Tumgik
tudoatrasado · 6 years
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Roda da fortuna
Por Paula Andrade
"Começou com as eleições.
Na verdade, já vinha caminhando há algumas semanas, mas foi em um domingo, em rede nacional, que percebemos que algo estava errado. As pesquisas presidenciais deram Mike Gomez como vencedor. A surpresa foi grande quando o país descobriu que o mais votado foi o último colocado, um extremista com ideologias do século 20. Não sei quem ou quando você recebeu este áudio, caro amigo, mas entenda que nossas pesquisas evoluíram e são 99,9% precisas. Em todas elas o resultado teve poucas variações.
O impacto havia batido no peito e algumas investigações começaram. A imprensa foi para as ruas apurar os resultados e descobriu uma piada de mal gosto: as pessoas votaram no último colocado porque ele parecia o Papai Noel. Seu rosto redondo com barba e cabelos brancos transmitia tranquilidade e amor. Algo estava realmente muito errado.
A piada se instalou. Não deveríamos ter rido tanto, pois nossas gargalhadas só atrasaram a compreensão. Também não precisávamos hostilizar aqueles que votaram no Papai Noel, afinal, algo estava errado. Naquela época, há cinco anos atrás, eu já era bióloga da Luminus University e fui obrigada a parar minhas pesquisas sobre micologia botânica e ir para os laboratórios de infectologia. Fiz isso porque as autoridades chamaram. Casos de perda de memória cresceram assustadoramente na época das eleições. Estavam se espalhando pelas ruas, pessoas começaram a bater seus automóveis pois esqueceram como dirigia. Estava se espalhando pelos serviços, de um dia para o outro o número de funcionários com perda de parte da memória aumentou tanto que o governo efetivou centenas de agentes de saúde do trabalho para investigar os casos. O surto chegou até as famílias, consultórios psiquiátricos e hospitais passaram a receber diariamente centenas de pessoas que haviam se esquecido do rosto de parentes que moravam em outras cidades.
Começamos a investigar pelas doenças já conhecidas, como depressão, hipotireoidismo e  Alzheimer. Examinamos até a água das cidades com alta incidência de casos. Iniciamos, num desespero silencioso, um grupo focal para tentar entender todos os sintomas. Demorou nove dias para percebermos com clareza o núcleo do surto.
Perda da memória geral.
Tudo o que não lidamos no dia a dia estava sendo perdido. Fatos históricos, nomes de ruas, parentes distantes. A memória estava restringindo aos detalhes diários, como o ônibus que você pega todos os dias, a marca de manteiga você gosta de passar no pão todas as manhãs, parentes que vivem com você sob o mesmo teto. As pessoas que não acompanharam as eleições diariamente foram para as urnas sem se lembrar dos candidatos. Votaram naquele que mais lhes agradava por foto ou que parecia mais na mídia - o Papai Noel era o rei das piadas nas redes sociais.
Para esse resultado, não tínhamos resposta. Não encontramos explicação biológica para o que estava acontecendo.
Nossa falta de expertise deu ao surto um tempo para agir, pois ele logo se tornou uma epidemia. E em mais algumas semanas, uma pandemia. Assistir ao noticiário era contemplar um efeito dominó da doença em escala mundial. Em pouco tempo as emissoras passaram a veicular notas de três em três horas lembrando as pessoas que elas poderiam estar infectadas. Logo, essas propagandas passaram a entrar de meia em meia hora, pois os telespectadores estavam se esquecendo da doença.  
Mal sabíamos que o pior estava por vir. Quando se anda em um mundo sem história, nossa vida se tornar uma grande incerteza e a entregamos para o que melhor pode governá-las: o medo. Os cidadãos tinham memória para viver o dia a dia, mas não para tomar decisões importantes. Se lembravam do dinheiro, mas não do capitalismo e suas regras. Sabiam que escolhiam representantes, mas não recordavam o que era uma democracia. Para aqueles que dirigiam pouco, pegar um carro se tornou uma decisão de vida ou morte. Então, o medo se tornou um companheiro. Pessoas saiam de casa e tinham surtos psicóticos no meio da rua, seus corpos travavam e suas mentes bloqueavam. O medo de não lembrar, o medo do não saber, o medo de arriscar e lhes custar a vida.
A ansiedade foi a próxima onda. O medo gerou um surto de ansiedade e logo virou pandemia. O governo precisou tomar medidas rápidas para conter ataques de ansiedade. Passou a custear planos de saúde para que esses recebessem rapidamente os cidadãos que estavam sofrendo alguma crise. Profissionais da saúde passaram a andar com um colete azul para serem reconhecidos, onde quer que fossem estariam preparados para agir. Cartazes incentivando pessoas a acolher e até abraçar o companheiro em surto foram espalhados pelo país. No fim do dia, clínicas estavam cheias de pessoas com tremores, náuseas, falta de ar e com machucados que causavam a sí mesmas.  
Veja bem, meu ouvinte, a pandemia não tinha preconceitos, não poupava idoso ou crianças, banqueiros ou serventes. Chegou ao nosso laboratório e logo dispensamos mais da metade da nossa equipe. Eles voltaram para casa cabisbaixos, já com o medo e a ansiedade tomando conta de seus peitos. Passou de 12, para oito e chegamos a três profissionais. Para aumentar nossas pesquisas, começamos a dormir no laboratório. Nos deparamos com o inevitável: o medo paralisante e a ansiedade sufocante. Mas, em nosso caso, eles vieram por outros motivos. Acharíamos a cura? Quando chegaria a nossa hora de perder a história?
Meu pai, minha única companhia nesse mundo, já havia perdido seu passado há alguns anos. Eu estava acostumada com os horrores do esquecimento e por isso liderei a equipe no segundo momento - o primeiro foi comandado pela ciência. Meu amigo, não existe racionalidade capaz de lidar com a falta de esperança. Então, com meu coração, tomei as rédeas. E quando elas estavam em minhas mãos recebi um memorando avisando que medidas drásticas estavam sendo colocadas em prática.
Todos aqueles que não haviam sido infectados iriam passar por rigorosos testes para encontrar uma possível cura.  
Os não infectados passariam a ficar em instalações do governo para não ter contato direto com os infectados e também para facilitar os testes
Como um pedido de socorro e aviso, arquivos em áudio e vídeo e imagens e documentos impressos seriam enviados para o espaço e testados em mecanismo quânticos que estavam sendo estudados. Caso algum estudioso tivesse algum outro experimento, era para acionar o governo mais rápido possível.
A cidade sofreria uma intervenção para restabelecer alguma qualidade de vida:
Os infectados seriam proibidos de dirigir. Caso precisassem, deveriam acionar as autoridades - compostas por não infectados.  
Toda a saúde passaria a ser custeada pelo governo, pois os hospitais não tinham como cobrar dos pacientes.
A população infectada que não tinha condições de trabalhar. Por agora, ganhariam uma bolsa-emergência, dinheiro o suficiente para se manter até que a situação seja regularizada.
A cidade iria receber comunicação urbana especial, lembretes pela cidade para dar suporte emocional e mental para a população.
A internet seria aumentada nas ruas para a população utilizar aplicativos de acessibilidade e fazer consultas online.
Porque o Papai Noel acabou também sendo infectado, o antigo governo se manteve no poder e tomou decisões certas. É claro que contamos também com recursos essenciais que a maior parte dos países não tinham. Para não gerar nem um mal estar em mim e em você, meu amigo, prefiro não entrar em detalhes sobre o que aconteceu nesses países.
Fiz parte do grupo dos não infectados. Me lembro bem do caminho para as instalações do governo, em cada esquina agentes de segurança colavam cartazes com os seguintes dizeres:
                                       Lembre-se: GOOGLE
                              Se esqueceu, acesse GOOGLE.
                             Se tem dúvidas, acesse GOOGLE.
                             Se precisa de ajuda, acesse GOOGLE.
                             Você está bem. Vamos ficar bem.
                                          Governo Federal.
Os agentes passaram a usar roupas brancas para não gerar ainda mais medo e ansiedade - não resolveu tanto, é claro. Eu corria de suas figuras e do que elas representavam, mas tive que conviver com elas por quase cinco meses. Dessa vez eu não era a cientista, era a cobaia. Não consigo dizer quantos litros de sangue perdi para os testes. Examinaram meu útero, estimularam meu corpo a produzir leite e exploraram sua química. Fiz testes psicológicos, testes físicos. No fim ganhei uma tag: Desperata.
Se antes existia o grupo dos infectados, agora havia também os Desperatos. Nós somos aqueles que não esquecem. Um grito de racionalidade e emoção consciente nos tempos das sombras. Nas instalações descobri que ganhamos esse nome porque a doença que nos afeta é o desespero. E afeta mesmo. Ela chega ao ver com a mente sã a sociedade colapsar, a história se perder, as decisões irracionalizarem. Por isso o índice de suicídio entre nós é altíssimo. No começo eu consegui conviver bem com minha sanidade. Fraquejei quando começaram a nos colocar em posições de poder.    
Medidas paliativas para o medo e a ansiedade aumentavam, mas também cresciam os acidentes, pois os casos estavam se tornando mais críticos. Alguns pacientes estavam começando a perder memórias recentes. Pela cidade sem vida, sem carro, com poucos mercados e pouca polícia, todo acidente era fatal. Sem esperança, nós, os Desperatos, nos tornamos Deuses e Deusas. Nenhuma decisão era tomada sem antes consultar um dos nossos grupos. No terceiro ano, por ser um deles, comecei a fazer parte do alto escalão do governo. Era uma guerra. Apontávamos um caminho e éramos prontamente atendidos. Chegamos a eleger senadores, deputados e até presidente - depois que o antigo finalmente foi infectado.
Com o tempo gangues se formaram entre os Desperatos. Esquerda, direita, centro. Se transformaram em partidos autoritários. Melhoras deixaram de acontecer por guerras internas e logo a morte deu as caras.
Isso, meu amigo, é o que um Estado de primeiro mundo pode virar em cinco anos caso a resposta não seja encontrada logo no início. Enquanto a sociedade morre, o passado perece e os Desperatos guerreiam, eu e mais um grupo trabalhamos para buscar o milagre na história.
Se chegarem a receber minhas palavras, tenham o cuidado de espalhar ela por aí. Não fiquem com medo. Não agora. Recontem. Quando o tempo chegar, vocês já sabem o que está por vir e já conhecem aqueles preparados para tomar decisões. Comecem, o mais rápido possível, a investir em pesquisas para doenças relacionadas à memória. E relembrem nossa história. Todos os dias. Não esqueçam quem são.
Estou tentando enviar também alguns dados de pesquisas que já realizamos. Talvez, por um milagre, alguém receba isso e consiga nos ajudar.
Mais uma coisa: tenham também a certeza de escolher o candidato Mike Gomez nas eleições, pois ele é um Desperato. Acredito que assim terá menos danos no início. Nem que seja por um curto período - mas que pode fazer toda a diferença.  
Ainda não estarei no mundo quando ouvir essa mensagem. Mas ao terminá-la, saiba que meu tempo aqui já terminou. Preferi as estatísticas dos Desperatos que um mundo sem passado.
Jessica Voller,
7 de outubro de 2142."
Ana afrouxou a gravata, prendeu seu longo cabelo em um coque desalinhado e sentou no chão. O receptor de ondas eletromagnética ainda estava ligado e apitando insuportavelmente. Suas mãos suavam e seu coração palpitava tão rápido que seu peito doía. Pensou na estante de livros em seu apartamento e em sua filha de seis anos. Sem precisar pensar mais, pegou seu notebook, encheu os pulmões e apertou ENVIAR.
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tudoatrasado · 6 years
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Smile
Muito além de trabalho, amigos, refeições, romances e entretenimentos, existem realidades ocultas. Bom, se você reparar bem, nem tão ocultas assim. Basta observar além das janelas, ler o que não está nas placas, notar certos movimentos. O outro mundo está logo ali, dobrando a esquina.
Para Sam, o logo ali sempre foi aqui e agora. Uma herança de família, passada como uma nota de um dólar. Existe e pronto. E porque sempre esteve aqui, ela nunca contestou.
Usava e abusava do que via e ouvia. Entrava na velha casa com o pé esquerdo porque tinha a certeza de que nada poderia atingi-la. E não se engane, os seres simples, esses que só vivem para trabalho, amigos e entretenimento, não chegariam ao nível da moça nem se tentassem por duas vidas inteiras.
Por onde andava, sempre a atenção e o fascínio, e por isso sempre ganhava presentes. Um certo dia, um especial foi lhe dado. Não era seu dia de sacerdotisa, estava na velha casa somente para uma celebração. Mas uma velha mulher parou ao seu lado e sugou toda a sua atenção.
Usou um de seus dons para absorver a senhora. Tocou sua presença, mastigou sua energia. Era amarga e doce, salgada e açucarada. O cheiro que sentiu, porém, era de de desordem.
- Acho que tenho que conversar contigo, moça - sibilou a senhora - Estou bem ali, naquela sala. Se não vier, avise eles você mesma.
Como o medo não fazia parte do seu âmago, Sam a seguiu. Ignorou o sentimento de cautela que batia na beirada do coração e entrou com o pé esquerdo na sala mal iluminada.
- Você vai ficar rica - grunhiu a senhora quando viu Sam - Vai sim senhora.
Displicente como só ela, dispensou a frase de efeito com um gesto. Mas esse tipo de frase existe por um motivo e acertou bem no meio de Sam.
- Amanhã, a essa hora, vai estar rica - repetiu a senhora. Ainda sem resposta, continuou - Vou te dar ​24 horas de sorte. Só para você, aham, é só dizer que quer.
Esse não é o tipo de presente que as pessoas, comuns ou não, costumam ganhar, mesmo nas entranhas de Nova Orleans. Sam sentia nos ossos que a idosa estava falando a verdade. A curiosidade começou a bater forte na garganta e Sam não pensou duas vezes.
- Você está possuída por uma Loa? - perguntou Sam.
-  Não, menina. Sem loas, agora - disse a senhora jogando seus enormes e brancos dreads por cima do ombro - Me visitaram ontem, aham, sim, me visitaram. E me mandaram trazer esse presentinho para você.
-  Todo agrado tem um preço - desconfiou Sam. Como um gato manco, a idosa andou pela sala sem tirar os olhos da garota.
- O preço ​é 6 milhões de dólares rachado entre você e eu. Eu te dou a sorte e você joga na loteria. Quando ganhar, metade do prêmio é meu - sibilou muito próxima da garota - Cada uma faz sua parte e pronto, a casa dos seus sonhos é sua.
Informações nunca são confidenciais para quem sabe ler o outro mundo. Sam pensou pela milésima vez naquela semana em como seria a decoração de sua casa, como gostaria de uma moto em sua garagem. Já lidou com magias mais obscuras que a sorte, por isso, estendeu a mão para a mulher.
A idosa apenas deu mais um passo em direção a Sam e soltou uma baforada azeda em seu rosto.
- Até amanhã - prometeu.
                                                         *********
Sam acordou com o barulho de plástico. Não sabia o que era e nem queria saber - já havia acostumado a dormir com coisas terríveis a vigiando. Mas a moça se lembrou da senhora e, dura como uma tábua, sentou na cama.
Ninguém se pergunta que forma teria a sorte, mas, nem na imaginação mais alucinada de Sam, ela havia esperado por aquilo. A sorte era verde como mato fresco. Redonda no centro, pontuda no topo e um pouco achatada na base. Exibia um sorriso plastificado acompanhado de um par de olhos tão grande quanto.
A sorte, Sam constatou, era um João Bobo de quase dois metros.
Sam levantou atordoada. Tentou dar alguns passos em direção a criatura mas bateu seu mindinho na beirada da cama. Xingou todas as Loas e amaldiçoou o mundo. Quando alcançou cutucou a barriga do João Bobo com o indicador.
- Que merda é essa? Você é realmente de plástico? - perguntou Sam. Ainda mais confusa, continuou - ​Você é a sorte?
Não houve resposta. Empurrou, bateu e até chutou.Tudo o que o João Bobo fez foi retornar para sua posição original. Tentou ignorar e seguir a vida, mas ao sair do quarto percebeu que a criatura a seguia.
Grande e pesado, ele ia arrastando um lado e depois o outro, de forma surpreendentemente rápida.
Antes que pudesse decidir o que fazer, o celular tocou.
- Oi Sam, é o John. Você acabou de ganhar um iPhone na rifa da universidade! Que loucura que fo....
João Bobo sorria para a moça. Abaixou o telefone desconfiada e o escutou falando em sua cabeça: "Que sorte, um iPhone!".
Petrificada, perguntou: - Então... você é mesmo a sorte? - perguntou ao fechar a porta.
"Claro que sou", escutou em sua cabeça. - Você não fala?
"Estou falando agora", respondeu o João Bobo da mesma maneira.
Sua próxima pergunta foi cortada por mensagens chegando em seu celular. Contou sete, no total. Uma dizia que ela havia ganhado uma assinatura da HBO. Outra, contava que seu número foi sorteado para receber notícias grátis de famosos.
Aquilo estava mesmo acontecendo com Sam.
Tremeu de ansiedade e foi tomada pela sensação de poder que normalmente sentia na velha casa. A confusão começou quando seu smartphone vibrou, escorregou e caiu na única ponta solta do assoalho. Mas a moça estava animada demais, nem se deu ao trabalho de recolher. Recorreu ao notebook para encontrar a lotérica mais perto de sua casa.
A jatada de bosta de pombo que atingiu o Mac também não tirou a felicidade de Sam. "Nessa noite vou estar rica", dizia para si mesma. Compraria outro Mac e também uma casa, uma motocicleta e, quem sabe, uma passagem de algumas semanas para a América Latina. Colocou seu melhor vestido, pegou sua bolsa, seu amuleto de penas e saiu com a sorte na cola.
                                                      ************
A sorte não dá a mínima para o que você acha. Ela é imprudente, desumana e possui as próprias regras. Sam só percebeu isso quando saiu de casa e pisou não em um, mas em dois cocos.
“Em alguns lugares acreditam que coco significa que você vai ganhar dinheiro”, sorriu a sorte enquanto caminhava pesadamente ao lado de Sam. Segundos depois um bolinho de notas de dois dólares e algumas moedas foram parar embaixo da bota da moça, que escorregou e parou em uma ridícula semi-abertura. “Ah, que beleza, está vendo? Dinheiro... Coco...”, anunciou o João Bobo balançando de um lado para o outro.
A paciência de Sam acabou quando a moça dobrou uma esquina e se viu no chão, atropelada por uma bicicleta de pôneis rosa. “Como é a vida! Viramos bem na hora que a garotinha estava passando”, comentou a Sorte.
- Chega! - gritou Sam - O que está acontecendo?
O João Bobo se arrastou para trás, como que para enxergar melhor a moça. “Você foi presenteada com sorte, esqueceu?”
- Claro que não. Estamos indo agora gastar ela - lembrou Sam - Foi me dada sorte, e isso tudo que está acontecendo parece ser...
“Má sorte, como vocês chamam?”, complementou o João Bobo. “Minha querida, sorte e má sorte são nada mais que a mesma força. ​O que decide o que são acontecimentos aleatórios ruins e bons é a sua opinião.”
Existe uma regra básica sobre o oculto que Sam havia esquecido. Cruzou os braços e lembrou de sua avó falando no tom sombrio de sempre: "Todas as energias não são apenas forças da natureza. Por isso, menina, é perigoso brincar com elas". Ela se amaldiçoou por ter caído na pegadinha. Andar com a sorte era como andar com um imã do caos no pescoço. Quem seria louco de querer isso?!
“Veja pelo lado bom, poderia estar chovendo”, falou a Sorte tombando um pouco para trás para poder olhar o céu azul.
Sam empalideceu ao pensar em raios a atingindo. O amuleto pesou no bolso de seu vestido e fez a moça se lembrar que ela não tinha medos. Tocou-o e, mentalmente, começou a entoar um cântico de proteção.
“Ahhhhhh, assim você vai ficar consciente demais! Ai vai começar a vigiar seus passos, reparar no mundo - lamentou a sorte com seu sorriso - O cuidado espanta o acaso. Sorte não existe sem casualidades. Você quer que eu vá embora?"
- Você é assustadora - sussurrou Sam com olhos arregalados.
A opção que ela tinha era entoar sua proteção, dar meia volta e voltar a viver sua classe média chata. Mas a moça queria a grana e estava disposta a arcar com as consequências.
Não, ela não era mesquinha, não se importaria em dividir os milhões com a velha canalha, mas teria que sobreviver àquele dia.
“Uma diquinha: para de pensar e aproveite a vida!”, soltou o João Bobo.
Assim eles voltaram a caminhar, Sam concentrando para não calcular cada passo e a Sorte cantarolando ao seu lado. Os quatro quarteirões que precisava vencer para chegar à lotérica pareciam ter quilômetros.
Uma pequena planta caiu do segundo andar logo na cabeça de Sam. Ela apenas balançou seu cabelo e continuou andando. Encontrou um ex-namorado de dois anos atrás e esbarrou com a ex-namorada do mês passado - olhou para o outro lado ao passar por eles. Perdeu a conta de quantos descontos gritaram para ela ao passar por bares, restaurantes e farmácias. Flores das poucas árvores que habitavam as calçadas caíram sobre ela. O sinal de dois quarteirões fechou assim que pisou na faixa de pedestre, e no terceiro semáforo, quase foi atropelada por uma caminhonete - ela não sabia, mas o foco do motorista estava no telefone que tocou no momento em que ela parou na esquina.
Pisou com o pé esquerdo no bloco da lotérica. Ia correr para alcançar mais rápido a loja, mas um tapume soltou do segundo andar de um antigo prédio. Foi salva por um homem careca e corpulento que passava pela calçada.
- Nossa moça, por pouco não caiu em sua cabeça - disse o homem assustado - Você está bem?
Sam caiu de mal jeito em cima da perna esquerda, que começou a latejar de um modo estranho. "Isso tem que acabar logo", pensou. Ignorou a pergunta do homem e mancando se arrastou para a lotérica.
Suja, machucada e descabelada, ela reclamou um bilhete e uma caneta. Escolheu os números deliberadamente e considerou: "Eu vou ganhar na loteria porque eu vou acertar os números que serão sorteados ou eles vão sortear os números que eu escolhi?"
"Isso importa?", respondeu o João Bobo ao seu pensamento.
Ela não queria mais viver aquele dia. Queria mesmo é deitar ali e chorar até preencher as 15 horas que ainda tinha de sorte. Desejou que o João Bobo explodisse em mil pedaços. No fim, ela decidiu pedir raspadinhas para passar o tempo. Gastou meia hora raspando e ganhando outro bilhete, até que isso também a irritou e ela decidiu voltar para casa.
A Sorte sentou com ela no banco de trás dos três táxis que pegou para vencer - novamente - os quatro quarteirões. O primeiro atropelou um senhor, o segundo caiu em um bueiro e perdeu a roda e o terceiro a entregou um código premiado com desconto para a próxima corrida. Com a perna machucada, se arrastou pela escada de sua casinha e se atirou em seu quarto.
Sempre acreditou que o edredom surrado do Mickey poderia protegê-la de qualquer coisa. Se enrolou nele como uma criança e entrou debaixo da cama. Saiu de lá às 8pm para conferir na TV seu bilhete da loteria e se assustou com o barulho de sua cama caindo. Por sorte ​não desabou nela.
O fim da noite não teve pressa em chegar. Antes que a meia noite chegasse, Sam se permitiu cantar a canção da purificação. Segurava junto ao peito seu bilhete premiado. Ao recitar as últimas estrofes, seu celular parou de vibrar. Apesar de caótico, seu quarto estava finalmente vazio.
- Que a sorte vá para o inferno - cochichou Sam com medo de o João Bobo escutar, onde quer que ele estivesse.
                                                      **********
Mesmo que sua perna esquerda não estivesse quebrada, Sam entraria do mesmo jeito na casa velha: com o pé direito. Havia ficado fora apenas uma semana, mas muito havia mudado. Como sempre, uma multidão a esperava, e quando encontrou tantos olhares ela segurou a respiração com receio de encontrar um em específico. Sabia que a senhora estava a mais de 300 quilômetros dali, gastando seus milhões. Mas por via das dúvidas, Sam balançou a pena em seu pescoço e faz um sinal de proteção.
Não comprou a casa, de repente se viu sem coragem de morar em lugar tão grande. Tampouco adquiriu a moto, duas rodas eram poucas para alguém que queria continuar viva. Seu celular novo estava na bolsa, mas o Mac cagado continuava em seu quarto. No banco, seus três milhões estavam envoltos a algo que ela não conseguia desembrulhar, uma magia que ela ainda não havia descoberto como quebrar. Essa força passou a acompanhá-la por onde ia, inclusive até a velha casa. Era ao contrário da sorte: cautelosa, congelante e metódica. Mas a nova milionária não praticante acreditou que, com um pouco de sorte ela conseguiria se desfazer dessa nova magia chamada medo.
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tudoatrasado · 6 years
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Água
O deserto chegou na boca de Ana. Árida e seca, sua língua estava pedindo socorro aos dentes sujos de salgadinhos. Esses, por sua vez, já não aguentavam mais trabalhar e haviam desistido de viver.
Foi um longo dia e Ana compensou em comida toda a picaretagem do seu chefe e a babaquice do seu professor. Dava para fazer anjos de neve na cama coberta por embalagens dos produtos mais doces e salgados que ela havia encontrado no supermercado. Ao seu lado, Mister Obama​ ​tentava roubar - com certo sucesso - migalhas das porcarias que sobraram. Os dois estavam confortáveis alí, ela com pijamas de flanela e ele com um casaquinho de tubarão assistindo às piores séries que tinham encontrado no Netflix.
Fora o vento que balançava ocasionalmente a janela, nem um latido era ouvido. Sua rua era a mais bairrista de todo o bairro, daquelas que senhorinhas vigiam a vida pela greta do portão e senhorinhos fofocam sentados na porta de suas casas. Era assim que Ana preferia a vida: com uma pitada de calma e muito silêncio para acompanhar. Por isso, naquela noite, seu grito provavelmente acordou parte da vizinhança. Um berro inconsolável de dor por ter percebido que precisaria levantar da cama para tomar alguma coisa. Sua boca ficava mais seca a cada segundo. Nem a vasilha do Mister Obama tinha uma gota de água - sim, Ana havia pensado nisso.
Vencida pela natureza, a moça tirou o celular de cima da barriga e se arrastou para fora da cama.
O corredor era uma penumbra. Mister Obama tomou coragem e foi na frente. Com um suspiro, Ana ligou a lanterna do celular e começou deslizar suas pantufas pelo piso frio. Escutou o chiar da geladeira e ouviu as patinhas fofas de gato na bancada da cozinha. Não se deu ao trabalho de ligar o interruptor do corredor quando passou por ele. Foi quase chegando na cozinha que sentiu.
O vetinho veio de trás da Ana. Vetinho não, uma respiração, concluiu a moça, pois era quente e leve. Deu um pulo para frente e se virou, sentindo que na esquina do corredor tinha alguém com ela - e não era um gato. Em um pulo ascendeu a luz da cozinha e encarou o ambiente com olhos arregalados.
Não havia nada lá, é claro. Mister Obama, em seu capuz de tubarão, a julgava fortemente.
Com a mão no peito para acalmar o coração, colocou o celular ainda aceso na beirada do fogão, deu mais uma olhada no ambiente e bebeu seu copo d'água. Quando estava na metade a luz da cozinha começou a piscar. Ana travou, o copo tremeu em sua boca. Mister Obama eriçou seus pelos e correu para o canto da cozinha.
Naquela noite Ana constatou que as pernas humanas têm vontade própria pois, quando percebeu, ela já estava marchando de volta para seu quarto. Não sabia que conseguia dar passos tão largos, até que seus pés falharam e como uma criança de três anos, escorregou na água que ela mesma derrubou no processo. Imaginou a cena e concluiu que foi ridícula -
ainda mais se levar em conta suas pantufas da Mabel Pines. Mas não se importou com a difamação própria pois, ao levantar, viu uma silhueta na esquina do corredor.
Era comprida demais e escura como um buraco negro. Se Ana reparasse bem, iria perceber que a silhueta tinha cabelos.
O som da porta do quarto batendo estourou em todo o apartamento. A chave deu duas voltas na fechadura e a janela foi aberta. Lá fora, o mundo continuava o mesmo.
- Isso não está acontecendo, não pode ser! - choramingou Ana.
Mas estava acontecendo. Por isso ela se virou para a porta e pensou em não abrí-la nunca mais. No entanto, três coisas passaram pela sua cabeça. A primeira delas era que seu gato estava lá fora com aquele ser. A segunda foi que seu celular havia ficado na cozinha. E a terceira, mas não menos importante, sua virilha estava muito suada. Não ia deixar Mister Obama sozinho lá a noite inteira - ou, no caso, a vida inteira. Precisava pegar seu telefone para pedir ajuda.Tinha que achar uma toalha para enxugar sua virilha.
Concluiu rápido a terceira tarefa e logo se preparou emocionalmente para realizar a primeira e a segunda.
O corredor continuou um breu. Abriu e fechou rápido a porta tentando ver pela fresta se havia alguém lá. Repetiu o ato algumas vezes até certificar de que nenhuma silhueta a esperava. Depois tirou os piscas de led pregados em sua parede, os ligou na tomada próxima à porta e o jogou no corredor. Deu certo. Apesar de não ser grande o bastante para cobrir todo o local, seria o suficiente para ela correr até o interruptor.
Não houve sustos no corredor. Ana chegou na cozinha e viu seu celular ainda com a lanterna ligada. Não demorou a encontrar Mister Obama, uma barbatana saia de dentro de uma grande panela na prateleira. Correu até ele e o apertou, beijando rápido sua cabecinha. Com a cozinha bem iluminada, mandou mensagem para ​Gabe.
S.O.S Acabei de ver o capiroto no corredor. Estou morrendo de medo. O que eu faço? ME AJUDAAAAA
Não que um grande nerd saberia como expulsar um espírito. Mas Ana achou desolador passar por aquilo sozinha. Na melhor das hipóteses, Gabe poderia ir dormir com ela. Mas a última vez que o amigo olhou o Whats App eram duas horas e meia atrás. Ana não podia esperar. Segurou Mister Obama mais firme e pensou em alguma saída para aquela situação.
Não tinha nenhum crucifixo ou bíblia na casa, afinal, não havia motivo para uma ateia como ela ter algo do tipo. Recorreu, então, à internet. Com um olho no celular e outro na cozinha, clicou no primeiro site que dizia: ​Amuletos para proteger a casa de espíritos e energias negativas​. Não era uma lista extensa e Ana perdia as esperanças a cada objeto "sagrado" que aparecia na tela de seu smartphone.
●  Imagens de santos: Nada.
●  Planta espada de São Jorge: só sabia que existia.
●  Mensageiro dos ventos: nunca teve, o som a irritava.
●  Imagem de elefante: Como assim?!
●  Olho grego: só conhecia beijo grego.
●  Sal grosso: tinha.
Pronto, algo com que poderia trabalhar. Pesquisou ​como afastar espíritos usando sal grosso ​e abriu um site que dizia:
É normal conviver com forças malignas que nos tiram do eixo e trazem para nosso mundo energias ocultas. Para te ajudar aqui vão algumas dicas para afastar tais seres.
1. Sal O sal é usado como barreira oculta. Jogado pela casa, ele pode prevenir que um espírito se aproxime do local. Mantendo pensamentos positivos, salpique sal em todos os cômodos.
Isso Ana conseguia fazer. Naquela altura, preferiu acreditar que resolveria. Colocou Mister Obama no chão, abriu o armário e pegou o pote de sal. Começou jogando nos cantos da cozinha, na pia e nos armários. Suas mãos estavam geladas de medo, e quando a luz da cozinha piscou três vezes, ela começou a acreditar em Deus. Sobressaltou com o som dos piscas estourando no corredor, mas manteve a compostura e como uma competidora olímpica arremessou um punhado de sal grosso no caminho que iria passar. Atirou no banheiro, na sala e, por último, chegou ao seu quarto.
A lógica só atingiu Ana quando ela olhou para sua janela. Se isso realmente funcionava e ela havia jogado sal em todo o apartamento de menos em seu quarto, isso significa que a entidade só podia, naquele momento, estar alí com ela e teria que sair pela janela. No impulso, despejou o pote inteiro no centro do cômodo. Depois chutou o sal por todo os cantos e até jogou um pouco pela janela. Respirou aliviada quando terminou.
- Tá vendo? Tá sentindo, menino? A casa está até mais leve! - gritou excitada para Mister Obama.
Ana ignorou que as orelhinhas do gato que estavam menos Barack Obama e mais deitadas. Ficou alguns minutos com ele no colo, sentada na cama escutando o silêncio. Como não aconteceu nada além da habitual calmaria, resolveu seguir sua vida. Conferiu se a porta do
seu quarto estava realmente fechada, aumentou o volume do Netflix e mandou uma mensagem tranquilizando Gabe - que ainda não havia respondido.
Naquela noite a tv de Ana ficaria ligada e Mister Obama dormiria dentro do seu pijama. Colou mais um edredon na cama para proteger bem os pés e deixou a janela aberta caso precisasse gritar. Ainda não acreditava que aquilo havia acontecido. Todo o cenário parecia tão surreal que Ana começou a desconfiar do que tinha visto e vivido. Apesar da dúvida e do cansaço, não conseguiu dormir direito e no alto da madrugada deitou de lado e pegou seu celular para passar o tempo.
Roupas, famosos e esportes. Nenhuma novidade em seu Instagram. Perdeu algum tempo por alí e logo quis se distrair em sites de notícias. Abriu a janela do navegador e viu que a aba do site sobre espíritos e entidades ainda estava aberta. "Definitivamente, essa foi a pesquisa mais idiota e desesperada que eu já fiz na internet", gemeu Ana. Leu o nome do site e riu da ironia: ​www.inesperado.com​. Rolou a página e percebeu que haviam mais dicas de como espantar uma assombração. Uma orientação chamou a atenção da moça e, instantaneamente, ela sentiu um frio na espinha.
6. Exorcismo
O exorcismo não é um ritual feito somente para demônios, mas também para encosto. Espíritos desse escalão costumam ser complicados de se livrar, pois nenhum dos passos acima espanta eles. Essas entidades estão onde suas vítimas estão, colados às costas, sugando suas energias como um parasita.
Nesses casos, aconselhamos a ajuda de um guia espiritual ou religioso formado.
O braço de Ana vacilou e seu celular caiu no travesseiro. Às suas costas, sentiu o colchão amassar levemente e um ventinho quente chegar ao seu pescoço.
Fudeu.
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tudoatrasado · 7 years
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Titico
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- Caralho, o que ela viu?! A mulher tem um nariz gigante! - choraminguei para o Orelhinha.
- Calma cara, você está vendo pelo ângulo errado - literalmente. Olhando de baixo para cima, o nariz dela é meio ferrado mesmo, mas ela é gatinha. Dá um desconto!
Olhei feio para o Orelhinha, como defender essa frangona? Ontem a Mãmãe inventou de levar a mocreia para a praça com a gente. O resultado foi coleira o tempo inteiro. Minha Mãe só tinha olhos para a Yoko Ono.
Isso tudo estava me cheirando a golpe. Pelo fedor da situação e das roupas, estou começando a achar que ela tem um gato. Ou um vira-lata.
- Você sabe que eu sei o que você está pensando, não sabe?
- Cala a boca, Orelhinha! Não tem que ir para o 302?
- Ah não, relaxa, a família ainda não voltou daquela viagem. Nada para fazer lá.
- Vai cuidar da sua morte então. Me deixa em paz!
Saí do box, passei pela privada em que Orelhinha estava sentado e fui fazer um pips na toalha de rosto que estava no chão. Mamãe mereceu esse jato quentinho.
Nada fazia sentido naquelas últimas semanas. Nenhuma ficava mais que sete dias. Essa está a tempo demais. Essa deixa nossa casa apertada além da conta. Essa atrapalha minha bagunça e a da Mamãe.  
Por pouco não morri do coração ontem a noite. Estava muito escuro lá fora para alguém aparecer na nossa porta. Lati que nem um louco, aquela cabeça cheia de cabelo vindo em minha direção com um bafo de bebida. Me trancaram no banheiro até a janela ficar clara. Mesmo com meu ossinho e minha cama, foi uma noite de morte lenta e cheia de barulhos. Que merda de ruídos eram aqueles? A embuste estava fazendo minha mãe chorar?
Quase caguei no tapete quando a porta do banheiro abriu com uma surra de carinhos. Até que enfim. Isso, esfrega minha orelha. Amo quando Mamãe me roça na cara dela, carinha o pescoço, minha barriga.... Ah, cara, a vida é boa. Mas me virei e lembrei que tudo não estava tão bem assim. Ela ainda estava lá. Ela estava lá demais.
Olhei confuso para Mamãe, ela me devia explicações.
- Para Titico, ela é amiga! Vamos lá, não fique tão duro assim.
Caramba, a ferrada ainda estava sentada no meu travesseiro, MEU TRAVESSEIRO. Lati alto, aquela bunda ia levantar no grito. Mas aconteceu o contrário. Enquanto mamãe me levava até a cama, a louca se ajeitou ainda mais na cama - e no travesseiro - e me carinhou. Caramba, ela sabe carinhar. Que bosta. Pescoço, orelhas… Ah não, barriga é golpe baixo.
De repente vejo a cena. O que minha Mãe está fazendo com a cara nela?
- Sai daí! Não faz isso! - lati desesperado.
- Ei Titico, é amiga, calma.
E foi alí que percebi que tudo estava fora do lugar.  
O chão era melhor que aquele colo falso. Mas o chão também tinha um pouco dela. A bolsa dela estava ao meu alcance. Nunca fui de comer sapato, mas quando vi aquelas sandálias feias quis rasgar em pequenos pedaços. A blusa estava jogada perto da minha água, e a calcinha… Ah, caralho, ela estava pelada em cima do MEU travesseiro.
Agora é tudo meu. Saí esvaziando o resto de pips que tinha na minha bexiga. Aquela sandália não parecia mais nova. A bolsa ficou com um cheiro ótimo. Deitei em cima da calcinha para ela nunca mais achar.
Sentado em seu lugar de sempre - a bancada entre a cozinha e o resto do loft - Orelhinha ficou só olhando e rindo de não sei o quê. Abri minha boca no melhor sorriso que pude dar, a língua para fora tremendo de ansiedade. Não demorou para a Outra perceber que foi roubada. Agora é tudo meu, queridona.
- Titico! - gritou Mamãe.
- Relaxa, Thalita. Só passar uma água - falou a mocreia tentando amenizar a situação.
- Caralho Titico, qual é o seu problema?
Meu problema? Essa mulher está falando sério?
- O quê ela está fazendo aqui? - lati.
- Cara, acho que dessa vez você foi longe. Relaxa um pouco aí, mano - interveio Orelhinha.
Me virei para ele, pronto para atacar esse babaca. Lati o mais alto que consegui.
- Titico, porque você está latindo para a parede? Eu estou falando com você! - gritou Mamãe. Depois decidiu me ignorar virou para a safada -  Vou te emprestar uma roupa para você ir embora.
Lati de novo, dessa vez para o que minha Mamãe ia fazer. Não havia sentido algum em sujar a roupa limpa com essa intrometida. Mas ela não me escutou. Bateu a porta quando saíram sem mais nem menos.
Choraminguei, esquecendo por um momento que Orelhinha estava lá. Eu preferia ficar sozinho.
- Não vou te deixar sozinho, cara. - adivinhou Carinha.
- Fodas. Você nunca saí daqui mesmo.
- Cara, sua mãe tá feliz. Dá uma chance para a baranga. Vale a pena!
- Quem é você para falar em dar uma chance? Você está aqui desde que mudamos, a 56 anos atrás!
- Bicho, cachorro não tem mesmo noção de tempo - resmungou Orelhinha dando um tapa na testa - Vocês estão aqui a 11 meses.
- Caguei. O que estou dizendo é que você não pode vim com sermão sobre dar uma chance. Você podia ter ido embora quando aquela mulher apareceu aqui. Você pode sair por aquela porta a hora que quiser, mas não faz absolutamente nada!
Orelhinha me encarou com seus olhos azuis sem brilho. Depois, como se decidisse que iria fazer algo sobre a morte, soltou da bancada, deixando na pedra um rastro fantasma de sangue seco.
- Cara, vem aqui comigo.
Ele parou em frente ao fogão. Quando cheguei perto enxerguei meu próprio reflexo na lateral metálica do eletrodoméstico.
- Olha bem, você é esse cara branquinho, pequeno, boa pinta, cheio de vida. Você com raiva parece um poodle de madame que acabou de fazer coco na própria pata.
- É sério mesmo que você me chamou aqui para isso?
- O que eu quero dizer é que você é bem cuidado, tem felicidade nos olhos, cara. Sua mãe te ama e você ama ela. Ela está feliz com a Outra. Eu percebi tarde demais que eu tinha a chance de ser feliz com a minha mãe. Hoje não entendo porque brigávamos tanto - confessou Orelhinha -  Dá uma chance para essa menina, cara.
Orelhinha passou a mão em minha cabeça, tentando o bagunçar meu pelo. Tudo o que senti foi um leve vento. Gosto desse fantasma boa vibes, viu.
Choraminguei um agradecimento e fui esperar a Mamãe na porta. Não demorou muito para eu escutar o elevador subindo.
Ela abriu a porta devagar, olhando preocupada para mim. Uivei as melhores desculpas que eu podia oferecer, ela saiu a pouco tempo e eu já sentia falta dela. Com um suspiro, ela ajoelhou e me pegou em seu colo quentinho, me colocando de frente para encostar nossas cabeças.  
- Ei menino. Vamos dar uma volta, tá bem? - anunciou ela.
- Sério? - Lati.
- Mas antes, deixa eu limpar essa bagunça que você fez.
Mamãe se levantou e rumou para o armário da cozinha, atravessando Orelhinha, que jogava um vídeo game imaginário na tv desligada.
A praça estava verde e cheia de amigos. Quase apanhei de uns dois mal encarados, mas quase bati em três. Mamãe correu comigo por um tempão. Fiz pips nas árvores que queria para mim e, se não fosse pelo grito da Mamãe, tinha conseguido - finalmente - cruzar com um labrador.
Uma vasilha de água fresca me esperava perto da Mamãe. Enquanto eu tomava, ela me estudava sorrindo.
- Pronto, agora vamos descansar - disse ela me puxando para mais perto - Preciso conversar com você, meu filho.
Choraminguei com o que estava por vir e lambi seu rosto, sentindo o gosto de maquiagem e café.
- O dia em que fiz o seu parto e senti uma coisinha branquinha e peluda na minha mão foi um dos dias mais felizes da minha vida. Você é minha família e meu companheiro. Nunca vai deixar de ser. O que quero te falar é que amor e atenção são coisas diferentes. A atenção não precisa do amor, mas o amor precisa da atenção. Eu te amo, meu filho, e sinto muito se não te dei atenção o suficiente nestas últimas semanas.
Encostei minha cabeça em seu pescoço, sentindo algumas lágrimas caírem em mim. Sim, sua feia, você só tem olhos para ela agora. Mas eu também te amo.
- Clara é legal, você vai ver. Ela vai entrar nas nossas vidas agora e queria que você não ficasse tão difícil com ela. Seja um bom menino, está bem? Você nunca vai sair do meu lado. Só fica bonzinho com ela, por favor.
- Se não tem outro jeito, vou tentar. Só precisamos estabelecer uma coisa: nada de bunda suja em nosso travesseiro.
- Outra coisa. Clara vai ir morar com a gente.
O quê? Que merda é essa?
- O contrato do apartamento dela está terminando. Ela está procurando um lugar mais perto do trabalho para ficar, e nossa casa é o lugar perfeito. Não faz essa cara, Titico, ela é ótima e pela primeira vez não vamos estar mais sozinhos. Vai ser bom dividir nossa vida com uma pessoa.
Diferente do orelhinha, Mamãe não consegue ler meu pensamento. Ainda bem, no caso, pois ela ia cair para trás ao descobrir o tanto de palavrão que já aprendi.
- Vai ficar tudo bem, tá? É legal ter pessoas novas em nossa vida. Vamos enfrentar isso juntos, tá bem? - prometeu ela.
Uma semana depois a Outra bateu em nossa porta com malas e caixas. Havia um cheiro esquisito em tudo dela. Cheiro de pips ácido. Aroma de bafinho de peixe.
Clara entrou com tudo, colocando as caixas em cima da bancada e atirando as malas na cama. Tudo parecia rápido demais, tão acelerado que custei a notar uma forma peluda que a seguia. Até que eu finalmente identifiquei o odor.
- Titico, esse é o Salsicha, seu novo amigo - enunciou Mamãe, apontando para o gato lento e peludo que se lambia no meio do loft.  
Fudeu.
De repente nosso apartamento ficou apertado além da conta. Um gato? Um GATO GORDO?
Mas olhei para a Mamãe. Ela estava sorrindo aquele sorriso de sábado de manhã, de passear na praça comigo, de banho quentinho no inverno.
Engoli o gato.
- Pessoas novas na nossa vida, certo? - Lati para ela - Vamos enfrentar isso juntos.
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tudoatrasado · 7 years
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Uma crônica sobre Ellas
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Começou com uma incubência. A tarefa era escrever sobre alguém que eu sempre esbarro, mas nunca troquei mais de duas palavras. Uma crônica, uma personagem. Uma análise no escuro. Simples como tirar leite de pedra.
Meu recente estudo sobre o gênero me mostrou que o tema, esse lindo que dita o tom das crônicas, está ali, à espreita. Incrustado nos mais pequenos acontecimentos.
E é aqui que mora a pegadinha: quem tem olho para o simples já levou a loteria da vida.
Fiz o inevitável, coloquei minha mente para trabalhar nos detalhes do dia a dia. Ela vagou pelos rostos conhecidos de estranhos, tentando desesperadamente espremer o explícito. Surpreendentemente, não demorou muito para meu pensamento parar nela. Sim, uma ótima figura. Como não escrever sobre ela? Ou, melhor: como escrever sobre ela?
Ela lá embaixo, eu cá em cima no apartamento 304. Aquela personagem tímida, mas viva, vagando pelos cantos, cruzando meu olhar. Trombando comigo nas esquinas e padarias.
Mas, espera aí. Não posso escrever sobre ela. Não sei seu nome.
“Ótimo, posso viajar ”, pensei, esfregando uma mão na outra. “Ótimo nada”, corrigiu minha consciência. “Você passa por ela praticamente todos os dias úteis e nem sabe seu nome?”
Caramba. “Ótimo de novo. Encontrei um tema, não é mesmo?!.”
Decidi chamá-la de Ela. Acrescentei mais um L porque Ella merecia algo mais criativo.
Ella apareceu pela primeira vez a uns cinco meses atrás. Apareceu para mim, é claro. Por aqui, Ella estava a mais tempo. Batendo ponto um dia sim e outro não. Sua roupa escura, cabelos presos em um coque. Em um canto da garagem, uma sacola com seu almoço. No outro, sua filha.
Sempre achei que fosse neta até um dia escutar a pequena gritar mamãe. Assim como ela, o grito foi divertido. Havia acabado de matar uma barata e estava orgulhosa do feito. Ella xingou baixo e a mandou de volta para o murinho da garagem.  Se você descer lá agora vai encontrar seus pequenos rabiscos de giz, um modo de matar o tempo enquanto sua mãe corria com o trabalho.
O rosto de Ella é aquele tipo de rosto que sempre me lembra de ser educada com a batalha dos outros. Topo com eles por todos os lugares - ônibus, metrôs, fast foods, minha casa.
Apesar da cortesia - que no fim não garante muita coisa a não ser a própria educação - nunca troquei com Ella mais que um bom-dia e um minha conta de luz está atrasada. No alto da minha tarefa me perguntei: que tipo de conversa eu teria com Ella? Qual tema agradaria tanto Ella quanto a minha crônica - uma vez que tenho a liberdade do desconhecido?
Conversaríamos sobre sua filha? Ella me contaria sobre sua família? Xingaríamos juntas os políticos? Será que me pediria algo?
Certeza que em algum momento mencionaria onde mora. Eu perguntaria quantos ônibus tinha que pegar para chegar alí. Iria torcer para ser só um. Pra mudar de assunto, ia emendar um: você trabalha em outro lugar?
Ella tinha mãos de quem responderia sim, trabalho.
Minha tarefa continuou comigo estudando seu ambiente de trabalho. Vassouras, desinfetantes, pá de lixo e panos. Tudo organizado nas arestas. Se espremendo para parecer invisível.
Tomei nota mental, fotografei com anotações.
Todo o quadro montado sobre minha personagem mudou quando acordei em uma segunda-feira de carnaval com o interfone insistente.
- Oi. Sou filho da Dona Leandra - Ou seria Leonira? Ou seria Leontina? - Vim buscar seus pertences.
Confusa,  disse que não conhecia essa pessoa e pedi para ele tocar na síndica. Vinte minutos depois recebi a mensagem: a faxineira do prédio havia falecido.
Consegui finalizar minha tarefa dentro do tema proposto e percebi que preferia ter escrito uma simples saudação ao anônimo. Uma viagem divertida ao planeta das suposições.
Mas não. Tudo terminou com certezas e tristezas.
Ela merecia um olhar mais cuidadoso. Um bom-dia mais espirituoso. Um "como está?" mais sonoro.
Uma crônica mais festiva.
Continuo conhecendo Dona Leandra como sempre conheci Ella: o suficiente para uma notícia dessas apertar o peito com mãos de ferro.
E decidi concluir essa crônica triste com uma saudação educada, mas de coração: à todas as Ellas da minha vida, um abraço carinhoso e um verdadeiro "prazer em te conhecer".
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