Mistérios
Ela era linda. Na verdade ainda é. Por enquanto ainda é bela, talvez mais do que nunca fora. Embora desvaneça: é o fim dela e de tudo mais.
O seu olhar mortiço cai sobre nós que assistimos ao espetáculo, mas os olhos rompidos de conexão com a realidade de algum modo são instituídos de um vago brilho no fundo, como fagulhas de fogo fátuo oscilando em ondas de ilusionismo, que a fazem parecer vívida. Em um momento fugaz, ela deixa escapar um segredo, que ninguém consegue ouvir, perde-se na confusão. Então um brilho último, e não se repete mais. É a demarcação do fim, é o começo do banquete.
E o que ela fazia? Agora não muito mais, apenas deita-se em mansidão, possuindo uma paz que remete a completude do fim da jornada. Francamente a jornada fora interrompida, mas quando se está pronto, não há contratempo: o fechar de cortinas e o aplauso final são bem vindos a qualquer momento.
Afora, a missão dela fora cumprida, constituída de objetivos simples e delicados. Fora exitosa na medida do possível, e a medida foi generosa e o possível alcançável.
Embora quisesse, sim, um pouquinho mais de tempo, ela poderia confessar. Que pudesse se despedir, uma despedida breve bastaria. Mas era bobagem, e ela sabia. Tudo o que tinha que ser dito foi dito, e o que tinha que ser feito, assim foi. Nos apegamos a reminiscências, ao intangível impraticável… Não seria diferente com ela, mas a vontade discorreu em suas veias no último instante com toda a naturalidade mesmo assim.
O repouso é tão manso, seu semblante tranquiliza-se, e como todo dia chega ao fim e dormimos entregues à inconsciência, ela entrega-se à noite das noites, pois o seu sol se apagou irremediavelmente.
Um drama terrível para se contar agora, assim de uma vez. Mas quem conta as histórias quase sempre mente. Um erro bem intencionado, uma intenção secreta, um sentimento que interfere…E ainda assim uma mentira, tão bela quanto qualquer outra.
E o meu dever agora é mentir sobre o que acontece aqui, florear com cores o inexorável fim preto e branco, trazer lucidez a bravata do destino, que é macia e despreocupada, aleatória e sem pudor.
Dentro do seu vestido carmesim ela era quase feliz, descendo e subindo escadarias que levavam a lugar nenhum ou então para salões cheio de sorrisos do mais profundo desespero. Lá sua felicidade oca encontrava ressonância, entre convidados bem vestidos e suas obras fascinantes, entre os móveis bem polidos e música faiscante, os salões tão coloridos.
A alegria em movimento por toda a gente, por através de cada um, em ondas tremulantes de um lado ao outro do salão. Em ondas que quebravam na escadaria e convidavam quem passava e isolavam quem entrava.
Tanta estúpida gente, tantos e tantos.
Dentro dos salões os sorrisos se multiplicavam, e o sorriso dela somado aos outros, mas o mostrar de dentes dela brilhava com uma elegância ímpar, como pedra preciosa rara. E por isso era cobiçado pelos outros convidados, e por quem entrou sem ser chamado, e por quem apenas servia; até mesmo por quem estava só olhando. Era tão belo o sorriso dela que ofuscava as obras, a mobília e a própria música.
Os que tentaram obter o sorriso dela se viram às voltas com o saiote carmesim, num giro que a movia leve para outro passo de dança, os envergonhando diante todos os outros convidados. Esses a desejaram com uma intensidade de toda a sorte, bestificados com o que consideraram humilhação.
E o baile seguiu nos salões suntuosos, o sorriso dela sempre cobiçado, mas nunca dado. Ela não via sentido algum nisso, seu sorriso era apenas vazio. Era um sorriso destituído de métrica, pois era um zero, seus contornos eram embaçados, incertos, um oval fino, um entreaberto elíptico que de tal forma parecia apocalíptico, que assombrava quem olhava, e era essa emoção que os fazia confundir-se, e desejá-lo, tão profundamente desejá-lo; o desejo que tantas vezes é uma mera confusão.
Essa confusão passava despercebida em meio à música, e todos levaram a sério, mas o fizeram em segredo. Um segredo público compartilhado por todos, como compartilhavam as canções e as danças.
Ela nada valia e era esse o seu grande valor. Mas sua pele polida brilhava e ela dançava, tão perdida em meio às ondas convulsivas em que estava inserida. Ela não se importava, e aí estava a sua felicidade. Felicidade sem peso, sem substância. Uma quimera que ninguém compreendeu.
E, apesar de toda a cobiça, quando ela estancou com abrupta brutalidade, poucos repararam, e menos ainda se importaram. Ela afundou, cedeu, entre as pernas e pés, tinha o seu ventre penetrado, atravessado pelo rancor, vazavam por seu colo todas as emoções, empapando seu vestido carmesim. E foi quando então o brilho de seu sorriso foi se aventurar em seu olhar para despedir-se do mundo.
Ela não atravessou a porta, abandonou o salão aos poucos, e o chão se abriu para lhe dar passagem. E a passagem foi suave, em contraste com a órbita cega do seu colo, agora atravessado, transposto para além de seu interior.
Era tudo fogo, tão intenso… Ardia por dentro de si um infinito, mas esse desconsolo ela acolheu generosamente e aceitou, então logo a calmaria acariciou seu coração dando-lhe a mansidão. E sua tragédia estava completa.
Não menti, não muito:
Ela ia para o trabalho vestida com sua roupa de trabalhadora. Fazer o seu trabalho por hoje até o resto de sua vida, era isso: ocupar-se de suas atribulações e ser plena por um triz.
Seu esforço era sólido na contribuição laboral diária, mas seu suor translúcido ninguém via. E para ela isso tanto fazia, o que importava eram as engrenagens do dia, o giro bruto de encaixes delicados que se moviam ao redor de si.
Ao redor dela também todo o rebuliço de gente, que como as engrenagens giravam, silenciosas ou barulhentas, giravam implacáveis em seu processo de labuta. Cuspiam-lhe amenidades indecentes e a tratavam com agradabilidade desumana.
Ela era solitária.
E o seu esforço era tanto… tanto quanto sua alegria. E se era algum disfarce, ela muito bem omitia.
Até que um dia, quase que sussurrado como um segredo, pois esse dia não podia ser jamais identificado em meio as cores e formas que se repetiam em procissão. O fato é que em certo momento da sua rotina diária a magia das engrenagens do dia foi quebrada.
Clang.
O ruído grotesco das engrenagens forçando o movimento uma sobre as outras. Então o suor dela dobrou, teve que seguir fazendo tudo mesmo sem amor. Sob o clangor das estruturas que a amaldiçoava com seus ruídos de pesadelo, conspurcando o seu sagrado trabalho diário.
Isso não a intimidava, não fazia diferença. Ela ia todo dia para seu trabalho, não deixaria de ir por motivo algum a seu ofício sacro.
Até que um dia ela não voltou, e ninguém mais soube dela. Não se ouviu falar nunca mais. A sua última imagem registrada foi na câmera de segurança, que ninguém nunca assistiu: a gravação dela passando pelo canal de resíduos com seu olhar final, até escorrer para fora do enquadramento, e aí sim desaparecer por definitivo. E se no óleo do mecanismo corria imiscuído agora seu sangue, isso nunca ninguém provou.
Não menti, não muito:
Ela vagava sozinha pela floresta. O vestido comprido e esvoaçante seguia em seu encalço para lugar nenhum. Os pés descalços deixavam os rastros para a danação, que ninguém jamais veria, porque ninguém foi atrás dela. Ninguém sabia onde ela estava.
E, apesar disso, talvez ela viesse em fuga, o passo desleixado parecia apressado e a respiração eufórica parecia inquieta…Mas não sabemos do que ocorreu antes e pouco sabemos do que vem depois; apenas a acompanhamos nesse momento, em meio à suposta fuga de ninguém.
Ela tinha o doce sabor do escapismo na boca, junto com a fragrância das flores… Ela era uma tola. Uma idiota desmiolada buscando a morte. Ela era uma sonhadora.
Cantando e rodopiando rodeada de rouxinóis, ela foi dançando com seus pés nus no barro do ermo profundo da floresta, batendo palmas e estalando a língua, contando contos para todos os animais que passaram pelo caminho, ela foi levando seus sonhos para sua tumba hoje esquecida.
O pungente desespero jovem de ser feliz era o motor da bela carcaça desgovernada que invadia mais e mais o verdejante, desabitado e selvagem íntimo daquela natureza imperiosa.
Além da vontade de ser feliz e a eloquente falta de razão, o estado de espírito tolo.
Avançou até o estupor final, lacerante e intransponível, rodeada dos animais que cantavam e do verdejante insano, não viu o ponto depois da vírgula.
Talvez ela nunca tenha descoberto o que seu espírito almejava ou talvez tenha mesmo encontrado a felicidade no instante final, quando a luz de seus olhos apagaram, atravessada como ela estava: o sonho grosso e pontiagudo irrompendo seu ventre de forma implacável e determinante como um jovem amante.
Foi naquela nascente de rio que ela morreu, o nível da água apenas abraçando alguns centímetros de seu corpo que agora estava completamente entregue dessa vida velha e esgarçada das mais temerárias tentativas.
E naquele estado ela parecia abandonada aos olhos civilizados, mas não era verdade, não em meio a poderosa natureza que tudo abraçava, tudo regia em plena sabedoria. E que dessa mulher se nutria num ciclo exigente, mas respeitoso.
Os sonhos derramados do ventre rompido urgiam pela devoção com o mesmo desespero com que atravessaram toda a mata, e agora eram levados correnteza abaixo para alimentar toda a floresta.
E foi assim.
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