Tumgik
papelmolhado · 3 months
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Domesticidade
+ Dizem que os gatos vêem fantasmas; de fato, os animais, inclusive o que chamamos de humano, moram com figuras espectrais que há tempos rondam o projeto de //domesticidade// em curso. Testemunhamos o mundo comum cada vez mais assombrado pelo espectro cristão da gestão econômica como imperativo sobre tudo aquilo que vive. Só agora nós, humanos, estamos sendo capazes de apontar o fantasma na sala; os animais outros-que-humanos o viram chegando do futuro. De lá, os fantasmas vieram como quimeras, híbridos de animado e mecânico, orgânico e artificial — o fantasma tomou conta da máquina e hoje se presentifica no mito político do ciborgue. Ambos compartilham uma propriedade interessante: a presença desencarnada do fantasma e o arranjo virtualizado do ciborgue lhes dão ubiquidade, ocupam todo lugar e ao mesmo tempo lugar nenhum; transitam entre fronteiras nacionais e os muros das casas, entre cemitérios de biodiversidade e complexos industriais tech. “Não mais estruturado pela polaridade do público e do privado,  o ciborgue define uma pólis tecnológica baseada, em parte, numa revolução das relações sociais do oikos — a unidade doméstica.” << Haraway 19xx, p. 39 >> Se até então o projeto civilizatório do ocidente se guiava pelo imperativo de submeter todo vivente a um regime doméstico-administrativo, como situar nossa animalidade em uma realidade cada vez mais //estranha// aos limites humanos da oikonomia?
+ Domesticação é prática instrumentalizada por uma antropotecnia, a fabricação do homem pelo homem, domesticação de si e dos congêneres. << Ludueña, 2014 >> O quanto essas técnicas são inteiramente “antropo-”? A história do convívio com outros seres vivos mostra que a domesticação tem sido, em muitos casos, dos humanos por parte de outros seres vivos. De certa forma, << Anna Tsing, 20xx >> sugere que em tempos do desenvolvimento incipiente da monocultura como prática extensiva, o trigo contribuiu para docilizar os humanos dentro de pequenas unidades domésticas nucleares, uma vez que as maiores parcelas da terra eram povoadas pela planta, o que implicou em um imperativo de reprodução compulsória humana para acompanhar o ciclo de vida domesticado do trigo — //domesticação mútua//. A monocultura adestrou os humanos [quais?] em muitos níveis a um dado hábito (re)produtivo, mas também ecológico, alimentício, arquitetônico e até ergonômico. Pode soar estranho a alguns falar que, nesse caso, o trigo domesticou o humano, mas a estranheza decorre de um hábito em pensar que um processo coevolutivo como esse dependeria majoritariamente de uma certa consciência exclusiva de sua espécie. Aqui não se trata de negar que a atitude intencional foi motor de parte do processo; trata-se de compreender que o êxito, sua continuidade no tempo, demandou alterações profundas nos modos de vida de todos os seres vivos envolvidos. Supor que a domesticação seria unilateral incorreria em reiterar uma mitomania messiânica. Ao longo de milhares de anos de convívio, humanos e outros-que-humanos desenvolveram-se responsivamente através da criação não de unidades domésticas, mas de //lugares familiares//. A vida domesticada, e sobretudo, seu fundo cosmofóbico pretensiosamente estendido a tudo que a atravessa — o que chamo de domesticidade —, é um fato histórico contingente (este sim) marcadamente humano, e seu domínio como o conhecemos será tomado pelas quimeras ciborguianas.
+ A monocultura é uma das instituição com maior força de domesticação da nossa história interespecífica, chegando às colônias americanas; a plantation da cana de açúcar, do algodão, cacau, café e etc. é um exemplo preciso de domesticidade, envolveu um conjunto de antropotecnias de contenção, privação, agressão, confusão, excitação. E domesticação, a Casa Grande e a senzala não nos deixam mentir, o cenário que inspirou parte da gestão do trabalho, da ergonomia laboral, da higiene doméstica e até do urbanismo dos futuros bairros industriais europeus, e que hoje desemboca nas zonas urbanas e polos de produção no Sul global. Pessoas racializadas concretamente animalizadas foram laboratório do mundo moderno, foi assim que aquelas pessoas prenunciaram o futuro [uma especulação literária interessante, por ser mais contemporânea ao movimento de interiorização desenvolvimentista brasileiro de meados do século XX, se encontra no livro A hora dos ruminantes, de << J. J. Veiga >>, romance goiano da década de 1960 com traço forte de realismo fantástico. Nele, o personagem Geminiano, homem preto detentor de uma carroça e Serrote, o asno que puxa a carroça, são as figuras forçadas por intimidação a levar aos outros moradores da cidade as mensagens dos “homens da tapeira”, os estrangeiros, homens de negócios que vieram para implantar sua visão de progresso naquele interior. Geminiano não é o preto da senzala. Ele é o preto pós-abolição que, sem oportunidade digna de trabalho, viu-se forçado a ativamente se vender outra vez ao trabalho exaustivo, nesse caso, deter uma carroça e dividi-la com um burro. E quando ele fala que não trabalha com outro animal senão aquele seu companheiro (p.29), de certa forma está afirmando que sua aliança interespecífica, seu histórico de interação, é parte essencial do próprio trabalho.] Incentivo a lembrar que as justificativas dadas pelos idealizadores da plantation para o tráfico de escravizados não se limitaram à suposta “ausência de alma” do negro e consequente exploração de seus atributos físicos, havia também uma expropriação de trabalho intelectual, muitos foram trazidos por conta de seus conhecimentos sobre o clima tropical e, principalmente, conhecimentos em torno do cultivo em biomas savânicos como o Cerrado e parte da Caatinga, onde se instalaram boa parte dos complexos agrícolas, com características geológicas e de fauna e flora bastante similares a biomas de regiões como a Angola e o Congo, por exemplo, e obviamente muito diferentes dos biomas do colonizador. Sem o conhecimento roubado e instrumentalizado dessas pessoas, os engenhos jamais poderiam render. Parece ser uma contradição, mas é um contínuo: ao mesmo tempo que se propaga a ausência de alma do negro, seu vasto repertório de interações ecológicas – uma parte fundamental da animalidade – foi engendrado com efeito na consolidação de seu aparato de submissão. Chega-se a esse diagnóstico através de << Frantz Fanon >>, mas por enquanto desconheço informações históricas mais detalhadas que embase esse ponto.
+ Escape anedótico: me ocorreu, pensando sobre experimentos-modelo com animais na psicologia estadunidense, uma leitura antropológica inspirada pelo trabalho de << Vinciane Despret >> mais interessante do que realmente pode estar em questão em um experimento como a clássica caixa operante, que todo calouro de psicologia conhece na primeira semana de curso. Em resumo, o circuito rato-barra de recompensa afere estatisticamente a mudança dos padrões de comportamento sob fatores como período de privação de água e alimento e o intervalo de reforçamento programado. O dispositivo é pensado para confundir o sistema límbico do rato faminto que ganha seu estímulo reforçador em um regime arbitrário e que muda a partir de mecanismos incognoscíveis ao próprio rato, mas dos quais ele não pode se desvencilhar. O aparato impõe ao rato um conjunto de categorias //performativas// (modelação, intensidade de resposta, latência, frequência, tempo de aquisição, discriminação, etc.)  que dão ritmo a sua fome, moldam seu corpo e suas sensações a um dado design mutuamente retroalimentado. O rato controla a máquina ou o contrário? Quem tem agência nessa configuração? Ambos. Em outras palavras: é um caso paradigmático de uma eficácia performativa sobre a biologia, que transcende a agência individual autodeterminada e intrínseca. Vitória do programa behaviorista? Por mais estranha que pareça essa afirmativa, parece que o rato apenas reencontrou uma máquina desejante que Freud já havia descoberto na compulsão à repetição [1].  Vitória do programa psicanalítico? A “disputa” é inconclusiva porque, apesar da aparente incomunicabilidade teórica, no fim, ambos lidam com o mesmo fato incontornável: você é um animal brincando de virar máquina.
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papelmolhado · 1 year
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“Ouro e açúcar”, colagem manual, 21 x 21 cm.
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