Tumgik
#amoosu
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Existe um mito antigo, talvez grego ou nórdico, também poderia ser medieval ou moderno, eu não sei informar com propriedade. Está dentro da categoria de uma daquelas histórias que alguém muito inteligente me contou dentro de um contexto tão específico e no momento eu não dei muita atenção, mas então ela retornou na minha mente em um dia qualquer e não consegui deixar para lá. O “um dia qualquer” chegou e é este, agora eu preciso contar sobre o que me lembro.
Antes de dizer sobre o mito cujo texto estou fazendo referência, quero explicar o contexto dele ter surgido na minha vida. 
Louis, o professor universitário que colocou o mito em minhas memórias havia terminado sua segunda aula do dia – na época nós éramos o que se pode chamar de “ficantes” – e eu o esperava para irmos almoçar em um pequeno restaurante nas redondezas do campus. Idealista nos gestos e romântica na alma, eu estava no meu último ano do mestrado da faculdade de Letras e ainda pensava que alguma coisa importante o suficiente para chamar de amor poderia sair do que eu e ele estávamos criando. Louis foi o único que me fez pensar em avental bege de bolinhas que esbarram na pia de um pequeno apartamento, mãos pequenas puxando a minha saia, um anel dourado em meu dedo e um verão eterno. Tudo o que me sobrou foi o avental.
Os alunos esvaziaram a sala em meros segundos e saí de perto do batente da porta para ir até Louis. Me apoiei na mesa e observei o projetor que ainda mostrava um slide da aula. A projeção estava um pouco transparente por causa da iluminação clara da sala, ainda era manhã e o sol entrava pelas janelas do fundo e das laterais, deixando o ambiente amarelado e creme.
Havia uma imagem com ares renascentistas em um fundo branco que retratava as figuras de Tristão e Isolda, os corpos sem vida deitados no gramado. Quando me recordei do mito pensei que se tratava da trágica lenda em que os amantes morrem envenenados, sendo inspiração para Shakespeare escrever Romeu e Julieta, mas com um pouco de observação percebi que não foi essa história que Louis me contou. Ela parecia um conto antigo e ao mesmo tempo contemporâneo, tinha um tom depressivo, também poderia ser um conto vitoriano, algo que Edgar Allan Poe escreveria. Uma história que perpassa o tempo, se adequando ao contexto. Do lado da imagem havia um pequeno texto explicando a história, lia o excerto quando Louis me perguntou, enquanto colocava os seus livros dentro da bolsa: “Já ouviu falar sobre a lenda do Anjo e a Bruxa?”
Devo-o ter encarado com um olhar de interrogação pois como um bom professor universitário que apenas consegue dissertar em vez de conversar, ele começou a me explicar sobre as supostas origens e explicações em torno da lenda, mito ou história, como queira chamar:
“Ela não é tão conhecida como Tristão e Isolda ou contos arthurianos, na verdade não é conhecida de forma alguma, mas há alguns anos eu ajudava um colega da academia com um artigo sobre Paraíso Perdido, de Milton e um pesquisador amador, mas muito familiarizado com a análise de mitos pagãos e mitos cristãos nos disse que há uma recorrência em várias mitologias de uma pequena história em regiões específicas da Europa, Ásia, América do Norte e Sul e África. Cada um conta do seu jeito, é claro, mas o que eles não deixam de citar é sobre essa espécie de mulher que tem acesso ao sobrenatural, em Igbo eles chamam de Nwanyi amoosu, e uma criatura que pode ser um anjo, mas também é apresentado como um monstro, um deus, um homem ou um animal comum, às vezes a própria existência personificada, ịbụ. Mädchen und Leben em alemão, algo como A Menina e a Vida/Existência em tradução livre. A tradição mitológica grega gosta de falar sobre “caos”, a imensidão de vazio antes da criação, o que talvez se aplicaria a este ser. Ele pode ser o próprio lugar onde nasce tudo o que existe.
Meu colega de profissão, pensando no Paraíso de Milton e na queda de Lúcifer disse para o pesquisador que o anjo poderia ser Lúcifer, mas o pesquisador achou a resposta muito inocente pois nem eu e nem o meu colega sabia o que ele sabia, no entanto ele disse que esse mito pode ter dado origem para a história da queda do anjo rebelde e qualquer outra semelhante.
Esqueci de dizer que estávamos no escritório desse pesquisador e ele nos levou até uma pequena salinha onde ele guarda os seus documentos mais frágeis. Colocamos máscaras e luva, como se fosse um museu e adentramos no local. Ele nos mostrou um manuscrito muito, mas muito fino e de aparência quebradiça escrito em uma língua que ao primeiro olhar pensei ser hebraico. Meu colega que conhece bastante da mitologia judaico-cristã também pensou ser hebraico ou aramaico antigo, mas como ele não conseguia extrair nenhuma sílaba, palavra ou frase coerente com as línguas que conhecia ele apenas aceitou que não sabia nada. O pesquisador alegou que passou 10 anos estudando o manuscrito e o que estava escrito é o que pode ser o documento mais antigo que fala sobre essa lenda da bruxa e o anjo, mas não quis nos dizer que tipo de língua estava escrita ali. Foi evasivo com todas as perguntas sobre isso, então a fim de saber mais sobre o que ele tinha a dizer sobre a lenda abrimos mão da curiosidade.”
Louis contou tudo com uma certa descrença no tal pesquisador, mas ao mesmo tempo eu via o quanto ele estava fascinado pela lenda, senão não faria sentido ele estar me contando aquilo. Também fiquei fascinada no momento e agora me culpo um pouco por ter esquecido dela por tanto tempo. Ter me separado de Louis de forma tão abrupta me fez querer afastar de qualquer coisa que lembrasse ele. Agora, com a cabeça no lugar e o remédio do tempo, consigo ver tudo com os olhos da mente. Eis a história:
 Conta a lenda que um ser que não era nem humano, nem deus, nem monstro, nem anjo, mas talvez tudo isso ao mesmo tempo foi criado com o propósito de se sentir muito só. Ele mal conseguia suportar sua condição de ser solitário e tudo o que mais queria era uma companheira. Ele não sabia quando havia nascido e nem quando morreria, então continuava no tempo que lhe foi imposto sabendo que seu desejo mais precioso era viver o resto da eternidade ao lado de alguém que o ame e que ele possa amar.
Um dia, um de seus irmãos mais novos se tornou audacioso e decidiu que queria governar e possuir criaturas tal como seu pai. Ele queria um mundo só para ele, onde poderia mandar e desmandar e causar todo o tipo de ações sobre suas crias. O pai sabia que isso não era fácil e nenhum de seus filhos tinha capacidade de lidar com o fardo da criação, aquela criança estava querendo andar mais do que os pés permitiam então como forma de castigar o filho rebelde ele deu exatamente o que ele queria. O filho passou o tempo que lhe foi imposto tentando fazer com que seu mundo funcionasse, com que a carga que carregava nos ombros diminuísse, mas nada adiantava: ele foi se isolando e tornando-se obsessivo e amargo. No entanto, tudo isso foi benéfico para o ser que era nada e tudo ao mesmo tempo, pois o seu pai lhe mandou embora junto com o irmão para cuidar do novo mundo e talvez ali ele seria capaz de encontrar alguém para amar.
O tempo que foi imposto sobre suas existências passou, o que seria alguns milhões de anos para nós equivalia há alguns poucos minutos do dia para eles, então sabemos que muito tempo se foi embora, e o ser ainda continuava só.
Um dia, o plano que o seu irmão mais novo criou para que seu mundo funcionasse finalmente deu certo, e suas criações começaram a existir e viver. O garoto, que agora estava alegre e saltitante quis mostrar para o pai que conseguia fazer como ele e talvez até melhor, que ele também seria deus de mundos. O pai, ainda pensando na melhor forma de castigar o filho arrogante tomou para si o mundo que agora estava pronto e expulsou o filho de lá.
O ser acompanhou o irmão mais novo outra vez, e ambos passaram a viver nas bordas do que antes eles seguravam na palma das mãos.
O tempo que foi imposto sobre suas criações agora também era imposto para eles e tiveram que viver junto das pessoas que antes eles só viam de longe.
O ser ainda se perguntava quando deixaria de ser só.
 Um dia o ser estava nas bordas do mundo procurando a pessoa que iria amar por toda a eternidade, acabou entrando em uma floresta densa de um verde vívido e cores fortes. Era uma linda manhã e ele ouviu o canto mais belo que poderia sair da garganta de uma camponesa. Quando ela o viu, ele sentiu que poderia deixar de ser tudo e nada ao mesmo tempo para ser um homem que nunca mais ficará só.
O ser que agora era um homem finalmente encontrou alguém e a camponesa o ama de todo o coração. Porém, quando ele deixou de ser o que era para ser quem precisava ser, as pessoas ao redor começaram a vê-lo. Agora ele existia, e o pretendente da camponesa não gostava dos sorrisos que ela dava para ele, o pai da camponesa não gostava que ele não tivesse nenhum bem material, a mãe da camponesa tinha aversão por sua aparência e vestes.
Ele deixou de ser só, mas ainda se sentia triste. A camponesa não pensava no quanto eles eram diferentes, mas ele sim.
Uma noite, uma árvore da floresta tremeu segurando o peso de um homem pelo pescoço, ele deixou de ser quem precisava ser para voltar a ser quem realmente era. “Da próxima vez, ela será como eu”, o ser pensou.
E da próxima vez ele explorava as bordas do mundo quando adentrou em um salão suntuoso de um palácio, todos pomposos de penteados elaborados e rostos maquiados. Lá ele conheceu uma dama e se apaixonou.
Anos depois a dama se cansou dele e um veneno passou pela garganta de um homem. Ele deixou de ser quem precisava ser para voltar a ser quem realmente era. “Da próxima vez, ela será como eu”, o ser pensou.
E da próxima vez ele explorava as bordas do mundo quando adentrou em um quarto pequeno de uma casa simples, onde uma mulher estava sentada em uma mesa escrevendo no seu caderno. Ela escrevia sobre como estava cansada de estar só e queria alguém que a amasse. Ela se sentia a mulher mais solitária de seu mundo e presa na condição. O ser disse que entendia o que ela passava, disse que ela era como ele.
O tempo que foi imposto sobre as duas consciências passou, o homem parecia não conseguir se afastar de sua verdadeira natureza e cada vez se sentia mais triste e só. Um dia, uma corda se enrolou no pescoço do homem e suas pernas bateram no ar. “Não haverá uma próxima vez”, o ser pensou.
Mas a mulher o amava demais, e quis que ele voltasse e prometeu que curaria suas dores e tristezas. Ela pediu para o pai do ser, para o irmão e para quem quisesse ouvir.
O pai ficou preocupado e disse que se não haver uma próxima vez, então não haverá mais nada e concedeu o pedido da mulher. O ser voltou a ser quem era e quem precisava ser e os dois passaram a explorar as bordas do mundo juntos, encontraram um lugar que existia e não existia ao mesmo tempo e lá construíram o seu lar.
 Louis me contou que há variações desse final, alguns são “felizes”, como o que acabei de contar e outros são mais sombrios, com o tal ser se matando eternamente, a mulher sofrendo na solidão e a eminente destruição de tudo por causa da tristeza, mas o sentido da história é sempre o mesmo.
Eu nunca havia pensado que a existência (ou caos) poderia se sentir triste e só. Ele não era um homem, ele tentava ser um e se apaixonava por mulheres efêmeras comparadas com o seu tempo. Ele nunca chegou e nunca irá, e sempre verá quem amar se desfazendo e refazendo. Ele mesmo se desfaz e refaz tantas vezes na lenda, ele morre e retorna a sua condição, é tão complexo e circular que me deixa aturdida, talvez também seja mais um dos motivos pelos quais passei muito tempo sem lembrar da lenda. Sendo romântica é óbvio que penso na resolução do problema e tento encontrar formas da bruxa e o anjo ficarem juntos, por isso acabei inserindo o “final feliz” na lenda. Me dói fisicamente pensar que não há um lugarzinho onde os dois possam ficar bem nas bordas do mundo, que o ciclo não possa terminar.
O que acho interessante em toda essa história, tanto o mito quanto o dia em que Louis me contou sobre ele, é que eu nunca vou saber se a lenda é real ou Louis estava tentando me impressionar com o seu papo de acadêmico – que eu adorava cair. Ele poderia estar falando de si mesmo, da gente, de outras pessoas, o mito pode significar qualquer coisa.
Quando ele terminou de contar a lenda nós já estávamos sentados na mesa do restaurante, então eu disse o que qualquer um deveria dizer depois de todo esse show de palavras: “É bem poético, mas você não quer que eu acredite nisso tudo. Nunca existiu pesquisador ou lenda”. Louis apenas ajustou os seus óculos no rosto e deu um pequeno sorriso.
Uma semana depois, Louis estava indo para a sua aula como era de rotina quando sofreu um acidente: um homem que estava bêbado e usava entorpecentes desde a madrugada vai embora para a casa dirigindo e ultrapassa o sinal verde onde Louis atravessava para chegar no campus. O motorista o matou e mais duas pessoas, algumas ficaram com ferimentos.
Com o tempo, o mito foi apagado de minha mente, exceto que eu jamais esqueci do jeito que Louis me disse “Não haverá uma próxima vez” se referindo ao pensamento do ser mítico que representa a existência, enquanto seguíamos o caminho para o restaurante. Chegou um momento que eu nem me lembrava mais do porque ele disse que não haverá uma próxima vez, mas a frase estava lá, no fundo das minhas memórias. Ele havia terminado a lenda nessa frase, quando nos sentamos à mesa ele já estava falando sobre como havia outros fins e eu já imaginava a minha versão romântica da lenda.
Tudo isto me faz pensar se, dentro da lenda, agora eu sou o ser que tenta buscar o amor nas bordas do mundo ou a mulher solitária que escreve preces no diário.
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warriorcatsamino · 1 year
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gloriasdead · 4 years
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voici la carte de la sorcière amoosu qui veut dire donc sorcière en gibo.
je n'ai pas pris de photo de la préparation parce que ce n'est rien de bien compliqué.
je me suis inspirée des sorcières des rpg mais en la faisant beaucoup dans le style de la forêt etc..
le symbole d'œil sur sa main représente la clairvoyance du personnage, c'est en fait son troisième œil.
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jamaalw · 6 years
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Black Magic (Witchcraft Curses/Spells) Exposed
Black Magic (Witchcraft Curses/Spells) Exposed
Is Magic Real?
We seen what looks like magic carried out on TV when magicians perform extraordinary feats. I dismiss most of it as a sleight of hand (thought I believe in some cases real familiar spirits are involved in their tricks). But here I am not going to discuss the type of “magic” you seen on TV for entertainment purposes, but instead real, genuine magic. Yes, real supernatural magic…
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