Don't wanna be here? Send us removal request.
Text
Ficaram azuis
Tentar conhecer gente nesses aplicativos é tão cansativo! Você tenta puxar assunto com uns 100, e aí metade vai te responder, e dessa metade, se tiver sorte, vai conhecer pessoalmente uns 3 ou 4. Eu vivo dizendo a mim mesmo que vou deletar essa porcaria do celular e nunca mais reinstalar, mas quem disse que consigo? Já teve umas vezes que fiquei muito puto e deletei, mas aí depois de um tempo, tô eu lá de volta. E o pior: a vizinhança continua a mesma, as mesmas caras, ou os mesmos tórax e abdômenes (em sua maioria). Alguns poucos perfis diferentes de vez em quando é que dão a sensação de que vale a pena continuar garimpando.
Então, teve um sábado que eu estava na maior vontade de passar na Benedito, mas estava chovendo, e o jeito era ficar em casa e ver se talvez rolasse de sair mais à tardezinha, quem sabe na Augusta, sei lá. De bobeira, tô eu na cama zapeando os perfis, como um catálogo desses de cosméticos, alguns interessantes aqui e ali, um “oi, tudo bem?” para eles e esperar se algum resolve responder. Lá do outro lado da cidade (acho que fiquei bastante tempo rolando a barra de perfis e devo ter passado por muitos) um carinha ali que parecia perfeito demais: a altura que eu gosto, o papel na cama que eu gosto, foto de rosto, bonito, mais uma foto de corpo inteiro, de roupa para não parecer vulgar, atraente, cativante, e aquele textinho básico que nunca significa nada, mas até nesse ele parecia se destacar de tantos. O que fazer? O de sempre “oi, tudo bem?” e não esperar muito. Quando o cara é legal demais, atrativo demais, o mais provável é que seja fake.
Mas ele respondeu. Também devia estar entediado com a chuva. E milagre dos milagres, sabia conversar. Tudo fluiu. Começamos com aquelas perguntas iniciais que todo mundo faz: trabalho, o que estudou, o que gosta de fazer, lugares que gosta de frequentar, há quanto tempo está solteiro, e aí o papo foi caminhando para algo menos superficial. Descobrimos que tínhamos muitos gostos em comum, comparamos alguns filmes do Woody Allen com outros do Almodóvar, falamos de algumas bandas antigas, tentamos entender o que cada um interpretou sobre uma peça de teatro cabalística que passa com frequência no Conjunto Nacional. Ele me contou da melancolia que sente nas festas de fim de ano e que inventa desculpas para não passar com a família, também falou que se sentia um alienígena com essa onda de geeks e como todo mundo sabia tudo de vídeo-games e desenhos japoneses. Eu, já envolvido e depositando toda confiança, também confessei algumas intimidades. A primeira foi a dificuldade de parar de comer doce, a falta de confiança que tinha no próprio corpo, apesar de ser considerado por muitos “um urso bonito”, e depois a frustração que sentia com esses perdidos, quando ficava com algum carinha “x” e no dia seguinte ele desaparecia da face da terra e nem o FBI conseguia mais localizá-lo. Isso é comum, ele respondeu, como a maioria das pessoas hoje em dia não quer nada sério, até os héteros estão assim, mas deixar no vácuo é muita falta de respeito, né? Daí a gente começou a trocar impressões sobre o que pensávamos do “meio” e sua fauna. As críticas, obviamente, sobre a impessoalidade reinante, a frieza, os preconceitos internos, a competição. E sobre como é difícil estar presente na vida dos amigos, todo mundo tão ocupado e é normal ficar meses sem ver uma pessoa que a gente gosta.
Fiquei tão animado com a química que tivemos num papo virtual que logo de cara já o chamei prum encontro real no mesmo dia. Mas nessa chuva? ele perguntou. A chuva não pode durar pra sempre, aliás ela já tinha diminuído. Até a gente tomar banho, se arrumar, sair de casa e tal, já acabou com certeza, acredito eu. Podemos nos encontrar num barzinho da Bela Vista, que tal? E se ficar muito tarde depois, posso te deixar na sua casa.
A verdade é que eu fiquei com medo de chegar na hora e não der o click. Já aconteceu comigo antes, de um papo na internet ser legal e na hora rolar uns silêncios constrangedores entre a frase de um e a do outro. Cheguei antes e estava um pouco tenso, e quando ele chegou, me acalmei e até ri internamente da situação, porque percebi que ele estava mais nervoso. Mas foi tudo bem. Além de ter sido um ótimo encontro, os sorrisos, os olhares me fizeram lembrar como é muito melhor ter uma conversa frente a frente, com tanto aplicativo eu estava começando a esquecer disso. E claro, o beijo que a gente deu ali na mesa mesmo. E depois na saída, depois na parede, depois na rua.
Propositalmente, fingi não estar ligado na hora e deixei o horário do metrô passar, assim tinha uma desculpa certa para o levar em casa. No carro ele pôs o braço por trás do banco, ficava me encarando sorrindo e dizendo o quanto tinha me achado encantador, que eu era uma joia cara e que surpresa, e que sorte, um cara como eu estar solteiro. Estranho eu ter pensado exatamente a mesma coisa dele, mas não verbalizei antes.
E dormi na casa dele. Essa já era minha intenção.
Eu estava tão feliz por tudo ter ido bem. Será que dei sorte? Será que é agora? Chegou minha vez de mudar o status na rede social e tombar com a notícia do ano? Finalmente deletar de vez o aplicativo maldito? A manhã de domingo também estava chuvosa e melancólica, com tédio, com o céu nublado e escuro mesmo quando a chuva dava uma trégua e virava uma garoa mas voltava forte pouco depois e o aspecto cinza por todos os lados, no céu, nos prédios, na calçada molhada, na rua com as sarjetas cheias quase querendo espalhar o excesso de água para o meio do asfalto. Estava bonito.
Eu tinha que visitar minha mãe e ele tinha que estudar para a pós. Um beijo de despedida, vamos nos falar durante a semana e marcar um segundo encontro, ok? Tudo bem. E um sorriso.
Na mesma noite escrevi que adorei conhecê-lo e um emoji mandando beijo. Ele visualizou.
Na terça uma mensagem um pouco mais elaborada. Que a semana já tinha começado bem puxada, que estava pensando nele e quando poderíamos nos ver de novo? E de novo, só visualizou. Foi aí que meu alarme disparou.
Mas peraí, ele tinha gostado! Ele foi muito atencioso! Ele foi muito fofo! Ele demonstrou interesse! O que havia de errado? Com certeza nada! Mas eu fiquei a terça, e a quarta, repassando na cabeça cada segundo do fim-de-semana, cada frase, cada olhar, tentando imaginar algo que eu pudesse ter feito de errado. Quando eu pisei na bola? Quais foram os sinais não-verbais que eu não peguei?
Não. Não. Não. Alguma coisa está acontecendo com ele agora. Ele deve estar muito ocupado, com algum problema sério. Quem sabe ficou doente? Ou teve o celular roubado? Não, roubado não, porque está visualizando as mensagens. Ele deve ter esquecido de responder no meio de todas as tarefas, mas esqueceu duas vezes? Se estava tão interessado em mim, como demonstrou, esqueceria de responder duas vezes? E de novo, fiquei repassando mentalmente todo o fim-de-semana. Agora estava sol.
Lembro que no dia que dormi na casa dele, eu estava deitado de bruços e ele de lado virado pra mim, me olhando e passando os dedos de leve pelas minhas costas. Me olhava fixamente, sorria e dizia: como você é lindo! Eu ri com vergonha e disse que não me achava bonito, estava acima do peso, mas ele balançava a cabeça: que bobeira… O urso mais lindo! É o que eu acho. E um beijo no pescoço.
A ideia de que algo terrivelmente errado deve ter ocorrido não saía mais da minha mente. As mil teorias se misturavam e depois faziam um ranking desde a mais provável até a menos, e as memórias começavam a se embaralhar e frases do sábado entravam no domingo e chovia dentro do apartamento e nós dormíamos no meu apartamento, e as frases que eu imaginei que seriam ditas no próximo encontro já estavam presentes no primeiro, e frases de outros encontros com outras pessoas estavam ali, até que minha mãe sentou do lado dele enquanto passava os dedos pelas minhas costas e disse: cai fora.
Eu já tinha mandado duas mensagens. Agora estou no meu limite. Preciso pensar muito bem o que vou fazer. Ele não pode achar que sou um stalker, um psicopata. Não posso insistir. Mas é que tudo isso não faz sentido, não faz nenhum sentido, simplesmente não faz, por quê? Então é difícil só deixar pra lá. Posso mandar mais uma última mensagem. Depois disso, pelo bem da minha saúde mental e pela minha dignidade, pelo meu autorrespeito, sou obrigado a apagar o número dele da agenda e nunca mais o importunar.
“Oi, lindo, tá tudo bem? Aconteceu alguma coisa?”
Um tracinho. Dois tracinhos. Ficaram azuis, mas nunca tive uma resposta.
0 notes