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Pedro Sette-Câmara
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pedrosette · 6 years ago
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Para que serve a arte, afinal?
Ananda K. Coomaraswamy
Tradução de Pedro Sette-Câmara
Conferência originalmente transmitida pelo rádio, em duas partes
[Cap. IV de Christian and Oriental Philosophy of Art. Nova York: Dover, 1956. pp. 89–102]
São bem conhecidas as duas escolas contemporâneas de pensamento a respeito da arte. De um lado, uma pequenina “elite” distingue as “belas” artes da arte como produto de mãos habilidosas, valorizando-as muito como autorrevelação ou auto-expressão do artista; essa elite, de modo coerente, baseia no estilo seus ensinamentos de estética, e faz da chamada “apreciação artística” uma questão de maneirismos e não de investigação do conteúdo ou da verdadeira intenção da obra. Assim são nossos professores de Estética e de História da Arte, que se regozijam com a ininteligibilidade da arte ao mesmo tempo em que a explicam psicologicamente, substituindo o estudo do homem pelo estudo da arte do homem; são nossos líderes de cegos, alegremente seguidos pela maioria dos artistas modernos, que naturalmente ficam lisonjeados com a importância atribuída ao gênio pessoal.
De outro lado, temos a vasta multidão de homens comuns que não estão realmente interessados em personalidades artísticas, e para os quais a arte da maneira definida acima é antes uma peculiaridade da vida do que uma sua necessidade. De fato, eles não têm o que fazer com a arte.
Acima dessas duas, temos uma visão normal mas esquecida da arte, que afirma que arte é fazer bem o que quer que precise ser feito ou produzido, seja uma estátua, um automóvel, ou um jardim. No mundo ocidental, essa é especificamente a doutrina Católica da arte; dessa doutrina se segue uma conclusão natural, nas palavras de São Tomás de Aquino: “não pode haver bom uso sem arte”. É bastante óbvio que, se as coisas de que precisamos fazer uso – seja esse uso intelectual ou físico; ou, em condições normais, ambos simultaneamente – não forem produzidas da maneira devida, elas não podem ser apreciadas, querendo-se dizer com “apreciadas” algo mais do que simplesmente “gostadas”. A comida mal feita, por exemplo, não nos apetecerá; do mesmo modo, exposições sentimentais ou autobiográficas enfraquecem o espírito daqueles que as frequentam. O cliente saudável está tão interessado na personalidade do artista quanto na vida privada de seu alfaiate: tudo que ele exige de ambos é que dominem suas artes.
Esta sequência de conferências sobre arte é dirigida ao segundo tipo de homem definido acima, isto é, ao homem simples e prático que não tem utilidade para a arte assim como explicada pelos psicólogos e praticada pela maior parte dos artistas contemporâneos, especialmente os pintores. O homem comum não tem o que fazer com a arte, a menos que ele saiba de que ela trata, ou para que serve. E até aí ele está inteiramente certo; se a obra não é sobre nada, nem serve para nada, ela não tem nenhuma utilidade. Além disso, a menos que a obra trate de algo que valha a pena – que valha mais a pena, por exemplo, do que a preciosa personalidade do artista –, algo importante para o cliente e consumidor e também para o artista e produtor, ela não tem utilidade real, não passando de um artigo de luxo ou de um mero ornamento. Nessas condições, a arte pode ser considerada por um homem religioso uma reles vaidade; por um homem prático, um supérfluo caro; e, pelo ideólogo de classe, parte da grande fantasia burguesa. Existem portanto dois pontos de vista opostos, um deles dizendo que não pode haver bom uso sem arte, e, o outro, que a arte é um supérfluo. Observemos, porém, que essas afirmações contrárias se referem a coisas bem diferentes, que não são as mesmas só por terem sido chamadas de “arte”. Adotemos agora a visão historicamente normal e ortodoxamente religiosa de que, assim como a ética é “a maneira correta de agir”, a arte é “fazer bem o que quer que precise ser feito”, ou simplesmente “o modo correto de fazer as coisas”; e referindo-nos ainda àqueles para quem as artes da personalidade são supérfluas, perguntemo-nos se a arte é ou não uma necessidade.
Uma necessidade é algo de que não podemos prescindir, qualquer que seja o preço. Não podemos entrar em questões de preço aqui, exceto para dizer que a arte não precisa, ou não deveria precisar ser cara, exceto na medida em que materiais custosos sejam empregados. É nesse momento que surge a questão crucial da produção voltada para o uso versus a produção voltada para o lucro. É porque a ideia de produção voltada para o lucro está ligada à sociologia industrial correntemente aceita que as coisas em geral não são bem-feitas e portanto também não são belas. É do interesse do produtor produzir coisas de que gostemos, ou que possamos ser induzidos a gostar, independentemente de elas nos servirem ou não servirem; assim como os artistas modernos, o produtor está expressando a si mesmo, e servindo às nossas necessidades somente na medida em que isso é necessário para que ele consiga vender alguma coisa. Os fabricantes e demais artistas recorrem à propaganda; a arte é bastante propagandeada pelos “museus de arte moderna” e pelos marchands; e artista e produtor determinam o preço de suas peças de acordo com o interesse do público. Nestas condições, como disse tão bem o sr. Carey nesta mesma série de conferências, o produtor trabalha para poder continuar ganhando dinheiro; ele não ganha dinheiro para poder continuar produzindo, o que seria o certo. É somente quando o artesão faz as coisas por vocação, e não simplesmente porque faz parte do seu emprego, que o preço das coisas se aproxima do seu valor real; e, nessas circunstâncias, quando pagamos por uma obra de arte projetada para servir a uma necessidade real, o dinheiro que gastamos vale a pena; e, sendo o propósito necessário, temos de ser capazes de pagar pela arte, sob o risco de vivermos abaixo do nível humano normal; é assim que vive hoje a maior parte dos homens, mesmo os ricos, se considerarmos a qualidade e não a quantidade. Não é preciso dizer que o trabalhador também é vítima da produção voltada para o lucro; tanto é assim que seria uma piada dizer que as horas de trabalho deveriam ser, em princípio, mais agradáveis do que as horas de lazer; que no trabalho ele deve fazer aquilo de que gosta, e nas horas livres aquilo que é apropriado – sendo o trabalho condicionado pela arte, e a conduta pela ética.
A indústria sem arte é brutalidade. A arte é especificamente humana. Nenhum dos povos primitivos, do passado ou do presente, cuja cultura afetamos desprezar e nos propomos a corrigir, dispensou a arte; da Idade da Pedra em diante, tudo o que foi feito pelo homem, não interessando em que condições de dificuldade ou de pobreza, foi feito artisticamente para servir a um propósito simultaneamente utilitário e ideológico. Fomos nós, ao menos coletivamente falando, que dominamos recursos amplamente suficientes, os quais não deixamos de desperdiçar, que propusemos uma divisão da arte em um tipo não mais que utilitário, e outro supérfluo, omitindo completamente aquilo que um dia se considerou a mais elevada função da arte, a expressão e a comunicação de ideias. Antigamente a escultura era considerada “o livro do pobre”. A palavra “estética”, de “aisthesis”, “sensação”, proclama nossa recusa dos valores intelectuais da arte.
É preciso falar de dois outros assuntos no tempo disponível. Em primeiro lugar, se dissemos que o homem comum está certo ao querer saber de que trata uma obra, e em exigir inteligibilidade das obras de arte, por outro lado ele está errado ao cobrar-lhes “realismo” e completamente errado ao julgar obras de arte antiga a partir do ponto de vista pressuposto em expressões comuns como “isso foi antes de conhecerem anatomia” ou “isso foi antes de descobrirem a perspectiva”. A arte está interessada na natureza das coisas, e só acidentalmente, se é que chega a tanto, na sua aparência, pela qual a natureza é mais obscurecida do que revelada. O artista não pode se afeiçoar à natureza enquanto efeito, devendo antes dar conta da natureza enquanto causa de efeitos. A arte, em outras palavras, está muito mais relacionada à álgebra do que à aritmética, e da mesma maneira que certas qualificações são necessárias para a apreciação de uma fórmula matemática, também o espectador precisa ser educado para entender e apreciar as formas de arte comunicativa. É esse o caso principalmente do espectador dedicado a compreender e a apreciar obras de arte que estão escritas, por assim dizer, numa língua estrangeira ou esquecida, como é o caso da maioria dos objetos em exibição nos museus.
Este problema surge porque o trabalho do museu não é exibir obras contemporâneas. A ambição do artista moderno de estar representado no museu é vaidade, e mostra uma total incompreensão da função da arte; afinal, se uma obra foi feita para dar conta de uma necessidade específica, ela só pode funcionar no ambiente para o qual foi projetada, isso é, em algum contexto vital, como a casa de alguém, ou uma rua, ou uma igreja, e não em um lugar cuja função primária é conter qualquer tipo de arte.
A função de um museu de arte é preservar e dar acesso a obras antigas que sejam consideradas, por especialistas responsáveis por sua seleção, espécimes excelentes. Podem estas obras, que não foram feitas para atender suas necessidades particulares, ser de algum uso para o homem comum? Provavelmente não à primeira vista e sem instruções, não até que ele saiba de que tratavam e para que serviam. Poderíamos desejar, ainda que em vão, que o homem nas ruas tivesse acesso aos mercados em que os objetos no museu foram originalmente comprados e vendidos, no curso cotidiano da vida. Por outro lado, os objetos do museu foram feitos para atender necessidades humanas específicas, ainda que não precisamente nossas necessidades atuais; e é maximamente desejável que se perceba que houve necessidades humanas diferentes, e talvez mais significativas, do que as nossas. Os objetos do museu não podem de fato ser concebidos como figuras a ser imitadas, só porque não foram feitas para adequar-se a nossas necessidades particulares; mas, na medida em que sejam bons espécimes – o que se pressupõe pela seleção dos especialistas – , deles se pode deduzir, pela comparação com seu uso original, os princípios gerais da arte, de acordo com os quais as coisas podem ser bem-feitas para atender qualquer finalidade. E esse é, de modo geral, o valor maior dos nossos museus.
Alguns responderam à questão “para que serve a arte?” dizendo que a arte é um fim em si mesma; e é um tanto esquisito que aqueles que afirmam que a arte não tem utilidade humana ao mesmo tempo enfatizem tanto seu valor. Tentaremos analisar os erros aí contidos.
Falamos acima do ideólogo de classe que não tem utilidade para a arte, e está disposto a dispensá-la, considerando-a parte da grande fantasia burguesa. Se pudéssemos encontrar um pensador desses, ficaríamos verdadeiramente felizes por concordar que toda a doutrina da arte pela arte, e toda a preocupação de “colecionar”, bem como “o amor pela arte”, não passam de aberrações sentimentais e formas de escapar das preocupações sérias da vida. Concordaríamos prontamente que só cultivar as coisas mais elevadas da vida – a arte sendo uma delas – em horas de lazer a serem obtidas por uma substituição ainda maior de meios manuais de produção por meios mecânicos é tão vã quanto seria a prática da religião pela religião aos domingos; e que as pretensões do artista moderno são fundamentalmente imaginárias e egoístas.
Infelizmente, quando vamos aos fatos, percebemos que o reformador social não é realmente superior à atual ilusão cultural, estando apenas revoltado com uma situação econômica que o priva das coisas elevadas da vida, as quais os ricos podem comprar com mais facilidade. O trabalhador inveja, muito mais do que compreende, o colecionador e “amante da arte”. A noção de arte do escravo assalariado não é mais realista ou prática do que a de um milionário, assim como sua noção de virtude não é mais prática ou realista do que a de um pregador da bondade como fim em si mesma. Ele não percebe que, se precisamos de arte somente porque gostamos de arte, precisamos ser bons somente se gostarmos de ser bons; a arte e a estética seriam meros problemas de gosto, e nada se poderia objetar contra a alegação de que não temos o que fazer com a arte porque não gostamos dela, ou que não temos razão nenhuma para sermos bons caso prefiramos ser maus.
A questão da arte pela arte foi levantada outro dia por um editor de The Nation, que citou com aprovação um pronunciamento de Paul Valéry a respeito de como a característica mais essencial da arte é sua inutilidade, e continuou dizendo que “Ninguém se choca ao ouvir que ‘a virtude é sua própria recompensa’… o que é apenas outra maneira de dizer que a virtude, assim como a arte, é um fim em si mesma, um bem final.” O escritor ainda disse que “inutilidade e ausência de valor não são as mesmas coisas”; com o que, evidentemente, quis dizer “não são a mesma coisa”. Disse ainda que só há três motivações pelas quais um artista é impelido a trabalhar, isto é, “por dinheiro, por fama, ou pela ‘arte’”.
Não precisamos continuar a procurar um exemplo perfeito de ideólogo de classe estupidificado por aquilo que denominamos grande fantasia burguesa. Para começar, está muito longe da verdade que ninguém se choque com a afirmação de que “a Virtude é sua própria recompensa”. Fosse isso verdade, então a virtude não seria mais do que a atitude do moralista que vive de observar as faltas alheias. Dizer que “a Virtude é sua própria recompensa” vai diretamente contra todo ensinamento ortodoxo, em que se afirma de maneira constante e explícita que a virtude é um meio para um fim, e não um fim em si mesma; um meio para o fim último de felicidade humana, e não uma parte daquele fim. E, exatamente do mesmo modo, em todas as civilizações normais e humanas a doutrina a respeito da arte sempre afirmou que a arte é igualmente um meio, e não um fim.
Por exemplo, a doutrina aristotélica de que “o fim geral da arte é o bem do homem” foi firmemente aprovada pelos enciclopedistas cristãos medievais; e podemos dizer que todos os sistemas de pensamento filosóficos ou religiosos dos quais o ideólogo de classe gostaria de se emancipar concordam que tanto a ética quanto a arte são meios para a felicidade, e não fins. O ponto de vista burguês, que na verdade é o ponto de vista do reformador social, é sentimental e idealista, enquanto a doutrina religiosa que ele repudia é utilitarista e prática! De todo modo, o fato de que um homem sinta prazer, ou possa sentir prazer, em agir bem ou em produzir bem, não é suficiente para fazer desse prazer o propósito de seu trabalho, exceto no caso do moralista ou daquele que meramente expressa a si mesmo; igualmente, o prazer de comer não pode ser considerado a finalidade de comer, exceto no caso do glutão, que vive para comer.
Se uso e valor de fato não são sinônimos, é só porque o uso supõe a eficácia, e o valor pode ser atribuído a algo ineficiente. Agostinho, por exemplo, demonstra que a beleza não é simplesmente aquilo de que gostamos, porque algumas pessoas gostam de deformidades; ou, em outras palavras, valorizam aquilo que na verdade não vale nada. Uso e valor não são idênticos na lógica, mas, no caso de uma pessoa perfeitamente saudável, coincidem na experiência; e isso é admiravelmente ilustrado pela equivalência etimológica do alemão gebrauchen, “usar”, e do latim fruire, “fruir”.
Tampouco o dinheiro, a fama ou a “arte” podem ser considerados explicações para a arte. O dinheiro não pode, pois, à exceção do caso da produção voltada para o lucro e não para o uso, o artista por natureza, que tem em vista o bem da obra a ser realizada, não está trabalhando para ganhar dinheiro, mas ganhando dinheiro para poder continuar sendo ele mesmo, isso é, para poder continuar trabalhando como aquilo que é por natureza; igualmente, ele come para continuar vivendo, em vez de viver para continuar comendo. Quanto à fama, basta lembrarmos que a maior parte da melhor arte do mundo foi produzida anonimamente, e que se algum trabalhador tem apenas a fama em vista, “todo homem decente deveria se envergonhar de as pessoas boas saberem isto dele”. E quanto à arte, dizer que o artista trabalha para a arte é um abuso de linguagem. Arte é como um homem trabalha, supondo que ele conheça sua arte e a tenha como hábito; do mesmo modo, a prudência, ou a consciência, é o que faz um homem agir bem. A arte é tanto a finalidade do trabalho quanto a prudência é a finalidade da conduta.
É só porque, nas condições estabelecidas num sistema de produção voltado para o lucro e não para o uso, esquecemos o sentido da palavra “vocação” e pensamos somente em termos de “empregos”, que confusões assim são possíveis. O homem que tem um “emprego” está trabalhando por motivos alheios a si, e pode muito bem ser indiferente à qualidade do produto, pelo qual não é o responsável; tudo o que ele quer, nesse caso, é garantir para si uma parcela adequada dos lucros esperados. Mas alguém cuja vocação seja específica, isso é, alguém constitucionalmente adaptado e treinado para um ou outro tipo de atividade, ainda que tire seu sustento dessa atividade, está na verdade fazendo aquilo de que mais gosta; e, se é levado pelas circunstâncias a fazer outro tipo de trabalho, ainda que melhor pago, torna-se na verdade infeliz. A vocação, seja a do fazendeiro ou do arquiteto, é uma função; o exercício dessa função, no que diz respeito ao próprio homem, é o meio mais indispensável de desenvolvimento espiritual, e, no que diz respeito à sua relação com a sociedade, a medida de seu valor. É precisamente nesse sentido que, como diz Platão, “mais será feito, e melhor, e com mais facilidade, quando cada um fizer apenas uma coisa, de acordo com seu gênio”; e isso é “a justiça para cada homem de acordo com sua própria natureza”. A tragédia de uma sociedade industrialmente organizada para o lucro é que essa justiça lhe seja negada; e qualquer sociedade que assim seja literal e inevitavelmente faz o papel de Diabo perante o resto do mundo.
O erro básico do que chamamos a ilusão cultural é a presunção de que a arte é algo a ser realizado por um tipo especial de homem – particularmente, aquele tipo de homem a quem chamamos de gênio. Em direta oposição a isso está a perspectiva normal e humana de que a arte é simplesmente a maneira correta de fazer as coisas, sejam sinfonias ou aviões. A perspectiva normal pressupõe, em outras palavras, não que o artista seja um tipo especial de homem, mas que todo homem que não é um mero ocioso e parasita é necessariamente um tipo especial de artista, hábil e contente em fazer alguma coisa de acordo com sua constituição e treinamento.
Obras geniais são de pouco uso para a humanidade, que invariável e inevitavelmente não entende, distorce, e caricatura seus maneirismos, e ignora sua essência. Não é o gênio que interessa, mas o homem capaz de produzir uma obra-prima. E o que é uma obra-prima? Não, como se supõe habitualmente, um voo individual da imaginação, além do alcance comum do seu próprio tempo e mais voltado para a posteridade do que a nós mesmos; mas, por definição, uma obra realizada por um aprendiz ao final de seu aprendizado e com a qual ele prova seu direito de ser admitido como membro de uma guilda, ou, como diríamos hoje, um sindicato, como trabalhador mestre. A obra-prima é simplesmente a prova de competência esperada e exigida de todo artista que se gradua, a quem só se permite que monte uma oficina própria se tiver apresentado essa prova. Do homem cuja obra-prima foi aceita por um corpo de praticantes especializados se espera que continue produzindo obras de qualidade similar pelo resto de sua vida; ele é um homem responsável por tudo o que faz. Tudo faz parte do curso normal dos acontecimentos, e, longe de pensar nas obras-primas como meras obras antigas preservadas nos museus, o trabalhador adulto deve ficar envergonhado se alguma coisa que ele fizer estiver abaixo do padrão da obra-prima ou não for bom o suficiente para ser exibido em um museu.
O gênio vive num mundo que é só seu. O artesão-mestre vive num mundo habitado por outros homens; ele tem próximos. Uma nação não é “musical” por causa das grandes orquestras de suas capitais, sustentadas por um seleto círculo de “amantes da música”, ou porque essas orquestras tocam peças populares. A Inglaterra era “um ninho de pássaros cantores” quando Pepys podia insistir que uma jovem donzela assumisse um papel difícil no coro da família, pois do contrário correria o risco de não conseguir um marido. E, se as canções folclóricas de um país agora só se encontram nos livros, ou estão, como diz a canção, “guardadas na mala”, ou se igualmente consideramos a arte algo a ser visto em um museu, não é que algo tenha sido ganhado, mas sim que sabemos que algo foi perdido, e desejamos ao menos preservar sua memória.
Existem, então, possibilidades de “cultura” além daquelas concebidas por nossas universidades e pelos grandes filantropos, e outras possibilidades de realização além daquelas que podem ser exibidas nas salas de estar. Não negamos que o ideólogo de classe possa ter um ressentimento justo contra a exploração econômica; quanto a isso, será suficiente dizer, de uma vez por todas, que “o trabalhador vale o seu trabalho”. Porém, o que o ideólogo de classe deveria exigir como homem, e não apenas em seu óbvio papel de explorado, mas quase nunca ousa, é a responsabilidade humana por qualquer coisa que ele mesmo faça. O que o sindicato deveria exigir de seus membros são obras-primas. O que o ideólogo de classe que não é apenas um subalterno, mas também um homem, tem o direito de exigir, não é nem ter menos trabalho, nem ter uma porção maior das migalhas culturais que caem da mesa dos ricos, mas a oportunidade de sentir imenso prazer em fazer o que quer que faça como trabalho, exatamente como sente ao cuidar do próprio jardim, ou em sua vida familiar; o que ele deveria exigir, em outras palavras, é a oportunidade de ser um artista. Qualquer civilização que lhe negue isto é inaceitável.
Com ou sem máquinas, é certo que sempre haverá trabalho para fazer. Tentamos mostrar que, se o trabalho é uma necessidade, ele não é de jeito nenhum um mal necessário, e sim um bem necessário, no caso de o trabalhador ser um artista responsável. Até agora falamos desde o ponto de vista do trabalhador, e talvez nem seja preciso dizer que tudo depende tanto do cliente quanto do artista. O trabalhador se torna um patrono na hora em que compra algo para seu próprio uso. E para ele, enquanto consumidor, sugerimos que aquele homem que, quando precisa de um terno, não compra dois ternos prontos de material vagabundo, mas delega a tarefa de fazer um terno de material primoroso a um alfaiate, é muito melhor como mecenas das artes e filantropo do que o homem que meramente adquire uma obra-prima e a coloca no museu nacional. Também o metafísico e o filósofo têm um papel; uma das funções primárias do professor de Estética deveria ser destruir as superstições da “Arte” e do “Artista” como pessoa privilegiada, um tipo diferente dos homens comuns.
Aquilo de que o explorado deveria ressentir-se não é meramente a insegurança social, mas a posição de irresponsabilidade humana que lhe é imposta pela produção voltada para o lucro. É preciso que ele entenda que a questão da propriedade dos meios de produção tem um sentido primariamente espiritual, e só secundariamente um sentido de justiça ou injustiça econômica. O ideólogo de classe, na medida em que propõe que se viva só de pão, ou mesmo de brioche, não é melhor nem mais sábio do que o capitalista burguês que ele afeta desprezar; nem ficaria ele mais feliz no trabalho caso trocasse muitos chefes por poucos. Não faz muita diferença se ele pretende viver sem arte, ou obter sua dose dela, se também consente na deificação desumana da “Arte” pressuposta na expressão “Arte pela arte”. Não é mais propício ao fim último e presente do homem sacrificar-se no altar da “Arte” do que sacrificar-se nos altares da Ciência, do Estado, ou da Nação personificadas.
Em nome de todos os homens negamos que a arte seja um fim em si mesma. Pelo contrário, “a indústria sem arte é uma brutalidade”; e tornar-se um bruto é morrer para a condição humana. Trata-se, de qualquer jeito, de um questão de ser bucha de canhão ou não: faz pouca diferença morrer repentinamente nas trincheiras ou dia após dia nas fábricas.
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pedrosette · 8 years ago
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O Indivíduo
Em 2017 teremos 20 anos de O Indivíduo.
Acabo de recuperar a administração do domínio oindividuo.com.
Para ler os textos de Sergio de Biasi, visite sbiasi.com.
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pedrosette · 9 years ago
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Ovídio no Terceiro Reich
GEOFFREY HILL: 18 de junho de 1932 -- 30 de junho de 2016)
(Primeiro poema de King Log, segundo livro de Geoffrey Hill; tradução de Pedro Sette Câmara. Leia o original.)
non peccat, quaecumque poteste peccasse negare, solaque famosam culpa professa facit. (AMORES, III, xiv)
Gosto do meu trabalho e de meus filhos. Deus é distante, difícil. E coisas ocorrem. Perto assim das antigas calhas de sangue a inocência não é arma terrena.
Uma coisa aprendi: a não menosprezar os condenados. Eles, em seu plano próprio, têm estranha harmonia com o amor de Deus. Já eu, no meu, festejo seu coral.
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pedrosette · 10 years ago
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Farm afternoons, there’s too much blue air. I go out sometimes, follow the pasture track, Chewing a blade of sticky grass, chest bare, In threadbare pyjamas of three summers back. To the little rivulets in the river-bed For a drink of water, cold and musical, And if I spot in the bunch a glow of red, A raspberry, spit its blood at the corral. The smell of cow manure is delicious. The cattle look at me unenviously And when there comes a sudden stream and hiss Accompanied by a look not unmalicious, All of us, animals, unemotionally Partake together of a pleasant piss.
Vinícus de Moraes, Sonnet of Intimacy (Translated by Elizabeth Bishop, published in the New Yorker, 27/11/1971)
Adoro reler esta tradução, talvez a melhor tradução de um poema brasileiro jamais feita.
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pedrosette · 10 years ago
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In relatively recent debates over toleration, there has developed a view that says toleration is simply not enough. In tolerating others, we implicitly (and sometimes explicitly) communicate that what they do or believe is, in our view, morally disreputable. That can have serious effects, of course, on the tolerated’s sense of self-worth and ability to live her life as she sees fit. Instead of toleration, the argument goes, we should instead offer one another mutual respect or positive regard or, and this is the key move, recognition. We need not morally endorse others’ lives full stop, but we should go beyond a grudging indifference to something like a decently warm encouragement. And the reason, broadly speaking, we must do so is because the goods we thought we could secure via toleration are not enough. They still leave those being tolerated the object of social opprobrium and thus at some real disadvantage—or worse. Hence, it is not enough for gays and lesbians to achieve a rough degree of legal and political equality. Nor is it enough for tender college students to hear criticisms that go to the heart of their own sense of identity. Unless their moral lives are, in some real way, recognized and affirmed not only by public (or university) authorities and unless their fellow citizens (or students or speakers) can be counted on to do the same, real, substantive equality will remain elusive. But this makes for the obvious question: if recognition, not toleration, is the rule of the day, why can’t moral conservatives or others with unpopular views make similarly structured claims? Well, in my view, they should be able to and the fact that they can’t helps reveal an incoherence at the heart of the recognition claim. Given a certain range of moral and religious pluralism, it is principally and practically impossible to extend recognition to all or even most, especially once recognition extends into our everyday social lives. Recognition is, or at least can be, a zero-sum game. And so what is lurking behind the purported argument for recognition—and toleration, for that matter—is a set of moral judgments about what lives are in fact worth recognizing or tolerating, and here is where the misunderstandings of moral conservatives and free-speech liberals will continue to lead to loss after loss.
Why Toleration Is Never Enough and Why Moral Conservatives and Free Speech Liberals Will Keep on Losing | Civitas Peregrina. An important and sobering post by Bryan McGraw. (via ayjay)
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pedrosette · 10 years ago
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Livraria Leonardo da Vinci
Anos atrás, no meu finado (ou dormente, ainda não decidi, nem penso nesse assunto) blog, escrevi um texto sobre a Livraria Leonardo da Vinci. Agora que a fatídica notícia chega, é hora de ressuscitá-lo.
Estive na da Vinci há menos de um ano, por dedicar-me à biografia de Bruno Tolentino. Conversei com Milena Duchiade e sua mãe, D. Vanna. E comprei um livro que dificilmente acharia em outro lugar: uma coletânea de peças de Václav Hável, em inglês.
***
Livraria Leonardo da Vinci
Aproveitando uma lacuna de três horas no Centro do Rio nessa terça, saí debaixo de chuva à procura de um livro — O processo, de Kafka, na tradução de Modesto Carone. Um insight matinal me fizera querer lê-lo imediatamente. Era preciso ir a uma livraria, coisa que, admito, raramente faço. Ou vou sempre ao mesmo e idêntico sebo, ou compro na Livraria Cultura pela internet. Não é que eu seja um apologista da comodidade, nem que seja refratário a sair para comprar livros. É que eu quase sempre já sei exatamente o que pretendo comprar. Nunca fico clicando a esmo nas lojas da internet.
Passei por duas megalivrarias. Uma parece um shopping e só vende best-sellers. Outra, apesar de bem melhor, parece feita para pessoas que acham que letra de música é poesia e têm opiniões politicamente corretas. Então, sabendo que teria de andar mais um pouco, decidi ir até a livraria Leonardo da Vinci, pensando que, se a da Vinci não tivesse, então não haveria esperanças; isso seria um sinal de que Deus mesmo considerou o insight que me fez querer O processo uma futilidade, e me puniu com uma vã caminhada na chuva.
A Leonardo da Vinci não me desapontou. Mas algo mais me chamou a atenção. Fazia tempo que não entrava na loja. Nas prateleiras perto da porta vi dois livros de Michel Serres — não sabia que ele tinha sido publicado no Brasil. Nas mesas, diversas coisas interessantes, como o livro que namoro desde a última vez que fui lá, La mort volontaire au Japon. Um livro de Roger Scruton. Livros de editoras acadêmicas, aqueles que custam fortunas — importá-los para o Brasil e apostar na sua venda me parece um dos atos mais aristocráticos imagináveis (não sei se são sensatos comercialmente). Mentira romântica e verdade romanesca, de que fiz a orelha. E a sensação de que a livraria Leonardo da Vinci é o único lugar do Rio que transmite, na falta de expressão melhor, intensidade intelectual. Não falo, decerto, do fetiche do livro, nem enquanto objeto, nem enquanto, oh!, Cultura com C maiúsculo; falo do interesse pelo livro enquanto portador de idéias bastante específicas pelas quais se tem muito interesse. A Livraria não tem um café; ninguém vai lá para sentir que faz parte da classe culta. Você vai lá para deixar suas economias, sentir-se culpado, rasgado, torcido, mas feliz por ter encontrado um pequeno tesouro.
Além disso, eu diria que a Leonardo da Vinci é, sob um aspecto muito particular, uma espécie de anti-internet. Paul Claudel teria dito que a leitura do jornal matinal lhe dava “a sensação do presente em sua totalidade”. A tentação de dizer que isso foi muitíssimo superado pela internet é grande, mas é preciso fazer a ressalva de que a internet, por maravilhosa que seja, dá a impressão de ser uma vasta máquina de palavras ociosas, exatamente daquele tipo repudiado por Jesus Cristo (ver Mateus, 12, 36).
Note o leitor que não estou opondo a indústria editorial à internet, nem a era do livro à era digital. Estou opondo a Livraria Leonardo da Vinci à internet. Porque cada um daqueles livros novos, recentes, que ali folheio não parecem ser compostos de palavras ociosas, e sim de de palavras preciosas, como se ficasse muito bem ressaltado que cada um deles é um pequeno tesouro, composto dos pensamentos idos e vividos de alguém. É muito fácil passar o dia no computador, pulando de site em site, e ao fim sequer conseguir recompor o pensamento que me fez sair de A e chegar a B, além de, é claro, ter a sensação de esmagamento informático, causado pelo excesso e pela fragmentação. Ao entrar na Leonardo da Vinci, tem-se a sensação de entrar numa sala de maravilhas, sabendo que você pode carregar para fora da li algo na sua medida, de que você pode desfrutar de maneira continuada, intensiva.
Não sei se a Leonardo da Vinci enfrenta dificuldades nessa era de Amazon e de AbeBooks. Mas sei que, se algum dia ela fechar, aí poderemos dizer que, no Rio de Janeiro, a possibilidade de uma certa experiência foi definitivamente perdida.
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pedrosette · 10 years ago
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Sei que existem, inclusive no Brasil, estudos da linguagem burocrática...
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Reports by the World Bank are torturing the English language like never before—these “grammatico-political monstrosities” amount to a new form of expression, “Bankspeak.” “In the world of ‘management’, people have goals and agendas; faced with opportunities, challenges and critical situations, they elaborate strategies. To appreciate the novelty, let’s recall that, in the 1950s–60s, issues were studied by experts who surveyed and conducted missions, published reports, assisted, advised and suggested programs.”
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pedrosette · 10 years ago
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Literature has taken a backseat to the television, don’t you think? It really has. We don’t have a culture anymore that favors the creation of writers, or supports them very well. I mean, serious artists. On Broadway, what they want are cheap comedies and musicals and revivals. It’s nearly impossible to get serious work even produced, and then it’s lucky to have a run of a week. The critics are literally killing writers.
Tennessee Williams, born on this day in 1911 (via theparisreview)
Isso mostra o que costumo dizer. Já na "Ilíada" o velho Nestor fala que aqueles guerreiros, Aquiles e tal, são muito bons, mas que "no tempo dele" a coisa era diferente, tinha os guerreiros de verdade etc. É difícil achar que algum tempo se singulariza.
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pedrosette · 10 years ago
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Se algo foi perdido
Se algo foi perdido, eu não sei. Mas ontem, numa dessas sessões de fadiga que vão ficando cada vez mais frequentes, estava vendo Respire, de Mélanie Laurent. É um filme correto, bonito, bem-feito, cheio de competência. Seu grande problema é que o final altera toda a sua visão do resto do filme, coloca em evidência coisas que você tinha interpretado só de um jeito, mas ele não tem aquela força atrativa que te arrasta até o final. Mas o que me interessa é justamente a parte do “cheio de competência”. Há tempos tantos filmes franceses parecem filmes americanos falados em francês… E penso que isso se deve à ideia de competência. É bom que os Estados Unidos exportem para o mundo um padrão de qualidade abaixo do qual nada tem o direito de existir. Certamente é muito melhor um mundo de enlatados bem-feitos do que um mundo de amadorismo e inaptidão. Até o entretenimento, afinal, demanda alguma confiabilidade.
Mas ainda me lembro de quando víamos filmes europeus para ver algo diferente. A cultura popular americana era a ração de cada dia, misturada com a brasileira — que um brasileiro de classe média acaba percebendo como mais exótica do que a americana — , e, no caso do cinema, da Europa e da Ásia vinham as maravilhas. Sim, eu sei que estou sendo reducionista, sei que existem John Ford, Frank Capra, Orson Welles etc. Mas estou falando daquele desejo de fazer filmes menos convencionais e ainda preocupados com um sentido de maravilha. E estou falando da atualidade, da atualidade que acompanhei desde a adolescência, não do baú das locadoras, que cada um pode explorar como bem entender. Num paradoxo que talvez revele mais do que estou com vontade de enxergar, o cineasta mais “europeu” em atividade hoje em dia de que consigo me lembrar parece Terrence Malick.
(Um dia, na UERJ, o Ronald Robson me falou que alguém foi ver A árvore da vida e lhe disse: “Esse filme parece um artigo do Martim Vasques da Cunha.” Eu adorei o filme e acho que a boutade deve ser entendida como um elogio ao Martim.)
Mas o que eu quero mesmo dizer, talvez, é que, além da maravilha, existe o desejo por uma sensibilidade diferente. Para alguns de nós, ver um filme, ler um livro etc. traz a expectativa de que a nossa sensibilidade possa ser alargada. Sim, existe o momento em que só queremos a segurança de um bom entretenimento. Mas a arte pode estontear-nos, e parece que de algum modo o cinema europeu, ou ao menos o francês, está abrindo mão disso para tornar-se mais competente, e, com isso, mais americano. O próprio Respire pareceu-me ter o sabor de um filme independente americano — desses independentes que já nem são tão independentes assim.
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pedrosette · 10 years ago
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France is Bacon
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pedrosette · 10 years ago
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Flaubert, quem diria, acabou no GoodReads
Escrevo "Madame Bovary" no Google. Meu objetivo é consultar o texto original podendo usar a ferramenta de busca do navegador. A primeira informação que me vem é que o romance tem nota 3.6 estrelinhas no GoodReads. Estou confundido. Críticos como James Wood dizem que nada em termos de estilo foi realmente inventado desde Flaubert. (Ou terá sido Balzac?) O poder descritivo de Flaubert dá a impressão de que ele está criando hologramas à sua frente. Seu plano de fazer um folhetim melhorzinho realmente deu certo. De um lado noto em mim um certo preconceito. Quem é essa massa ignara que dá nota 3.6 em 5 a Flaubert? Depois penso: leitores-estudiosos de Flaubert provavelmente não dão estrelinhas na internet. Se forem os leitores de Crepúsculo, talvez até tenham dado algumas estrelinhas a mais para agradar a professora de literatura imaginária em suas cabeças. E eu que sempre fui economicamente liberal. Tomaí, Pedro, bem-vindo ao mercado, que nunca foi exatamente aristocrático. Mas nem Flaubert foi aristocrata, nem aristocrático. É que nossa imagem de aristocrata é moderna demais. Girard fala em Mentira romântica e verdade romanesca de como os aristocratas franceses passaram a imitar os burgueses, com seus valores de gente sadia e poupadora. É por esse puritanismo todo que fizeram cara feia quando o rei da Espanha foi caçar. Um rei caçando! Ó, céus! Meu fluxo de consciência já está me levando longe demais. É que fiquei atordoado com Flaubert ganhando uma nota no GoodReads. Não se trata de discutir se o cliente tem sempre razão (claro que nem sempre). Não estou chocado com a nota. Estou chocado com a ideia de alguém se sentir à vontade para dar estrelinhas a Flaubert. Com a ideia de que, por outro lado, seria muito pior viver num lugar em que não se pode dar estrelinhas a Flaubert. Logo começarei a argumentar como a Barbara Cassin. Mas sou muito simpático a ela. Eu vou é para a praia.
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pedrosette · 10 years ago
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Não faça resoluções de ano novo. Elas são preconceituosas.
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pedrosette · 11 years ago
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Is it true, this talk of a loving and good God, who is more than one of the friendly idols whose rise is so easy to account for, and whose dominion is so brief? What the people want to find out and thoroughly understand is, Is it true?
Karl Barth, “The Need and Promise of Christian Preaching” (1922)
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pedrosette · 11 years ago
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I have not been on a fascinating journey of self-discovery recently, and I would not like to share it with you. Thanks be to God, we have far better things to talk about.
Sermon for Advent 3 by Beth Maynard (via unapologetic-book)
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pedrosette · 11 years ago
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Ferreira Gullar na Academia Brasileira de Letras
(Ou: um pretexto para um poema de Bruno Tolentino.) Meu exemplar de Os deuses de hoje está se desfazendo de maneira tão perfeita, as páginas descolando-se uma a uma, que eu poderia usar um furador de dois furos e transformar o livro num fichário, num objeto que adquirisse o charme das coisas “retrô”. Este é meu Tolentino favorito: o relaxado, que vai direto na linguagem corrente. Quando comprei este livro, numa madrugada de 1997, na época em que a livraria Letras & Expressões não só existia como ficava aberta 24 horas, foi isso que me impressionou e que ainda me impressiona: os poemas feitos de uma maneira próxima à fala. A medalha Bruno Tolentino. Os deuses de hoje. Rio de Janeiro: Record, 1995, p. 235. Prestaste um pequeno serviço ao homem de bem, o homem da rua: não correste atrás de ninguém, ninguém pode dizer que a tua não foi uma vida exemplar. Entre os muitos exemplos que deste retenho sobretudo isso, mas desconfio que talvez não sujasses o poema: o teste, verso a verso, é não se sujeitar… Ouvi-te dizer certa vez que revolução não tem data nem forma prevista ou exata ou definida. Mas a de Ferreira Gullar, a revolução que ele fez e vem fazendo há tantos anos por todos os que tanto a sonhamos, essa sim, teve data e tem a forma e o feitio de quem entregou ao século e ao homem o seu sonho, o seu desengano, a sua vida e a limpa medalha de um nome.
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pedrosette · 11 years ago
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Só a rua sabia o seu nome
Depois de uma certa idade, lá pelo fim da adolescência, claramente antes dos vinte anos, não sei o que houve, mas perdi o interesse por música popular. Ou melhor, mentira, sei muito bem: a música popular começou a me parecer repetitiva e eu perdi a paciência. Não que eu tenha parado de ouvi-la, mas parei de pensar nela.
Depois dos trinta, porém, descobri um artista que realmente me entusiasmou: Van Morrison. E agora, já munido de iPods e de tudo que a tecnologia proporciona, ouvir música tinha passado a ser uma experiência totalmente distinta. Era ligar o bicho nas caixinhas de som, botar no shuffle e deixar tocar, sem nem saber o nome das músicas. No máximo, botar apenas um álbum (escrever “disco” ao falar de iPods parece pior do que usar o anglicismo). Que diferença para a época em que eu sentava religiosamente com a grande capa nas mãos, o encarte aberto, absorto no que ouvia, dando à música uma atenção que só passei a dar em concertos.
No prefácio de A balada do cárcere, Bruno Tolentino escreveu que a diferença entre a música popular e a poesia era que a primeira era como as cartas de amor, que só faziam sentido numa circunstância específica, e a segunda era como a joia, que retinha sua beleza a qualquer momento. Reconheço essa verdade: o contexto do meu mergulho em Van Morrison, que começou acidentalmente, ouvindo uma música numa série, foi bastante especial e está associado a um momento.
No meio desta manhã de sábado uma canção de Van Morrison ficava tocando em minha cabeça. Antigamente, seria preciso encontrar alguém, cantarolar, na esperança de que o outro se lembrasse de qual era, ou então esperar a própria memória soltar mais informações para poder coçar a coceira. Hoje eu simplesmente peguei uma frase do refrão, joguei no Google e descobri o título da canção que está nos meus alfarrábios digitais junto com centenas de outras que eu conheço de ouvido mas não saberia nomear.
E o mais engraçado é que a música se chama “Só a rua sabia o seu nome”, e que a letra fala de uma memória primeva da própria rua, de um lugar onde todos se conhecem e onde há uma familiaridade. É tanta mise en abyme que prefiro nem começar.
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pedrosette · 11 years ago
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De vez em quando, um desses fumantes me diz: — “Marx é maior do que Cristo”. E um outro viciado jurou-me: — “O verdadeiro Cristo é Marx”. Ambos usavam a mesma ênfase alucinatória. Bem os entendo. O Brasil atual é um pouco a Velha China. Sabemos o que foi, historicamente, para o antigo chinês, o papel do ópio. Houve uma espantosa deliqüescência de valores. O vício maravilhoso destruía o sentimento de terra, de nação, de história, de família. Tudo apodrecia no êxtase supremo. (Mas a China não pode viver sem ópio. Hoje o ópio, o sonho, o delírio é Mao Tsé-tung.) Julgo perceber uma certa semelhança entre o aviltamento da China do ópio e a atitude de certas áreas ideológicas do Brasil. Procurem me entender. Fumamos o ópio marxista. Muito bem. E, na fumaça leve e encantada que sopramos, não aparece a silhueta do Brasil. É cada vez mais cruel a distância entre as esquerdas e o Brasil. De vez em quando, vejo muros pichados com vivas a Cuba. Eis o que me pergunto, gelado de pavor: — “Vivas a Cuba e não ao Brasil?”. Nunca, até hoje, se sujou um muro brasileiro com um honesto e desesperado viva ao Brasil. Ainda ontem recebi um telefonema patético. Era uma estudante da PUC. Não fez nenhum mistério: — “Sou marxista”. Perguntei, risonhamente: — “Ah, você também gosta de ópio?”. Ela não entendeu. Mas, quando falou em “o jovem”, fui taxativo. Expliquei o meu ponto de vista. Para mim, “o jovem” é tão falso, tão irreal como “o artista”, “o judeu”, “o negro” etc. etc. Mas ela queria falar do Vietnã, de Cuba, da China, da Rússia e, para xingar, dos Estados Unidos. Com relativa paciência, fiz-lhe ver a sua confusão geográfica. Isto aqui é o Brasil. E repeti: — “Ponha-se no Brasil! Ponha-se no Brasil!”. Finalmente, tomei a palavra e não a larguei mais. Disse-lhe que, no momento, só me interessa um fato: — a solidão do Brasil. Cuidar do Vietnã, de Cuba, da África, é a melhor maneira de não fazer nada, de não sair do Antonio’s, de não deixar a praia. Há todo um Brasil por fazer. E o ópio ideológico justifica e absolve a nossa deslavada ociosidade. Vamos dar vivas a Cuba e ninguém precisa mover uma palha, tirar uma cadeira do lugar. Por fim, eu estava exausto do meu próprio fervor polêmico. Furiosa, a aluna da PUC já me tratava de você. Explodiu: — “Sabe de uma coisa? Você é um velho gagá!”. Bateu com o telefone. Fiquei, por um momento, meio alado, contemplativo. Depois, me levantei. E me sentia realmente uma múmia. (16/4/1968)
Nelson Rodrigues. "O verdadeiro Cristo é Marx", de O óbvio ululante.
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