Tumgik
sleepstation · 3 years
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Onde Estiveste de Noite?
Acordei em meio do grito, gritei? Com os olhos ainda flutuando na vaga zona do sono, levantei a cabeça do travesseiro e quis saber onde estava. E que asas eram aquelas, meu Deus?! Essas asas que se debateram assim tão próximas que o meu grito foi num tom de pergunta, Quem é?...
Abri a boca e respirei, tinha que me localizar, espera um pouco, espera: estava sentada na cama de um hotel e a cidade era Marília. Cheguei ontem, sim, Marília.
Tudo escuro. Mas não tinha um relógio ali na cabeceira? Pronto, olhei e os ponteiros fosforescentes me pareceram tranquilos, cinco horas da madrugada. E antes de me perguntar, o que estou fazendo aqui?, veio a resposta assim com naturalidade, você foi convidada para participar de um curso de Literatura na Faculdade de Letras, dezembro de 1977, lembrou agora?
Voltei-me para a janela com as frestas das venezianas ligeiramente invadidas por uma tímida luminosidade. Por um vão menos estreito podia entrever o céu roxo. E as asas? perguntei recuando um pouco, pois não acordei com essas asas? Pronto, elas já voltavam arfantes no voo circular em redor da minha cabeça. Protegi a cabeça com as mãos, calma, calma, não podia ser um morcego que o voo dos morcegos era manso, aveludado e esse era um voo de asas assustadas, seria um pombo?
Ainda imóvel, entreabri os olhos e espiei. Foi quando o pequeno ser alado, assim do tamanho da mão de uma criança, como que escapou dos movimentos circulares e fugiu espavorido para o teto. Então acendi o abajur. A verdade é que eu estava tão assustada quanto o pássaro que entrara Deus sabe por onde e agora alcançara o teto abrindo o espaço em volteios mais largos. Levantei-me em silêncio e fui abrir as venezianas. O céu ia emergindo do roxo profundo para o azul. Olhei mais demoradamente a meia-lua transparente. As estrelas pálidas. Voltei para a cama.
Puxei o cobertor até o pescoço e ali fiquei sentada, quieta, olhando a andorinha, era uma andorinha e ainda voando. Voando. Meu medo agora era que nesse voo assim encegada não atinasse com a janela. Na infância eu tinha convivido tanto com os passarinhos, os da gaiola e esses transviados que entravam de repente dentro de casa e ficavam voando assim mesmo como que encegados até tombarem esbaforidos, o bico sangrando, as asas exaustas abertas feito braços, e a saída?!...
Vamos, pode descer, eu disse em voz baixa. Olha aí, a janela está aberta, você pode sair, repeti e me recostei no espaldar da cama. E a andorinha quase colada ao teto, voando. Voando. Esperei. O que mais podia fazer senão esperar? Qualquer intervenção seria fatal, disso eu sabia bem. Tinha apenas que ficar ali imóvel, respirando em silêncio porque até meu sopro podia assustá-la.
Voltei o olhar para o pequeno relógio. Mas o que significava isso? Uma andorinha assim solta na noite, voando despassarada no meio da noite, de onde tinha vindo e para onde ia? Ainda estava escuro quando ela entrou e começou a voar coroando a minha cabeça com seus voos obsessivos. Que continuavam agora no teto numa ronda tão angustiada. E com tantos quartos disponíveis nessa cidade, por que teria escolhido o quarto do hotel desta forasteira?
Inesperadamente ela conseguiu escapar da ronda em círculos e foi pousar no globo do lustre. E ali ficou descansando num descanso inseguro porque as patinhas trementes escorregavam no vidro leitoso do globo, teve que apoiar o bico arfante num dos elos da corrente de bronze por onde passava o fio elétrico.
Vamos, minha querida, desça daí, pedi em voz baixa. A janela está aberta, repeti e fiz um movimento com a cabeça na direção da janela. Para meu espanto, ela obedeceu mas ao invés de sair, pousou na trave de madeira dos pés da minha cama. Pousou e ficou assim de frente, me encarando, as asas um pouco descoladas do corpo e o bico entreaberto, arfante. Ainda assim me pareceu mais tranquila. Os olhinhos redondos fixos em mim. A plumagem azul-noite tão luzidia e lisa, se eu me inclinasse e escorregasse um pouco poderia tocar na minha visitante. Andorinha, andorinha, eu disse baixinho, você é livre. Não quer sair?
Aos poucos foi ficando mais calma, as asas coladas ao corpo. Continuava equilibrada no espaldar de madeira roliça, mudando de posição num movimento de balanço ao passar de uma patinha para a outra. E os olhos fixos em mim. Mas esta é hora de andorinha ficar assim solta? Por onde você andou, hein?
Ela não respondeu mas inclinou a cabeça para o ombro e sorriu, aquele era o seu jeito de sorrir. Apaguei o abajur. Quem sabe na penumbra ela atinasse com a madrugada que ia se abrindo lá fora? Com a mão do pensamento consegui alcançá-la e delicadamente fiz com que se voltasse para a janela. Adeus! eu disse. Então ela abriu as asas e saiu num voo alto. Firme. Antes de desaparecer na névoa ainda traçou alguns hieróglifos no azul do céu.
Véspera dessa viagem para Marília. E a voz tão comovida de Leo Gilson Ribeiro, a Clarice Lispector está mal, muito mal. Desliguei o telefone e fiquei lembrando da viagem que fizemos juntas para a Colômbia, um congresso de escritores, tudo meio confuso, em que ano foi isso? Ah, não interessa a data, estávamos tão contentes, isso é o que importa, contentes e livres na universidade da cálida Cali. Combinamos ir no mesmo avião que decolou sereno mas na metade da viagem começou a subir e a descer, meio desgovernado. Comecei a tremer, na realidade, odeio avião mas por que será que estou sempre metida em algum deles? Para disfarçar, abri um jornal, afetando indiferença, oh! a literatura, o teatro. Clarice estava na cadeira ao lado, aquela cadeira que comparo à cadeira de dentista, cômoda, higiênica e detestável. Então ela apertou o meu braço e riu. Fique tranquila porque a minha cartomante já avisou, não vou morrer em nenhum desastre! E o tranquila e o desastre com aqueles rrr a mais na pronúncia que eu achava bastante charmosa, desastrrre!
Desatei a rir do argumento. A carrrtomante, Clarice?... E nesse justo instante as nuvens se abriram numa debandada e o avião pairou sereníssimo acima de todas as coisas, Eh! Colômbia.
La Nueva Narrativa Latinoamericana. No hotel, os congressistas já tinham começado suas discussões na grande sala. Mas essa gente fala demais! queixou-se a Clarice na tarde do dia seguinte, quando então combinamos fugir para fazer algumas compras. Na rua das lojas fomos perseguidas por moleques que com ar secreto nos ofereciam aquelas coisas que os brasileiros apreciam... Corri com um deles que insistiu demais. Já somos loucas pela própria natureza, eu disse. Não precisamos disso! Clarice riu e com o vozeirão nasalado perguntou onde ficavam as lojas de joias, queríamos ver as esmeraldas, Esmerraldas!
Quando chegamos ao hotel, lá estavam todos ainda reunidos naqueles encontros que não acabavam mais. Mas esses escrrritores deviam estar em suas casas escrrrevendo! — resmungou a Clarice enquanto disfarçadamente nos encaminhamos para o bar um pouco adiante da sala das ponencias; a nossa intervenção estava marcada para o dia seguinte. Quando eu devia começar dizendo que literatura no tiene sexo, como los ángeles. Alguma novidade nisso? Nenhuma novidade. Então a solução mesmo era comemorar com champanhe (ela pediu champanhe) e vinho tinto (pedi vinho) a ausência de novidades. Já tinham nos avisado que o salmão colombiano era ótimo, pedimos então salmão com pão preto, ah, era bom o encontro das escritoras e amigas que moravam longe, ela no Rio e eu em São Paulo. Tanto apetite e tanto assunto em comum, os amigos. A dificuldade do ofício e que era melhor esquecer no momento, a conversa devia ser amena, que os problemas, dezenas de problemas!, estavam sendo discutidos na sala logo ali adiante. No refúgio do bar, apenas duas guapas brasileñas com pesetas na carteira e com muito assunto. Clarice queria a minha opinião, afinal, quem era mais indiscreto depois da traição, o homem ou a mulher?
Lembrei que nos antigamentes (assim falava tia Laura) a mulher era um verdadeiro sepulcro, ninguém ficava sabendo de nada. Século XIX, início do século XX, Silencio en la noche, diz o tango argentino. Ainda o silêncio porque segundo Machado de Assis, o encanto da trama era o mistério. Na minha primeira leitura (é claro, Dom Casmurro) confessei ter achado Capitu uma inocente e o marido, esse sim, um chato neurótico. Mas na segunda leitura mudou tudo, a dissimulada, a manipuladora era ela. Ele era a vítima. Clarice pediu cigarros, eram bons os cigarros colombianos? Franziu a boca e confessou que sempre duvidou da moça, Mulher é o diabo! exclamou e desatei a rir, a coincidência: era exatamente essa a frase daquele engolidor de gilete do meu conto “O Moço do Saxofone”. Acho que agora elas já estão exagerando, não? Os homens verdes de medo e elas as primeiras a alardear, Pulei a cerca!... Mulher é o diabo!
Quando saímos, os congressistas já deixavam a sala de reuniões. “Olha só como eles estão fatigados e tristes!”, ela cochichou. E pediu que eu ficasse séria, tínhamos que fazer de conta que também estávamos lá no fundo da sala. Ofereceu-me depressa uma pastilha de hortelã e enfiou outra na boca, o hálito. Entregamos os nossos pacotes de compras a uma camareira que passava e Clarice recomendou muito que a moça não trocasse os pacotes das corbatas, na caixa vermelha estavam as corbatas que ela comprara, a camareira entendeu bem?
As recomendações de Clarice. No último bilhete que me escreveu, naquela letra desgarrada, pediu: Desanuvie essa testa e compre um vestido branco!
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Um momento, agora eu estava em Marília e tinha que me apressar, o depoimento seria dentro de uma hora, ah! essas demoradas lembranças.
Quando entrei no saguão da Faculdade, uma jovem veio ao meu encontro. O olhar estava assustado e a voz me pareceu trêmula, A senhora ouviu? Saiu agora mesmo no noticiário do rádio, a Clarice Lispector morreu essa noite!
Fiquei um momento muda. Abracei a mocinha. Eu já sabia, disse antes de entrar na sala. Eu já sabia.
Lygia Fagundes Telles
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sleepstation · 4 years
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Tengo lavou o arroz e ligou a panela elétrica. Enquanto o arroz cozinhava, preparou uma sopa de missô com alga desidratada e cebolinha, assou uma cavala defumada e tirou um pedaço de queijo de soja da geladeira, temperando-o com gengibre. Ralou o nabo e requentou numa panela uma porção de legumes previamente cozidos. Como acompanhamento, pegou uma porção de nabo e ameixa azeda, ambos em conserva. A cozinha parecia ainda menor quando Tengo começou a se movimentar de um lado para outro com o seu corpo grande, mas isso não o incomodava. Já estava acostumado a viver com as coisas que tinha.
— Desculpe, mas só sei preparar coisas simples — disse Tengo.
Fukaeri observava atentamente a habilidade com que Tengo preparava a refeição e, após ver todos os pratos dispostos sobre a mesa, comentou:
— Você está acostumado a cozinhar.
— É que eu vivo sozinho há muito tempo. Tenho o hábito de preparar refeições simples e sempre como sozinho, rapidamente.
— Você sempre come sozinho.
— Pois é. É muito raro fazer uma refeição com alguém. Antes eu almoçava com ela uma vez por semana, mas, pensando bem, faz muito tempo que não janto com alguém.
— Está nervoso — perguntou Fukaeri.
Tengo balançou a cabeça negativamente.
— Não. Não estou nervoso. É somente um jantar. É apenas uma questão de estranhamento.
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sleepstation · 4 years
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Na porta, olhou para trás uma última vez, pensando que jamais voltaria àquele lugar. Nesse momento, o quarto lhe pareceu muito mais pobre. Era como uma prisão que se fecha por dentro. Não havia sequer um quadro ou um vaso de flores. Apenas o fícus na varanda, que comprara em liquidação, em vez de um kinguio. Ela não conseguia entender como fora capaz de viver tantos anos naquele lugar sem se sentir especialmente insatisfeita, sem questionamentos. — Adeus — disse ela bem baixinho. Não era uma despedida do apartamento, mas um adeus a ela mesma, à pessoa que até então vivera ali.
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sleepstation · 4 years
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Tamaru trouxe na bandeja um bule com chá de ervas e o serviu em duas belíssimas xícaras. Em seguida, retirou-se do solário e fechou a porta. A velha senhora e Aomame tomaram o chá tranquilamente, ouvindo a música de Dowland e contemplando as azaleias que floresciam como labaredas no jardim. Toda vez que Aomame visitava o solário ela se sentia em outro mundo. A impressão era de que o ar se tornava mais denso e as horas fluíam de um modo incomum. — Quando ouço esta música, às vezes sou tomada por uma estranha sensação em relação ao tempo — disse a velha senhora, como se lesse os pensamentos de Aomame. — E pensar que homens de quatrocentos anos atrás escutavam a mesma música que escutamos agora... não te causa estranhamento? — É mesmo... — respondeu Aomame. — Mas, pensando assim, podemos dizer que há quatrocentos anos as pessoas também observavam a mesma lua de hoje. Antes de concordar, a velha senhora olhou para Aomame com uma sutil expressão de surpresa: — Realmente. Você está coberta de razão. Se pensarmos assim, o fato de estarmos aqui escutando a mesma música de quatro séculos atrás não chega a ser tão estranho. — Pode-se dizer que a lua é praticamente a mesma. Ao dizer isso, Aomame observou o rosto da velha senhora. Mas seu comentário parecia não ter despertado especial interesse nela. — A música deste CD foi executada com instrumentos antigos — explicou a velha senhora. — Foram utilizados os mesmos instrumentos e a mesma partitura daquela época. Isso significa que o som que ouvimos é praticamente igual ao que se ouvia naquela época. É como a lua. Aomame disse: — As coisas podem ser as mesmas, mas o modo como as pessoas de antigamente a percebiam teria sido muito diferente do de hoje. Naquela época, a escuridão da noite devia ser muito mais profunda, de um intenso breu e, consequentemente, a lua era vista como algo muito maior, muito mais claro e mais reluzente. As pessoas obviamente não tinham discos, fitas-cassete e tampouco CDs. No dia a dia elas não tinham condições de ouvir uma música de tão boa qualidade a qualquer hora e no momento desejado. Ouvir música era algo muito especial. — Você tem razão — admitiu a velha senhora. — O fato de vivermos num mundo como o de hoje, com muitas comodidades, deve ter embrutecido nossa sensibilidade, não acha? A lua pode até ser a mesma, mas nós a enxergamos de maneira diferente. Quatro séculos atrás, talvez tivéssemos um espírito mais desenvolvido e mais conectado à natureza. — Mas, naquela época, o mundo era cruel. Mais da metade das crianças morriam cedo, antes de se tornarem adultas, vítimas de epidemias ou desnutrição. As pessoas morriam ainda muito jovens devido a doenças como poliomielite, tuberculose, varíola e sarampo. No povo, poucos conseguiam chegar aos quarenta anos. As mulheres tinham muitos filhos e, aos trinta, perdiam os dentes e ficavam como velhas. Para se manterem vivos, muitas vezes tinham de apelar para a violência. As crianças, desde pequenas, eram obrigadas a fazer serviços tão pesados que seus ossos chegavam a deformar-se; e a prostituição de meninas era algo corriqueiro. Creio que a dos meninos também. A maioria das pessoas vivia no limite da subsistência, num mundo totalmente à parte, alheio à sensibilidade e à elevação espiritual. As ruas das cidades estavam repletas de deficientes físicos, mendigos e criminosos. Pouquíssimas eram as pessoas em condições de contemplar a lua, emocionar-se com uma peça de Shakespeare ou ouvir uma música tão bela como a de Dowland.
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sleepstation · 4 years
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Aomame a consolou e aconselhou-a a dar uma lição no sujeito. Mas Tamaki discordou, dizendo que o erro também fora dela e que, àquela altura, não adiantava mais se queixar. Disse, também, que assumia a responsabilidade por ter aceitado o convite de ir ao quarto dele sozinha e que, sendo assim, a melhor coisa a fazer era esquecer o assunto. No entanto, Aomame sentia na pele quão profunda era a dor que o incidente causara em sua amiga. Não fora apenas uma questão banal sobre a perda da virgindade, mas sobre ferir o que existe de mais sagrado na alma de uma pessoa. Onde ninguém tinha o direito de pisar com os sapatos enlameados. O sentimento de impotência é algo que consome a pessoa até acabar com ela. Diante disso, Aomame resolveu puni-lo por conta própria. Conseguiu descobrir, por meio de Tamaki, o endereço do apartamento do rapaz e foi até lá com um bastão de softball escondido num tubo de plástico para guardar mapas. Naquele dia, Tamaki fora para Kanazawa assistir a uma cerimônia budista em memória de um parente ou coisa assim, e esse seria seu álibi. Aomame sabia, de antemão, que o rapaz não estava em casa. Com uma chave de fenda e um martelo, partiu a fechadura e entrou no apartamento. Uma vez lá dentro, enrolou várias vezes o bastão com uma toalha e, cuidando para não fazer barulho, começou a quebrar tudo que havia no quarto: televisão, luminária de mesa, relógio, discos, torradeira, vaso de flores... quebrou tudo que fosse possível quebrar. Com uma tesoura cortou o fio do telefone. Arrancou e rasgou as capas dos livros e espalhou no carpete todo o conteúdo da pasta de dentes e do creme de barbear. Espalhou molhos na cama. Tirou os cadernos da gaveta e rasgou as folhas. Quebrou os lápis e as canetas. Quebrou todas as lâmpadas. Rasgou as cortinas e furou as almofadas com uma faca de cozinha. Cortou com a tesoura todas as camisas do armário. Despejou ketchup nas gavetas de cuecas e meias. Tirou o fusível da geladeira e o jogou pela janela. Tirou a tampa da caixa de descarga do vaso sanitário e a quebrou. Esmagou o chuveiro. A destruição foi meticulosa e total, de ponta a ponta. O quarto ficou parecido com o de uma foto tirada logo após um bombardeio em Beirute que ela vira, tempos atrás, estampada no jornal.
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sleepstation · 4 years
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Lanuit
Amo a noite apaixonadamente. Amo-a como quem ama seu país ou sua amante, com um amor instintivo, profundo, invencível. Amo-a com todos os meus sentidos, com meus olhos que a vêem, com meu olfato que a respira, meus ouvidos que escutam seu silêncio, com toda a minha carne que as trevas acariciam.
As cotovias cantam ao sol, no ar azul, no ar quente, no ar leve das manhãs claras. O mocho voa à noite, mancha negra que passa pelo espaço negro, e, radiante, inebriado pela negra imensidão, solta seu grito vibrante e sinistro.
O dia me cansa e me aborrece. É brutal e barulhento. Levanto-me com dificuldade, e visto-me com lassidão, saio a contragosto, e cada passo, cada movimento, cada gesto, cada palavra, cada pensamento me cansa como se eu levantasse um fardo que me esmagasse.
Mas, quando o sol se põe, invade-me uma alegria confusa, uma alegria de todo o meu corpo. Desperto, me animo. À medida que crescem as sombras, sinto-me outro, mais moço, mais forte, mais alerta, mais feliz. Olho para a grande sombra suave caindo do céu e se adensando: ela afoga a cidade, como uma onda impalpável e impenetrável, ela esconde, apaga, destrói as cores, as formas, abraça as casas, os seres, os monumentos com seu toque imperceptível. Então sinto vontade de gritar de prazer como as corujas, de correr pelos telhados como os gatos; e um desejo de amar, impetuoso, invencível, arde em minhas veias.
Vou, caminho, ora pelos subúrbios ensombreados, ora pelos bosques vizinhos de Paris, onde ouço rondarem minhas irmãs, as bestas, e meus irmãos, os caçadores clandestinos.
O que amamos com violência sempre acaba nos matando. Mas como explicar o que acontece comigo? E, mesmo, como explicar que sou capaz de contá-lo? Não sei, já não sei, sei apenas que isso existe — pronto.
Portanto, ontem — era ontem? —, sim, sem dúvida, a menos que tenha sido antes, um outro dia, um outro mês, um outro ano — não sei. Mas deve ser ontem, já que o dia não mais raiou, já que o sol não reapareceu. Mas desde quando dura a noite? Desde quando?… Quem poderá dizer? Quem algum dia saberá?
Assim, ontem saí, como faço todas as noites, depois do jantar. Fazia um tempo muito bonito, muito suave, muito quente. Ao descer para os bulevares, olhei acima de minha cabeça o negro rio cheio de estrelas, recortado no céu pelos telhados das casas, que giravam e faziam esse riacho rolante de astros ondular como um rio de verdade.
No ar leve, tudo estava claro, desde os planetas até os bicos de gás. Tantas luzes brilhavam lá no alto e na cidade que as trevas pareciam luminosas. As noites luzentes são mais alegres que os grandes dias de sol. No bulevar, os cafés rutilavam; todos riam, passavam, bebiam. Entrei no teatro, por alguns instantes, em que teatro? Não sei mais. Lá dentro estava tão claro que me senti agoniado, e saí com o coração meio obscurecido por aquele choque brutal de luz nos dourados do balcão, pelo cintilar factício do enorme lustre de cristal, pela cortina de luzes da ribalta, pela melancolia daquela claridade falsa e crua. Cheguei aos Champs-Elysées, onde os cafés-concertos pareciam focos de incêndio no meio das folhagens. As castanheiras roçadas pela luz amarela tinham um aspecto de pintadas, um aspecto de árvores fosforescentes. E os globos de luz elétrica, parecendo luas cintilantes e pálidas, ovos de lua caídos do céu, pérolas monstruosas, vivas, faziam empalidecer, sob sua claridade nacarada, misteriosa e imperial, os fios de gás, do feio gás sujo, e as guirlandas de vidros coloridos.
Parei debaixo do Arco do Triunfo para olhar a avenida, a longa e admirável avenida estrelada, indo até Paris entre duas linhas de fogo e os astros! Os astros lá no alto, os astros desconhecidos jogados ao acaso na imensidão, onde desenham essas figuras estranhas que tanto fazem sonhar, que tanto fazem pensar.
Entrei no Bois de Boulogne e lá fiquei muito tempo, muito tempo. Estava tomado por um arrepio singular, uma emoção imprevista e poderosa, uma exaltação de meu pensamento que raiava a loucura. Andei muito tempo, muito tempo. Depois voltei. Que horas eram quando tornei a passar sob o Arco do Triunfo? N ão sei. A cidade adormecia, e nuvens, grossas nuvens pretas, espalhavam-se lentamente no céu.
Pela primeira vez senti que algo estranho, novo, ia acontecer. Tive a impressão de que fazia frio, de que o ar se adensava, de que a noite, minha noite bem-amada, pesava sobre meu coração. Agora a avenida estava deserta. Só dois policiais passeavam perto da estação dos fiacres, e na rua apenas iluminada pelos bicos de gás que pareciam moribundos, uma fila de carroças de legumes ia para os Halles. Iam devagar, carregadas de cenouras, nabos e repolhos. Os cocheiros dormiam, invisíveis; os cavalos andavam no mesmo passo, seguindo a carroça da frente, sem barulho, pelo calçamento de madeira. Diante de cada luz da calçada, as cenouras se iluminavam, vermelhas, os nabos se iluminavam, brancos, os repolhos se iluminavam, verdes; e essas carroças passavam uma atrás da outra, vermelhas como o fogo, brancas como a prata, verdes como a esmeralda. Fui atrás delas, depois virei na rua Royale e voltei para os bulevares. Mais ninguém, mais nenhum café iluminado, apenas alguns retardatários que se apressavam. Nunca tinha visto Paris tão morta, tão deserta. Puxei meu relógio, eram duas horas.
Uma força me empurrava, uma necessidade de andar. Portanto, fui até a Bastilha. Lá percebi que nunca tinha visto uma noite tão escura, pois nem sequer distinguia a Colonne de Juillet, cujo Gênio dourado estava perdido no breu impenetrável. Um firmamento de nuvens, cerrado como a imensidão, afogara as estrelas e parecia descer sobre a terra para liquidá-la.
Retornei. Não havia mais ninguém ao meu redor. Porém, na praça Du Châteaud'Eau um bêbado quase me deu um encontrão, depois desapareceu. Por algum tempo ouvi seu passo desigual e sonoro. Eu ia andando. Na altura do Faubourg Montmartre passou um fiacre, descendo na direção do S ena. Chamei-o. O cocheiro não respondeu. Perto da rua Drouot, uma mulher zanzava: “Ei, cavalheiro, escute”. A pertei o passo para evitar sua mão estendida. Depois, mais nada. Na frente do Vaudeville, um catador de trapos vasculhava a sarjeta. Sua pequena lanterna tremulava bem rente ao chão. Perguntei-lhe: “Que horas são, meu amigo?”.
Ele respondeu: “E eu lá sei! Não tenho relógio”.
Então, de repente, reparei que os lampiões de gás estavam apagados. Sei que nesta época do ano eles são apagados bem cedo, antes do amanhecer, por economia; mas o dia ainda estava longe, tão longe de raiar!
“Vamos para os Halles”, pensei, “pelo menos lá encontrarei vida.”
Pus-me a caminho, mas não enxergava nada nem mesmo para me orientar. Ia andando devagar, como se anda num bosque, contando as ruas para reconhecê-las. Defronte do Crédit Lyonnais um cão rosnou. Virei na De Grammont, me perdi; perambulei, depois reconheci a Bolsa pelas grades de ferro que a cercavam. Toda a Paris dormia, com um sono profundo, apavorante. Mas ao longe andava um fiacre, talvez aquele que tinha passado por mim ainda agora. Tentei alcançá-lo, indo na direção do ruído de suas rodas, pelas ruas solitárias e negras, negras, negras como a morte. Perdi-me de novo. Onde estava? Que loucura apagar o gás tão cedo! Nem um passante, nem um retardatário, nem um vagabundo, nem um miado de gato apaixonado. Nada.
Mas onde estavam os policiais? Pensei: “Vou gritar, eles virão”. Gritei. Ninguém respondeu. Chamei mais alto. Minha voz se foi, sem eco, fraca, abafada, esmagada pela noite, por aquela noite impenetrável.
Berrei: “Socorro! Socorro! Socorro!”. Meu apelo desesperado ficou sem resposta.
Que horas eram? Puxei meu relógio, mas não tinha fósforos. Escutei o leve tiquetaque do pequeno mecanismo com uma alegria desconhecida e estranha. Ele parecia viver. Eu já não estava tão sozinho. Que mistério! Recomecei a andar como um cego, tateando os muros com minha bengala, e a toda hora levantava os olhos para o céu, esperando que enfim o dia raiasse; mas o espaço estava negro, todo negro, mais profundamente negro que a cidade.
Que horas podiam ser? Parecia que eu caminhava havia um tempo infinito, pois minhas pernas amoleciam debaixo de mim, meu peito arfava, e eu sofria terrivelmente de fome. Resolvi bater no primeiro portão. Puxei o botão de cobre e a campainha retiniu sonora na casa; retiniu estranhamente, como se esse ruído vibrante estivesse sozinho naquela casa.
Esperei, não responderam, não abriram a porta. Toquei de novo; esperei mais — nada. Tive medo! Corri para a residência seguinte, e vinte vezes em seguida fiz a campainha ressoar no corredor escuro onde devia dormir o zelador. Mas ele não acordou — e fui mais longe, puxando com toda a força as argolas ou os botões, batendo com os pés, a bengala e as mãos nas portas obstinadamente fechadas.
E de repente percebi que estava chegando aos Halles. O mercado estava deserto, sem um ruído, sem um movimento, sem um carro, sem um homem, sem um molho de legumes ou um ramo de flores — as barracas estavam vazias, imóveis, abandonadas, mortas! Invadiu-me um pavor — horrível. O que estava acontecendo? Ah, meu Deus! O que estava acontecendo?
Fui embora. Mas a hora? A hora? Quem me diria a hora? Nos campanários ou os monumentos nenhum relógio batia. Pensei: “Vou abrir o vidro do meu relógio e sentir os ponteiros com meus dedos”. Puxei meu relógio… ele já não funcionava… estava parado. Mais nada, mais nada, mais nenhum arrepio na cidade, nenhum clarão, nenhum vestígio de som no ar. Nada! Mais nada! N em mesmo o ruído longínquo do fiacre andando — mais nada! Eu estava nos quais, e subia do rio uma brisa glacial. O Sena ainda corria? Quis saber, encontrei a escada, desci… Eu não ouvia a torrente encapelando sob os arcos da ponte… Mais degraus… depois, areia… lama… depois a água… molhei meu braço… ele corria… frio… frio… frio… quase gelado… quase seco… quase morto.
E senti perfeitamente bem que nunca mais teria força para subir de novo… e que ia morrer ali… eu também, de fome, de cansaço, e de frio.
Guy de Malpassant, 1887
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sleepstation · 4 years
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A Dama da Lotação
Às dez horas da noite, debaixo de chuva, Carlinhos foi bater na casa do pai. O velho, que andava com a pressão baixa, ruim de saúde como o diabo, tomou um susto: — Você aqui? A essa hora? E ele, desabando na poltrona, com profundíssimo suspiro: — Pois é, meu pai, pois é! — Como vai Solange? — perguntou o dono da casa. Carlinhos ergueu-se; foi até a janela espiar o jardim pelo vidro. Depois voltou e, sentando-se de novo, larga a bomba: — Meu pai, desconfio de minha mulher. Pânico do velho: — De Solange? Mas você está maluco? Que cretinice é essa? O filho riu, amargo: — Antes fosse; meu pai, antes fosse cretinice. Mas o diabo é que andei sabendo de umas coisas… E ela não é a mesma, mudou muito. Então, o velho, que adorava a nora, que a colocava acima de qualquer dúvida, de qualquer suspeita, teve uma explosão: — Brigo com você! Rompo! Não te dou nem mais um tostão! Patético, abrindo os braços aos céus, trovejou: — Imagine! Duvidar de Solange! O filho já estava na porta, pronto para sair; disse ainda: — Se for verdade o que eu desconfio, meu pai, mato minha mulher! Pela luz que me alumia, eu mato, meu pai!
A Suspeita
Casados há dois anos, eram felicíssimos. Ambos de ótima família. O pai dele, viúvo e general, em vésperas de aposentadoria, tinha uma dignidade de estátua; na família de Solange havia de tudo: médicos, advogados, banqueiros e até um tio, ministro de Estado. Dela mesma se dizia, em toda parte, que era “um amor”; os mais entusiastas e taxativos afirmavam: “É um doce de coco.” Sugeria nos gestos e mesmo na figura fina e frágil qualquer coisa de extraterreno. O velho e diabético general poderia pôr a mão no fogo pela nora. Qualquer um faria o mesmo. E todavia… Nessa mesma noite, do aguaceiro, coincidiu de ir jantar com o casal um amigo de infância de ambos, o Assunção. Era desses amigos que entram pela cozinha, que invadem os quartos, numa intimidade absoluta. No meio do jantar, acontece uma pequena fatalidade: cai o guardanapo de Carlinhos. Este curva-se para apanhá-lo e, então, vê, debaixo da mesa, apenas isto: os pés de Solange por cima dos de Assunção ou vice-versa. Carlinhos apanhou o guardanapo e continuou a conversa, a três. Mas já não era o mesmo. Fez a exclamação interior: “Ora essa! Que graça!” A angústia se antecipou ao raciocínio. E ele já sofria antes mesmo de criar a suspeita, de formulá-la. O que vira, afinal, parecia pouco. Todavia, essa mistura de pés, de sapatos, o amargurou como um contato asqueroso. Depois que o amigo saiu, correra à casa do pai para o primeiro desabafo. No dia seguinte, pela manhã, o velho foi procurar o filho: — Conta o que houve, direitinho! O filho contou. Então, o general fez um escândalo: — Toma jeito? Tenha vergonha! Tamanho homem com essas bobagens! Foi um verdadeiro sermão. Para libertar o rapaz da obsessão, o militar condescendeu em fazer confidências: — Meu filho, esse negócio de ciúme é uma calamidade! Basta dizer o seguinte: eu tive ciúmes de tua mãe! Houve um momento em que eu apostava a minha cabeça que ela me traía! Vê se é possível?!
A Certeza
Entretanto, a certeza de Carlinhos já não dependia de fatos objetivos. Instalara-se nele. Vira o quê? Talvez muito pouco; ou seja uma posse recíproca de pés, debaixo da mesa. Ninguém trai com os pés, evidentemente. Mas de qualquer maneira ele estava “certo”. Três dias depois, encontro acidental, com o Assunção, na cidade. O amigo anuncia, alegremente: — Ontem, viajei no lotação com tua mulher. Mentiu sem motivo: — Ela me disse. Em casa, depois do beijo na face, perguntou: — Tens visto o Assunção? E ela, passando verniz nas unhas: — Nunca mais. — Nem ontem? — Nem ontem. E por que ontem? — Nada. Carlinhos não disse mais uma palavra; lívido, foi ao gabinete, apanhou o revólver e o embolsou. Solange mentira! Viu, no fato, um sintoma a mais de infelidade. A adúltera precisa mesmo das mentiras desnecessárias. Voltou para sala; disse, à mulher, entrando no gabinete: — Vem cá um instantinho, Solange. — Vou já, meu filho. Berrou: — Agora! Solange, espantada, atendeu. Assim que ela entrou, Carlinhos fechou a porta, à chave. E mais: pôs o revólver em cima da mesa. Então, cruzando os braços, diante da mulher atônita, disse-lhe horrores. Mas não elevou a voz, nem fez gestos: — Não adianta negar! Eu sei de tudo! E ela, encostada à parede, perguntava: — Sabe de quê, criatura? Que negócio é esse? Ora veja! Gritou-lhe, no rosto, três vezes a palavra “cínica”! Mentiu que a fizera seguir por um detetive particular; que todos os seus passos eram espionados religiosamente. Até então não nomeara o amante, como se soubesse tudo, menos a identidade do canalha. Só no fim, apanhando o revólver, completou: — Vou matar esse cachorro do Assunção! Acabar com a raça dele! A mulher, até então passiva e apenas espantada, atracou-se com o marido, gritando: — Não, ele não! Agarrado pela mulher, quis se desprender, num repelão selvagem. Mas ela o imobilizou, com o grito: — Ele não foi o único! Há outros!
A Dama da Lotação
Sem excitação, numa calma intensa, foi contando. Um mês depois do casamento, todas as tardes, saía de casa, apanhava o primeiro lotação que passasse. Sentava-se num banco, ao lado de um cavalheiro. Podia ser velho, moço, feio ou bonito; e uma vez — foi até interessante — coincidiu que seu companheiro fosse um mecânico, de macacão azul, que saltaria pouco adiante. O marido, prostrado na cadeira, a cabeça entre as mãos, fez a pergunta pânica: — Um mecânico? Solange, na sua maneira objetiva e casta, confirmou: — Sim. Mecânico e desconhecido: duas esquinas depois, já cutucara o rapaz: “Eu desço contigo.” O pobre-diabo tivera medo dessa desconhecida linda e granfa. Saltaram juntos: e esta aventura inverossímil foi a primeira, o ponto de partida para muitas outras. No fim de certo tempo, já os motoristas dos lotações a identificavam a distância; e houve um, que fingiu um enguiço, para acompanhá-la. Mas esses anônimos, que passavam sem deixar vestígios, amarguravam menos o marido. Ele se enfurecia, na cadeira, com os conhecidos. Além do Assunção, quem mais? Começou a relação de nomes: Fulano, Cicrano, Beltrano… Ele berrou: “Basta! Chega!” Em voz alta, fez o exagero melancólico: — A metade do Rio de Janeiro, sim senhor! O furor extinguira-se nele. Se fosse um único, se fosse apenas o Assunção, mas eram tantos! Afinal, não poderia sair, pela cidade, caçando os amantes. Ela explicou, ainda, que, todos os dias, quase com hora marcada, precisava escapar de casa, embarcar no primeiro lotação. O marido a olhava, pasmo de a ver linda, intacta, imaculada. Como é possível que certos sentimentos e atos não exalem mau cheiro? Solange agarrou-se a ele, balbuciava: “Não sou culpada! Não tenho culpa!” E, de fato, havia, no mais íntimo de sua alma, uma inocência infinita. Dir-se-ia que era outra que se entregava e não ela mesma. Súbito, o marido passa-lhe a mão pelos quadris: “Sem calça! Deu agora para andar sem calça, sua égua!” Empurrou-a com um palavrão; passou, pela mulher, a caminho do quarto; parou, na porta, para dizer: — Morri para o mundo.
O Defunto
Entrou no quarto, deitou-se na cama, vestido, de paletó, colarinho, gravata, sapatos. Uniu bem os pés; entrelaçou as mãos, na altura do peito; e, assim ficou. Pouco depois, a mulher surgiu, na porta. Durante alguns momentos, esteve imóvel e muda, numa contemplação maravilhada. Acabou murmurando: — O jantar está na mesa. Ele, sem se mexer, respondeu: — Pela última vez: morri. Estou morto. A outra não insistiu. Deixou o quarto, foi dizer à empregada que tirasse a mesa e que não faziam mais as refeições em casa. Em seguida, voltou para o quarto e lá ficou. Apanhou um rosário, sentou-se perto da cama: aceitava a morte do marido como tal; e foi, como viúva, que rezou. Depois do que ela própria fazia nos lotações, nada mais a espantava. Passou a noite fazendo quarto. No dia seguinte, a mesma cena. E só saiu, à tarde, para sua escapada delirante, de lotação. Regressou horas depois. Retomou o rosário, sentou-se e continuou o velório do marido vivo.
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sleepstation · 4 years
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Menshiki e eu paramos de falar e apuramos os ouvidos, imóveis. Já nenhum inseto cantava mais, como nas madrugadas anteriores. Em meio àquele silêncio profundo, escutei o som tênue do guizo, que soava algumas vezes, parava por um tempo, depois recomeçava. Olhei para Menshiki, sentado no sofá à minha frente. Pela expressão estampada em seu rosto, soube que ele estava ouvindo a mesma coisa. Tinha as sobrancelhas franzidas, e os dedos das mãos, pousadas sobre os joelhos, se agitavam ligeiramente, como acompanhando o som do guizo. Não era apenas minha imaginação.
Depois de escutar com atenção por dois ou três minutos, Menshiki se levantou do sofá.
— Vamos até o local de onde vem este som — declarou, categoricamente.
Peguei a lanterna. Ele saiu, foi até o Jaguar e também pegou uma lanterna que havia trazido para isso. Em seguida subimos os sete degraus de pedra e entramos no bosque. A lua de outono não estava tão clara quanto a de duas noites atrás, mas iluminava bem o chão. Contornamos o santuário, abrimos espaço entre o capim e paramos diante do montículo de pedra. Então voltamos a apurar os ouvidos. O ruído misterioso escapava por entre aquelas pedras, sem dúvida.
Com cuidado, Menshiki contornou o montículo, iluminando as pedras com a lanterna e examinando tudo com atenção. Mas não encontrou nada de anormal. Eram apenas pedras arcaicas, cheias de limo, empilhadas rusticamente. Ele me encarou. À luz do luar, seu rosto me lembrou um pouco uma máscara antiga. Será que o meu também tinha esse aspecto?
— Na outra noite, o som também vinha daqui? — sussurrou ele.
— Sim — respondi. — Exatamente daqui.
— Parece que tem alguém embaixo dessas pedras, tocando algum tipo de guizo. Assenti com a cabeça. Era um alívio saber que eu não estava ficando louco. Ainda assim, aquelas palavras concretizavam a possibilidade absurda insinuada ali. Tive que admitir que os encaixes da realidade pareciam ter se deslocado sutilmente.
— O que você acha que devemos fazer? — perguntei.
Menshiki continuava iluminando com a lanterna o lugar de onde escapava o som. Refletia sobre alguma coisa, com os lábios apertados. Em meio ao silêncio da noite, eu tinha a impressão de que podia ouvir as engrenagens da sua cabeça funcionando, a todo o vapor.
— Talvez alguém esteja pedindo socorro — murmurou Menshiki, como se estivesse pensando em voz alta.
— Mas quem poderia ter se enfiado embaixo dessas pedras enormes?
Menshiki balançou a cabeça. Havia questões que nem ele sabia responder.
— Acho que, por enquanto, o melhor é voltar para casa — disse ele, tocando de leve meu ombro. — Lá pelo menos conseguimos confirmar de onde vem o som e podemos conversar com calma.
Atravessamos o bosque e chegamos à frente da casa. Menshiki guardou a lanterna de volta no Jaguar e pegou uma pequena sacola de papel sobre o banco. Então entramos.
— Se você tiver um uísque, poderia me servir um pouco? — perguntou Menshiki.
— Pode ser um scotch comum?
— Claro. Puro, por favor. E um copo d’água sem gelo.
Fui até a cozinha, peguei uma garrafa de White Label no armário e servi dois copos, que levei para a sala junto com uma água mineral. Nos sentamos frente a frente e, sem dizer nada, tomamos o uísque puro. Quando Menshiki esvaziou o copo, eu trouxe a garrafa de uísque da cozinha e servi outra dose. Ele pegou o copo, mas não bebeu. No silêncio da madrugada, o guizo continuava ressoando, intermitente. Era um som baixo, mas com uma intensidade penetrante, impossível de ser ignorada.
— Eu já vi muita coisa nessa vida, mas é a primeira vez que vejo algo tão estranho — disse Menshiki. — Por favor, não se ofenda, mas quando você falou sobre isso eu fiquei um pouco incrédulo. Nunca imaginei que essa história pudesse acontecer no mundo real!
Aquilo chamou minha atenção.
— Como assim, “no mundo real”?
Menshiki ergueu o rosto e me encarou por um momento.
— Eu já tinha lido uma história semelhante em um livro — respondeu ele.
— Quer dizer, uma história com um guizo tocando no meio da noite?
— Para ser preciso, na história não é um guizo, e sim um kane. Você sabe, aquele sino antigo, em forma de prato, em que se batia com um martelinho de madeira nos rituais budistas, enquanto eram recitadas orações. No livro, é este o instrumento que soa debaixo da terra, no meio da madrugada.
— É uma história de terror?
— Acho que a definição mais correta seria uma história sobrenatural. Você já leu Contos da chuva de primavera, de Ueda Akinari? — perguntou Menshiki.
Fiz que não com a cabeça.
— Não, este não. Dele, só li Contos da lua e da chuva, mas há muito tempo — respondi.
— Contos da chuva de primavera foi o último livro escrito por Akinari, já no fim da sua vida, cerca de quarenta anos depois de Contos da lua e da chuva, que foca mais nos enredos. Em Contos da chuva de primavera o mais importante é a filosofia do autor, como homem de letras. No livro há um conto curioso, chamado “Um destino para duas encarnações”, cujo protagonista, um estudioso, filho de um agricultor rico, passa por uma situação semelhante à sua. Certa noite, enquanto está estudando, começa a ouvir o som irregular de um sino, vindo debaixo de uma pedra, em um canto do jardim. Ele acha aquilo estranho e, no dia seguinte, chama algumas pessoas para escavarem o local. Sob a terra, encontram uma pedra grande, a tampa de uma espécie de caixão. Ao removê-la, se deparam com um homem, ressecado como um peixe seco e com cabelo na altura dos joelhos Esse homem move apenas as mãos, para bater com o martelinho em um kane. Ao que parece, era um monge, que decidiu morrer buscando alcançar a iluminação eterna, e para isso entrou vivo em um caixão e foi enterrado. Esse costume era chamado de zenjō. Depois que o corpo havia se mumificado, era desenterrado e adorado nos templos. A ação de ser enterrado desta forma era chamada de nyūjō. Aquele devia ser um monge muito importante… Depois que sua alma alcançou, como ele desejava, a fronteira do nirvana, apenas o corpo foi deixado para trás, ainda vivo. Como a família do protagonista vivia naquela terra já havia dez gerações, tudo aquilo teria acontecido muito antes, há centenas de anos.
Murakami, Haruki. O assassinato do comendador - Vol. 1 . Alfaguara. Kindle Edition.
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sleepstation · 4 years
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Haruki Murakami (b. 1949)
When he is writing a novel, Murakami wakes at 4:00 A.M. and works for five to six hours straight. In the afternoons he runs or swims (or does both), runs errands, reads, and listens to music; bedtime is 9:00. “I keep to this routine every day without variation,” he told The Paris Review in 2004. “The repetition itself becomes the important thing; it’s a form of mesmerism. I mesmerize myself to reach a deeper state of mind.”
Murakami has said that maintaining this repetition for the time required to complete a novel takes more than mental discipline: “Physical strength is as necessary as artistic sensitivity.” When he first hung out his shingle as a professional writer, in 1981, after several years running a small jazz club in Tokyo, he discovered that the sedentary lifestyle caused him to gain weight rapidly; he was also smoking as many as sixty cigarettes a day. He soon resolved to change his habits completely, moving with his wife to a rural area, quitting smoking, drinking less, and eating a diet of mostly vegetables and fish. He also started running daily, a habit he has kept up for more than a quarter century.
The one drawback to this self-made schedule, Murakami admitted in a 2008 essay, is that it doesn’t allow for much of a social life. “People are offended when you repeatedly turn down their invitations,” he wrote. But he decided that the indispensable relationship in his life was with his readers. “My readers would welcome whatever life style I chose, as long as I made sure each new work was an improvement over the last. And shouldn’t that be my duty–and my top priority–as a novelist?
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sleepstation · 4 years
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Ernest Hemingway (1899-1961)
Throughout his adult life Hemingway rose early, at 5:30 or 6:00, woken by the first light of day. This was true even when he had been up late drinking the night before; his son Gregory recalled that the author seemed immune to hangovers: “My father would always look great, as if he’d slept a baby’s sleep in a soundproof room with his eyes covered by black patches.” In a 1958 interview with The Paris Review, Hemingway explained the importance of those early-morning hours:
When I am working on a book or a story I write every morning as soon after first light as possible. There is no one to disturb you and it is cool or cold and you come to your work and warm as you write. You read what you have written and, as you always stop when you know what is going to happen next, you go on from there. You write until you come to a place where you still have your juice and know what will happen next and you stop and try to live through until the next day when you hit it again. You have started at six in the morning, say, and may go on until noon or be through before that. When you stop you are as empty, and at the same time never empty but filling, as when you have made love to someone you love. Nothing can hurt you, nothing can happen, nothing means anything until the next day when you do it again. It is the wait until that next day that is hard to get through.
Contrary to popular lore, Hemingway did not begin each session by sharpening twenty number-two pencils–“I don’t think I ever owned twenty pencils at one time,” he told The Paris Review–but he did have his share of writing idiosyncrasies. He wrote standing up, facing a chest-high bookshelf with a typewriter on top, and on top of that a wooden reading board. First drafts were composed in pencil on onionskin typewriter paper laid slantwise across the board; when the work was going well, Hemingway would remove the board and shift to the typewriter. He tracked his daily word output on a chart–“so as not to kid myself,” he said. When the writing wasn’t going well, he would often knock off the fiction and answer letters, which gave him a welcome break from “the awful responsibility of writing”–or, as he sometimes called it, “the responsibility of awful writing.”
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sleepstation · 4 years
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Carl Jung (1875-1961)
In 1922, Jung bought a parcel of land near the small village of Bollingen, Switzerland, and began construction on a simple two-story stone house along the shore of the upper basin of Lake Zurich. Over the next dozen years he modified and expanded the Bollingen Tower, as it became known, adding a pair of smaller auxiliary towers and a walled-in courtyard with a large outdoor fire pit. Even with these additions, it remained a primitive dwelling. No floorboards or carpets covered the uneven stone floor. There was no electricity and no telephone. Heat came from chopped wood, cooking was done on an oil stove, and the only artificial light came from oil lamps. Water had to be brought up from the lake and boiled (eventually, a hand pump was installed). “ If a man of the sixteenth century were to move into the house, only the kerosene lamps and the matches would be new to him,” Jung wrote; “otherwise, he would know his way about without difficulty.”
Throughout the 1930s, Jung used Bollingen Tower as a retreat from city life, where he led a workaholic’s existence, seeing patients for eight or nine hours a day and delivering frequent lectures and seminars. As a result, nearly all Jung’s writing was done on holidays. (And although he had many patients who relied on him, Jung was not shy about taking time off; “ I’ve realized that somebody who’s tired and needs a rest, and goes on working all the same is a fool,” he said.)
At Bollingen, Jung rose at 7:00 A.M.; said good morning to his saucepans, pots, and frying pans; and “spent a long time preparing breakfast, which usually consisted of coffee, salami, fruits, bread and butter,” the biographer Ronald Hayman notes. He generally set aside two hours in the morning for concentrated writing. The rest of his day would be spent painting or meditating in his private study, going for long walks in the hills, receiving visitors, and replying to the never-ending stream of letters that arrived each day. At 2:00 or 3:00 he took tea; in the evening he enjoyed preparing a large meal, often preceded by an aperitif, which he called a “sun-downer.” Bedtime was at 10:00. “At Bollingen I am in the midst of my true life, I am most deeply myself,” Jung wrote. “… I have done without electricity, and tend the fireplace and stove myself. Evenings, I light the old lamps. There is no running water, I pump the water from the well. I chop the wood and cook the food. These simple acts make man simple; and how difficult it is to be simple!”
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sleepstation · 4 years
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Muitas vezes, encontrar uma fotografia é como pegar uma peça de um quebra-cabeça de uma caixa sem a tampa. Não temos a visão do todo. Cada imagem é uma parte misteriosa de algo que ainda não foi revelado. Nos arquivos ocidentais, raramente se indexa a palavra "Curdistão". Os curdos são catalogados de acordo com os países nos quais moram como minorias; com frequência, aparecem em índices como "tipos étnicos". Em cada coleção, essa classificação varia; a fotografia é vista como uma descrição antropológica ou um objeto estético, ainda mais se foi tirada por um fotógrafo renomado. Quase nunca há informações históricas a respeito das pessoas que estão na foto e que depois são categorizadas. Mas a imagem ainda é a prova de um encontro. Cada foto conta uma história e tem outra história por trás: quem aparece nela? Quem a tirou? Quem a encontrou? Como sobreviveu? Eu me pergunto o que podemos apreender de um encontro específico ao olhar uma foto dessas hoje em dia. Temos o objeto, mas ele está separado da narrativa sobre sua própria criação. O que me interessava era a intersecção e a interação entre aqueles que moldaram a vida curda e as vidas dos narradores que os retrataram - os fotógrafos e os fotografados, os pontos de intercâmbio cultural, como os vários protagonistas tiveram seus caminhos cruzados. Todos deixaram suas marcas na história curda.
Trecho da introdução de Susan Meiselas ao seu livro Curdistão: na sombra da história, 1997
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sleepstation · 7 years
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- Não existe nenhum texto perfeito. Assim como não existe desespero perfeito.
Um escritor, que conheci por acaso quando estava na faculdade, me falou isso. Foi só muito mais tarde que eu compreendi o verdadeiro sentido dessa frase, mas pelo menos ela serviu como consolo - não existe texto perfeito.
Ainda assim, quando ia escrever alguma coisa, eu sempre sentia certo desespero. É que a gama de coisas sobre as quais eu consigo escrever é muito limitada. Por exemplo, mesmo que eu consiga escrever sobre um elefante, talvez não consiga escrever nada sobre o cuidador do elefante.
Durante oito anos eu vivi com este dilema. Oito anos. É muito tempo.
É claro que, se você partir do princípio de que em qualquer coisa há sempre algo novo para aprender, evelhecer não é tão ruim assim. Ou pelo menos é o que dizem.
Desde os meus vinte anos venho me esforçando para viver assim. Por conta disso, levei muitos golpes dolorosos, fui enganado e malcompreendido incontáveis vezes, mas, ao mesmo tempo, passei por várias experiências estranhas. Todo tipo de gente apareceu na minha frente, me contou histórias e depois passou por cima de mim como quem atravessa uma ponte com passos firmes, sem nunca mais voltar. Durante todo esse tempo eu continuei calado, nunca contei história nenhuma. E, assim, cheguei ao último dos meus vinte anos.
Agora, acho que é a hora de eu contar a minha história. Nenhuma questão está resolvida, é claro, e talvez quando eu terminar de contar tudo ainda continue exatamente igual ao que era. Porque, no fim das contas, escrever não é uma forma de curar a si mesmo, é apenas um pequeno esforço em direção a essa cura.
Mas é dificílimo escrever com sinceridade. Quanto mais eu me esforço para ser sincero, mais rápido as palavras certas desaparecem, mergulhando na escuridão.
Não digo isso para me justificar. Pelo menos, o que escrevo aqui é o melhor que posso fazer no momento. Não há mais nada a acrescentar. Mesmo assim, não posso de deixar de pensar que, se tudo der certo, talvez um dia daqui a muito tempo, daqui a anos ou décadas, eu perceba que fui salvo. E então o elefante voltará para a savana, e eu começarei a narrar o mundo com palavras mais belas.
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sleepstation · 7 years
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O sweet spontaneous earth how often have the doting               fingers of prurient philosophers pinched and poked thee , has the naughty thumb of science prodded thy         beauty                  how often have religions taken thee upon their scraggy knees squeezing and buffeting thee that thou mightest conceive gods         (but true to the incomparable couch of death thy rhythmic lover              thou answerest them only with                                spring)
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sleepstation · 7 years
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One fresh and gusty day in the damp autumn of her twelfth year Evelyn found a lost explorer in the garden of her parents’ London home. He was lying in a small tent beneath a mosquito net so torn and gaping as to be quite inadequate, were there any mosquitoes for it to protect him from. His clothes were stained with sweat and blood, and a grizzled beard stubbled his emaciated face. On the folding stool beside the camp bed stood a flask, empty, a revolver, unloaded, two bullets, three matches, a small oil lamp, and a dirty, creased map of the upper reaches of the Congo. He was delirious with fever and occasionally gibbered about the pygmies. Evelyn thought he was wonderful.
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sleepstation · 7 years
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you put your hand across my mouth but still the noise continues every part of my body is screaming smashed into a thousand million pieces each part for ever belonging to you - tracey emin
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sleepstation · 7 years
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