Tumgik
#Leonard Shopenravner
world-for-texts-blog · 12 years
Text
A colheita por Leonard Shopenravner
No momento de vigília, há aquela sensação de mescla entre os mundos real e onírico. O que é verdadeiro? Aquela silhueta feminina formada pelo contraste de seu corpo com a esfera lunar que ocupava todo o horizonte realmente estava ali? Deveria estar. Seu cheiro que se estendia por toda a rua inóspita e soturna, chegava de encontro ao rosto de Leo como um golpe ardente e seco. Atiçava sua fome. Seus instintos mais primitivos. Sua sexualidade. Ele não conhecia a mulher, ou ao menos assumiu isso. Aquele cheiro... Sim, estaria marcado em sua memória, se a conhecesse. Mas a rua, ele conhecia aquela rua. Era a rua em que morava, porém, estava desenvolvida. O chão de terra batida já não estava mais lá e, em seu lugar, um tapete de asfalto deslizava de seus pés ao infinito. As casas ao seu redor estavam limpas, pintadas, cuidadas. As plantas já não mais mendigavam a terra, estavam verdes e com traços vitais. Era como uma visão ideal de o lugar aonde morava. 
O céu escureceu repentinamente. Leo não conseguia se mover, mas com certeza sentiu quando algo estalou em seus braços. A rua foi sendo pontilhada por água que escorria da abóbada celeste escura. As gotículas pareciam estar sendo jogadas para ele pelas estrelas. Seu corpo absorvia aquilo com um prazer indescritível. Era como um banho de vida. Nisso, quase havia se esquecido da mulher.
Ela, então, moveu-se vagarosamente, desferindo um passo felino e tímido. Nesse momento, a grande massa de luz prateada atrás dela ganhava um tom ígneo. Se incinerava. Aquela luz esbranquiçada e quente só não era mais penetrante que o olhar da moça, que se revelou apenas para a mente de Leo, assim que o fogo se expandiu por toda a rua, engolindo-no. 
Os olhos do jovem garoto logo se abriram assustados. Mas apenas isso. Seu corpo se manteve tão estático quanto estivera em seu sonho. A luz estampada em sua face caucasiana era como um choque de realidade. Em um momento, estava no lugar mais feliz do mundo, frente à mulher mais bonita do mundo e sentindo-se a pessoa mais importante do mundo. No outro, estava de volta à sua cama desconfortável e improvisada. Abrigado por um cômodo feito de madeira úmida e partilhando o quarto com qualquer inseto que quisesse viver ali. Ou seja, estava de volta à vida miserável e real. 
A coisa que mais odiava, era acordar com o sol em seu rosto. Já mencionando o fato de que era extremamente desconfortável, ainda o deixava suado e com sede. E visto suas condições de vida, não era previsível o próximo banho que tomaria ou a próxima vez que tomaria um bom copo de água. Nesses momentos, Leo desejava poder sonhar para sempre. Viver naquela rua, com água que caía do céu e sentindo o cheiro daquela mulher. Ah... 
Infelizmente, sonhos não enchiam sua barriga, nem tiravam sua sede. Seu esforço fazia isso. Sua luta, sua motivação e sua vontade de viver. É até irônico pensar que um garoto de dezessete anos, abandonado no mundo e sem muitas chances para o futuro poderia ter tanta vontade de viver. Mas sua vida era guiada por um único ojetivo: Melhorar a vida daqueles que, assim como ele, tiveram aquela realidade imposta em sua vida. Sim, além de ter sido abandonado quando muito novo, ainda tivera que aprender a sobreviver totalmente sozinho. Talvez fosse egoísmo dos outros moradores do distrito, mas talvez eles apenas pensassem que um garoto fraco e ingênuo não poderia ser de grande ajuda. Não faria muita diferença. E isso Leo aceitou até muito tarde. Mas agora, já mentalmente adulto, queria provar o contrário. Provar que não existe determinismo. E que qualquer um pode fazer qualquer coisa. Mas ainda não sabia como fazer alguma coisa. Era frustante demais querer nadar contra a maré. Mas possível. E essa única palavra o motivava.
Após empurrar uma tábua de madeira que servia como porta de sua casa, saiu pelas ruas, com seus olhos ainda um pouco ofuscados pela luz solar. Às vezes apenas queria que o sol se apagasse. Ele conhecia toda a história das plantas, que produziam energia através do sol e depois liberavam oxigÊnio para os animais e bla bla bla, mas ainda assim, sentia-se vulnerável de dia. Era uma pessoa muito sozinha e o dia era como uma infestação de pessoas que pouco se importam com o que acontece ao seus redores andando para lá e para cá. Era confuso e caótico demais. A noite era perfeita. Apenas o silêncio e os seus pensamentos dialogavam. Além de não ter aquele maldito e ardente sol. 
Seu distrito não tinha nada demais. Tudo era muito rudimentar e precário. As ruas sujas que contrastavam com seus sonhos. Assim como casas de tijolo exposto e até algumas outras de madeira, enfiadas em qualquer canto inabitado. Tudo isso, exceto é claro pela influência da capital. Uma enorme tela de televisão ficava presa a uma grande torre, de modo que o distrito todo pudesse vê-la e ouvi-la. Mas era muito raro ela se acender. Só era ligada quando havia uma mensagem importante da capital. Quando iam ocorrer os sangrentos jogos da fome ou quando alguém ia ser punido por eles. 
Os passos de Leo eram tão preguiçosos, lentos e espaçados quanto os de um animal pastando. Ele imergia tanto em seus pensamentos, que esquecia do mundo ao redor. Se desligava dele. E foi justamente por isso, que não notou imediatamente o mutirão de pessoas altas e trajando vestes brancas. E considerando que naquele distrito, uma roupa limpa era quase tão rara quanto a própria água, dava-se para estipular o nível de distração em que o garoto se encontrava. Continuou caminhando até esbarrar numa mulher que havia parado em sua frente, tentando ouvir o que uma mulher dizia no grande monitor de plasma. Leo se desculpou com um gesto breve de sua mão e se virou. O que viu foi uma mensagem cortada. Só identificou as palavras "Colheita terá início.... Testes.....Jovens entre doze e dezessete anos" . Leo não acreditou de cara. Continou fitando a tela mesmo desligada. Como podia não ter se lembrado do único dia do ano em que alguma coisa que fugia daquela mesmice acontecia? Aquele seria o último ano em que aquele ritual estaria presente na vida do jovem. 
Por um lado, isso era extremamente aliviador. Não se submeteria mais às mãos da capital. Ao menos não diretamente. As garras deles já haviam dilacerado qualquer ínfima expectativa de um futuro melhor para os moradores dos distritos. Mas será que isso era absoluto? Um pensamento tímido então surgiu de modo tão efêmero quanto se esvaiu na mente de Leo: "Será que a colheita poderia ser uma última bala no tambor da esperança.
mas não pode desenvolver suas expectativas e criar sonhos com a iminência do que ocorreria a seguir. Seu braço fora brutalmente puxado por um homem trajando vestes claras e impecavelmente limpas - o que evidenciou o fato de não ser um morador do distrito - que o arrastou sem nem ao menos troca de olhares até um grande trem. Leo fora jogado como um objeto no vagão, aonde encontrou muitos mais jovens que, assim como ele, estavam nas mãos da capital à partir daquele momento. 
O fato de todos cheirarem mal e estarem extremamente sujos e machucados passou despercebido aos olhos do garoto, que só conseguia se focar nos olhares daquelas pessoas desalmadas. Mas não desalmadas por serem maldosas. Mas sim por terem tido toda a sua esperança e personalidade tragadas como um cigarro ruim pela capital. Leo sentiu uma onda de cólera naquele momento, acompanhada por determinação. Era como se começasse a sentir-se responsável por aqueles que o cercavam. Embora nem ao menos os conhecesse. Mas ele conhecia a si mesmo, à sua dor e isso bastava para fazê-lo querer que ninguém mais sentisse aquilo. Sentisse-se imponente e inútil.
Finalmente o trem parou junto às divagações do jovem. Uma fila improvisada foi formada com facilidade, considerando que nenhum dos jovens ali estava em condições para resistir. Dessa forma, em poucos instantes, todos estavam tendo seus sangues recolhidos por um aparelho eletrônico que com certeza seria objeto de extrema curiosidade, caso fosse encontrado no distrito. Leo apenas cerrou os olhos de dor quando seu sangue escorreu para um identificador, aonde seu nome apareceu em seguida. 
aquilo era mágica ou ciência da capital? De qualquer forma, aquilo não importava. Aquele era o momento. Ouviu distraidamente à voz de um homem que emanava por entre todos ali presentes. Sua mente fervilhava de nervosismo e seu coração quase parou quando entrou no que parecia uma cúpula gigante. Quando notou, estava girando. E girando. E girando. O que aconteceria à seguir?
0 notes