quinadamesa
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Quiprocós
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quinadamesa · 7 years ago
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peixaria
Naquele barco vivia um peixeiro. Ele não se agradava de ser um peixeiro, tinha era muito dó dos peixes. O barco era sujo na visão dos outros, como esses barcos rústicos que caem aos pedaços, esses barcos que até as ondas se recusam a tocar. Esse asco que os mantinham vivos, o barco e seu senhor, a vagar pelas águas com uma esperança não muito simpática, uma dessas esperanças que só peixeiros nutrem.
Homem de poucas palavras, descrente e bruto. Uma espécie de Lobo Larsen, solitário, monstruoso. Ora, não, não, não... Ele chorava todas as vezes que pescava um peixe. Por quê? Sentimento de igualdade é que não era; aquele homem não era sensível à moda da casa. É que ele crescera numa viela que era conhecida pelos contadores de histórias, os homens que mantinham uma ligação com o passado. Não o passado de ontem, ou de décadas atrás. O passado propriamente dito. O monstruoso, personificado, que atormenta a todos como um carcereiro que possui as chaves das celas. Como um bárbaro que saliva sangue e mata às mordidas e beliscões: esse passado.
Um certo dia, quando ainda era menino e tinha o sonho de seguir o caminho dos Utrôk, os que conseguiam controlar a Quinta Estação (e todas as outras), ele ouviu uma história do velho contador de história Grango. A história era a seguinte (as palavras de Grango não podem ser resumidas. Caso sejam, o medo do peixeiro pode ser visto como banal, e nenhum medo é banal):
Quando surgiu a Quinta Estação, marcada pelas chuvas constantes durante esse período, as águas de todo o planeta se misturaram. Assim, boa parte dos peixes morreu, já que alguns eram muito sensíveis às mudanças. Os homens, que possuíam a capacidade de controlar os mares com os seus barcos, logo se aproveitaram: por muito tempo só comeram peixes. Comeram tanto peixe que escamas apareceram em suas peles. Logo, não era mais possível diferenciar o peixe do homem, e muitos homens foram deglutidos por seus próprios irmãos.
Existia um homem muito faminto naquela época chamado Ídio (era muito comum nomes com iniciais ''I'', demonstrando a idiotice do ser humano. Hoje a idiotice se revela de outra forma; dizem que a simbologia dos nomes foi esquecida no tempo relatado nesta história).
Ídio era tão, tão faminto, que quando os homens desenvolveram escamas e ficaram parecidos com os peixes, ele comeu quase todos os homens existentes. A única pessoa que sobrou foi a jovem Aru, que pelo que o nome revela, não era nada idiota. Dizem que ela, muito antes de a Quinta Estação surgir, já possuía o que chamam de aquário hoje. O aquário naquele tempo era chamado tapú, e não tinha a função de decoração. Os tapús surgiram no momento em que notaram uma mudança no comportamento da água. Assim, acharam por bem tomarem alguns peixes para estudar sua natureza e tentar salvá-los de possíveis eventos catastróficos. Acontece que poucos homens tinham conhecimento disso, pois caso a vila inteira soubesse, a magia das histórias seria desfeita e viria a tão temida época caótica.
Aru andava com o tapú que continha o jovem peixe batizado como Kraus quando as chuvas tomaram a terra. Fugiu com o tapú e se refugiou no navio do cientista Tito, que muito a ajudou em seus estudos. Tito logo morreu numa expedição às águas profundas. Dizem que foi engolido por um furacão marítimo, mas tal fato é incerto.
Aru não sabia navegar, e percebeu que Kraus ia crescendo cada vez mais. Durante esse período ela se alimentava apenas de algumas algas que chegavam ao barco não se sabe como, mas a quantidade era imensa. Enquanto isso, civilizações foram sendo criadas por sobre as águas, muitas e muitas delas (a Quinta Estação durou milhares de anos, não se sabe muito bem em qual intervalo de tempo).
Uma dessas civilizações chamada Indrícava, que possuía os indrícavos como habitantes, tinha por rei aquele faminto Ídio. Foi a civilização mais gulosa que se tem conhecimento. Ídio engoliu todos os seus seguidores sem perceber, e rapidamente se encontrou sozinho no mundo, sem entender para onde todos haviam ido. Por muito tempo se sentiu traído e frustrado. Uma certa vez ficou um ano inteirinho exposto à chuva e quase morreu, como forma de greve existencial.
Até que um dia encontrou o barco de Aru. Ela olhou aquela figura monstruosa, meio peixe, meio homem, e sentiu medo. Ídio não sabia como reagir e disse - Ei, para onde todos foram? - Aru chorou, pois não entendia o que ele queria dizer. Ela entendia suas palavras, mas o significado era como um ser de outro planeta. O mundo chorou mais aquele dia, mas ninguém percebeu, e por isso ficou conhecido como o Dia Da Mágoa Enrustida.
Ídio não entendia por que ela não saía do barco para se comunicar com ele, pensou até que fosse muda. Até que um dia Aru saiu, chamando Kraus, que agora já assumia um tamanho enorme.
Os olhos de Ídio quase saltaram, a boca salivou: há muito tempo não via um peixe. Mas então um pensamento lhe assaltou a mente e ele perguntou – Ei, olhe o tamanho desse peixe! Por que ainda não o devorou? – Aru sentiu vergonha de suas palavras e disse:
- Como poderia? Não fui feita para possuir escamas, olhe para a sua pele! Isso é monstruoso.
Ídio nunca tinha notado as escamas que o envolviam, embora sentisse um desconforto e um peso que não sabia de onde vinham. Então ele se arrependeu, pediu desculpas a Kraus em nome de todos os peixes e se jogou no mar.
Naquele dia as águas secaram, e a Terra conheceu uma tremenda seca. Ídio passou a ser conhecido como o Sem Olhos, é o que dizem, embora eu tenha minhas dúvidas.
Quando as águas secaram e ele viu o rosto de Aru, logo perguntou:
- A chuva se foi?
- Que chuva? A Terra estava seca, agora é que começou a chover.
Mas o que Ídio enxergava com esforço era um Sol radiante.
Para Ídio, a seca; para Aru, a chuva.
Naquele dia, ambos começaram a trabalhar para conseguirem conciliar as estações particulares. Às vezes a comunicação era complicada; era quase impossível definir época de plantio e colheita, ou até coisas mais simples... Quando estava frio para Ídio, para Aru estava um calor infernal, e então não havia consenso para a utilidade de algumas coisas, como a fogueira, por exemplo. Isso é bom e ruim, pois as coisas não apresentavam uma utilidade definida, mas a confusão que isso causava é impossível de colocar no papel.
A partir deles surgiram os ''Controladores de Estações''. O mundo logo conheceu uma nova fase que permitiu a comunicação e tudo o que conhecemos hoje.
Mas dizem que as estações particulares se confundem até hoje. E o pior: a existência cansou de mandar sinais para alertar os homens.
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quinadamesa · 7 years ago
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Balinhas de goma
O caminhão de mudança só faltava me colocar junto dentro/fora dele pra me levar pra onde o teu destino vai, sabe? Você leva tantas tralhas, tantas roupas, tantas coisas que me parecem sujas chatas feias, mas não, são suas coisas, eu sei bem. Você sabe bem. Todo mundo sabe bem. Esse é o problema, a gente sabe muito bem de tudo e eu só queria saber um pouco de nada por um momento, um só momento. Assim, entende? o tempo de piscar os olhos, ou de ouvir algumas notas de algumas músicas, de algumas vozes, de algumas vozes não, da tua voz. O tempo de ouvir a tua voz por uma última vez, porque talvez essa seja a última vez antes de o caminhão partir. Eu perguntei pro motorista, aquele que conduz o caminhão, sim, aquele bem ali, ele é um pouco careca, né? Será que ele percebeu o momento exato em que ficou careca? Pense: o seu cabelo vai caindo, mas então chega um dia que, bum! Zero cabelos. Para onde os cabelos foram? Ficaram jogados por aí, em alguma rua esquina bar, ele me parece um bêbado pelas noites mesmo, mas ficaram por aí, e talvez seja só isso o que resta dele: seus cabelos pelo mundo.
Sabe, os seus cabelos estão caindo bem agora. De certa forma os sinto caindo em meus pés, nos meus ombros, pois sinto você me abraçando, mas um abraço estranho de quero ficar, mas não quero ficar e vou embora para onde o motorista careca me levar, pois eu nem sei para onde estou indo. Mas eu sinto os seus cabelos, os seus cabelos todo queratinizados, longas cadeias proteicas, e brilhosos, sim, de longe os vejo... E é por isso que é importante você deixar que eles caiam por aí mesmo, mesmo que doa, e que doa muito, não uma dor de ai, meu deus, vou morrer. Uma dor de O caminhão vai partir em vinte, dez minutos. Essa dor de nada poder fazer, de nada poder ter. Essa dor de estou indo deixar que os meus cabelos caiam em outros lugares. E eu entendo essa dor. Eu entendo tanto, pois você sabe, nunca é só um que parte, meu bem. Você vai entrar no caminhão, sim, esse caminhão que parece um container gigante que carrega um monstro limoso, e eu vou sair por aí, nessa garoa fina, essa garoa que parece um amontoado de caquinhos de vidros, vidros que não cortam, que não ferem, mas que cortam mais do que os vidros que realmente cortariam. Eu sairei por aí com o guarda-chuva amarelo e pisarei na lama que parece o choro das tuas vísceras, do teu âmago que não consegue chorar, pois não há motivo de choro. Mas o fundo do fundo sempre chora, e o choro é a expressão mútua da alma com o corpo, por isso choramos o tempo todo por caminhões que partem, que partem sempre daqui uns dez vinte minutos. Eu pisarei nessa lama enquanto a roda desse caminhão passa arrastada por uma outra lama. E você pensará meu deus, que música horrível que esse careca doido ouve. Mas depois de um tempo você aprenderá a gostar dessas músicas também, porque entenderá que a voz que ecoa pelo rádio numa tarde de um dia qualquer nunca é a voz que ecoa pelo rádio numa tarde de um dia qualquer. É a voz que ecoa no rádio de um caminhão que passa por aquela lama naquela tarde daquele dia que, pasme: não é um dia qualquer.
Você entenderá depois de um tempo que as pessoas crescem, outras envelhecem e outras amadurecem. Outras experimentam os três de uma vez, o que acho um pouco arriscado, você também acha. Mas a gente sempre termina por arriscar. Arriscar, riscar, rabiscar o que escrevemos há uns dois segundos atrás, pois somos tão incertos sobre tudo; é por isso que levamos tantas coisas nesses caminhões. Mas nesses rabiscos todos, algumas coisas saem. Uns pontilhados doidos, parecendo as sardas de alguém que se viu, que se amou, que se beijou brigou sexou encalhou vomitou. Ou então um mosaico saia desses rabiscos, parecendo com um alguém, um alguém não, aquele alguém, pois mosaico é um conjunto de várias partes, vários momentos, vários issos e aquilos. Mas as coisas saem. Sim, elas saem e vão como os cabelos. O pontilhado e o mosaico se vão e nunca, por mais que se queira chore implore, eles se apagam de você.
Eu nem entendo nada de pinturas, me perdoe. Eu nem entendo nada de nada, só dessas coisas doidas de querer expressar os sentimentos, as cores, as danças da forma mais fiel, embora eu os sinta da forma mais reles possível. E essa necessidade vem, como ouvi uma vez, de querer guardar as coisas, de querer ser as coisas. Eu sou o meu caminhão, você sabe? Você sabe muito bem, nós, todos sabemos que você sabe porque você também é um. É por isso que sempre estou e nunca estou. É por isso que o coração está por aí, despedaçado pelos cantos por vontade espontânea, como se fosse um ser único, em todos os lugares. Nas barracas que beiram as estradas, num milharal, num bueiro sujo, na parte mais profunda da terra, num espetáculo, num show, num bar sujo, você entende? Nos lugares que nunca me pertenceram, mas meu coração tem essa coisa doida de não esperar por mim. Ei, coração, volte aqui!
A vida é uma dessas coisas doidas, uma viagem que não nos pertence de forma alguma, mas daí a gente acha uma forma mais difícil de dizer algo tão simples, mas tudo bem fazer isso, tudo bem mesmo, porque encobrir o que não é encoberto é uma forma de dizer oi, sabe? Uma forma de dizer, apenas, pois palavras são isso: máscaras. Elas nunca revelam o que dizem revelar e é por isso que os textos, os choros, os beijos, tudo, nunca dizem o que querem dizer, e meu deus do céu, a gente vive numa angústia, numa náusea, de querer ao menos uma vez ser algo por completo, algo que não pertença às miríades dos nossos pensamentos e dos nossos sentimentos, algo que fuja, que corra e escorregue num desses escorregadores gigantes que giram, rodopiam até cair numa piscina imensa de bolinhas coloridas. E nessas piscinas imensas de bolinhas coloridas sempre há alguém nos esperando, meu bem, por isso nunca estamos só. E toda vez que alguém está ali na piscina de bolinha, tentando mergulhar no que não é mergulhável, sabe o que significa? Um choque dos corações. Isso mesmo, um choque. Os corações saíram mais rápidos que vocês e se chocaram, muito antes de vocês mergulharem ali naquelas bolinhas, muito antes mesmo. Se chocaram, talvez, enquanto vocês se preparavam pra o tal mergulho, enquanto tomavam seus banhos em suas casas, enquanto comiam comidas, ou bebiam coisas coloridas. Se chocaram. Bum, trkast, aisjdd. Esse é o barulho que eles fazem quando se chocam.
Aí você pede pro careca parar o caminhão. Você entendeu o que a música horrível dizia. Você sai do caminhão e escorrega na lama, tem um traumatismo craniano e morre. Brincadeira. Mas você escorrega na lama e o seu sapato, eu nunca gostei muito dos sapatos, embora não viva sem eles, tadinhos, eles não têm culpa, eu sou uma ingrata de galochas, mas os seus sapatos enroscam naquelas partes monstruosas que ficam embaixo desses caminhões e você cai e dá de cara com o chão. Você se vira pra tentar se recuperar da queda, e eu riria muito se eu estivesse ali pra ver, por pior que ela fosse, desculpa. Você vira fazendo cara de dor ainda, com os olhos fechados, a boca escancarada deixando sair um som invisível, ops, inaudível. É que às vezes sinto que os meus ouvidos podem respirar, a minha boca ver, bom, você entende tudo isso. E aí você abre os olhos e vê o céu. Tipo um vanilla sky. A garoa parou por aqui também e eu já posso fechar o guarda-chuva amarelo. E tanto faz a queda e a lama. O céu está ali para todos, todos os que caem ou se sujam para vê-lo.
Daí um portal secreto se abre na minha frente não. Nada de portais secretos, é sério o que tô dizendo. A vida continua, os ponteiros não param mesmo que tenham vontade de voltar um pouquinho pra ver como é... Uma ansiedade doida, sabe? De ver como teria sido se eu tivesse escrito isso lá e não aqui. E depois de vários anos, vários carnavais, que eu nem gosto, a gente se esbarra numa outra mudança dessas. E você pensará meu deus do céu, você é aquela moça que ajudou na mudança aquele dia. E eu direi sim, que engraçado, né, que doideira, mermão. E lembraremos de todas as coisas que colocamos nos caminhões.
E eu lembrarei desse ponto final, porque o texto nunca termina. Eu é que sinto a necessidade de dar um fim a ele, embora ele grite eiiii, não deixe que eu termine, não, agora não. Tenho muitas coisas pra dizer. Mas talvez, daqui uns anos, daqui uns carnavais, eu o leia novamente e continue a escrever, a escrever e a escrever o que nem mantem mais uma ligação com o começo, o primeiro parágrafo.
E escreverei enquanto ouço umas músicas dessas que odeio hoje, embora eu não saiba nenhuma que odeio hoje. E ouço músicas enquanto alguém enche o pote de balas, eu gosto de balas. Mas eu queria mesmo balinha de goma, sabe? Mas não nesse dia futurístico, eu queria bala de goma agora.
Ei, aí nesse caminhão, o caminhão do careca doido que ouve as músicas péssimas. Antes que você entrasse eu vi balinhas de goma naquele porta-trecos com várias coisas que carecas carregam. Tinha até as balas laranjas... Eu sempre amei as laranjas. Você guarda as laranjas pra mim? Balas de gomas resistem ao tempo... parecem sempre velhas, né? Parece que ficaram guardadas uma vida toda no baleiro de alguma senhora, uma dessas senhoras que faz tricô pro filho da vizinha que nasceu há uma semana e dois dias, talvez. Essas velhinhas sempre sabem de tudo com exatidão e nunca comem as balas de goma, por isso amo balas de goma. Há uma mágica por trás de sua fabricação.
Meu deus, eu nem posso acreditar. Acabamos de descobrir a única coisa do mundo que resiste ao tempo! Balas de goma!
Mas como as balas de goma chegam às nossas casas?
Sim, você entendeu perfeitamente. Elas chegam em caminhões, meu bem. Caminhões de mudança, pois aquela senhora precisou se mudar. Ela que distribui bala pra todo o mundo, sabia? Qualquer dia desses a gente marca um café na casa dela, ela vive insistindo pra eu ir lá ver o seu gato gordo.
Levante desse chão sujo, credo. Eu sei que o céu está lindo, mas o careca está preocupado. Ele precisa que você chegue intacto naquele lugar que ninguém sabe onde fica, o seu destino, sabe? Ele precisa que você chegue intacto para deixar que os seus cabelos caiam...
E nem invente de usar toucas, seu bobinho!
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