e ela não havia voltado.  Foi estranho. Sempre às 18:00, ela costumava estar de volta. Eu fazia o café, ela trazia o pão. A manteiga a gente comprava junto. Enfim, Ine não apareceu. Nesse dia, ela deixou o celular em casa. Ine cadê você? Perguntei. Deu 19:00, sem ela ter voltado, saí de casa e fui na padaria que ela tinha por hábito ir. A quantidade de sacolinhas que a gente tinha dessa padaria confirmava certa regularidade. Fui nessa, fui em outra. Dei um pulo novamente em casa, e nada de Ine. Ine cadê você, meu Deus?! Acrescentei “meu Deus” obviamente não perguntando por ele, mas por ela. Deu 20:00, 21:00. Sério que por um instante, uma breve iluminação me alcançou. Talvez tenha sido da Lua, meio improvável, porque ela há pouco havia saído no horizonte, e como se avizinhava lá pros lados do Porto, a fumaça esfumaçava a Lua. Lembrei que um certo supermercado vendia pão. Lembrei que esse mesmo supermercado costumava fechar às 22:00. Será que estava presa?
Quando saí novamente de casa, encontrei Ine saindo do supermercado. Meu amorzinho decidiu comprar pão lá e não na padaria. 
“Por que aqui, amorzinho meu?” 
“Não sei, Bando. Hoje é segunda, foi feriado no sábado. O supermercado não abriu. As padarias sim” 
Continuou meio desconexa no seu raciocínio que até entendi um pouco...
“Como o supermercado não abriu, o pão só podia ser de hoje, e as padarias talvez tivessem colocado o pão de domingo dormindo à venda”. 
Respondi que não havia sentido...
“Não, Ine, mas mesmo que fosse, porque a demora?” 
“Bando, tinha um bando. Tanta gente deve ter pensado igual eu. A fila, a fila, meu Deus, tive vontade de sair, mas enquanto apertava a sacolinha de pão, ele estava tão macio que acabava desistindo de deixar pra lá e ir em outra padaria e já tinha passado das seis, as padarias, Bando, elas já estariam cheias, lembra? Cheias dos bandos famintos, Bando, não sei”. 
“Tá, Ine”...
Complacente com a situação, com aquela espera, tentando mostrar que ela não havia esperado em vão...
“Tá, Ine, me dá aqui a sacolinha, deixa eu apertar esse pão pra ver se….” 
Estranho...
“Ine, esse pão” 
Fez ploc quando apertei, parecia ter a casca e o vazio do universo dentro...
“Ine, esse pão pocou!”.
Não estava entendendo nada. Soluçando, mas com um pouco de zanga na voz, tentou explicar...
“É a fila, Bando. Demorou demais, quantas horas? quantas? Acho que fiquei mais de 4 horas lá, em pé. A fila não andava. O pão perdeu. Bando, ele estava tão macio, juro” 
“Mas quanto você pagou, Ine?”
“2,30, mas havia pago pela maciez, agora que ele fez ploc, já não sei quanto vale”
Naquele dia, ficamos sem café pois esfriou na garrafa; ficamos sem pão, porque ficou vazio igual a sacola; só restou a manteiga derretida sobre a bancada. E Ine, meio chateada, me dizia “Não sei, Bando, não sei”
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