solnaminhaboca
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sol na minha boca
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solnaminhaboca · 3 years ago
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68
Demorou-lhe uma hora. Eu financiei esse momento, deitado com a cabeça nos seus ombros, ora fingindo profundo interesse e entrega, ora desinteressado; e eu que nunca sou de ficar muito tempo em
lugar algum, acabei ficando.
Achei surreal que ele ainda estivesse tão engajado em si mesmo. Pareceu não se importar com uma possível impaciência minha. Calmo, porém seus movimentos rítmicos aceleravam a cada minuto que passava. E eu pendurado, assistindo, dependente; as horas iam passando, e eu fiquei pensando que ainda tinha que tomar banho e comer e terminar o filme que eu estava assistindo no Amazon Prime antes de ir trabalhar. Filme muito bom, aliás.
Ultimamente caí numa trincheira emocional. Tem sido difícil sair. Caí num buraco de desinteresse no meu próprio trabalho. Percebi que eu vinha sonhando um sonho esses anos, um delírio um pouco alienígena. Talvez tenha sido uma assombração do meu próprio pai, que hoje completaria 68 anos se estivesse vivo. Ou, quem sabe, uma influência? Talvez sequer uma predileção genética? Eu não sei. Talvez eu só esteja vivendo num contexto propício pra desanimar. Tantos shows internacionais pra ir, a Prep pra me libertar sexualmente das amarras puritanas. Tem sido difícil me manter interessado em uma coisa só, especialmente em uma que me tomava oitenta horas semanais no ano passado. Caí numa mesmice esvaziada de preguiça de engajar. Não engajaria nem se tentasse, mesmo.
À noite, depois de receber visita, sento em silêncio e observo um grande vazio em potencial. Hoje já esgotei minhas possibilidades. Já trabalhei, transei, comi um ifood hipocalórico. Não tenho o que criar, não sou artista. E se configura literalmente impossível me apaixonar do jeito que estou. Coloco alguma série pra
preencher o silêncio, mas termino caindo no youtube do Blu Ray da minha vitrola deitado no meio das almofadas. É muito bom ter um
potencial existindo, mas muito ruim ser incapaz de preenche-lo. Em certa medida eu sou exatamente como ele: punhetando, tentando gozar, ora mais rápido, ora mais lento, sem chegar a lugar algum. Tem um lado muito bom e um lado muito ruim.
Meus sonhos já estão a quilômetros. Sinto uma melancolia ingrata. Como diria Alanis, who am I to be blue? Tenho tudo o que quero, mas não quero tudo o que tenho — me falta querer, me sinto a quilômetros das coisas que tenho. Como um perfil de instagram vivendo a quilometros, me
sinto um software mal escrito.
Queria ser uma pessoa comum. Queria me satisfazer com um relacionamento. Com uma pessoa. Com um trabalho. Com uma linha de raciocínio. Não consigo. Tenho inveja de quem consegue se realizar. A mim, sobra a obsessão pela tormenta: seja acordando a mim mesmo para não dormir, seja trabalhando em muitas tantas coisas na qual não consigo produzir interesse. Sou um produto dos algoritmos, descendo milhões de vezes pelas narrativas sem me comprometer com nenhuma. Bugado, esse algoritmo.
Ritmo. aumentando. Será que agora? Será que virá com um gran finale? um gemido bestificado, um berro, um choro, o que quer que fosse?
Não foi. Gozou. Silenciosamente. De forma singela. Me abraçou e beijou meu rosto de forma doce, como se nada tivesse acontecido.
Fui consumido de revolta. Por que ele consegue e eu não?
***
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solnaminhaboca · 4 years ago
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Debate
Eu queria poder ter sido artista, fico pensando sentado no chão do meu tapete boho, odiando essa perspectiva. Decorei meu apartamento com todas as cores que se harmonizam, e eu fico querendo receber pessoas só pra que elas possam vagar pela minha galeria. É quase como um interesse bizonho num rato de laboratório ao percorrer o labirinto. O meu interesse não é na visita, e sim nos espectadores.
Ao mesmo tempo, eu sou uma pessoa sozinha. Sempre soube lá no fundo de mim que estar sozinho sempre seria uma coisa que funcionaria. Colocando de lado todas as inseguranças e medos racionais de ser esquecido por tudo e todos e me tornar um monte de cinza esquecido, eu consigo me manter constantemente bem contemplando sozinho as minhas paredes. Eu tenho medo. Medo de gostar demais disso aqui, de viciar na facilidade que é o esforço constante de não lidar com o outro. Não me leve a mal, eu amo as outras pessoas, acho elas extremamente interessantes, tenho plena consciência da minha necessidade delas. Mas é tudo tão exaustivo! 
Eu não sei se pras outras pessoas é assim, provavelmente não. Mas eu acho muito difícil me sentir confortável perto de alguém, realmente confortável. E, além disso, eu cheguei à conclusão de que quando eu me sinto realmente confortável, as coisas vão desandar num determinado momento. Eu sinto, junto com a tranquilidade, a tempestade se formando. Porque quando eu me sinto assim, eu acabo magoando as pessoas, ficando excessivamente ácido, banalizo a importância das pessoas mais importantes. Eu sempre fiz isso, e isso sempre me afastou das pessoas que mais gostavam de mim. Ironicamente, eu só consegui manter perto de mim as pessas de quem eu mantenho uma certa distância. Fez sentido isso? Provavelmente não.
Sinto saudades imensas de cada uma das pessoas da minha família, que eu mal vejo por causa do trabalho. Às vezes me sinto triste por não estar próximo deles, e triste por pensar que são as pessoas mais intimas que eu já tive na vida. Eles contém, dentro deles, as minhas memórias mais preciosas. Mas ao mesmo tempo, quando os encontro, lhes sinto tão distantes, me sinto tão distante, sinto que somos tão bizarramente diferentes, sinto remorso por ter um padrão de vida melhor do que o deles, sinto inveja da simplicidade com que levam o dia a dia. E após alguns dias, eu já sinto doer, me sinto sufocado, engolido e pisado pelas coisas que ficam entre nós no campo do não dito, e que ficaram há tempos, envelhecendo. Eu odeio me sentir tão distante deles. Eu odeio quando estou perto deles - porque me sinto distante. Eu vivo num paradoxo que só pode ser quebrado com a morte.
A minha, ou a de um deles. Quando meu pai morreu, eu fiquei aliviado porque ele estava sofrendo muito. Depois de um tempo vieram as saudades, e eu fiquei sentindo as saudades que apertam e que parecem que seu peito virou uma esponja se contraindo em todas as direções me torno de seu eixo. E a impossibilidade de talvez jamais vê-lo ou ouvi-lo me gerou uma sensação desesperada de vê-lo e ouvi-lo. Como um peixinho de debatendo pra todos os lados querendo nadar, mas fora d’água. Depois disso, fiquei com uma pergunta pairando no ar - se eu não posso vê-lo, nunca, sob nenhhuma condição, aumenta exponencialmente a vontade de vẽ-lo. Na verdade, percebi em mim a relação inversa entre querer e poder, imperando em mim de forma tão imponente.
Sigo trafegando nessa área cinzenta sem limites, que sou eu os outros. Estarei eu me acostumando mal a viver sozinho? Pode a vida ser tão simples e leve como chegar em casa e observar a cor do meu tapete colorido em silêncio e isso ser suficiente? Pagarei os meus pecados por não carregar a sina de estar com as outras pessoas? É tudo muito difícil de dizer, mas a gente acaba se adequando ao que vai acontecendo, então eu vou vivendo, e muito bem, obrigado.
Percebi depois de um tempo que a gente só funciona pelos constrastes. A gente, não, eu, mesmo. Eu sinto falta de todas as coisas que não vivo. E, a partir do momento que passo a vive-las, perco o interesse e passo a me interessar por aquela outra coisa que não estou vivendo. Eu sou assim com pessoas, com meu ramo profissional, com filmes, musicas, series, livros. O meu interesse é só naquilo que é inalcançável, inconquistável. Será isso uma das artimanhas mais bem engendradas de autosabotagem que pude construir?… provavelmente.
Sigo me debatendo no ar do meu tapete boho, sonhando com meus visitantes. Me vendo, mas por detrás do vidro.
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solnaminhaboca · 4 years ago
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Em algum lugar de 2020
Eu não quero ser intubada, eu vou morrer.
Passei alguns meses em preto e branco e ultimamente eu tenho sentido que existe um monstrinho se debatendo em mim, muito esquecido soterrado diante de plantões, pilhas de estudo e manhãs na academia: o da empatia.
Eu odeio me sentir assim.
Eu acho que é por isso que eu afundo esse bicho debaixo de tanta coisa. De uma faculdade, de um grupo de amigos, de um saco de estimulantes. Ter empatia pra mim é muito doloroso, eu fico me sentindo um grande desertor dos sofrimentos alheios. Fico me sentindo egoísta, um sujo político que desviou dinheiro para si enquanto os outros agonizavam.
fico me sentindo culpado pelo sofrimento das outras pessoas. 
Mesmo sem talvez ter culpa - embora talvez tivesse tido, quando eu dissera pra ela que teria que intuba-la. Mas eu não sei, pode ser que a gente pudesse esperar mais uns dois ou três plantões, só pra na calada da noite irem chamar o médico - que já não seria mais eu - para resolver aquela pendência há dias sendo empurrada.
Eu odeio sentir empatia.
Mas eu tinha que dizer. Era meu dever, como um capanga da morte, um lacaio fazendo seu trabalho, com a minha foice em formato de laringoscópio. Você não vai morrer, confia na gente. Vai dar tudo certo.
Embora eu soubesse que não ia.
Pra mim, o depois foi muito difícil. Fiquei nas próximas vinte e quatro horas indo no leito dela, alternando insistentemente as medicações só pra dizer pra mim mesmo que estava fazendo algo. Sempre que eu ia lá, fazia carinho no ombro dela. Eu não sei dizer porque depois de tanta gente, tantos tubos, tantos atestados de óbito, aquela mulher me tocou. 
Aleatório, não sei, ou talvez porque na noite anterior eu tinha encontrado a minha família. Ceia de natal. Quando eu encontro a minha família, no dia seguinte eu fico me sentindo muito frágil. Como se qualquer pessoa pudesse me fazer chorar com um simples sorriso, como se eu fosse vulnerável a qualquer infortúnio, como se de repente fosse fácil de ver que, em qualquer pessoa que anda na rua, há em algum lugar - em alguma casinha no interior da Ilha do Governador  - seus entes queridos, presos num loop temporal da memória da infância e nos anseios do futuro. Eu odeio de repente perceber que todo mundo é gente, é muito doloroso. 
Eu não quis intuba-la. Não queria. Quis dar meia volta e poupar ela disso tudo, deixar ela lá, respirando com dificuldade, mas acordada, lúcida, e viva. Pelo menos por algumas horinhas. Mas não dava, o circo estava armado, a dona Morte no recinto com sua ceifa iluminada na ponta, pronta pra entrar garganta abaixo da dona Terezinha. Implacável, o ciclo da vida, se fechando, se abrindo, tudo ao mesmo tempo agora, e quem era eu pra parar tudo isso? Quem sou eu pra sozinho lutar contra um vírus mortal que está dizimando toda a humanidade? Eu sou muito pequeno, eu só tenho um e sessenta.
À medida que ela se dissolvia em nada, eu rezei internamente. Engoli o choro, tinha toda uma equipe à minha volta esperando que eu não sentisse nada, que eu fosse um líder. Não era o que eu era. Rezei para que houvesse um milagre de natal e ela sobrevivesse, por que? Não sei por quê, essas coisas malucas inexplicáveis...
Coisas que talvez entenda quando for a minha hora de ganhar o tubo. ou talvez não.
Feliz natal.
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solnaminhaboca · 5 years ago
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Pequis e Armani
Ultimamente tenho percebido que me marcam mais as perdas. 
E foi por isso que quando eu acordei naquele dia ensolarado sem o meu olfato, eu sabia que aquele seria o meu viés dessa história. O meu corpo não respondeu de outras formas à visita do novo hóspede. E eu fiquei chocado refletindo, uma coisa tão primal, que esteve lá no seu início tão intocada e vívida que eu nem percebi que podia viver sem ela. Sequer imaginava que a vida era possível com aquela falta.
Os cheiros, pra mim, vêm acompanhados de cores; e, quase sempre, de histórias.
Lembro o cheiro do perfume que meu primeiro amor usava, era uma fragrância breguíssima que depois percebi ser utilizada por caras mais idosos. O perfume Kouros, que pra mim naquela época lembrava o meu lindo professor de matemática, e hoje me lembra uma cor branco aveludada e grisalha, algo no campo semântico dos gerônticos.
E lembro também o cheiro do chão da nossa varanda em Imperatriz, e o cheiro da minha babá lavando os azulejos de pedra com mangueira e sabão enquanto a gente deslizava por cima como patinadores. E lembro depois do cheiro da terra molhada quando os torós nos surpreendiam tarde afora, de repente o sol a pino se transformava em gotas afiadas como agulhas, que batiam na gente e faziam doer. Nunca vi isso no Rio. O Maranhão tinha labilidade emocional.
O cheiro de pequi do vizinho me fizera odiar as tardes de domingo. Eu gostava de ficar jogando bola, e o quarto do computador dos meus pais - eles já tinham um desses nos anos 90, olhe que coisa - e ficava olhando pela janela orgulhosíssimo porque eu gostava de ficar brincando com a bola. Eu nunca gostei muito de futebol, na verdade eu me imaginava jogando vôlei e handebol, mas o meu pai sempre agiu como se o maior legado que ele tivesse deixado na vida fosse um filho botafoguense. Eu o deixava sentir assim, ele e seu  cheiro de desodorante Rastro. Mas o cheiro de pequi me transporta para aquelas tardes, e eu fico pensando hoje, o que é que faz alguém cozinhar pequi, deixar na panela, ou coisa que o valha? Porque o cheiro era muito forte, e contínuo. A labilidade maranhense, mais uma vez.
Um cheiro cor de rosa às vezes me vem a mente e eu acredito ser por causa da minha tia Sara. Ela tecia anões e bruxas de seda com algodão e porcelana, e eu ficava obcecado vivendo naquele mundo tão profundamente medieval, e minha mãe não entendia por que é que eu gostava tanto de ir à casa dela. Aqueles bonecos - sequer poderia chamar de brinquedos, pois acredito que eram simplesmente enfeites na casa de uma mulher idosa - me teletransportavam para um mundo tão feudal, em meio à peste negra e aos camponeses assombrados por bruxarias - elas nunca entenderiam. O fato é que a tia Sara usava um perfume cor de rosa.
O rio de janeiro tinha um cheiro. Uma coisa característica, preta, com bolinhas coloridas, mas um cheiro de um perfume Santana, vinho, vinho com grisalho, e pronto, já entendi tudo. O meu tio Marcos, filho da tia Sara, usava um perfume Azarro, é claro. Eu tinha ficado assombrado com ele, porque ele era o cúmulo da masculinidade e oposto de meu pai tão escritorial e com a energia tão feminina. Ele usava pochete e sandália, e tinha sido a primeira pessoa que eu tinha conhecido no Rio na viagem de carro, voltando do Galeão pra Barra, era tão masculino, que tinha me assustado. E com o Rio também. O rio de janeiro tem cheiro de Azarro. 
Mesclado ao cheiro do banco de couro de um Santana vinho, masculino, violento, desleixado, descuidado, tão sexy. Exatamente como meu tio Marcos.
Lembro quando, nos meus 14 anos, a minha mãe tinha comprado uma loção pós barba da Natura pra que eu pudesse raspar o meu bigodinho. Os cuidados da minha mãe sempre tinham sido obviamente tão manhescos, e, embora ela não fosse vaidosa consigo própria, nos tinha presenteado com aquela loção. Naquela época eu raspava a “barba” com gilete e tudo, até ficar lisinha, coisa que se eu fizer hoje em dia eu posso até ser demitido. Chegava a me cortar de tão rente que ficava, e eu me sentia limpo. Coisa de virginiano. De qualquer maneira, aquele cheiro Natura era o que eu usava no pescoço pra encontrar Yuri e Ricardo no barra shopping, na entrada da Hot Zone, então toda vez que esse cheiro passa por mim eu me sinto sentado escutando Fall Out Boy, num ônibus que cruza a zona sul inteira pra chegar na zona oeste, e meu coração se comprime de saudades dessa época. Eu e o Yuri tínhamos acabado de fazer 18 anos e já fazia dois anos que tínhamos identidades falsas. A minha identidade falsa tinha cheiro de loção Natura.
Depois disso, minha mãe arranjou um Kaiak azul e ele foi por muito tempo o perfume do meu irmão. Meus anos de faculdade têm cheiro de um perfume de um garoto por quem fui apaixonado que usava um Kaiak também. Então as duas coisas se confundem, e nas proximidades de um Kaiak, o meu cérebro se divide entre dois tempos.
Lembro do meu primeiro perfume caro. Foi presente da minha madrinha, acho que de aniversário. Quando ele estava prestes acabar, ganhei um novo: um cara de uns 45 anos que morava na França, era um Armani de mil reais. Ele tinha me dado depois de me levar num motel - eu devia ter uns 18 anos. Ninguém nunca entendeu como aquele vidrinho tinha durado tanto tempo. Foi a coisa mais financeiramente valiosa que carreguei na infância, juntamente com um boneco de plástico do anão de Harry Potter, que tinha sido oitenta reais.
E hoje, uso um perfume pra trabalhar que eu ganhei de um cara que tinha voltado de Miami, que conheci indo numa viagem de Uber ao Jardim Guanabara - lugar, onde surpreendentemente acabei morando anos depois. E agora parei pra pensar quão antigo é aquele perfume milagroso, prateado. Minha irmã adora. Pior que eu nem gosto tanto dele.
E eu não consigo esquecer o cheiro da boca dos caras que eu gostei, tampouco. O Gabriel tinha um cheiro marcante de palmito na boca, e isso é uma coisa muito estranha, toda vez que eu como palmito, eu lembro dele. Curiosamente o Ricardo tinha um gosto parecido. E acho que alguns outros também. Estarei eu procurando um palmito que me retribua? Sentirei eu gostos das bocas que virão no futuro? Parando pra pensar, de fato, sem os gostos e cheiros, não tem graça nenhuma beijar uma pessoa.
Acordar sem os cheiros, pra mim, foi como acordar sem memórias. Foi como se toda a minha vida tivesse ficado de repente cinza, como um cachorro enxergando o mundo, como se eu tivesse tirado um dos filtros do photoshop das minhas camadas. Foi, não - tem sido - pois ainda me faltam. O covid não me deu os meus cheiros de volta, e deitado na cama, nas noites aterrorizantes refletindo sobre a falta de ar, o que me dói mesmo, mesmo, é que ele tirou os meus cheiros. 
E se jamais voltarem? Estarei eu condenado a perder todos os meus cheiros? O que fazer sem momentos de teletransporte no cotidiano pra momentos e sentimentos do passado quando uma brisa traz alguns deles? Eu não consigo imaginar o que é a vida sem eles. Eu imploro, devolva-os. Eu troco um pedacinho do meu pulmão.. 
Um pedacinho ou dois. Eu preciso, eu preciso sentir o cheiro do pequi mais uma vez. Fechar os olhos e olhar meu pai sorrindo atrás de mim pela janela da lateral. Eu preciso sentir o gosto de palmito dos meus amores passados. Eu preciso me sentir ainda em todos os lugares que eu perdi. Porque a vida vai me tirando as coisas - é, eu acho que muito dela vai ser sobre isso. As coisas que a gente vai ficando sem. Mas nem sempre: os cheiros são uma parte delas que fica na gente, que transporta a gente para aquele momento passado, que faz com que o nosso corpo viva a ilusão tão palpável de que aquilo que já se foi está se repetindo, nem que seja por um ínfimo de um segundo. Então me devolva!
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solnaminhaboca · 5 years ago
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Antiguidades
Uma coisa estranha que seremos obrigados a conviver na pós modernidade é com o nosso passado.
Acidentalmente caí no Facebook do primeiro cara com quem fiz sexo. Isso já faz literalmente dez anos, e na época ele já tinha uns 35. Eu lembro que ele era dono de uma loja de móveis, e a única referência que eu tinha para isso era um antigo namorado de minha irmã. O velho fiel parceiro dela era sócio de uma loja de móveis de madeira demolida na praia do Botafogo, e ele era extremamente tímido, em parte por ser um nordestino perdido no Rio de Janeiro. Eu sei bem como é isso. 
Eu achava que ele era um pobre coitado, mais pela maneira como ele abaixava a cabeça para falar com os outros do que com o status social dele, que não era nada ruim, embora eu ainda não tivesse capacidade de compreender o que significava. Ele era educado, de poucas palavras, amistoso, não debochava de ninguém (o que no Rio de Janeiro pode ser considerado algo muito esquisito), e, exceto no dia em que ele arrancara e rasgara a própria camisa após um bloco de carnaval numa briga com a minha irmã, sempre havia se mostrado uma pessoa universalmente pacata.
Até hoje me apego a uma mesa que ele nos vendeu, linda, de madeira clara e grossa que me fazia com que eu me sentisse numa cabana nas montanhas descansando após uma trilha em Teresópolis. Nunca deixei minha mãe se livrar do móvel, embora ela ainda frequentemente tente. Eu sei que nunca vou me desfazer do objeto, e essa é uma das poucas coisas que eu tenho de certeza do futuro. Já planejo meus novos apartamentos contendo a mesa e os procuro já calculando o espaço do qual ela precisará. 
Voltando à minha vida amorosa - a de minha irmã sempre havia entrecortado a de todos nós em minha casa - o meu dono de móveis trazia uma polaridade um tanto diferente. A sua loja não era no estilo Senhora do Destino, e sim mais uma boutique française charmosa/antiquário de relíquias do século XIX. Ele morava no Leblon, seu nome de família era composto por várias consoantes conurbadas e ninguém sabia que ele era homossexual porque ele se dava o respeito. Quando eu o havia conhecido, também era inocente, pueril, e não tinha o lido como um libertário de direita que refutava a obra de Karl Marx dizendo que ele era um grande filófoso e um péssimo político. Ele era um Gregório Duvivier noir, escondido por motéis da zona sul comedo garotinhos novinhos enquanto sentava na sua cadeira de duas mil libras fumando um charuto com seu pai e avôs donos de propriedades intelectuais de madeira. Um chato, mas ele foi gentil comigo, e quando você é adolescente isso basicamente é o que basta.
Mas ao cair acidentalmente no seu Facebook, fui premiado com uma campanha política anti-bolsonaro sendo feita nos anais da alta sociedade. A gente nunca mais tinha se encontrado ou transado depois daquele fatídico dia num motel na praia do Flamengo. Eu tinha saído com a impressão de que ele ia ter vergonha pra sempre de ter me marcado de uma forma tão intensa sem a menor intenção disso. Quando eu tinha dito pra ele que eu era virgem - e me arrependo amargamente disso, embora o tenha feito pelo medo de tombar mais tarde em algum percalço desconhecido da transa e ter que berrar pateticamente por ajuda - ele tinha ficado calado, tácito, recluso, rejeitando o arquétipo de galã cuidadoso que eu poderia querer exigir dele. Tinha feito o serviço completo, e até de forma talentosa (e republicana), mas depois de algum tempo eu fiquei com a sensação de que eu tinha estuprado ele. Eu tinha estuprado ele porque tinha atirado em cima dele um caldeirão de profundidade que é um jovem perdendo a sua virgindade, e ele só queria uma foda banal num domingo pra não ter que ficar em casa assistindo Faustão. A nossa assimetria de pedidos tinha sido uma violência pra ele. E é por causa disso que eu me arrependo de ter falado, não por ter passado o tal percalço que eu havia antevisto, porque não passei percalço algum, graças a Deus.
Agora ele se tornou um crítico do Bolsonaro. Tenho percebido que isso tem se tornado cada vez mais cool, o que acho ótimo. Na época das eleições ele tinha sido timidamente contra, talvez pela homossexualidade sutil que ele carregava. Agora o seu feed havia se tornado uma grande muralha de piadas políticas presunçosas, chamando o Queiroz de enabler e coisa do tipo. Que pesadelo estar tão fortemente conectado a uma pessoa tão irritante - que até mesmo concordando, sinto que estou de certa forma discordando. Que saco que eu me liguei a essa pessoa pro resto da minha vida, seja como for, seja onde for, sempre será ele a primeira pessoa. E eu só queria dizer a todos os adolescentes que me estiverem lendo que repensem e muito suas escolhas sexuais no início da sua vida. 
Porque agora, na era do Facebook, isso se tornou particularmente mais doloroso.
Fico imaginando se ele entra no meu perfil, e o que será que ele pensa. Imagino ele numa quarta feira às quatro, após digitalizar as fotos dos seus móveis uma vez que sua boutique está de quarentena, e anunciar um conjunto de canapés no grupo VENDA E TROCA - LEBLON, acidentalmente vendo o meu perfil entre um anúncio e outro. O que será que ele pensa, eu me pergunto com curiosidade. Talvez eu tenha sido o único do qual ele tenha tirado a virgindade, e isso lhe traga algum sentimento tão maluco quanto o meu. Talvez ele sequer se lembre disso, talvez ele sequer saiba quem é essa pessoa que está na página dele.
É, de fato é meio cruel essa coisa de acumular todas as pessoas que você já conheceu numa página da internet. Olhar como algumas melhoraram, como algumas pioraram. Eu acho que um dos maiores estímulos que eu tenho pra melhorar é não ser visto de forma patética pelas pessoas do meu passado.
Agora me deu vontade de procurar o ex namorado da minha irmã. Farei isso. Talvez ele esteja precisando vender alguns móveis nessa quarentena, e talvez agora eu possa comprar. Quem sabe talvez eu não encontre mais daquela madeira clara que eu gosto tanto. 
Talvez tenha algum lado bom nisso tudo.
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solnaminhaboca · 5 years ago
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Umbral
Sirvo pra mim mesmo a taça já me arrependendo levemente pelas várias idas ao banheiro durante o sono. De fato não é fácil ter um rim tão funcionante. Na noite anterior, graças ao tinto, eu tinha ido umas quatro vezes. 
Talvez eu beba todos os dias porque espere que eu vá ver algum espírito na calada da madrugada. 
Sei lá, ultimamente eu tenho procurado febrilmente por qualquer pista que possa me levar a firmar o pé em alguma coisa realmente sobrenatural pra variar. Ou eu não tenho um poder de auto-sugestão tão forte, ou eu simplesmente não tenho mediunidade. Fato é que eu sempre vou dormir com a sensação de que não tinha nada ali para ser visto, a não ser o tempo de sono que eu perdi e o sonho cortado pela metade precocemente pela minha bexiga.
Mas nessa noite é diferente, porque hoje eu estou celebrando. Eu comigo mesmo, brindo olhando pro reflexo da janela e entorno a taça de vinho com todo o gosto. É o que tenho pra hoje, uma celebração calada, uma homenagem. 
Eu dedico esse vinho a todas as pessoas que eu vi morrer essa semana.
Dedico à Jéssica, a filha do Manoel que, aos prantos, pediu pra eu tirar uma foto dele para ela poder vê-lo antes de morrer.
Dedico ao marido do Luiz. E ao Luiz, também. Quero dizer pra ele que sua falta foi sentida. Pelo hospital inteiro, pelo menos escutada. 
Dedico também ao Paulo, à Cátia, Andreza, Rosa, Rosângela, Manoel, e a mais alguns outros que não sei se morreram. Celebro esse momento em que estou vivo, sabe-se lá por quê, e que vocês tiveram que morrer, sabe-se lá por quê também. Eu espero que exista alguma razão bem complexa e bem estruturada que explique muito bem tudo isso. Porque vocês não mereciam essa morte ridícula, em dias, sem ver ninguém a não ser a minha voz dizendo que vai dar tudo certo quando eu estava flagrantemente mentindo. Se vocês estiverem vagando pelo umbral ou coisa que o valha, expiando seus pecados ou vagando pelo barquinho do Caronte, me desculpem pela mentira. E me desculpem também por ser inexperiente e estar ali, talvez vocês estejam no meu umbral para me punir daqui a alguns anos. Ou semanas.
Ou vocês todos deixaram de existir mesmo, e é pra isso mesmo que eu bebo. Porque se for isso ainda é mais injusto. Então se essa for a realidade eu preciso mesmo esquecer ela, porque é de um ridículo tão absurdo que eu nem sei.
Eu não sei por que isso está acontecendo. E o terror de perder meus familiares é algo tão palpável, tão azedo e tão amarelado, que eu mergulho nesse vinho branco tentando esmaecer coisas que estão tão claras. Que a morte esteja tão palpável e tão aqui ultimamente. E, à noite, eu urino. Acordo de madrugada balbuciando nomes, parâmetros ventilatórios e caio no sono murmurando condutas. Mas os meus sonhos não trazem visitas cósmicas - os meus sonhos são sem pé nem cabeça, coisa que nem um terapia Junguiano consegue atribuir sentido. Dentro desse capítulo da história, eu só consigo enxugar gelo. Enxugar gelo com xixi.
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solnaminhaboca · 5 years ago
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Vento
Eis que finalmente adormeci no quartinho 2x2 conurbado com banheiro destinado aos médicos. O celular continuou apitando e a tranquilidade me invadiu como sempre quando durmo espontaneamente sem clarões. Mas foi rápido, escutei alguém sussurrando no meu ouvido e acordei de sopetão. Era a voz de uma mulher negra e obesa, a técnica de enfermagem que tinha ficado tomando conta do CTI pra eu poder dormir, dizendo no meu ouvido: doutor, acorda, doutor.
Ultimamente tem sido assim. Demorei pra voltar pro meu corpo, e tenho me sentido como se ele estivesse a quilômetros de distância. O som do celular voltou a ficar nítido e a vida ganhou o contorno e a cultura que sempre teve.
Fui envolvido pelo sentimento surdo de medo que nos últimos tempos me acotovela por entre os matizes do dia-a-dia. A morte é algo que me ronda, que me entorna. É como se fosse uma amiga fiel, veio pra substituir todos os meus passados melhores amigos que foram embora para outros lugares. A morte segura minha mão, me dá um beijo. Cada paciente que morre em minhas mãos, sinto o sussurrar dela nas noites solitárias em meu quarto. O vento frio que congela meus pés, a voz silenciosa que me olha no canto do cômodo quando fecho os meus olhos e me percebo adormecer. Levou meu pai. E agora quer levar minha mãe. Minhas irmãs. Meu irmão. Meu sobrinho lindo. Eu não posso mais vê-los, eles estão distantes. Sequer sei se os verei de novo. Eu nunca em toda minha vida imaginei sentimento tão horrivelmente ruim e amedrontador. Desconfio que não deva existir nada pior. Mas provavelmente existe.
Ontem chorei baixinho enquanto lavava a louça, temendo. Temendo que fosse morrer dessa maneira ridícula, aleatória, brigado com um monte de gente, com tesão encrustado em muitas outras, várias palavras pra dizer pra muitas. Sem nunca ter amado ninguém. Eu tenho vontade de escrever um livro só com cartas pras pessoas lerem se algum dia próximo eu estiver intubado. E pra elas lerem antes que sejam intubadas também.
Mas engoli a seco, lembrei da minha mãe falando no meu ouvido "engole o choro", e chorei mais um pouco porque não sei quando a verei novamente, sequer se a verei. Que coisa maluca. Lembrei do meu pai que não me dava trégua nenhuma. Ele estava sempre fazendo com que eu me provasse mais inteligente, com respostas mais complexas, com argumentos mais bem elaborados, sabedor de mais línguas e de mais medicina. Eu odiava isso. Mas enquanto enxugava os pratos e molhava eles com gotinhas, eu percebi que isso me tornou mais forte. Que saudade daquele chato.
Pandemia, sussurrei enquanto trancei meus dedos pelos fios desencapados do colchão. Coloquei minha máscara e me dirigi aos pacientes. A técnica de enfermagem se assustou comigo. "Não te chamei, não, doutor. Está tudo bem por enquanto".
E essas palavras pairaram no ar, como fumaça, e foram desaparecendo lentamente, varridas pelo vento.
Por enquanto
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solnaminhaboca · 6 years ago
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Eu aceito
Estilo de apego inseguro evitativo. Eis o diagnóstico. Meu olhar caiu pela ficha, perdido. E, naquela noite, cairam os insights. De repente me enxerguei pequenino, sendo ignorado pela minha mãe, incapaz de dar afeto pra mim. Nunca soube porque pelos meus olhos tinha a plena certeza de que ela me odiava. Talvez as crianças saibam mais do que pensam, vejam as verdades escondidas por trás dos olhos desviados, dos sorrisos amarelos. Ou talvez elas inventem, mesmo - fantasiem, criem uma realidade que lhe cabe ao temperamento dramático, escalafobético, sem que haja uma realidade por detrás daquilo. Seja como for, criam-se traumas.
Revi toda a minha vida num instante. Não durmo nessa noite, na seguinte, e na seguinte. O fim-de-semana chega e eu me drogo até a véspera da overdose, e choro tanto como nunca chorei na vida. De cinco em cinco minutos eu caio no choro, e eu nem sei exatamente o porquê - talvez seja todas as coisas que eu evitei, voltando e me atingindo em cheio na face. Mas lá embaixo, sorrateira e risonha, maléfica, vem a nossa história. Aí que entra você. 
Você, que me entendeu mais do que ninguém. Que sempre me deu dicas do que eu era, parecendo o mestre dos magos ou o Dumbledore me ensinando coisas que eu ainda não sabia, lançando frases enigmáticas pra eu pescar os peixes. "Por que você precisa ser sempre tão volátil? Não foge - fica, você precisa ficar. Você tem que ficar". Agora mesmo, lembrando dessas palavras, eu choro. Você achou que eu tinha entendido? Pois não entendi. Fiquei fazendo cara de bobo, achei que você tava falando da gente, achei que você estava me chamando pra um date. Não estava.
Desculpa ter demorado tanto pra entender. Desculpa ter feito tudo errado. E agora eu te afastei, e sequer posso te pedir desculpas. Sequer posso te dizer obrigado por insistir tanto em mim, sequer posso comemorar com você a barreira que foi rompida no dia em que eu percebi que te amava.
Que merda. Porque agora você me odeia. E o que mais dói não é nem isso, é só não poder te falar tudo isso que falei aqui, mesmo. Então eu falo aqui, e torço pra que alguma força magnética do universo envie pra você o sentimento que estou sentindo de gratidão, envie pra você essas palavras e esse pedido de perdão que, truncado, nunca vai chegar em você. O fim está próximo. Não o meu, desse ciclo. Vou embora; te ameacei com isso, mas você não ligou. Na verdade, quem foi embora foi você. Ontem o meu professor de yoga falou que as coisas doem porque a gente não aceita elas. Comecei a chorar quando ele disse isso, espero que ele não tenha visto. Depois, cheguei a uma conclusão: hoje à noite eu vou fechar os olhos e tentar aceitar. Aceitar que você foi embora, que você nunca mais vai voltar, nunca mais vai confiar em mim, nunca mais vai ser meu amigo, não tem o menor interesse na minha vida, nunca mais vai crescer comigo, nem me contar as coisas da sua vida, nem nunca mais vai esperar o melhor de mim. Irônico, porque eu passei a minha vida toda esperando o pior de todo mundo. E, agora que você me ensinou a fazer o contrário, quem espera o pior de mim é você. Hoje, vou fingir que aceito. Amanhã, vou fingir de novo. Talvez daqui a duas semanas eu ainda esteja fingindo. Talvez daqui uns anos, também. Mas algum dia eu vou aceitar. Da mesma maneira que eu aceitei que Gilmore Girls tinha acabado, e que meu amigo Ricardo tenha virado testemunha de jeová e ficado maluco, e da mesma maneira que eu aceitei que eu era baixinho e não podia fazer nada a respeito. Vou aceitar - algum dia.  E, quem sabe, quando eu finalmente aceitar, de verdade, plenamente, genuinamente, pare de doer. Não sei quando. Mas, espero, pacientemente. ***
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solnaminhaboca · 6 years ago
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Fibrilando
"Ah, deixa eu te falar uma coisa" - ele diz, apontando pra que eu sentasse no braço do sofá onde ele estava. "Daqui a duas semanas eu vou me mudar pra São Paulo" - solta, num tom casual de quem tivesse se lembrado de um pequeníssimo detalhe que tivesse  por um acaso surgido na sua memória. Não esboço reação imediata, meus olhos afundando pra se manter parados. Preciso ir ao banheiro, um buraco se abriu dentro da minha barriga e eu não consigo mais interagir porque dentro de mim uma multidão debate furiosamente, processando essa informação.  "Que corajoso," consigo sorrir, "mas relaxa, tenho certeza de que vai dar tudo certo."
Encaro a mim mesmo no espelho enquanto lavo as mãos, tentando demonstrar impassibilidade no rosto.  A vida tem me atropelado, já tem algum tempo que eu tenho sentido que ela foi e eu fiquei paralisado, assistindo que nem um espectador acomodado. Não sinto ímpeto de ir pra frente, nem de ficar parado. Outro dia me perguntaram se eu estava animado para o futuro, e eu não sei se essa é a palavra que eu usaria. "estou fibrilando", respondi. As pessoas vão embora. Lição número 01 que me foi ensinada, dentro de um táxi num sol escaldante enquanto o meu pai chorava e se despedia do meu rosto cheio de catapora. Sentamos nas poltronas do grande aeroporto - que depois vim a descobrir que era pequeno - e encarei pelo reflexo da janelinha do avião o meu eu de 09 anos entediado, esperando dar o horário da nossa partida. Minha mãe já tinha tombado na sua feição depressiva que esboçou durante os próximos vinte anos. Num rompante pra buscar sua própria felicidade, rompera brusca e violentamente com a realidade ao ponto de nunca conseguir aproveitar a felicidade mesmo quando a havia conseguido. Aquele era o dia em que ela ia iniciar a tristeza, e dali não arredou até hoje. As pessoas vão embora.
Mais tarde, olhando os prédios enormes da Barra da Tijuca depois da violência que foi ver um mar de prédios e um mar propriamente dito pela primeira vez, meu pai me ligara. Pedira pra que eu voltasse, e eu mirradamente dissera que iria voltar, até porque, fazer o quê? Deixá-lo lá? Uma parte integrante da nossa família, guilhotinada a quilômetros, foi como arrancar uma parte do meu cólon e deixar no pátio tomando sol. Eu nunca entendi porque partimos - se era pra minha mãe ficar feliz, então por que ela nunca ficou? Se era para que ela pudesse ir à praia, conhecer homens novos e se reaproximar da sua família, por que negou todos os convites para todas essas coisas? Essa resposta... ah, essa resposta. Eu não sei como é que a gente conhece pessoas. Pra quê. A gente se acostuma às risadas, faz pipoca juntos, se embrenha em piadas cáusticas, se joga verdades boas na cara, faz pedidos bem elaborados com as nossas sessões de terapia. E de repente... vão embora. Decidem ir pra São Paulo, na maior cara dura, como quem não quer nada. "ah, mas eu vou voltar todo fim-de-semana", "eu vou ligar sempre", "sempre temos o skype". Até hoje eu espero meu pai vir ao Rio, e ele nunca veio. As pessoas não voltam. Dentro da gente fica o vazio preenchido por memórias, pelo domingo nublado deitado vendo séries ruins na Netflix pelas quais você não se interessa e não tem com quem conversar sobre.
Você tem um melhor amigo, e ele te dá tudo o que tem. Se afeiçoa a sua família, conversa sobre viadagem na cozinha, usa droga com você e te diz quando você está mais gordinho. Até o dia em que vira Testemunha de Jeová, abandona todas as coisas mundanas, inclusive você. Você tem outro melhor amigo. Vai à praia, escuta Florence and The Machine, compartilha as derrotas e te ensina a engolir o choro conversando na cozinha sobre o grande mistério que é a humanidade enquanto assiste Queer as Folk e brinca no Orkut com você. Até o dia em que ele percebe que é muito gato pra andar com você, ou decide que você é tóxico, ou os dois. E vai embora, sem dizer nada, te encara de longe e dá um aceno simpático, como quem não quer nada. Não tem mais interesse por você, os seus músculos e seu nariz plastificado gritam. Você se apaixona pelo seu melhor amigo que é apaixonado por você. Dentro de um novelo de compreensão e sensação de finalmente ter encontrado um universo coletivo pra viver junto, ele te entende. Lê seus textos e comenta contigo, faz carinho no seu cabelo. Confortável... É tanto entendimento, mas tanto entendimento, que vai virando entediamento. Perde o interesse, do dia pra noite, se torna um completo estranho sádico e inacessível. Se apaixona por uma porrada de outros, e pega todos na sua frente pra jogar na sua cara, só pra te mostrar que o amor, na verdade, é jogar na cara. Você se instala, se encontra, se abre, sorri, afeiçoa, abre o coração. Cria um universo confortável pra vocês. Mas as pessoas vão embora, seja pra São Paulo, seja pra um universo paralelo a quilômetros vislumbrado em seus olhos distantes quando vocês cruzam no corredor ou em alguma festa. Vão embora. Seja pra peregrinar violentamente por Jesus vestindo roupas sociais, ou pro Maranhão se entupir de cigarros, te ligando todo Domingo pra dizer que tentou literalmente se matar de tantas saudades que tem de você. Mas sem vir te ver, nunca.
É. Vão embora. They just leave. Deal with it.  Fibrilo no banheiro. Dou descarga. Não cheguei a fazer xixi. Saio, ileso. Incólume. Respiro fundo, volto pra sala e pro braço do sofá onde ele se encontra. "Por favor, não vai", eu teria dito. Mas não digo - amor é deixar ser livre, essas merdas. "Boa sorte lá, meu amigo". 
Amor é jogar na cara.
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solnaminhaboca · 6 years ago
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savasana
Existe um mundo dentro de mim Acessível depois do meio termo perfeito entre o esforço e o relaxamento. É quando minha mente se afina tão fina quanto um alfinete se concentra nela mesma, se equilibra em cima de uma estalactite
É um horizonte, um horizonte laranja tochas bruxuleiam, e infinitos sóis se põem. Colorem o céu de roxo, branco, um amarelado cor de fogo, que inunda minhas vistas. Observo-os por vários ângulos e a luz me cega a vista cansada, fechada;
Eis que surge uma emoção, bruxuleante Vem se insinuando, hesitando Como uma onda indecisa que brinca com o ir e o vir É emoção, pura, límpida; uma vontade de chorar De sentir o amor puro, tomando meus átomos, minhas gotas que caem e pingam, até a ponta dos dedos E eu me consumo
Como uma fênix, sou tomado por ela E quanto mais me concentro, mais sinto E, de uma onda, naufrago - Imerso no sentimento, eu pesco Pesco a consciência: De que o mundo, esse mundo caótico Na verdade é arquitetado, uma planta harmônica Crescendo pra todos os lados, se espairando Em direção ao sol
E o seu desenhista, seu feitor Sussura em meus ouvidos: em mim, é mim, E eu me consumo com Ele, com Ela, com Eles E vou me adentrando no túnel da união Nós juntos, escorregamos
E assim, turbilhonamos,  em mil direções, Uníssonos, em savasana O universo se curva num aham brahmasmi
Obrigado! Obrigado!
... TIN!  o tin tin tin soa, é o sino do final
De repente me urbanizo caótico e a ansiedade me consome novamente; Me tornei de novo muitos, esquizofrênico Abro meus olhos, injetados porque sempre ficam E eu volto. Meu celular me aterrissa na minha pasta dos lembretes
Mas ficou a pulga atrás da orelha, Mas consigo sentir resquísicos dando abraços de saudade, Mas sobrei com esse sentimento tenro, la embaixo Como uma onda, bruxuleante, mas mais distante
Se dentro de mim Conheço Tamanha imensidão, tamanha beleza, tamanho amor Nem que seja por aqueles pequenos minutinhos Que dou a mim mesmo O que mais de bom pode haver? Meu coração pulsa, de expectativa
O que mais?
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solnaminhaboca · 6 years ago
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O único lugar onde tenho me sentido seguro é na academia. Cada um na sua, sem expectativas, sem a necessidade de ter que me provar melhor. Não precisa nem ser, se você não quiser. Ser é cansativo demais. Basta estar ali, suando, revigorado, quebrando minha própria meta e a de mais ninguém, sem obrigação de nada, e num futuro que só pode terminar bem, só promessas de frutos bons. Tem coisa melhor?
Digo isso porque fora dúvidas e incertezas liquefazem o chão que eu piso. Não sei onde quero morar, não sei o que quero fazer, não sei se sou capaz de fazer o que me proporei a fazer. Os dias se arrastam de forma viscosa e a ansiedade para que cheguem logo se mistura com a ansiedade para que não cheguem. É isso aí, a contradição ambulante de ser humano é muito poética e produz textos de alta qualidade, mas na hora de escolher, é como ficar travado no netflix entre assistir um filme ruim e outro ainda pior. "Não sei se estou num momento mais terror com tubarões assassinos ou documentários sobre a Pérsia antiga. Ou será que quero assistir um drama adolescente sobre uma criança com uma doença terminal degenerativa?". Não dá - são opções demais, pra ser, pra viver, pra sentir. Tem horas que eu duvido até de quem eu sou.
Recentemente me peguei num sofisma, o de agradar a todo mundo. Diluído nesse desespero pra não ficar sozinho, acabei me tornando alguém que eu não era.
Ontem eu estava fazendo a barba e sem querer coloquei a máquina 0, então resultado: eu não tenho mais barba. Aquilo me deu medo, porque o que as pessoas iam achar disso? Há pouco tempo, eu sentaria na privada e colocaria meu rosto nas mãos, incomodado, agoniado com minhas políticas de auto-sabotagem e diria: e agora? 
Mas não ontem. Senti um desconforto interno que resolvi dar voz, e percebi que ele queria gritar. De repente percebi o quanto eu tenho tentado, o try hardismo me explodindo, me fiz pequenininho só pras pessoas terem pena e quererem sentar no meu quarto comigo. Guess what? Funcionou - parcialmente. Mas eu sinceramente não mereço isso, não mereço esse autochicoteio toda vez que alguém insinua que eu tenho defeitos. É isso aí, tenho mesmo. Guardo esse orgulho pras tardes de domingo, pra quando eu estiver sozinho vendo todo mundo junto pelas janelinhas do Instagram, eu me culpar ferozmente: tá vendo? tá vendo? tá vendo? Sim, estou vendo. Mas não precisa ser perfeito pra estar circundado de gente, prova disso é que tem um monte de gente ruim cercada de stories de aniversário. Eu não sei qual é a fórmula, acho que não tem uma. Desconfio que possa ser um combinado de coquetéis e ubers e carros e um tanquinho esculpido na academia - voltamos à ela.
Há tempos que não tinha verborragia. Fiquei um tempo com medo de me consultar porque tinha medo do que ia descobrir. Medo de verem as minhas autoconsultas e me julgarem, dizendo que eu sou uma merda de pessoa. Tinha um cara com quem eu tinha uma relação super intensa que lia isso aqui e eu tinha medo de ele ler ainda e ter pena de mim por continuar tão problemático.
Mas a verdade é que todo mundo é problemático, a diferença é que eu escrevo sobre isso. Mas ele já não lê, eu tenho certeza. Então voltamos à programação normal.
Aliás, normal não: agora eu vou à academia. Febrilmente, religiosamente, escancaradamente. Coloco minhas luvinhas e vou lá, esqueço meus problemas. Esqueço as metas, as expectativas, as tortuosidades do que é o ser. Na academia eu não sou nada - e isso é bom pra caralho.
***
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solnaminhaboca · 6 years ago
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Histiocitose
O Rio Tocantins me acordou fazendo barulho dentro dos meus ouvidos. Olhei da sacada e acordei numa ilha no espaço-tempo que se repetirá eternamente dentro de meus ouvidos.  Agosto. 2019. Deitado na poltrona de hospital, preparei-me para o plantão de doze horas ao lado do seu leito. Esse ano, eu nem sei por quê, Agosto passou rapidamente. As apostilas de hematologia não serviram de nada enquanto eu tentava decifrar seu código. Um câncer, raro, no sangue. “Eu estou com medo”, disse ele, com a voz que hesitava insinuando.  “medo de quê, pai?”  “não sei” Senti seu medo, ou pelo menos o que imaginei dele. Sempre fui uma pessoa naturalista, meus pais morrem, fazer o quê, todo mundo morre. Odeio e amo isso em mim. Dei de ombros. Voltei a ler o livro que estava lendo para ele, com a consciência de que ele já estava dormindo. Lá fora, o Rio Tocantins rugia devagar e implacavelmente.
***
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solnaminhaboca · 6 years ago
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Quarta de vermelhas
O meu sangue jorrou pela primeira vez em sua existência. Saiu em êxito pra todo o lado, manchou ele todo. Manchou sua faca, suas facas. Eu havia tentando desarma-lo, mas ele tinha outra. E foi naquele momento em que eu soube que se eu continuasse resistindo eu ia morrer. E com ele me espancando, me mandando ir embora, me batendo como se eu fosse algo menos do que eu mesmo - essa estima toda - eu fui embora. Escolhi a vida.
E hoje eu olho pra essa cicatriz em minha mão esquerda. Olho pros pontos. E olho pro que eu poderia jamais ter visto. Olho para o que eu poderia ter perdido.
O meu sobrinho dar os primeiros passos tortos com a sua rebeldia intransigente. O meu cachorro dar o seu primeiro passeio, ensandecidamente. Ele ser castrado, virar adulto, ficar maior do que a sala. O olhar da minha mãe e do meu pai na minha formatura de médico. Minha irmã ficando grávida e me dando o filho pra apadrinhar. Meu irmão se tornando o Jules Verne da Mem de sá. Minha irmãzinha se casando católica, de véu e grinalda no interior.
E eu soube, soube que tinha feito a escolha certa.
Percebo hoje que tinha tudo o que precisava. Ali a alguns metros, em minhas mãos, dentro de mim mesmo e ao redor de mim, me penetrando e me circundando.
E num ato de ignorância e desespero, eu fui atrás de mais. Fui atrás de algum vazio que eu tinha inventado pra mim só pra preencher as tardes vazias. Mas isso acabou. Acabou-se junto com o sangue que se esvaziou de dentro de mim naquela madrugada de quarta-feira de cinzas.
O carnaval me deu muitas coisas. Mas essa foi, de longe, a mais preciosa. A consciência do que tenho. E do que botei a perder.
Olho para essa cicatriz hoje se formando, que ficará para sempre. Um lembrete eterno. De nunca mais brincar assim com o destino, com as circunstâncias, da valiosidade. Do que eu tenho. Das minhas irmãs, dos meus pais, do meu sobrinho, do meu cachorro, da minha inteligência e da minha bondade. Obrigado, carnaval, por ter me dado isso. Essa consciência.
Se tomar uma facada pra acordar pra isso foi necessário? Eu não sei se tinha outras maneiras. Foi como foi. Não tem mais o que dizer. Nunca vou saber se acordaria de outra forma. Me sinto mais desperto, como se algo tivesse se chocado contra mim. Já sei o que foi. Foi a realidade.
 A realidade me atingiu me cortando. Literalmente. 
Agora é isso que tenho. Essa cicatriz. 
E essa gratidão.
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solnaminhaboca · 6 years ago
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Aquariano
Ei... você demorou tanto! Lembro daquele dia em que eu estava deitado na esteira em são paulo, na academia do play de um prédio e recebi a mensagem de celular de que você seria um menino. Antônio! E desde entao cada segundo tem sido um misto de choque com ansiedade. E uma sensação meio anestesiada de não acreditar na imensidão que seria a sua existência. quando o ano virou e os fogos estouraram, eu pensava em você. nada mais seria como antes. e quando você chegou eu fiquei confuso. era você mesmo? e lembro que a primeira coisa que reparei foi uma pequena espinha em sua prega labial. era uma pápulazinha. e mesmo que eu tivesse passado a noite anterior ao seu nascimento sonhando milhões de histórias de como ele se desenrolaria - você nascendo esquisito, você nascendo igual seu pai, você nascendo perfeito - eu percebi. percebi que você chegou já diferente de tudo o que eu imaginava. e aquela espinha era a prova. achei seus olhos esbugalhados demais, me perguntei se você era feio ou bonito. mas a minha imersão emocional me bloqueou de te avaliar objetivamente. e eu acho que vai ser sempre assim com você. você escapou saltando de todas as possibilidades que todos tínhamos imaginado para você. você, do seu jeitinho, calminho, respirando devagar, gemidos ocasionais, a língua para fora. você surpreendeu a cada um de nossos delírios e sonhos, você reinventou a pedra da nossa humilde humanidade. você é pura novidade, uma coisa jamais inventada, jamais sequer pensada.  e esse é o fenômeno mais lindo da vida, a sua imprevisibilidade, a sua surpresa iminente, a sua eterna e inseparável diferença e dissociação entre ela e tudo o que venhamos a pensar dela. ao te olhar deitado no seu berço, um pijaminha cinza e uma colcha colorida te envolvendo, os seus olhos pretos perolados brilhando olhando coisa alguma, os seus dedinhos molengas que cedem ao menor dos meus esforços, eu só quero te tocar. toda hora. pra tentar absorver pra mim toda essa sua pulsabilidade. para que o novo que há em você faça parte de mim e o velho que há em mim se mescle com o que tem de você e crie algo novo. um nós. para que você me conheça, me registre no seu banco de peles, de calores, de arrepios. eu, tio Pedro, único pra você, e você, Antônio, único pra mim. e aos pouquinhos vamos construindo um nós juntos. e você constrói-se a si mesmo. com uma imensa rede de apoio que é meu coração. (mas livre o suficiente para ter suas espinhas nas pregas labiais sempre que quiser) ahhh... antônio. mas como eu já te amo!
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solnaminhaboca · 6 years ago
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Veterinário
Há algum tempo eu poderia ser capaz de escrever sobre a estranheza de maneira visceral. Mas hoje eu me considero aposentado; não sei por quê. Acredito que a escrita tem um componente que seja puro vômito escaldado. E, ultimamente, está tão quente fora que prefiro me resguardar e ficar dentro do ar condicionado dessa névoa besta e ignorante. Poupo minha água. Tropeço de maneira arquitetônica, tentando encontrar o equilíbrio entre o entender e o não entender. Tem sido fácil só seguir seguindo, e qualquer coisa que me toca, eu pairo. E é quando a névoa se dissipa de súbito que eu vislumbro rastros do que eu quero, mas como uma peça de tetris que não se encaixa, eu já não quero, já não sei, e já quero de novo, e já não quero mais, nunca nem cogitei querer.
Hoje na porta do meu prédio tinha um carro que parecia o carro dele. E eu não senti nada. Ele desapareceu há alguns dias, talvez percebendo meus olhares hesitantes vers lui. De repente me dei conta de que achava ele feio, e meu eu interior muito arrogante e soberbo pra deixar fluir com uma pessoa tão legal... e tão feia. Injustiça. Eu gozei na boca dele e foi uma das melhores coisas que já fiz nessas últimas semanas; e eu não consigo viver sem aquilo. Mas eu não queria ele, não queria o que tinha em volta. Ele deitou em minha barriga, passou a mão pelas minhas pernas e fez carinho no meu pé, o envolvimento perfeito. A devoção com a qual eu sonho há tanto tempo. E eu olhei pro teto do carro, a chuva estralando, o crepúsculo caindo naquele bequinho da ilha do governador. mais romântico impossível. E embora parte de mim viveu desfrutando aquela cena de filme, na realidade eu mesmo já sabia que tinha enjoado dele. Que. Merda.
Na noite do dia seguinte eu encontrei um cara por quem fui perdidamente apaixonado há alguns meses. Fiz questão de vê-lo, só para demonstrar que eu não sentia mais nada nos meus olhares vazios. Ele percebeu, ficou desesperado, tentou segurar no meu ombro e tateou tentando chegar em mim, mas eu não estava mais lá. Quis estar. Tinha achado ele lindo, misterioso, enigmático, encantador. Hoje, eu só achava ele démodé, um souvenir de uma viagem que eu precisei preencher com drama pra dizer pra mim mesmo que foi dinâmica. Ainda achava ele bonito, mas sei lá, não era a mesma coisa. E me queimava, mas eu fiquei geladinho. Usei a drogas dele e disse que talvez quem sabe algum dia.
Dia seguinte. Bêbado demais, desnecessário. Encontrei o Fim. Eu o vejo, o toco, o sonho. Mas eu não sei encaixá-lo; ele não faz sentido em minha vida. Se eu não sou capaz de fazer fazer sentido uma coisa da qual sinto tanto sentido, de que serve a falta? Eu pergunto ao meu Deus interior o que é que ele acha e só escuto silêncio, um sonoro grilo piando na escuridão. Eu não consigo, não consigo mesmo. E então eu deixo ele ir, ele se transforma no Fim. incapaz de manter uma coisa que parece necessária à manutenção da vida. É uma merda porque além de complexo eu nem movimentos faço para me entender. Dane-se minha psicóloga, mas eu precisava dela. Sonhei com ele. Sonho com ele. Não sei o que fazer para parar de sonhar com ele. Minha psiquê clama por uma falta que eu não falto sentir. E quando estou acordado, eu só queria esquecê-lo, mas eu não consigo. Não pelo menos enquanto eu estou dormindo.
A estranheza me pegou pelas costas, eu só consigo dormir de conchinha com meu cachorro, substituiu o veterinário. Eu acho que é balela esse troço de que todo mundo nasceu pra alguém, de que a gente faz família, casa, tem bichinho e filhote. Eu sequer consigo escolher se vou comer uma pêra ou uma maçã. E as pessoas ficam querendo saber o que é que eu quero da minha vida.
Eu só queria gozar na boca de todos os caras que eu conheço. No momento, essa é a única coisa da qual eu tenho certeza.
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solnaminhaboca · 6 years ago
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As bordadeiras do século 21 se modernizaram. Em minha frente, eu a vejo sentar sem encosto e isso não lhe provocar dor alguma. O fone de ouvidos unilateral pende com o peso pra baixo, mas não cai de sua orelha. É mágico o estupor dentro do qual ela se imerge pra viver pelos dias em seu computador e sua mesinha anatomicamente designada. Há momentos em que sonho com aquele momento e me dá uma tristeza, queria dar mais pra ela, queria mais movimento; e em outros momentos, debaixo de um café com a dose dobrada, eu capto uma frequência de constância e tranquilidade que me abre o peito e faz meu chakra cardíaco se energizar. A minha polaridade oscila em torno de seus dias. Ela, ao lavar o fogão duas vezes ao dia, quando estou acostumado a fazê-lo não mais do que uma por semana, faz o polimento do universo visível. O equilíbrio do eixo do universo se encontra nessa pequena dona-de-casa, instagrâmica, varrendo o quarto da sua filha para que ela possa bagunça-lo de novo, colocando a tela anti-mosquitos no quarto de seu filho porque às seis é a hora de fechar a casa. Mulher forte, que passa baygon febrilmente nos cantos da casa e coloca naftalina dentro dos armários para proteger as roupas, que cozinha e põe a mesa nem que seja só para ela própria. Os seis filhos que saíram de seu ventre são polidos pela sua energia cuidadora como ela cuida do pó de café estar sempre dentro da vasilha florida e transparente que ela leva não importa onde ela for morar.
A minha mãe é uma estátua. Em seus pés ancoram seis universos, quer o saibam ou não. Tecnológica bordadeira guardiã de todos os mistérios do mundo, sabendo ou não sabendo conscientemente; sua casa é uma extensão de suas unhas pintadas e o Jardim Guanabara de seu cabelo curtinho, batido e pintado de preto.
Trilhões de anos engarrafados numa vasilha térmica vermelha e num copo verde de plástico que ela tem que ficar pegando do quarto da filha toda hora. Trilhões.
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solnaminhaboca · 7 years ago
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Moksha
Provei o gosto do vento pela janela do ônibus e senti inveja. Ele estava mais gelado do que o normal, e talvez aí viesse uma frente fria. Tão livre, tão espontâneo, tão imprevisível. E eu que sempre tive ataques irritado com as coisas previsíveis da vida nasci pra ser como ele. Mas vim preso num corpo de gente, com dores nas pernas se corro por muito tempo no asfalto e tendo que pegar ônibus para as grandes distâncias. Ser terreno é uma grande tristeza.
Na primeira vez que peguei um avião algumas coisas começaram a se encaixar. Aqueles poucos segundos (ou seriam minutos?), em que a turbina se espaira descontrolada e a máquina rompe limite atrás de limite, levitando de tão rápida - eu passei a me sentir vivo. É o meu momento preferido da vida. E vi de longe o Maranhão parecendo um mapa pequenino com suas casinhas sem acabamento e o rio Tocantins cruzando cintilante e fiquei puto porque só poderia ver aquilo quando pegasse outro avião. Aquela vista era algo pra se ver todos os dias, sempre que eu quisesse. Não... Aquele tipo de vista era para se viver dentro.
Eu não quero me enterrar dentro de um escritório, dentro de uma sala redonda em formato de diploma. Eu não quero acordar pra viver os mesmos dias de forma miserável, ansiando por aquele mês de férias em que eu posso explodir pra todos os cantos. Eu quero espaço. Quero não... Exijo. Minha mãe apontava pro céu quando eu era criança e dizia que a gente ia pra longe. Mas ir sempre chega. E eu não quero chegar, eu só quero ir.
Talvez seja por isso que eu seja incapaz de escolher. Planar sempre é muito bom. E odeio essa sensação de que preciso juntar dinheiro pra cruzar o mundo. Eu queria me teletransportar como se escolhesse os países como escolho os documentários da netflix sobre países. Eu quero que meu corpo seja leve pra eu poder conhecer várias praças, línguas, pessoas. Quero ter asas da imaginação só que de verdade. Afinal, de que adianta tê-las na imaginação, e nela tão somente?
Talvez eu seja um clichê dos tempos líquidos. Talvez minha angústia seja uma manifestação pungente do inconsciente coletivo dos Millenials que represento com meus vinte e sete. Talvez, talvez.
Nesta noite eu peguei uma bicicleta e é o que mais chego perto disso. Fugindo dos carros e ônibus pelo asfalto, quase caio na ciclovia. Andar de bicicleta é a única coisa que esvazia minha cabeça. Todos os meus anseios dão lugar a uma concentração fina e atentíssima, num deserto das outras coisas. E eu esqueço da angústia que é ser - esqueço dessas roupas que apertam tanto, dos meus pelos que coçam enquanto suo, do meu cabelo que desordena e da impossibilidade de regularizar nos próximos dias mais atividades como essa que me produzem prazer. Aqueles poucos segundos de trajeto eu crio rodas e aros e canos metálicos entranhados, buzino e trisco o girar do guidom, falseio marchas que deslizam e se retesam. Eu esqueço as pedras enormes no meu bolso que é ser humano, medo do futuro, pânico do passado. Eu só rodo, eu viro roda. Rodar é bom demais.
Mas é claro, o vento gelado se transforma em chuva. Que cai sobre minhas roupas wet fit. Minha meia ensopada me lembra triunfal dos meus emails e do meu WhatsApp com o campo de guerra sírio que tem se tornado a minha vida social. E eu sucumbo, caio pra baixo, volto a pesar 70 quilos e um IMC que é melhor não dizer. Olá, verão, me arrastando pro chão e me dando uma leptospirose. Estou de volta.
A chuva cai do céu, rasgante. Depois, ela segue em frente, vai embora pra outro ponto. Ailleurs. Mas eu...eu fico, pra variar. Quem sabe da próxima vez ela me carregue junto com ela. E eu voe, voe...
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