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[TASV] Capítulo 01 - Este caso de uma noite é tudo o que eu posso suportar.
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eu posso ouvir você vindo de uma milha de distância e eu sei que você está vindo pelo sorriso em seu rosto. apaixonado por uma noite, espere, o que aconteceu da última vez? friends with benefits | jxdn
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2018
― E é por isso, Leigh, que eu disse oito vezes no último mês que vir a este encontro às cegas era a pior ideia do mundo. Ele está quarenta e sete minutos atrasado e não há nenhuma ligação ou mensagem de texto justificando a razão. Thom recebeu alguma mensagem ou não valho a pena nem o encontro, nem a preocupação?
Um risinho escapa dos lábios da minha melhor amiga pela linha telefônica, mas sei que é mais de desespero que por achar graça. Quando aceitei essa experiência social, depois de negar várias vezes antes, ela me prometeu que River Corrigan era um perfeito cavalheiro e, por isso, eu deveria fazer um esforço gigantesco para largar a minha cama fofinha e as minhas séries de conforto somente para dar uma grande chance ao capitão do time de hóquei do colégio rival.
― Sinto lhe dizer, Lake, mas ele não mandou nada. A última mensagem que recebemos era uma confirmação do lugar e da hora, mas foi feita pela manhã. Acho que ele quis garantir que tudo sairia dentro dos conformes, mas algo pode ter acontecido. River é do tipo que acredita que se você chega na hora, você já está atrasado.
― Bem, ele está quarenta e oito minutos atrasado agora.
Confiro no relógio do pulso os ponteiros. São quase nove horas da noite e meu estômago ronca alto, chamando não só a minha atenção, como a da garçonete que está voltando mais uma vez para perguntar se preciso de algo. Sei que estou segurando uma ótima mesa no restaurante, mas não posso fazer nada. Ele até mesmo reservou a droga do lugar para nos sentarmos.
― Ei, Leigh, preciso desligar.
― River pediu para trazer isso e...
Sunny, leio pelo crachá seu nome, é interrompida de falar qualquer outra coisa porque, da porta do estabelecimento, um cara coloca as duas mãos ao lado da boca para usá-las de megafone e grita, para que todos sejam capazes de ouvir, que não posso ir embora sob hipótese nenhuma.
― Pediu desculpas pelo atraso ― completa, ofegante.
Dois hambúrgueres são colocados sobre a mesa, junto com bebidas que não pedi. Meu copo d’água, cortesia da casa, é retirado e substituído por um novo, cheio de gelo, como pedi o outro. Agradeço e encaro Sunny, aflita. Agora que River chegou e todos estão prestando atenção em nós, sinto-me minúscula aqui dentro. Apesar de estarmos em uma lanchonete e fliperama e a grande maioria das pessoas presentes ter muito menos idade que eu, os pais que estão sentados esperando seus filhos são uma boa audiência.
― Você precisa me desculpar, Layken.
Um casal de idade, que provavelmente acompanha os netos, sorri para nós dois. River puxa uma cadeira e se senta, apesar de eu ter colocado as mãos na mesa para me equilibrar ao me levantar. Despreocupado, ele bebe um gole do que eu deduzo ser Coca-Cola, então solta um suspiro ofegante.
Não está exatamente frio em Portland, somente uma brisa de primavera, mas ele carrega consigo um cachecol jogado ao redor do pescoço, que é complementado por um sobretudo. Tirando esses dois itens elegantes, o resto de sua roupa é composta por peças de uso cotidiano de adolescentes de dezessete ou dezoito anos: calças escuras, coturno de neve e moletom preto com o gorro para fora do casaco. Ele consegue misturar o boho com o chique sem se esforçar.
― Honestamente? Eu não preciso nada. Ei, Sunny, será que você pode embalar esse hambúrguer para viagem? Pode colocar na conta de River, é o mínimo que ele pode fazer depois de se atrasar.
― Ei, Sunny ― contrapõe River, com o típico sorriso arranca-calcinhas. ― Não se atreva a tirar esse prato daqui. Você me conhece há anos, qual foi a última vez que me atrasei para algo?
― Bem, você está atrasado agora.
― Obrigada, Sunny.
― Mas... ― ela continua, como se não tivesse sido interrompida. ― River realmente nunca se atrasa, Layken. Tenho certeza de que algo deve ter acontecido hoje. Se eu fosse você, comeria esse hambúrguer e pediria a maior sobremesa do cardápio para compensar, enquanto ele te conta porque está atrasado.
Ela se retira sem levar meu prato. Ótimo, agora terei que comer enquanto encaro os olhos suplicantes de River Corrigan.
A tela do meu telefone se acende na mesa e a foto de Leigh aparece quando me liga. Antes que eu seja capaz de fazer qualquer movimento, River rouba o aparelho da mesa e atende a ligação, levando o celular no ouvido. Impulsiono o corpo para tentar roubar de sua mão, mas é em vão. Ele já desligou depois de dizer que havia chegado.
― Você é realmente inconveniente. Não faço ideia de como Thom achou que seríamos um par perfeito. Primeiro, marca um encontro na porcaria do Lane House. Depois, atrasa mais de quarenta minutos e, para encerrar com chave de ouro, decide o que quero comer e atende meu telefone. Para o garoto de ouro do time de hóquei, você é cheio de red flags.
― Bem, não vou justificar nada além da crítica ao restaurante. Lane House é a melhor lanchonete de Portland. Venho aqui desde pequeno. Encontros são para conhecer a outra pessoa, não são? Bem, aqui você pode comer bem, me conhecer melhor e entender por que atrasei tanto.
Ele se levanta, então estende a mão para que eu faça o mesmo. Nossos lanches já esfriaram e o gelo derreteu inteiro dentro do meu copo d’água, mas, por algum motivo, aceitar sua mão e me levantar para ver o que ele quer parece uma alternativa muito melhor do que bater o pé como uma garotinha mimada. Papai costuma dizer que todos merecem uma segunda chance e o benefício da dúvida, mas até agora, River Corrigan não merece nenhum dos dois. Pelo menos não na íntegra.
Nós seguimos por um corredor estreito, que nos leva ao fundo do restaurante. Não tenho certeza se nós podemos realmente fazer isso, mas o segurança que passou por nós não parece muito preocupado com dois invasores. Na verdade, tenho a impressão de que ele cumprimentou River sutilmente com a cabeça.
― Para onde você está me levando, hein? Por acaso você tem uma sala de abate para garotas tolas e indefesas como eu? Bem que dizem que atrasos nunca são um bom sinal. Se eu tivesse ido embora, então talvez eu pudesse ter me livrado desse encontro de assassino em série.
Dessa vez, a risada que ouço é de alegria pura. Ele se diverte com o meu comentário e até mesmo vira em minha direção para me receber com aquele sorriso. Arranca-calcinhas, pelo amor de Deus. Quando Leigh descreveu River como “o garoto mais bonito do time de hóquei, com olhos azuis como um rio e sorriso capaz de fazer qualquer garota arrancar a roupa” eu não acreditei. Mas agora, encarando-o de perfil enquanto está concentrado em sua missão de abrir a porta dos fundos, começo a desconfiar de que ela está realmente certa.
Se as circunstâncias fossem outras, então talvez eu já tivesse sem a minha roupa íntima, cuidadosamente escolhida para hoje, no banco traseiro do provável carro esportivo que ele ganhou dos pais quando fez dezesseis anos.
― Ah, Layken Road, você é sempre difícil desse jeito?
― Sempre, River Corrigan. Espero que goste de um desafio.
River empurra a porta do que noto ser um escritório. A cadeira de couro atrás da mesa está vazia, mas ele logo ocupa. Seus olhos esquadrinham a tela acesa do computador e eu permaneço parada na porta, verificando se não tem ninguém vindo aqui nos expulsar do lugar.
― Adoro desafios, Lake. Agora venha aqui ver algo.
Observo um retrato cheio. Todas as pessoas na foto utilizam o uniforme do estabelecimento e percebo que a fotografia foi tirada dentro do fliperama. Somente seis pessoas não estão uniformizadas: uma criança, quatro adultos e River Corrigan (que fique claro, está usando o mesmo lenço).
― Esses são meus pais.
― Ah, Riv! ― não perco a chance de alfinetá-lo. ― É o nosso primeiro encontro e você já está me apresentando sua família? Pensei que fossemos devagar, mas já que você insiste...
Ele, gentilmente, me ignora.
― Esse sou eu, aqui são meus tios e essa garotinha aqui se chama Elane, em homenagem à minha avó. Ela odeia esse nome, então foi carinhosamente apelidada de Lane, como em Lane House.
Algumas coisas começam a fazer sentido, como por exemplo o fato de Sunny nem hesitar em atender o pedido de River.
― Lane faz parte da companhia de balé júnior de Portland e as aulas acabaram hoje para o início do recesso de verão. Ela apresentou um solo com um garotinho da classe dela, mas por causa da chuva, parte do telhado foi arrancado e acabamos tendo que mudar todo o cenário para a quadra de futebol do colégio que estudo. Foi uma confusão e por isso a apresentação atrasou em meia hora. Só consegui sair de lá depois que fui parabenizar minha irmãzinha. Ela queria flores. Lírios, porque também começam com a letra l.
― Você atrasou o nosso encontro por que foi assistir à sua irmã dançar balé?
A expressão em meu rosto deve ser horrível, porque River fecha a cara e desliga o computador na hora, mas na verdade estou tão encantada pela razão, que sequer sou capaz de falar. O garoto simplesmente priorizou a irmã acima de qualquer coisa, somente para dar a ela uma noite memorável de espetáculo com direito a um buquê e tudo mais.
― Caramba, River, essa deve ser a coisa mais legal que alguém já me contou.
Ele não compra o meu comentário.
― Sim, claro.
― Não, é sério mesmo. Fiz balé há uns anos e a minha melhor memória envolve meus pais levando uma flor para mim depois do espetáculo. Não tive um solo, nem um grande buquê, mas aquele gesto ficou comigo para sempre. Tenho certeza de que Lane irá lembrar disso para sempre. Quantos anos ela tem?
― Seis. Faz sete em agosto, antes de eu me mudar para a faculdade.
Gentilmente, ele me empurra para fora do escritório e retomamos nosso lugar na mesma mesa. As bebidas foram substituídas por novas e o hambúrguer parece ter sido recém esquentado, pois sai fumaça ainda.
― E onde você vai estudar?
― Em Albany.
― Nova Iorque?
― Ohio. Prestige University. Uma das maiores faculdades do estado. Quero jogar hóquei pelo time e ganhar o Frozen Four. Depois disso, se eu quiser seguir carreira no esporte, posso ir para Cleveland jogar pelo time da cidade.
― E se você não quiser ser jogador, então qual será sua formação?
Ele hesita alguns segundos antes de responder. Observo como seus lábios abraçam a borda do copo e, de repente, me sinto muito consciente da beleza dele.
― Quero ser professor da educação infantil, como a minha mãe é. Gosto de crianças e gosto de ensinar. Acho que o que falta hoje no sistema são pessoas que realmente estão ali por amor à profissão, não porque quando se formaram aquela era a única escolha. E acho que se um dia eu puder marcar a vida de alguma criança da forma que a minha mãe fez com seus alunos, então provavelmente terei atingido o ponto alto da minha carreira. E você, o que quer fazer?
River não abre margem para outra pergunta minha, porque enfia metade do hambúrguer na boca e começa a mastigar, dando-me tempo para responder sua inquisição.
― Vou estudar relações públicas para poder trabalhar em um grande escritório de advocacia em Nova Iorque. Quero gerenciar crises e evitar escândalos na elite nova-iorquina. Se qualquer personagem de Gossip Girl tivesse alguém como eu, então a série não teria todas aquelas temporadas e nós não teríamos que aguentar a palhaçada que foi Dan e Blair.
― Quer estudar relações públicas porque uma série incentivou você a isso?
― O quê? Uma? Claro que não. Também assisti Scandal. Enfim, de qualquer forma, acho a faculdade de direito entediante, mas quero estar nesse mundo, quero ser útil para essas pessoas. Relações públicas permite que eu faça tudo isso sem a pressão de precisar ir a algum tribunal falar na frente de diversas pessoas.
― Acho que isso é o que mais faz sentido, na verdade. E parece um ótimo plano de vida. Você mencionou Nova Iorque, então é para lá que você vai fazer faculdade?
O tópico do assunto é delicado. Depois que fiquei na lista de espera da Brown, acabei perdendo um pouco da animação. Mandei cartas para outras universidades, incluindo a Prestige, mesma faculdade que River foi aprovado, mas não comento nada para que ninguém crie expectativa à toa. Seria interessante ir para a mesma faculdade que alguém que conheço, mas não é como se fossemos amigos de verdade.
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Algum tempo depois, Sunny aparece em nossa mesa para comunicar que o estabelecimento precisa fechar e eles precisam retirar toda a nossa louça usada. Os copos estão vazios, os pratos carregam resquícios de molho e guardanapos usados e a travessa no meio da mesa ainda contém metade da sobremesa que pedi, que River rapidamente orienta para que seja embalada para que eu leve embora.
Quando ela retorna com a minha comida, até penso em abrir a bolsa e fingir interesse em pagar a conta, mas River percebe o teatrinho e arqueia uma sobrancelha em minha direção, como quem questiona “sério mesmo?”.
― Isso foi interessante ― comento, enquanto cruzamos a porta. A calçada está vazia, a rua pouco movimentada e há somente quatro carros estacionados aqui, além do meu. ― Mesmo com todo o seu atraso, acho que valeu a pena esperar, ainda mais agora que eu sei o motivo.
Meu carro está próximo, então escoro o corpo nele.
― Só uma dica para o seu próximo encontro: quando for atrasar, avise a garota. É horrível ficar esperando com a sensação de que você está tomando um bolo.
River também apoia o peso do corpo contra a porta do meu carro e me observa com curiosidade, analisando as palavras ditas. Em silêncio, cada um absorve o máximo que pode do outro, sem saber se essa será a última vez que nos vemos.
― Próximo encontro? Isso significa que não teremos uma parte dois para esse daqui?
Não sei bem o que dizer, nem o que ele espera que eu responda. É claro que adoraria sair com ele mais uma vez, mas temos um grande problema pela frente: River tem planos muito opostos aos meus. E ele também é muito bonito. E muito simpático. E muito educado. E, porra, muito bonito. Em Albany certamente fará muito sucesso entre as pessoas, e apesar de Nova Iorque não ficar tão longe de Ohio, ainda assim não sei se tenho emocional para lidar com mais uma situação de relacionamento a longa distância, no qual vou sempre ficar me questionando sobre a convivência do meu namorado com outras garotas. Apesar de não fazer parte do time das garotas ciumentas, sinto que com ele isso pode mudar um pouco.
― Não sei. Acho que talvez possamos nos encontrar e conversar de novo, mas sem o peso de um encontro. O que você acha? Dois amigos tomando café em um dia frio de Portland. Minha livraria favorita permite que você beba café enquanto lê e eu sempre observei os casais lá. Poderíamos fazer isso também, mas como amigos.
― Parece uma ótima ideia.
Antes que tudo fique ainda mais esquisito e desconfortável, digo que preciso ir embora. São quase meia-noite e prometi para papai que chegaria o mais cedo possível. Estou surpresa que ele ainda não ligou.
River se afasta do carro e vem até mim, envolvendo meu corpo em um abraço estranho, muito diferente do resto da noite. Não sei se a conversa que acabamos de ter acabou afetando seu pensamento sobre mim, mas não penso muito nisso enquanto entro no carro e ele fecha a porta.
― Até a próxima ― ele sussurra, afastando-se de mim.
― Até.
Noto como seu corpo está tenso quando ele começa a se afastar. Contudo, antes de chegar no – previsivelmente – carro esportivo que tem, ele volta sua atenção para mim.
― Ei, acho que você deixou isso aqui cair ― sua mão estende algo para mim e eu abro a palma para agarrar. Sinto a textura do papel sem nem mesmo vê-lo.
Ele se afasta.
Pelo retrovisor, noto quando ele me observa novamente por cima do ombro.
Sem perder tempo, abro a palma da mão. Anotado no pedaço rasgado da conta, encontro duas informações: seu nome completo e número de telefone.
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[ETOC] Prólogo [parte 1] | Um dia desses, eu vou roubar a coroa desse garoto.
há uma serpente nessas águas deitada bem lá no fundo. para o rei, eu me curvarei, pelo menos por enquanto. a l i t t l e  w i c k e d | v a l e r i e  b r o u s s a r d
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Do outro lado da mesa, olhos castanhos e intensos me encaram, como se me despisse, não só a roupa justa que veste meu corpo, mas a alma perdida que vive dentro de mim, prestando atenção demais em detalhes que qualquer outra pessoa acharia insignificante, mas que, por alguma razão, Danger Rhodes acha completamente fascinante, como as tranças grossas que caem sobre meus ombros ou o decote verdadeiramente generoso da blusa fina que utilizo no momento, apesar do frio do lado de fora.
Porque aqui, dentro dessa sala lotada de garotas e dele, o ar está tão quente que poderíamos recriar uma encenação viva do Inferno de Dante e cada um de seus nove círculos, na qual Danger Rhodes exerceria o papel perfeito de Lúcifer, sentado no trono do rei, como ele adora relembrar, a espera de suas vítimas, garotas que não hesitariam em fazer um pacto com o diabo para sobreviver aos longos quatro anos de faculdade.
A mão esquerda, coberta de tatuagens, diferente da direita, alcança o piercing que ele tem na sobrancelha, cortesia de uma aposta imbecil feita há pouco tempo. Amarelada, a iluminação que domina a sala reflete o pequeno metal ali, assim como faz com o pequeno cristal em seu nariz, também uma consequência da imprudência de Danger. O dedo indicador gira a pequena argola, várias e várias vezes. Ele está ciente de que estamos cercados de pessoas que, assim como eu, também estão conscientes dos olhares furtivos que ele lança na minha direção, mas, sendo quem é, ele não poderia se importar menos.
Porque Rhodes sabe que ninguém irá questioná-lo sobre as razões pelas quais ele me observa como se eu fosse a sua sobremesa favorita ou sua inimiga mortal. No reino o qual comanda, sua palavra é lei e suas vontades são sempre atendidas.
A voz de Katherine sobressai todo o ambiente, claro, enquanto ela explica as regras da grande votação que acontecerá hoje à noite. Seu legado de rainha está chegando ao inevitável fim e alguém precisa assumir o trono ao lado do rei dos babacas. Ela e Danger têm dividido a coordenação do conselho de todas as fraternidades desde que ele assumiu o posto de presidente dos Selvagens no ano anterior, de modo que até mesmo na votação de quem comandará a minha casa, a coisa mais parecida com lar que eu realmente tive na minha vida, Danger tem o poder de escolha.
Se meu voto conta como um, o dele vale por dois.
Finalmente sou capaz de desviar os olhos de Danger, que permanece me observando através da mesa. Seu olhar queima igual brasa e incomoda como a sensação constante de estar sendo perseguida, muito provavelmente porque as írises castanhas seguem cada mísero movimento que faço, desde cruzar as pernas a revirar os olhos em sua direção. Contudo, Rhodes é tão confiante de si e está tão acostumado a nunca ser questionado, que ele não hesita em responder casualmente todos os questionamentos que são direcionados para ele, por uma Katherine frustrada em não ser o foco de sua atenção.
― É isso. Chega.
O timbre rouco murmura, captando novamente a minha atenção. Danger se levanta da cadeira giratória e apoia as mãos na mesa de mogno, cansado do falatório desnecessário ao qual estamos sendo submetidos há pelo menos uma hora.
― Não dou a mínima para essa reunião de quem vai assumir essa fraternidade, contanto que essa pessoa não se atreva a cruzar o meu caminho. O conselho ainda é nosso por maioria, mas vocês são novas. Na hierarquia, ainda posso dar a palavra final. Então eu espero que vocês se lembrem bem das minhas palavras... No instante em que qualquer uma de vocês assumir o palácio quebrado, eu virei para chutar o resto dos destroços deixados, porque o império ainda será meu.
Sem esperar que alguém se manifeste, Danger deixa a sala, já tirando a chave do carro do bolso, apesar de morar do outro lado da quadra. Contudo, ele esquece pelo caminho duas coisas: o mar de incertezas nas candidatas e seu perfume amadeirado.
Parecendo incerta de como continuar a conduzir a reunião, Katherine nos dispensa, mas ordena que fiquemos por perto. Estou cansada de acatar as ordens de alguém que apenas segue os mandamentos do deus Danger, por isso, quando fui convidada pelo conselho das moradoras das Sinners, não hesitei em aceitar lançar a candidatura. Essas garotas sabem de onde vim e sabem para onde quero voltar, então também têm plena ciência que não há ninguém tão apto quanto eu para assumir o trono.
Ao lado dele.
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A mesa de mogno bate com força na parede do escritório que antes habitávamos, chamando atenção das garotas que estão sentadas ao redor dos sofás da grande sala de estar da mansão, a espera de mais uma reunião com Kat, que parece ocupada demais para sequer lembrar que foi ela quem nos convocou aqui. Apesar do barulho constrangedor, nenhuma de nós abre a boca para questionar o que está acontecendo dentro daquelas quatro paredes. Imponente, o escritório desperta os mais sujos pensamentos, de poder e luxúria.
Estrangulado, um gemido atravessa a fina camada de concreto que divide os ambientes e, quando eu acho que não pode piorar, um tapa estalado atinge a pele de alguém, até que todos os barulhos cessam quando, presumo eu, Katherine e Danger terminam mais uma sessão de pegação dentro da fraternidade. O silêncio se torna tão mortal na sala, que escutamos o barulho do cinto de Danger e os risinhos alegres que escapam dos lábios de Katherine, que, se posso fazer um palpite, carimbaram todo o corpo de Danger Rhodes.
Levanto-me da poltrona que estou, juntando comigo a bolsa que carregava quando entrei aqui, depois de almoçar no campus da universidade. Todas nós fomos dispensadas das aulas de hoje, cortesia do feriado de spring break que se inicia amanhã. O reitor sabe que temos diversas coisas para preparar, então foi gentil o suficiente para permitir um deslize vindo da nata perfeita da faculdade Prestige.
A cozinha está completamente vazia quando adentro o ambiente à procura de uma garrafa d’água. Preciso mandar embora a sensação de vazio alojada na minha garganta, junto da parcela de medo que sinto em relação a votação de hoje. Posso lidar com um coração partido, mas jamais serei capaz de aceitar perder. Vivi pela vitória e, nas vezes que precisei sacrificar as minhas vontades, fiz isso pensando em um objetivo ainda maior. Por isso, neguei ser parte do conselho no ano anterior. A minha mira e o meu foco sempre estiveram na coroa que Katherine sustentava em sua cabeça.
Assim que tenho comigo a garrafa que tirei da geladeira, o corpo másculo de Danger cruza o arco que divide a cozinha do hall principal da casa. Vestindo preto de cima a baixo como sempre, ele só parece notar a minha presença quando bato com força a porta da geladeira, obrigando-o a tirar o olhar da tela do telefone para observar quem foi a responsável por causar o barulho. Assim que me vê, um sorriso se delicia em seus lábios.
Em Danger, tudo é bonito. O cabelo castanho, os olhos escuros e as tatuagens que cobrem a pele imaculada. Contudo, o sorriso que carrega em sua boca — perfeitamente delineada — é feio e assustador. Carrega sarcasmo, cinismo e ironia. Com um simples abrir de lábios, Danger parece ter sugado todos os sentimentos bons que vivem dentro de mim, como um Dementador daquela coleção de livros.
― Que desprazer a encontrar aqui, Calíope. Você sabe que não tem chances de vencer hoje, não sabe? Katherine já ouviu as ordens. Ela sabe quem escolher e como conseguir isso.
Apoiando meu corpo no balcão, eu cruzo os braços. Apesar de ter passado uma hora encarando o meu decote, Danger não parece interessado nos meus peitos que quase saltam da minha blusa no momento. Seu foco são meus olhos, cobertos de delineador e rímel.
― Fraudando a votação, Danger? Sou a queridinha das moradoras desta casa. Katherine poderia fazer milagres e ainda assim não seria capaz de impedir a minha vitória. Uma vez que vinte garotas votarem em mim, será impossível que ela adultere isso.
― Você me subestima, querida.
― Você não tem direito algum de me chamar assim.
A pouca distância que nos separava é quebrada quando ele dá dois passos em minha direção. Se tentasse um terceiro, nossos corpos se encostariam, mas esse não é o jogo de Danger. Ele calcula cada pequeno movimento no tabuleiro da vida, no qual cada peão é uma pessoa. Para ele, sou um simples peão, fácil de sacrificar. Contudo, pela meia-noite, serei a porra da rainha. Do time adversário.
― Você prefere que eu te chame como então, hm? Deusa?
Quando não respondo, Danger volta a falar.
― Você não parece muito como a filha de Zeus agora ― citando a mitologia, ele parece entretido em seu próprio monólogo particular. ― O que aconteceu, Cali? Até onde eu me lembro, você é a musa da eloquência. Onde você colocou a sua capacidade de se expressar com desenvoltura?
Eu o odeio. Com cada fibra do meu ser, cada átomo e partícula que compõem o meu corpo, queimam em ódio.
― Eloquência também significa poder de persuadir pela palavra, Danger. Você não deveria me subestimar. Ao fim da noite, você será obrigado a dividir seu trono com a sua pior inimiga.
― Você não é tão significativa assim para mim, Calíope. Preciso odiar muito alguém para torná-la minha pior inimiga. E além de indiferença, não sinto nada por você.
― O simples fato de pensar no que sente por mim mostra que você sente algo, ainda que indiferença. Continue pensando em mim, Danger, porque, em breve, você precisará dialogar e me ver constantemente.
Meu dedo indicador atinge seu peito e ele se afasta sem que eu precise pedir duas vezes. Agarrando novamente minha garrafa, que pousei no balcão, dou a volta pelo seu corpo másculo e tomo o rumo em direção ao escritório de Katherine novamente, ouvindo os passos duros ecoarem atrás de mim. Assim que chego na sala, todas as garotas estão aqui também, junto da nossa atual líder.
Danger coloca o telefone no bolso novamente e me encara, deslizando a língua furada com o piercing pelos lábios avermelhados. Qualquer pessoa na terra poderia achar que estávamos nos beijando na cozinha, mas não elas. Se pensam algo, foi que Danger mordeu os lábios para evitar o descontrole.
― Lembre-se do que conversamos, Kat. Eu odiaria acabar com o nosso acordo por conta de um erro seu.
E ele vai embora. Novamente, como um furacão, Danger Rhodes balança todas as garotas da fraternidade, que agora temem descumpri-lo. Eu não, contudo. Farei questão de desafiá-lo em todas as decisões que eu precisar tomar quando eu for a líder desse pequeno palácio quebrado, citando as palavras dele, porque eu serei.
― Para dentro ― é a ordem que recebemos de Katherine.
Seus cabelos estão no lugar novamente e a maquiagem parece nunca ter borrado depois de tanto tempo trancada aqui com Rhodes. As janelas do escritório estão abertas e o cheiro do ambiente se dissipa graças as rajadas de vento que estão invadindo a sala. O início da primavera está trazendo um tempo questionável. Até pouco tempo, a neve enfeitava as calçadas da Prestige. Agora, temos as pequenas flores características do estado, caindo pelo chão. Tudo aqui é diferente de Las Vegas.
Com o fim do inverno, a pequena cidade de Albany está fria o suficiente para que o vento arrepie o meu corpo, mas o sol brilha do lado de fora da casa. Em Vegas, não enfrentamos frente-frias como as que lidei aqui. Tudo parece ser diferente, desde a vegetação ao clima e as pessoas que circulam o estado. O cheiro de aventura que domina a cidade de Nevada é substituído, onde moro agora, pelo odor de água empoçada das camadas de neve que caem no inverno.
― Começaremos às nove. É um evento de gala para a fraternidade, porque ocorre somente de dois em dois anos. Vocês estão instruídas a usar vestidos longos, nas cores que preferirem. A votação tem início às nove e meia, portanto, aproveitem a última meia hora para angariar votos. Queremos garotas capazes de encantar, é claro, mas precisamos de mulheres boas na arte da manipulação. Que a sorte esteja com todas vocês, garotas, mas que o gostinho de vitória já esteja na boca da nossa futura líder.
Eu passo a língua sobre os lábios, degustando, além do gosto do batom vermelho que cobre a minha boca, o sabor do poder.
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Encarando-me no espelho, sei que nunca estive tão linda quanto hoje. A maquiagem está no lugar, meu cabelo está liso e brilhante, cortesia do salão que fui — precisei dirigir até Cleveland para encontrar uma cabeleireira capaz de lidar adequadamente com as tranças que eu tinha — e até comprei um sapato novo na pequena viagem que fiz. Mas, em disparada, a coisa mais bonita que vejo no reflexo é o brilho de satisfação nos meus olhos, não só por me ver linda pra caralho, mas por saber o que virá a seguir.
O vestido vermelho, que combina com meu batom, contorna cada curva do meu corpo como se tivesse sido feito sob medida para mim. As alças são finas, o decote carrega um leve formato de coração e o cetim se estica pelos meus peitos, cintura, quadril e bunda, até se esvair na ponta. A imensa fenda lateral permite que o meu sapato, um René Caovilla de mil e duzentos dólares, que enfeita até o meu tornozelo com uma tira que simula uma serpente, apareça.
O relógio em cima da mesa de estudos indica que já são nove e doze. Preferi chegar um pouco atrasada, porque quem chega cedo raramente é a atração da festa. Quando eu descer as escadas na enorme mansão, sei que cada olhar estará focado em mim. Palavras conquistam sim, como Katherine falou, mas a impressão que deixamos nas pessoas as marcará para sempre, como um carimbo. Sempre lembrarei de Danger com base na primeira impressão que tive dele: um babaca arrogante e sem escrúpulos.
Retoco o perfume e abro a porta do quarto, carregando a pequena bolsa que abriga o meu telefone. O corredor, como já era de se esperar, está completamente vazio e o barulho que vem de baixo indica que todas as garotas já estão lá, à espera da nossa votação. Temos muitas meninas que moram nos dormitórios e nos apartamentos dos arredores da Prestige, então sei que a casa estará cheia.
Isso não me intimida, contudo.
Cresci no meio das piores pessoas possíveis.
O que são apenas alguns olhares de inveja de garotas da minha idade comparado aos olhares de luxúria que eu recebia dos amigos do meu pai quando ainda tinha quinze anos?
Alcanço a escada, respirando profundamente para manter o controle dentro de mim. Não posso deixar que essas coisas alcancem a superfície, uma vez que elas me farão colocar tudo a perder. Medos e inseguranças não são para garotas como eu. Alimento-me deles e faço as coisas acontecerem, portanto não tenho tempo para ficar chorando por coisas que já aconteceram ou, pior, que vão acontecer.
Então, desço um degrau. A música soa ali, mas é baixa. As conversas, aos poucos, vão sendo interrompidas por exclamações de surpresa, à medida que vou atingindo os últimos degraus da escada. Faço contato visual com cada uma dessas garotas e não tiro o sorriso vitorioso da boca nem quando chego no primeiro andar, sendo recepcionada por Kat em um vestido branco impecável. A única cor não monocromática nela é o batom vermelho, da mesma tonalidade que o meu, que ela aprendeu a gostar.
― Todas para a sala de estar, por favor, exceto as candidatas.
Nós cinco nos alinhamos em uma fila, comigo liderando o grupo, como era de se esperar. Gosto das garotas que competem comigo, mas sei que elas não têm o que eu tenho: ambição. Ainda que possam ser excelentes braços direitos para a próxima líder, não consigo ver nenhuma das quatro pisando em cima de Danger Rhodes como quero fazer com esses sapatos prateados.
― Eu entrarei e chamarei uma a uma pelo nome, em ordem alfabética. As cadeiras são numeradas, portanto, atentem-se aos lugares de vocês. Todas estão lindas, garotas, e o legado das Sinners estará muito bem guardado por cada uma de vocês. Infelizmente, só uma leva a coroa e, com ela, o poder.
Após adentrar a sala de jantar onde a cerimônia ocorrerá, Katherine se apresenta e introduz o assunto que trataremos hoje. Em seguida, chama a mim, seguida de Denise, Joenne, Mackenzie e Valen, que entramos uma atrás da outra, sob o olhar atento de trinta e sete garotas. Por eu ser a primeira, tomo o assento de honra ao lado de Katherine. Próxima da ponta, próxima da liderança.
― Vamos começar. As primeiras pessoas a votarem fazem parte do conselho, então, as formandas, seguindo assim a ordem da graduação. O último voto é o meu, podendo servir de desempate. Os votos são abertos e precisam ser ditos em voz alta. Por favor, diga o nome completo da candidata que você gostaria de votar.
Tomando fôlego, Katherine chama a primeira garota.
Um pequeno sorriso se abre quando ouço o meu nome.
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[ETOC] Prólogo [parte 2] | Um pouco perversa, é do que ele me chama.
cuidado com as mulheres pacientes, porque de uma coisa eu sei: ninguém te chama de querida quando você está sentada em um trono. a l i t t l e  w i c k e d | v a l e r i e  b r o u s s a r d
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Um gemido escapa do fundo da minha garganta, seca e arranhada, conforme o suor escorre por todas as partes do meu corpo. Um grito é direcionado para mim, mas não sou capaz de absorver as palavras, apenas a sensação que domina o meu corpo, enquanto outro murro é disparado contra o saco de pancadas do porão da minha fraternidade. Estou sem fôlego, como se eu tivesse acabado de correr uma maratona completa, mas estou apenas aliviando a porra da tensão que se alastrou no meu corpo como a gripe pelo mundo.
A tensão, contudo, tem nome, sobrenome e o pior temperamento com o qual eu já lidei na minha vida. Katherine é boa: concordamos em quase tudo e, no que discutimos, sempre consigo fazê-la ceder. Mas, agora que está prestes a se formar, precisa passar o bastão para outra pessoa e eu sei quem é a queridinha da fraternidade. Sondei esse terreno desde que as Sinners começaram a arrecadar rios de dinheiro graças ao conhecimento surreal de Calíope com apostas ilegais.
Outra vez, meu punho encontra a lona vermelha. Ela já está desgastada e velha, tão surrada que o tecido que a envolve machuca mais os nós dos meus dedos que o próprio contato feito em decorrência da ação que estou repetindo há pelo menos duas horas, desde que a votação começou na casa rosa.
Keith, meu melhor amigo e braço direito, está segurando o saco de pancadas para mim. Normalmente, quem exerce essa função sou eu, visto que é ele quem treina para as lutas que costumávamos ter aqui, mas depois de um incidente grave, suspendemos as atividades e esse espaço agora era usado para os moradores malharem.
― Tire a sua cabeça da bunda e continue, Danger. Você sabe fazer melhor do que isso.
Ele está certo e eu sei. Sou capaz de disparar milhares de socos por segundos, mas não consigo focar enquanto sei que Katherine talvez não consiga salvar a minha pele desse problemão todo. Todas as outras quatro candidatas se parecem com Katherine. Além de serem bonitas pra caralho, são tranquilas e têm conhecimento de como a casa onde elas moram funciona. Contudo, ainda há uma parte minha, uma pequena fração doentia, que tem noção que Calíope Maraschino nasceu e foi criada para assumir não só o trono das Sinners, mas do mundo inteiro.
A conversa que tivemos na cozinha continua fresca na minha mente. Ainda posso ouvir sua voz melodiosa a chamando de minha pior inimiga. Falei sério quando disse que essa pessoa não era Calíope. Minha pior inimiga tem seu lugar cativo no meu coração desde o primeiro dia da minha vida e não sairá de lá tão cedo. Comparado ao ódio que sinto por ela, Calíope é apenas um grão de areia como os vários na grande praia de Pipeline.
― Danger, porra! ― Outro grito vem de Keith e é o incentivo que preciso para descarregar mais murros no saco de pancadas. Faço isso por treino quase todos os dias, mas hoje é uma forma de relaxar e tirar todo o ódio de dentro do meu corpo. ― Não deixe essa merda levar a melhor em você. Mesmo que ela ganhe, você sabe, e eu sei que você sabe, Calíope é um pequeno gênio. Se nos bastidores ela colocou as Sinners no mapa das fraternidades, o que você acha que ela pode fazer sendo líder?
Sei que ele está certo e por isso, desfiro outro golpe, encerrando o treino. Ainda não me sinto totalmente calmo, mas consigo controlar o corpo e a respiração, mantendo o foco no que realmente importa. Keith tem um ótimo ponto. As Sinners entraram para a lista das dez fraternidades mais filantrópicas do país desde que Calíope passou a ajudar as garotas lá dentro. Elas recebem uma renda impressionante com as apostas ilegais dos jogos de hóquei e com os rachas que disputo, mas precisam prestar conta com a universidade e esse é o disfarce perfeito.
― Vou subir e tomar um banho. Esse dia foi longo e tenho certeza de que amanhã será tão turbulento quanto hoje. Precisamos estar na casa das Sinners bem cedo, não esquece ― Keith assente em concordância e me informa que vai ficar aqui para treinar mais um pouco.
Subo os degraus que me levam de volta para o primeiro piso da casa e paro na cozinha somente para pegar uma garrafa d’água, mas logo sigo para o meu caminho original em direção ao meu quarto. Com o spring break chegando, a maioria dos garotos da casa já foram visitar suas famílias, porque é o único período deste primeiro semestre que realmente conseguimos viajar sem prejudicar a nossa vida acadêmica. Como vi meu pai há poucos dias, quando estive em CLE, não vou voltar para a casa.
O silêncio é incômodo e todas as portas dos quartos estão fechadas, diferente do habitual. Sempre encontro garotos transitando de toalhas pelo corredor, outros carregando livros para estudar em outros cantos da fraternidade e sempre há pelo menos uma namorada fazendo a caminhada da vergonha pela manhã. Agora, no entanto, me encontro sozinho, sendo acompanhado pela minha sombra atormentada.
O banho frio vai ser bom. Ele levará para longe os receios de um futuro dividindo o comando das fraternidades com Calíope. Katherine prometeu que faria o possível para que a vitória dela não fosse acontecer, mas vejo na forma que Kat olha para Calíope, que por trás de toda a hostilidade, ela sabe que só há uma pessoa para substituí-la.
Agora que estou sem roupa, deixo a água lavar meus pecados e purificar meus pensamentos. Ela escorre pelo meu corpo e por alguns segundos, a tinta das tatuagens fica borrada em decorrência da quantidade de água que deixa o chuveiro, me atingindo, como se ela fosse capaz de limpar as marcas na minha pele. Os pensamentos, aos poucos, passam a ficar nebulosos, como o banheiro, agora que a água está esquentando.
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A casa inteira está escura duas horas depois quando desço para comer alguma coisa antes de dormir. O cronograma do dia seguinte estará cheio até o cair da noite, então sei que preciso ir para a cama em alguns minutos se eu quiser aguentar o pique da convocação das novas candidatas da fraternidade das garotas, cujo a qual prometi para Katherine que eu ajudaria na montagem de algumas provas. Bem, eu e outros garotos.
Cortando o silêncio, uma melodia baixa vai adentrando cada espaço da casa. Cruza o hall que estou e me segue para a cozinha, mas não é daqui que o som vem. Fora esses lugares que estou, todos os outros possuem suas luzes apagadas, em um claro indício de que os garotos que permaneceram aqui já estão em seus respectivos quartos.
Apago a luz da cozinha e sigo em direção à sala de estar, não encontrando nada aqui também. Para chegar à sala de jantar e, em seguida, ao escritório dos Selvagens, preciso cruzar a escuridão que me abraça e me arrepia. A música, contudo, vai ficando cada vez mais alta, até que vejo, por debaixo da porta do escritório, a luz acesa. Keith raramente trabalha ali e os outros garotos sabem que sem a nossa presença, eles não podem estar ali dentro, então caminho em direção ao inevitável e abro a porta com um grande baque oco.
Por estar cercado de tanto escuro, preciso fechar os olhos para me acostumar com a claridade excessiva que está aqui dentro. Antes que eu possa abrir os olhos, no entanto, duas palmas altas ecoam e a luz principal se apaga, deixando somente os pequenos pontos de luz espalhados pelo teto. É então que eu a vejo.
A madeira de carvalho faz barulho quando se prende no encosto dela e eu apoio o corpo no batente da porta. Sou surpreendido por uma visão diferente da que eu esperava, mas definitivamente, muito melhor.
Todos sabem as regras: ninguém se senta na cadeira da ponta. Aquela é a porra do meu trono, porque eu sou o rei de todas essas fraternidades. Mas Calíope Maraschino não parece ter recebido o memorando, porque está sentada ali, como se fosse dona de toda essa sala. Não, melhor, como se ela comandasse cada pedacinho dessa universidade.
O peso que sentia no estômago volta, dessa vez com mais força, porque se ela está sentada aqui, fica claro para mim o resultado da eleição que estava acontecendo na casa rosa. Cruzando os braços na altura das costelas, encaro o corpo curvilíneo que está sentado ali. A luz da lua entra pelos vãos das persianas e o tom amarelado das pequenas lâmpadas banham o corpo dela numa penumbra excitante.
Calíope tem em seu corpo um vestido vermelho, longo e com um belo decote, que acompanha uma fenda lateral gigante. Seus pés, que ostentam um salto altíssimo com duas cobras envolvendo seus tornozelos, estão sobre a minha mesa, cruzados um em cima do outro, enquanto seus braços repetem o mesmo movimento dos meus. Além disso, claro, o batom vermelho está cobrindo sua boca, na versão femme fatale mais bonita que eu já vi. Ela sabe que é linda e não poupa esforços em continuar mostrando isso para todos. Contudo, agora, sentada na minha cadeira e agindo como se essa sala fosse dela, Calíope está deslumbrante.
Se eu não tivesse a conhecido da forma que conheci, recebendo a hostilidade logo de cara, sei que eu teria perseguido Cali por todos os lugares. Inebriante e intrigante, ela pode ter o nome de uma musa filha de Zeus, mas seria a reencarnação perfeita de Afrodite.
― Olá, Calíope ― começo, aproximando-me da mesa. Puxo a cadeira da ponta ao lado oposto dela e me sento, encostando o cotovelo na mesa e o queixo na palma da mão. ― A que devo a honra, querida?
Ela se mexe o suficiente para pegar algo que está atrás dela. Então, tira das costas uma coroa, a mesma usada por Katherine no dia de sua posse na presidência da fraternidade. A desconfiança bate em cheio e o divertimento abandona meu rosto com felicidade agora que a confirmação do inevitável veio.
Calíope coloca a tiara na cabeça, retira as pernas de cima da mesa e se apoia na mesma posição que estou, parecendo entediada. A coroa tomba para o lado, mas ela não arruma. Deixando-a assim, Calíope parece uma versão perversa de alguma rainha da Disney.
― O seu reinado está em xeque, Danger. Você sabia que a rainha é a peça mais importante do xadrez? Se o rei morre, é fim de jogo. Mas é a rainha quem tem o poder de ir e vir quando e para onde quiser.
― Ainda bem que jogamos blackjack então. Rei, valete, dama... todos valem dez.
As palmas das mãos dela encontram a madeira da mesa quando ela se levanta. Encarando-me, Maraschino parece decidida a falar umas boas verdades na minha direção. Continuo calado, agora encostando-me na cadeira, enquanto a vejo dar a volta na mesa. Sentando-se do lado direito em cima da mesa, sua perna fica em evidência graças à abertura do vestido vermelho.
― Agora é cinquenta, cinquenta, D. Acostume-se a ter alguém questionando as suas decisões, porque eu vou fazer questão de dificultar cada pequena decisão que você tomar. Você não me imaginou e nem me queria no comando, mas eu sempre soube que você dividiria seu reino comigo. Acostume-se a não ser mais o único usando a porra de uma coroa aqui, nem o único sentado no trono. Ele é tão meu quanto seu.
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Da porta da cozinha, escuto o meu nome ser gritado, mesmo que a festa nos fundos da minha fraternidade esteja acontecendo a todo vapor. As novas garotas se tornam, oficialmente, garotas da Casa Rosa essa noite, da mesma forma que Katherine passa o bastão de presidente para Calíope. Minha conversa com Aurora é interrompida e eu dou as costas para o grupo para ir atrás de quem me chamou. No caminho, preciso desviar de diversas pessoas que tentam me parar para conversar, mas tenho um único foco.
Keith está na cozinha, mas ele me guia em direção ao meu escritório. Aqui dentro está tão caótico quanto lá fora, mas na frente da sala reservada para reuniões parece que todas as garotas da festa se concentraram.
― Cali disse que não vai tomar o shot, nem mesmo se você der na boca dela.
― Calíope não tem escolha em relação a isso ― e, me virando para as garotas que gritam a nova líder, me dirijo num tom rude. ― Saiam.
A porta não está trancada, o que é bom para mim, porque me permite entrar sem eventuais contratempos. As luzes estão acesas e Cali está sentada em cima da mesa, como fez na quinta-feira, esperando pacientemente por algo que não sei o que é. Contudo, quando seus olhos encontram os meus, sei que ela esteve à minha espera durante esses longos minutos.
― Ah, querida. Você não queria o reino para você? Arque com as consequências de ser uma nova líder.
O olhar de Calíope recaí sobre a coroa na mesa e, antes que ela seja capaz de pegá-la, eu a agarro com uma das mãos, colocando-a atrás do corpo, longe do contato dela.
― Não sei como me embebedar vai ajudar a provar que sou apta para o trabalho que vou desenvolver, Danger.
― Não tem nada a ver com embebedar você, Calíope. Tem a ver com o fato de você aguentar um shot atrás do outro, sem reclamar, sem pedir para parar. Tem a ver com força e disciplina. Com vontade e determinação. Tem a ver com poder.
Descendo da mesa, Calíope se aproxima de mim para tentar agarrar a coroa.
― Você só vai receber isso de volta quando provar para mim que você pode estar do meu lado, não porque foi escolhida para o cargo, mas porque o merece por direito. As pessoas acham que isso é pura bagunça, que fraternidades são perda de tempo e que não fazemos nada além de promover festas e provavelmente traficar drogas, mas nosso trabalho vai além disso, Calíope. Você ainda vai descobrir como podemos ser relevantes dentro do campus universitário e, dessa vez, vai precisar levar para o túmulo com você todos os segredos obscuros que estão penetrados nessas paredes luxuosas.
A mão dela, que ainda está esticada do meu lado, abre a maçaneta da porta e ela desvia do meu corpo para seguir até o lado de fora. Atrás dela, todas as garotas que estavam ouvindo nossa conversa a seguem, como zangões atrás de sua abelha rainha.
― Guarde isso com cuidado ― estendo a coroa para Keith e faço o meu caminho para fora, com um grande sorriso nos lábios. Aurora, a garota com quem eu conversava antes, está dentro da cozinha e eu pisco em sua direção, indicando com a cabeça que é para ela me seguir, porque algo muito bom está prestes a acontecer.
Alguém me entrega um microfone e eu paro do lado de Cali em cima do palco improvisado. Chase, um dos meus melhores amigos, está junto dos outros líderes de fraternidades da Prestige, aguardando ansiosamente a parte boa da festa que está prestes a acontecer. Explico para todos, principalmente para os que não sabem, que é um rito de passagem na Prestige, para quem assume uma fraternidade, tomar algo que chamamos de shot do poder.
Chase se posiciona perto de nós com uma garrafa de vodca, enquanto Zaine tem o líquido cor-de-rosa no recipiente de vidro que carrega consigo. Os olhos de Calíope encontram os meus, ao passo em que uma música de batida sensual começa. O decote do vestido de hoje é mais generoso que o de ontem e agora as suas duas pernas estão à mostra, seduzindo cada um que está aqui.
Calíope se vira em direção aos estudantes, sabendo que esse é o momento dela provar que merece o cargo. Agora que está com os fios alisados, meus dedos conseguem se infiltrar com facilidade por entre os fios escuros de seu cabelo e eu puxo a cabeça de Cali para trás, forçando-a a me observar novamente. Compartilhamos todo o ódio que sentimos pelo olhar, em uma fração de segundos.
― Abra bem a boca para mim, Cali ― peço, baixo, ofegante, como se o contexto em que estamos inseridos no momento fosse completamente oposto ao que estamos vivendo. E, diferente do que imaginei que fosse acontecer, Calíope me obedece, no mesmo instante, aproveitando para colocar a língua para fora.
Do jeito que me observa, imagino as piores coisas possíveis.
Os garotos começam a despejar o líquido e os olhos dela permanecem colados nos meus, até que os fecha em um claro sinal de que não aguenta mais. Fico surpreso pela quantidade de bebida que ela aguentou e escondo um sorriso de canto que ameaça aparecer em meus lábios. Gosto da teimosia de Calíope, mas sou fissurado pela determinação. Enquanto limpa os lábios com as costas da mão, sem borrar o batom, ela se vira em minha direção e cruza os braços na altura dos peitos.
Como na quinta-feira, permaneço impassível observando seus olhos.
― É só isso que você tem para mim, Danger?
Minha mão encontra seu queixo com tanta delicadeza, que me surpreendo. Calíope lambe os lábios me observando e a língua cor-de-rosa da groselha se faz presente, obrigando-me a repetir o movimento. Ela foca no piercing que tenho na língua e eu imagino todos os lugares que ele poderia encostar no corpo dela.
― Eu só estou começando, deusa.
Querida, agora, é pouco para ela. Ninguém chama uma Rainha assim quando ela está sentada na porra de um trono. E Calíope acabou de se sentar ao meu lado para comandar esse reino em pedaços.
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[DOMA] 02. | Eu só tenho dois amigos verdadeiros e ultimamente estou uma pilha de nervos.
“Onde está a porra do meu sonho adolescente? Se alguém me disser mais uma vez ‘Aproveite a sua juventude’, eu vou chorar Eles dizem que estes são os anos de ouro Mas eu gostaria de poder desaparecer” brutal | Olivia Rodrigo
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  ― Ele sugeriu que você fizesse um plié?
A voz de Angel corta o barulho da cafeteria que acabamos de entrar, na sexta-feira pela manhã. Estou atualizando a pessoa mais próxima que tenho nessa faculdade de ser minha melhor amiga sobre o encontro com o jogador de hóquei na manhã do dia anterior. Angelina parece tão chocada quanto eu, com o fato de alguém como ele conhecer um passo sequer do balé, uma dança tão delicada e completamente oposta ao hóquei no gelo, que é conhecido por ser bruto e absurdamente violento.
― Eu não acredito.
― Confie em mim ― murmuro, sob o olhar atento dela que está se sentando.
Coloco a bolsa sobre a mesa que Angel escolheu para nós, mas permaneço em pé, porque hoje é o meu dia de enfrentar a fila quilométrica de pessoas que, assim como nós, precisam de suas bebidas quentes para começar o dia.
― Eu também não acreditei. Tenho certeza de que fiquei com cara de taxo olhando para ele, sem ter ideia se ele realmente estava falando sério ou escutou a palavra “plié” um dia e decidiu sugeri-la, na esperança de ser adequada.
Angelina ri, ainda incrédula.
― O treinador deve ter usado isso de forma pejorativa ao falar com eles. Qualquer coisa como “vocês parecem um bando de maricas fazendo ‘plié’” e ele deve ter aprendido. Não me surpreenderia ele conhecer o passo por causa de algum comentário machista.
Ela está certa. Perdi a conta de quantas vezes eu ouvi os treinadores usarem o balé como algo negativo e simplista, como se fosse somente colocar sapatilhas e tutus para dançar por aí. Meu pai, por exemplo, costumava achar que era só isso quando eu comecei, ainda criança. Mas quando voltamos todos a morar juntos e ele descobriu a realidade, mudou completamente o conceito. Desde então, ele se tornou o maior defensor do balé e suas dificuldades.
― Café preto?
Como nós costumamos pedir a mesma coisa sempre, pergunto para confirmar, porque nas últimas semanas ela estava em uma bateria de provas tão estressante, que pedia café com dose extra de cafeína e bolinhos de café.
Ao sinal de positivo dela, me dirijo à fila imensa. São duas caixas registradoras, então os alunos estão divididos em duas filas diferentes. Na parte do balcão onde retiramos os pedidos, há uma concentração de gente ainda maior, o que indica que, provavelmente, ficarei mais tempo aqui do que eu esperava. Com meus horários completamente bagunçados da transferência tardia no meio do semestre, torço para que a aula de hoje comece realmente às onze como está escrito em um dos papéis cheios de rabisco que agarrei pela manhã. Como um adicional ao dia de hoje, faço a nota mental de não esquecer a reunião com meu orientador, que será em breve.
O mês de fevereiro em Albany é tão frio quanto em Nova Iorque e por alguma razão, chove muito mais. O céu está sempre nublado e hoje não está nem um pouco diferente, exceto pelos poucos raios solares que surgem esporadicamente entre as nuvens.
A minha vez na fila chega no exato segundo que o garoto bonito ao meu lado também chega ao caixa. Ele é mais alto que todas as outras pessoas dentro da cafeteria e se sobressai entre eles com graciosidade, não parecendo incomodado com a atenção que recebe de todos aqui dentro.
― Um café grande, com essência de baunilha e creme e um chá grande de camomila, por favor.
Krystin, a atendente que já me conhece, é rápida em processar os pedidos e entregar a máquina de cartão, a qual uso para pagar as bebidas de hoje. Como eu já havia comido antes de sair de casa, só preciso do copo de chá para esquentar o corpo, que ainda tremerá em decorrência do frio que está lá fora. Meu sobretudo de couro não esquenta o suficiente e mesmo com duas meias, a bota parece gelada contra meu pé. Eu sequer fui ao centro de treinamento da Prestige hoje, para justificar os tremores do meu corpo.
― Riv, o cartão foi recusado de novo ― escuto da atendente ao lado. Frustrado, o garoto passa a mão pelos fios rebeldes que insistem em cair no seu rosto. Pelo descontentamento com o cabelo, imagino que ele não esteja acostumado com o tamanho que seus fios estão. ― Você quer tentar passar outro?
― Não adianta, porque larguei a carteira no ringue. O Chase disse que era para eu trazer o cartão dele e eu nem pensei em pegar dinheiro na carteira antes de sair. Você não consegue quebrar essa, Kay? Eu trago o dinheiro amanhã.
Enquanto escuto a conversa, enfio a carteira na bolsa, mas mantenho o cartão de crédito escondido na manga do meu casaco. O tal Riv deixa os ombros caírem em desânimo, quando Kathleen informa que não pode mesmo abrir essa brecha para ele, nem mesmo “por ele ser quem ele é”.
― Espere, passa no meu ― estendo o cartão preto na direção de Kay.
Os olhos azuis mais claros que já vi na minha vida encontram os meus em surpresa. Na frente dele, doze copos de café já prontos estão posicionados, além de diversos sacos pardos de bolinhos. Eu digito a senha sob o olhar atento de todos, enquanto Riv pega todas as bebidas e equilibra tudo em seus braços. Meus dois copos também são entregues ali naquele balcão e não precisamos enfrentar mais uma fila para conseguir nossas bebidas.
Kay me devolve o cartão, junto de um sorriso bonito, quase aliviada pela minha boa ação. Imagino que dizer não para garotos bonitos como Riv não deva ser sua parte favorita do trabalho, porque quando o outro cliente toma o lugar dele na fila, ela parece ainda mais feliz que antes.
― Obrigado ― a voz dele é contida, quando me agradece. Estamos fugindo do movimento dos estudantes que entram aos montes, agora que o primeiro período acabou e eles aproveitam as brechas que têm até a próxima aula. ― Acho que o Chase nem sabia que o cartão dele está sem saldo.
― Imagina, não foi nada ― digo, porque é verdade. Os olhos de Riv brilham enquanto me encara. Só agora eu consigo observá-lo de verdade.
Embaixo de um casaco pesado, ele utiliza um moletom com logo da faculdade. Coturnos pesados estão em seu pé e a calça escura que usa é larga para as pernas absurdamente compridas. Jogado no pescoço, ele tem um lenço cinza, deixando-o elegante, mesmo com o visual despojado. Me pergunto se isso é obra de qualquer outra pessoa, ainda que não haja alianças em seu dedo, ou se é algo dele.
― Não, é sério. O time acabaria comigo se eu voltasse para o ringue sem os cafés que eu prometi pegar. O treinador está comendo a gente vivo, então a única forma de tolerar isso é com cafeína.
Como não tenho dependência à cafeína, assinto, por educação.
― Fique tranquilo. Às vezes é importante fazer uma boa ação. Ou duas. É o que dizem, não é? Aqui se faz, aqui se paga.
Riv deixa todos os doze copos em cima da mesa ao nosso lado para colocar os fios do cabelo atrás das orelhas, enquanto um risinho escapa de seus lábios. Mesmo com todo o barulho dentro da cafeteria, o som sobressai em meus ouvidos. Antes de continuar falando, ele umedece os lábios, distraidamente.
― Literalmente, né? Mas de verdade, obrigado mesmo...
A pausa proposital diz que ele quer saber meu nome.
― Aurora.
― Prometo não ser cafona dizendo “um nome bonito para uma garota bonita”, mas o seu nome é realmente lindo. Eu sou o River. River Corrigan.
― É um prazer, River Corrigan.
― Igualmente, Aurora... ― a pausa proposital ocorre novamente, mas fico tensa.
Não quero dizer meu sobrenome e, de alguma forma sobrenatural, ele capta isso somente olhando nos meus olhos. Não insiste e eu agradeço a forma educada com a qual ele muda o assunto, ao falar de algum jogo que vai acontecer amanhã, aqui mesmo na Prestige, contra a faculdade de Illinois.
― Você deveria ir. Leva alguém com você.
― Eu posso pensar ― sorrio, amarelo. A verdade é que tento a todo custo me manter longe de todos os jogadores universitários, independente do esporte que eles jogam. Os de futebol americano, eu sequer olho no rosto, para não correr risco algum. Quando se cresce entre todos, a magia acaba tão rápido quanto começa.
― Entendi isso como um fora educado. Mas tente ir, de verdade. Vou fazer uma boa ação para você: ganhar dos Redbirds, assim a sua faculdade fica cada vez mais próxima do Frozen Four, o que acha? Se eu conseguir acertar uma tacada ou outra, prometo dedicá-la para você.
― Uma graça, River ― sou sincera, levando o copo aos lábios. Os movimentos que faço são seguidos por ele, com uma sensualidade natural que vem dos seus movimentos. ― Mas não caio nas cantadas dos esportistas.
Ele não se abala, nem mesmo quando alguém da porta chama por seu nome.
― Não custa tentar, Aurora. Obrigado de novo pelo café. Preciso ir, mas falei sério. Se você quiser aparecer lá, eu sou o camisa 23.
River pega os cafés e as embalagens de bolinho novamente e dá meia volta, encontrando alguém na porta da cafeteria, que pega uma das bandejas com o copo, ajudando-o a equilibrar tudo. No entanto, antes que a porta se feche e ele fique do lado de fora, River se vira para dentro da cafeteria, tirando o cachecol que usa no pescoço. Ainda estou parada no mesmo lugar, presa em seus olhos azuis. Ele coloca a bandeja que carrega na mesa e se aproxima ainda mais de mim, com o tecido cinza em mãos. Lentamente e sem desviar os olhos dos meus, ele enrola o tecido quente no meu pescoço.
Respiro fundo, sem conseguir evitar.
Seu cheiro é uma maravilha e está impregnado no tecido do lenço que agora, sou eu quem usa. Piscando um dos olhos sem parecer um completo bobo, ele volta para a porta, com seus cafés em mão e some do meu campo de visão entre os outros estudantes que entram e saem como formigas dentro de um formigueiro. Quando me viro na direção de Angelina, ela parece tão chocada quanto eu, com seus lábios perfeitos cobertos de batom abertos em surpresa.
― O que foi aquilo?
É a primeira coisa que ela diz, quando coloco o copo de café já morno na mesa. Se eu tivesse alguma ideia do que havia acabado de acontecer, eu provavelmente teria respondido à pergunta, mas ainda estou completamente chocada. Instintivamente, me viro para procurar a porta novamente, mas River realmente foi embora, deixando seu lenço comigo.
― Não faço a menor ideia ― comento, ao virar mais um pouco de chá dentro de mim. Ele está quente o suficiente para me esquentar. ― Seu café ainda está quente ou quer que eu compre outro?
Angel bebe um longo gole, assentindo com a cabeça. Por ela continuar a beber, entendo que ainda está quente o suficiente.
― Quando é sua próxima aula?
― Nove e cinco ― ela diz, ao encarar o relógio. São oito e cinquenta, o que garante tempo para que ela chegue no horário certo. ― E a sua?
― Eu honestamente não tenho ideia. Tenho reunião com o senhor Masterson às nove e meia, para ver os horários das aulas e como vou fazer já que fui transferida. Por isso, acho que não consigo te encontrar no almoço.
― Fica tranquila. Vou encontrar o grupo de estudos no almoço. A gente tem essa prova importante chegando e eu estou completamente perdida na disciplina. Preciso de toda a ajuda que eu encontrar.
Angelina veio do Brasil para estudar medicina na Prestige, porque a faculdade é referência nessa área de atuação. O hospital universitário recebe pessoas de toda a região para serem atendidas pelos médicos e estudantes que trabalham ali. Em seu primeiro ano, num lugar que não fala o mesmo idioma que o dela, presumo que tudo seja ainda mais complicado.
― Quais os planos para o final de semana? ― Ela pergunta, depois de um tempo. O relógio na parede da cafeteria faz barulho, indicando que são nove horas. Angel se levanta, com seu copo vazio em mãos e o joga na lixeira ao lado da nossa mesa. Como ainda há chá no meu copo, sigo para fora do lugar com o meu ainda em mãos.
― River me convidou para um jogo que vai ter aqui, mas não sei mesmo se quero ir. Você sabe, jogadores, esportes e tudo mais.
― Jogadores, esportes e tudo mais ― ela me imita, revirando os olhos. Angelina é a única pessoa nessa faculdade que me conhece. Ela sabe absolutamente tudo sobre a minha vida, sobre quem meus pais são e nunca ligou. A única vez que falamos sobre eles, foi quando eu contei e dei para ela exatos sessenta segundos para me perguntar o que quisesse. ― Jogadores de hóquei não são jogadores de futebol, Aurora. Você viu o River, não viu?
― Sim, mas... Jogadores são jogadores, independente de que time eles jogam.
Angelina revira os olhos dramaticamente. Aprendi com ela que quanto mais drama você coloca em uma ação, mais engraçada ela fica. E que com ela, sempre tem drama. Sempre mesmo. Paro na frente do meu carro, tirando a chave da bolsa, enquanto Angel bate uma bota na outra para tirar o gelo da sola. Quando o Audi faz barulho porque abriu, nós duas nos aconchegamos dentro do veículo quente. É questão de segundos para que ele esteja ainda mais quentinho, quando ligo o carro e com ele, o aquecedor.
― Vou deixar você lá no seu prédio. Você precisa de carona depois?
― Não precisa. Na hora que acabar a reunião com o grupo de estudos, você já vai estar na aula e eu preciso correr para as que tenho à tarde. Consigo caminhar de lá para o dormitório sem problema. As garotas de lá estavam falando sobre uma festa de fraternidade que vai ter amanhã e eu quero ir atrás de algumas informações.
― Uau. Festas de fraternidade. Parece uma chatice.
― Você deveria tentar entrar comigo. As garotas são realmente legais e você nem precisa morar lá para fazer parte.
― Obrigada ― nego. ― Mas passo. A fraternidade da NYU foi suficiente para mim. Não quero me envolver com isso, nem que você me pague.
Eu estaciono o carro no estacionamento do campus de ciências biológicas. É um aglomerado de prédios com laboratórios, salas de atendimento, salas de aula e seja lá mais o que os estudantes dali precisam. Enquanto Angel ajeita suas coisas na bolsa, eu aproveito para conferir as mensagens no meu telefone.
― Ah, olha só para eles ― a voz dela corta o silêncio do carro, enquanto encara o lado de fora pela janela limpa. ― Odeio o jeito que andam como se fossem donos do campus só porque foram aprovados em outras faculdades de medicina. Eu, honestamente, preferiria lidar com os jogadores se gabando das conquistas do time.
― Quem é que estava defendendo jogadores até agora?
Angel puxa alguns grampos que até então prendiam as tranças finas do seu cabelo cacheado. Eles emolduram seu rosto fino com precisão. Essa garota é um absurdo de linda.
― Bem, eu defendi River Corrigan, que foi um doce com você.
― Certo, bonitinha. Desce do carro. Vou para a minha reunião que fica do outro lado do campus ― com Angel para fora em direção à uma de suas aulas, manobro o carro para ir para o outro lado do campus e sigo para a reunião com o meu orientador.
Sua sala tem o aquecedor ligado, por isso, não passo tanto frio. Com o lenço de River enrolado em meu pescoço, adentro o prédio da coordenação dos cursos que envolvem arte, como performance artística, teatro, dança, rádio e televisão, artes plásticas, entre outras. O senhor Masterson já está me esperando na porta, quando chego em seu andar, graças ao elevador rapidinho.
― Bom dia, senhorita Withlock.
― Bom dia, senhor. Eu sei que nos falamos quando eu me mudei, mas ainda estou sem a grade horária e, tendo em vista que a dupla graduação ainda está sendo organizada, preciso mesmo de um parecer sobre meus horários. A única coisa que sei até agora é que tenho balé todos os dias pela tarde.
Ele se ajeita na cadeira de couro atrás da mesa, empurrando os óculos no rosto, para ajeitá-lo. Sentando-me de frente para a mesa dele, cruzo uma perna em cima da outra e seguro o pingente do meu colar, com as iniciais C e W, dos meus sobrenomes. O simples ato de tocar o colar e fazer menção aos meus pais, faz com que ele assinta, educadamente. Passei a fazer isso todas as vezes que fico nervosa, para ter o sentimento de que meus pais estão perto de mim.
― Desde que cheguei, tudo tem sido uma bagunça nesse quesito. Até as aulas do curso de performance artística eu frequentei, que nem estão na grade horária regular. Preciso mesmo que a universidade se organize nesse quesito. Sei que uma transferência no meio do período é realmente complexa, mas há a apresentação da Bela e a Fera no final de maio, a peça de teatro e outras atividades que, com certeza, terei que correr atrás do prejuízo depois.
Ponderando abrir a boca, eu o interrompo antes que isso seja possível, para acabar de despejar a frustração.
― Eu quero continuar na dança, como estou agora, mas preciso de algo a mais, como o teatro. Nos meus horários vagos, já frequentei as aulas de teatro para ver se era isso mesmo e é. Também sei que chegar aqui e exigir coisas assim é meio irracional da minha parte, mas visto que nem a minha grade regular foi entregue ainda, sei que podemos encontrar a melhor forma de fazer isso acontecer. Estou certa, não estou?
Balanço as mãos despretensiosamente.
Enquanto isso, meu orientador encara o pingente do meu colar, atento.
― Olhe, Aurora ― ele hesita. ― Posso chamá-la assim?
Com o meu sinal de afirmativo, ele continua.
― Você tem um histórico excelente ― sei que ele está se referindo aos meus pais. ― Mas eu não tenho essa autoridade. Tudo o que eu consegui fazer, fiz, que foi abrir um pedido formal na reitoria. Eu presumo que eles já tenham aprovado a mudança e que, por isso, vão entregar seu horário o mais breve possível. Hoje, vou autorizar que você vá para a aula de atuação avançada, que, se o pedido for mesmo concedido, será sua aula das onze. Vou informar o professor da disciplina e você poderá ir.
Assinto, lentamente. Posso fazer isso. Esperar um tempo para ver o que acontece.
― De qualquer forma, espero que você saiba que terá que repor as aulas dos anos anteriores e que, por isso, não se formará no prazo ideal. Tenha ciência que você pode demorar de seis meses a um ano a mais em relação aos seus colegas. Mais para frente, no entanto, podemos colocar essas aulas que foram perdidas nos seus horários vagos e até mesmo à noite, se a senhorita achar que é a melhor opção.
Merda. Parece exaustivo, mas é um risco que vale a pena. Antes que eu possa me levantar para nos despedirmos, ele cruza as mãos sobre a mesa e indica, com a cabeça, para que eu continue sentada.
― Outra coisa que precisamos conversar.
Seu rosto ganha um tom de seriedade e eu fico tensa. O peso do mundo parece ter sido concentrado nos meus ombros.
― Para o trabalho final, de dança, independentemente se você terá teatro como segunda graduação, você precisará apresentar uma coreografia, assim como os outros alunos. Sei que a transferência no meio do ano letivo dificultou as coisas para você e todos os outros alunos já têm seus parceiros. Por isso, você pode escolher um dos alunos dos outros anos. Ou você pode apresentar sozinha, o que eu não recomendo.
Certo, então um: esperar pacientemente o reitor aprovar ou recusar o meu pedido. Dois: criar uma coreografia sozinha, para apresentar no mesmo mês do recital de balé da faculdade, que vai valer a minha nota?
Sim, sim. Posso dar conta disso. Posso criar uma coreografia, enquanto aprendo outras quinze, para terminar o meu primeiro ano na faculdade. Sou perfeitamente capaz de conseguir conciliar todas as atividades as quais estou sendo empurrada.
Só preciso ter disciplina. Coisa que o balé mais pede.
― Vamos fazer assim, senhor Masterson. Eu vou atrás de algum aluno e caso não consiga resolver esse problema, apresento sozinha.
— As coisas na Prestige são rígidas, Aurora. Não nos tornamos referência no país à toa. Espero que você tenha a mesma excelência que teve na Universidade de Nova Iorque. Boa sorte, senhorita Withlock. Acho que você vai precisar.
Ótimo.
É a segunda pessoa em dois dias que diz que eu vou precisar de sorte.
Talvez isso seja um sinal.
© Letícia Chokr 2022.
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[DOMA] 01. | Eu sou um pedaço de papel amassado e jogado aqui porque eu me lembro disso tudo, tudo, tudo.
“Eu passei pela porta ao seu lado O ar estava frio, mas algo sobre isso Me fez sentir em casa” All To Well | Taylor Swift
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O vento gelado dentro das instalações de hóquei da Prestige faz até o último fio de cabelo meu se arrepiar, junto de uma sensação estranha, que envolve meu corpo como o abraço da morte – desconfortável, incerto, inóspito.
Tudo está vazio aqui dentro e não há nenhum raio solar entrando pelas brechas do teto do centro de treinamento, que tenho uma hora para poder usar, antes que a equipe de hóquei chegue para o treino do período da manhã. Reviro os olhos, mesmo sabendo que só tenho isso, porque pedi. O dinheiro é capaz de comprar tudo quando se tem notas para gastar, mas, pela primeira vez, não queria conseguir uma regalia.
Eu queria ter escutado um grande não. Em alto e bom tom. Do meu pai, da minha mãe, do reitor da universidade, de qualquer corajoso o suficiente para me dizer isso. Ao invés, ouvi as negociações por telefone, que garantiram uma hora no gelo todos os dias, contanto que meu pai fizesse uma pequena doação para o departamento esportivo da Prestige.
Eu não queria acesso ao centro de treinamento, nem que meu pai doasse dinheiro para o time, nem nada. Gostaria de ter escutado que, infelizmente, há certas coisas que o dinheiro não consegue comprar, que meus pais não conseguem para mim ou que o mundo não gira ao meu redor ao ponto de uma equipe inteira de hóquei precisar treinar em um gelo que já havia sido usado naquela manhã, tudo porque algumas pessoas têm regalias maiores que as outras. Então, sim, pela primeira vez na vida, eu gostaria de ter escutado que não.
Parte disso também é erro meu. Eu deveria saber que meus pais fariam o possível e o impossível para conseguir isso para mim. Eu não deveria ter pedido o favor. De qualquer forma, eu gosto muito mais de balé que de patinação no gelo.
Quando decidi largar a Universidade de Nova Iorque para me transferir para Prestige, achei que isso fosse causar qualquer tipo de reação nos meus pais, mas isso nunca aconteceu. As situações dos últimos anos têm mantido os dois em uma espiral de puro medo e desespero e acho que, com a idade que a minha mãe está chegando, todo o desespero para ter um novo bebê se intensificou.
Por isso, acho que eles não pensam muito.
E se pensam, preferem não demonstrar.
Na verdade, acho que tudo o que eles podem fazer para facilitar as nossas vidas, eles fazem. Como eu disse, o dinheiro pode comprar tudo. E quando você faz parte da família Withlock, torna-se ainda mais fácil. Porque todos (e quando eu digo todos, eu quero dizer todos mesmo), querem fazer um favor para os incríveis Damien e Heaven Withlock.
Meus pais não são péssimos pais. Eles atribuíram limites, me castigaram quando era necessário e, imagino que pelo fato de eu não ter sido uma criança difícil, permitiram muitas regalias no meu crescimento, ainda que entendiam a necessidade de serem severos quando era necessário. Contudo, desde que eles voltaram, anos atrás, tenho a sensação de que eles tentam, a todo custo, apaziguar pelo menos parte do sofrimento causado nos primeiros anos da minha infância.
As lâminas dos patins escorregam pelo gelo quando me coloco de pé dentro do ringue de patinação. Estou usando meia-calça, junto de um casaco quentinho para não entrar em outra crise. Dentro desses lugares, preciso sempre estar aquecida. Não entendo o porquê, mas todas as vezes que sou exposta a baixas temperaturas, quero chorar. Um aperto no meu peito faz com que eu perca o ar. Assim como foi quando eu entrei aqui.
Uma camada de gelo se levanta, quando viro o corpo sobre as lâminas. Poucos respingos do líquido alcançam as minhas pernas, mas não paro. Deslizo os pés sobre a superfície gélida, para pegar impulso para realizar um dos meus saltos favoritos, o Salchows, que apesar da dificuldade baixa, tem me feito perder o equilíbrio todas as vezes que tento o realizar.
Penso nos exercícios de balé. A dinâmica dos passos, ainda que diferente, pode me ensinar uma ou duas coisas. Mas, quando caio novamente, dessa vez ainda mais forte do que da primeira vez, sinto-me frustrada. Por tudo. Pelo frio de Albany, pela falta de amigos na faculdade, pelos meus pais que fazem de tudo para facilitar a minha vida, mesmo sabendo que certas atitudes são muito mais por atenção, que por vontade.
Por pouco, a lâmina de um dos patins não rasga a minha perna.
O impacto do tombo foi tão forte, que ainda estou sentada no chão, com as mãos arranhadas graças ao gelo. Elas doem, mas não tanto contra o lado direito do meu corpo, que se chocou violentamente contra o ringue. Poucas gotas de sangue surgem entre os arranhados, manchando a superfície branca imaculada. Tudo dói. Corpo, mãos, joelhos, coração.
Minhas pernas estão úmidas, como meus olhos, que se encheram de lágrimas diante da farsa que sou. Não sei por que ainda tento fazer qualquer coisa no gelo. Provavelmente, por birra, para que, de certa forma, eu honre a conquista do meu pai. No fundo, já sei o que quero. Quero balé, palco, teatro. Não frio, gelo e roupa molhada. Nem lâminas, cortes causados por elas e contusões que podem me colocar para fora dos palcos do balé.
O fone sem fio que utilizo no ouvido direito toca uma composição calma, uma melodia lenta, que envolve meu corpo. Eu costumava dançá-la na sacada do meu apartamento em Nova Iorque, sentindo como se eu tivesse a cidade aos meus pés, metafórica e literalmente falando. Novamente, uma farsa. Uma ilusão criada pelos meus pais, que alimentei dia após dia na esperança de que talvez isso me fizesse sentir pertencente aos lugares que morei, ao caos que vivi.
Isso me dá combustível para fechar os olhos e fingir que estou sobre sapatilhas de ponta da Grishko. O cabelo preso em coque dá total liberdade para que o vento gelado me corte, tendo somente os braços cobertos pelo casaco. Meus pés deslizam sobre o gelo e eu começo o salto com as rotações necessárias na borda traseira da lâmina. Posso fazer isso. Sei que posso.
Exceto que não pude.
E é por isso que estou novamente no chão, raspando ainda mais as palmas das mãos contra o gelo cortante. As gotículas de sangue surgem novamente contra a pele fina e mancham o gelo, dessa vez em outro lugar. É, no mínimo, decepcionante.
― Tente manter o corpo em plié. O impulso vai ajudar na hora de saltar e dará estabilidade para quando você alcançar o gelo novamente. Você vai ter controle do pouso com a parte traseira da lâmina.
Lentamente, meus olhos esquadrinham cada canto desse centro de treinamento, até que eu o vejo ali, sentado, como se ele fosse o dono do lugar. A postura despojada jogada em uma das cadeiras da arquibancada parece combinar com sua expressão carregada de tédio. Apesar de vago, seus olhos brilham intensos, curiosos e com um quê de algo que nem se eu estivesse a centímetros dele, eu conseguiria distinguir. A pelo menos cem metros de distância, a missão torna-se ainda mais impossível.
― Acho que sei o que estou fazendo, obrigada.
Mesmo usando o tom mais rude que consigo, somada a expressão fechada de quem está cansada de cair sobre o mesmo lado do corpo repetidamente, o garoto desconhecido não se abala por nada. Impassível e impessoal, ele se levanta, somente para descer algumas fileiras e se sentar em outra cadeira, ainda mantendo uma distância considerável de mim.
Os ombros largos carregam orgulhosamente o casaco pesado com emblema da faculdade Prestige, assim como a camiseta preta que está por baixo dela. Ele não se afeta diante da minha análise minuciosa; pelo contrário. Parece gostar de ser alvo de toda a minha atenção dedicada somente a analisá-lo, como se ele fosse a única coisa que valesse a pena ser observada dentro deste lugar.
― Não diria isso, mas você quem sabe. Boa sorte para executar o salto.
Mesmo em tom de despedida, ele não se levanta. Apoia o cotovelo no braço da cadeira e encosta o queixo sobre a palma aberta da mão, arqueando uma das sobrancelhas na minha direção. Sua atenção é toda minha. Meu coração bate forte em saber que estou sendo alvo da sua atenção, não porque sou quem sou, mas pelo simples fato de eu ser alguém. Gosto de ser observada dessa forma, sem o brilho do deslumbramento da fama, mas carregado de curiosidade. Ele parece seguir cada mínimo movimento que estou fazendo, tentando prever o próximo.
Quando me coloco de pé, um sorriso triunfante se delicia em seus lábios.
A expressão vitoriosa preenche seu rosto bonito.
― Acho que você vai precisar ― ele completa.
Me ajeito sobre as lâminas, desafiando-o com o olhar. Meus braços se cruzam abaixo do busto e ele segue o movimento com o olhar, sem ter a chance de observar meus peitos, graças ao zíper fechado do casaco que visto.
― Não preciso de sorte ― digo, ao patinar para o lado oposto do centro de treinamento. O silêncio é ensurdecedor. O som que se sobressaí em meus ouvidos é a minha respiração, tão ofegante quanto as batidas agitadas do coração em meu peito. ― Preciso de treino ― completo, em um tom mais alto que conversávamos antes.
Ele nada diz. Somente assente, na esperança de que eu demonstre minha habilidade – ou falta dela – sobre os patins presos à bota branca. Meu corpo desliza sobre lâmina. O vento gelado queima minhas bochechas brancas. Os fios que se soltaram do cabelo preso são jogados para trás. Eu respiro fundo, me preparo para pegar impulso e patino para longe.
E caio.
Ele então se levanta e caminha para se aproximar das divisórias entre o banco dos times e o ringue de gelo. Agora, é uma questão de poucos centímetros nos separando. A proximidade me permite analisá-lo ainda mais, como sei que ele está fazendo comigo. De todos os garotos que já vi nesse nessa faculdade, ele é o único que realmente me olhou.
― Tente o plié. O máximo que pode acontecer é você cair pela milésima vez. Mas não se preocupe, depois do vigésimo tombo, o corpo começa a adormecer e amortecer as quedas violentas. Palavra de jogador de hóquei, para possível patinadora de gelo.
Agora, é a minha sobrancelha que se arqueia, em deboche, desafio e incredulidade.
― Não sou uma possível patinadora de gelo, sou bailarina.
― Então por que você está aqui?
― Porque posso.
Não porque quero, nem porque burlei as regras, mas porque posso. Porque tenho permissão escrita do reitor que permite todas as minhas visitinhas aqui dentro desse lugar imaculado para os jogadores e técnicos. Estou aqui porque preciso provar a mim mesma que as regalias que tenho estão muito mais envolvidas com o fato de eu merecer, que com o fato de meu pai poder comprar.
Mesmo que esse tenha sido o caso, ele não precisa saber disso.
― Você pode, é?
O corpo grande encosta na divisória. Sinto que ele está tentado a entrar no gelo, mas ainda de botas, sei que ele jamais ousaria pisar aqui sem o sapato apropriado. Por isso, o garoto de cabelos pretos se contenta em me encarar, debruçando o corpo o máximo que pode para se aproximar de mim. Eu não me movo, nem um centímetro, porque sinto que se eu chegar perto demais dele, não vou conseguir me afastar.
― Posso.
― E quem é você?
A análise meticulosa volta.
O estádio gelado fica quente.
É provável que eu consiga derreter o gelo com o calor que emana do meu corpo.
― Alguém que pode fazer isso. Que pode estar aqui, ainda que falte poucos minutos para o treinador, do que eu deduzo ser o seu time, chegar.
― Você pode tentar o salto com o plié. Basta flexionar um pouco mais os joelhos, que seu corpo conseguirá o impulso necessário para pular. Confie em mim, você vai me agradecer.
Respiro fundo.
Dou a volta no gelo, somente para pegar impulso para finalizar meu salto de frente a ele. Se cair, terei como provar que sua teoria de que o plié funcionará, mas se der certo, provarei a mim mesma que sou capaz de dar um salto perfeito, ainda que ele se gabe por ser o responsável pela minha conquista.
O garoto sobe alguns degraus da arquibancada e se senta na mesma cadeira de antes, quando fecho os olhos e respiro fundo. Na borda traseira da lâmina, pego meu impulso para patinar para trás e flexiono os joelhos o suficiente para fazer um plié com os pés em quarta posição. Se é correto nas competições de patinação, não faço ideia. Mas se me permitir conseguir realizar o salto perfeito, então valerá a pena.
Eu pulo.
E fecho os olhos me preparando para cair.
Mas não caio.
Na verdade, aterrisso na parte traseira da lâmina, no pé oposto que saltei, como o pulo manda. Estou de pé e inteira, com o coração batendo na boca e a respiração ofegante como se eu tivesse acabado de correr uma maratona completa.
Encaro a arquibancada.
Mas quando encontro a cadeira do garoto, ela está vazia.
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Fique no plié.
A voz rouca que dominou meus pensamentos desde a manhã no ringue, continua gritando em minha mente que é para eu manter os joelhos um pouco mais flexionados, se eu quiser fazer a porcaria da pirueta corretamente quando o professor pedir os exercícios laterais. Minha sapatilha de tecido desgastada está sendo arranhada contra o chão enquanto uma série de exercícios em barra são feitos.
Se por um lado tenho na mente uma voz aveludada, calma, rouca e provocante, em meus ouvidos, escuto alguém rude e desesperado por controle, que nos manda executar o attitude em meia ponta, braços sem segurar na barra em quinta posição, seguidos de primeira posição dos pés para fazer a porcaria de um plié, dando oito tempos de descanso, para já começar uma sequência desgastante que faz minha cabeça latejar.
Estamos aqui há uma hora, realizando diversos exercícios de flexibilidade e alongamento, para nos aquecermos para o ensaio de verdade. Em maio, no fim do semestre, a Prestige apresentará um recital de balé, com A Bela e a Fera como tema, diferente das apresentações tradicionais que os outros anos e turmas escolheram. O professor Hunter não parece intimidado. Muito pelo contrário, tem planos, ideias e fará a seleção do elenco nas próximas semanas.
Por isso, estou dando tudo de mim, mesmo com o corpo dolorido da patinação no gelo de hoje cedo. Meu lado direito simplesmente não funciona e fazer o elevè com o pé dolorido está sendo um castigo. Continuo mesmo assim, porque diferente da patinação, sei que o balé é algo que quero, que preciso. Mais do que ar, que comida, que amigos. Ainda que tudo e todos me abandonem, terei as sapatilhas para me fazerem dançar por cada canto desse mundo, trazendo lágrimas aos olhos dos espectadores.
É isso que fazemos no balé.
Não estamos simplesmente dançando ou patinando, estamos contando uma história. Interpretando a música, trazendo uma verdade. Não é à toa que o balé se manteve firme desde que foi apresentado ao mundo. O tempo vem e vai. Palavras caem em desuso, amigos param de conversar, parentes morrem, relacionamentos acabam.
A dança é para sempre.
E hoje, ela é a única garantia que tenho em toda a minha vida.
Nos cinco minutos de intervalo que temos depois dos exercícios em barra, troco a sapatilha meia ponta pela sapatilha de gesso, agradecendo que a quinta-feira havia chegado mais rápido do que eu esperava. Meus pés estão me matando, cheios de hematomas e machucados; conseguirei tratar no final de semana, com descanso e bacias de gelo.
Ossos do ofício.
Continuo sem me arrepender da decisão que tomei para minha vida.
Às seis e trinta, quando todos nós somos dispensados, arranco as sapatilhas em velocidade da luz, perdendo somente três minutos para encher os pés de esparadrapos, que serão cobertos pela meia do tênis. Ainda tenho um roteiro para ler para a aula de interpretação de amanhã, então não tenho realmente tempo a perder.
Deixo a sala rapidamente.
Sei que esbarrei em alguém, mas não olho para trás quando grito um pedido de desculpa. Depois do dia estressante e caótico, a única coisa que quero para mim, é me deitar na cama, onde vou chorar até me lembrar que tenho outras responsabilidades, além de sentir pena de mim pelas escolhas que tomei.
© Letícia Chokr 2022.
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