stelarous

[stelarous]

Deus protege os bêbados e as criancinhas.

Quando Miguel voltar terei de dizer que a tia Carmen morreu. E que o vô também. Que a Júlia e a Duda não se falam mais, que a Laura já é adulta e bebe. E eu fumo. Fumo assim como a mãe dele. Como se a tia Michele me fumasse: seu rosto fino só é névoa e eu, esguia, sou o cigarro.

Vou ter de dizer que diferente da nossa espera por ele, pelo tio Juliano não pudemos esperar, mas hei de poupar os detalhes: nem toda morte é morte morrida e nem tudo que deve ser dito tenho vontade de dizer. Em ápices de enchança, meus lábios deslizam como joelhos em asfalto quente e declaro após um grande empurrão: se eu pudesse sumir, faria o mesmo.

Três pares de olhos opacos se voltam para mim, cansados. "A gente sempre viveu estranho" dizia a avó "coisa do sangue do seu avô". As mulheres eram estúpidas, possuiam a leveza de um rinoceronte e viviam muito. Os homens eram ruins de natureza, mas trabalhadores. Aqueles que se atreviam a carregar os culhões entre as pernas e serem bons, haviam de morrer cedo, seja lá por qual consequência.

Mas Miguel ainda era menino para decidir qual tipo de Matias iria ser. Miguel não é assim.

Quando Miguel voltar, pedirei que não se entristeça. Muitos se foram, mas seu sobrinho nasceu e ainda leva o nome em que sonhara dar ao próprio filho. Coisa que ele pode fazer se voltar.

Sua namorada custou a seguir em frente, mas se ele ainda tiver os dentes reluzentes que tinha, ela é sua. Sem tirar nem pôr.

Quando Miguel voltar contarei coisas que nenhum Matias sabe, porque assim como ele, fugi e ele não vai se sentir só; não tem quem aguente nascer em uma família que nunca quis existir.

Todas as fazendas, os lotes, os escravizados vendidos por um outro velho de sangue ruim viciado na boêmia e frustração resultaram décadas de tristeza sem fim. E para revirar o velho de desgosto no caixão, ao menos todos os descendentes casaram-se com as pretinhas.

Há uma porção de coisas que poderia dizer, mas para Miguel confessarei meus pecados com a sutileza de um chá de tarde, pois não precisa doer.

Vou direto ao assunto: fumei, bebi e cheirei e qualquer pó que fosse: as cinzas do avô, a poeira em cima da bíblia ou o de um cinzeiro do bar da esquina. Aí veio o álcool com aquele modão de sofrência e essa sim é a pior droga que se pode existir.

Eu queria mesmo era o fundo do poço. No puro nada, só o sopro de um abismo em que se encara o vasto buraco, mas que não se faz nada. Só se espera que as pernas fiquem bambas e nadem em um profundo mergulho. "Onde meu Deus?" sussurraria, "Onde eu errei?"

Falo isso não pela ausência do menino, mas porque entendo o motivo que o fez ir. Está impregnado na obscenidade da elegia que é nossas vidas e que foram trilhadas juntas. Ele sou eu, eu sou ele.

E penso, que se por um milagre Miguel se lembrasse de mim e eu dele, mesmo com pés rachados, unhas sujas e mentes alucinadas em vertigem, eu o diria o que deveria ter dito desde o principio: eu também não entendo nada, Miguel. Ninguém entende e isso dói. Mas nós só éramos crianças.

Enquanto não desapareço, olho no fundo dos olhos de cada pedinte, de alma viva e morta, enquanto passeio no centro de São Paulo para viver o que se entende por vida na noite, tentando sorrir.

Continuo em busca de seus olhos escuros, mesmo sabendo que não vou reconhecer sua feição. Contudo te sinto. Esse mar de gente pode ter sido esquecido, mas o Miguel, esse nunca foi.

E mesmo que ele volte e não lembre de tia Carmen alguma, da avó, de primo e da mãe, nossos olhos sempre serão um só frente à porta. A falecida reencarna, a dinda aparece, a namorada sorri, nossos ódios uns pelos outros morrem pelo bálsamo de vê-lo nascer. Espero nessa porta desde menina, o guardando trancar os cachorros, pois temia a mordida, principalmente da sanguinaria Belinha. A cadela tinha o sangue de dois passarinhos e um gato nas palmas das patas. "Fica tranquila, Lô. Ela é mansinha." Eu que nunca fui besta preferia pular as janelas.

Hoje anseio a mordida de joelhos porque não há dor maior que um talvez. Que me morda, que apareça desnutrido, insano, abstinente. Que apareça morto. Que nos mate. Mas mata primeiro a saudade da tua voz. Mata a saudade que sinto por ti.

"Deus protege os bêbados e as criancinhas". Uma criança consegue levantar de um tombo sozinha. Um jovem usuário de crack nem sempre.

Miguel, eu só não vou contar aquilo que eu sei que você já sabe. Nenhuma PM foi em busca de mais um menino preto dentro da cracolândia.

De resto saberás de tudo, não há nada melhor do que poder saber.