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A Volta do Parafuso, Henry James
Título original: The Turn of the Screw. Editora Hedra.
"Só poderia prosseguir pondo a "natureza" a meu lado e nela depositando minha confiança, tratando minha monstruosa provocação como um impulso nunca direção incomum, claro, e desagradável, mas exigindo afinal, para um confronto justo, apenas uma outra volta do parafuso da virtude humana comum."
A Volta do Parafuso foi um daqueles livros que surgem do acaso, pouco depois de terminar Fahrenheit e diante de uma viagem de 3 horas de ônibus para casa, eu precisava de algo para entreter meu percurso e sem nenhuma pretensão, peguei na estante da minha namorada a obra do sr. Henry James.
Narrativas de horror ou do gênero fantástico foram um dos grandes desenvolvimentos do século de XIX e algumas dessas histórias tornaram-se grandes clássicos como é o caso de Frankenstein e Drácula, mencionando apenas ingleses, e como grande admirador desse gênero acabei criando certa expectativa a obra que estava em mãos, porém diferente dos livros citados anteriormente, eu não tinha a mínima ideia sobre o que esperar de A Volta do Parafuso, seria uma narrativa com algum demônio? Um caso sobrenatural? Enfim, nada estava claro no momento em que peguei o livro, a única garantia que eu tinha era uma declaração de Oscar Wilde colocada no verso da obra: "A Volta do Parafuso é a mais terrível, sombria e venenosa narrativa que existe.". Desse modo, iniciei minha jornada.
O texto de Henry James possui a classe e a beleza da literatura do século XIX, há uma influência romântica no como o autor faz suas descrições e busca construir a tensão que perpassa suas personagens, em outras palavras, é inegável o primor que existe no texto do ponto de vista estético, acredito que essa seja uma das características mais marcantes entre os autores desse período. Entretanto, além da questão estética, a narrativa de A Volta do Parafuso, por mais bem-acabada que seja, passa bem longe da qualidade de outros autores do mesmo gênero. Essa percepção sobre o modo como a ideia do terror e os elementos que deveriam causam determinada tensão do leitor são apresentados me fez refletir sobre uma questão importante: Como atualmente a imaginação lida com as narrativas fantásticas? Existe uma grande falta de valor imaginativo nos leitores atuais? Pretendo discutir um pouco sobre isso ao longo do desenvolvimento do enredo da obra.
A narrativa de Henry James tem um começo fantástico, há uma captatio benevolentiae perfeita nas primeiras páginas, pois a narrativa é contada de modo que um narrador terciário a apresenta ao público, por intermédio de um relato escrito por uma preceptora que viveu os eventos descritos no livro. A forma como isso é posta garante um charme a obra: um grupo de amigos, reunido em uma casa ou talvez clube de leituras, escutam narrativas de horror e mistério todas as noites, porém em certa ocasião alguém se propõe a contar uma narrativa contendo duas crianças, utilizando aqui a expressão "duas voltas no parafuso", dando início a narrativa propriamente dita do livro.
No centro da narrativa temos uma jovem preceptora que é contratada por um cavalheiro para cuidar de seus sobrinhos, pois seu irmão e pai das crianças falecera, a principal condição imposta é que a jovem nunca entre em contato com ele, pois o senhor quer evitar qualquer tipo de aborrecimentos. A premissa de uma mulher e mais duas crianças em uma casa isolada no interior de uma floresta não é uma novidade nas narrativas de horror atualmente, talvez aqui entre o primeiro motivo que começou a desmoronar a minha expectativa enquanto ao texto, ou seja, imaginei uma história de casa mal-assombrada ou de possessão demoníaca, hipóteses que não se demonstram tão distantes.
O grande primeiro arco da narrativa é centrado no estabelecimento de relação entre a preceptora e seus discípulos, o casal Miles e Flora. A apresentação das duas crianças que tornar-se-ão centrais na trama é marcada por uma linguagem singela e romantizada, descrevendo a candura e pureza que ambos representam, entretanto, o primeiro mistério já é lançado a mão: a expulsão do menino do colégio que frequentava. Por incrível que pareça esse mistério se mantém até o fim, sendo um dos pilares da construção de tensão na narrativa. Juntamente com os dois pequeninos, uma terceira personagem é introduzida, a sra. Grose que desde o princípio é a representação de como alguém pode ser oblíquo ao longo do texto todo, fazendo com que a maior parte de seus diálogos seja enfadonhos.
Todo esse primeiro ato segue inserindo dúvidas na mente da preceptora e jogando com o leitor a cerca do caráter das crianças, que neste primeiro momento podem ser postas em um patamar angélico. A primeira inserção do elemento fantástico acontece quando a protagonista encontra um sujeito observando-a em determinada noite, causando certa perturbação a jovem senhorita. A partir dessa visão, toda a narrativa é marcada por aparições estranhas desse homem e posteriormente de uma mulher, que irão se revelar como antigos funcionários da propriedade, sr. Quint e a srta. Jessel, respectivamente.
Aqui começa o meu questionamento em relação a questão proposta sobre o efeito imaginativo do terror. Toda a construção e suspensão de descrença que o leitor deve ter é baseado na tensão criada pelo autor, seja apresentando questões pertinentes ou tentando de algum modo explorar aquilo que nos é inominável. Sinto que Henry James falha nesse ponto, pois em nenhum momento o autor conseguiu convencer através da protagonista ou das reações da sra. Grose despertar uma inquietação. Imagino que isso possa ocorrer por dois fatores: 1) Há um excesso de lógica na obra, pois a perspicácia com que a protagonista raciocina é bastante surpreendente, fazendo com que qualquer dúvida, mistério ou elemento fantástico seja "desmontado" ou "desconstruído" diante da sua mente, portanto, um problema da parte do autor ao optar por tamanha racionalidade; 2) O problema imaginativo como leitor atual, isso talvez seja demarcado por uma questão cronológica que infelizmente pode assolar algumas obras, onde a exploração do "horror cotidiano" que Henry James tenta trabalhar se mostra ineficaz, não conseguindo atingir mais o mesmo nível na contemporaneidade.
O segundo e derradeiro ato da narrativa é focado na exposição da verdadeira personalidade das duas crianças em questão e a possível ligação com o elemento sobrenatural que ronda aquela casa. Como a premissa de construir uma tensão com base no cotidiano e no mistério que cerca especialmente a figura de Miles não funcionaram para mim, todo esse arco se mostrou bastante arrastado, tendo apenas no final um "último fôlego". O que acontece é que a protagonista tenta a todo custo compreender a relação que os pequeninos têm com os antigos funcionários, considerados depravados, e aqui não fica claro exatamente qual a relação que eles tiveram, mas o autor deixa algumas pontas soltas indicando que houve algum caso amoroso e provavelmente uma relação de cunho sexual.
O fato é que as crianças do livro presenciaram e compactuaram dessa relação que existia entre os antigos funcionários e isso de alguma forma influência quem eles são hoje, fazendo com que a protagonista tente a todo custo prove que aquelas figuras angelicais não passam de uma fachada, e que as crianças continuam se comunicando com os espíritos da srta. Jessel e do sr. Quint.
O gran finale, que me decepcionou bastante, fica a cargo de um "embate" entre a protagonista e o jovem Miles, onde depois de 160 páginas de narrativa a preceptora toma coragem e pergunta ao rapazinho porquê ele foi expulso da escola, qual vilania ele havia cometido. Obviamente a resposta é vaga e frustrante, porém fica claro que havia uma influência direta do espírito de Quint como um tipo de possessão. Quando o jovem faz sua confissão a preceptora, o mesmo se vê livre e desfalece nos braços da protagonista, culminando em um final um tanto inesperado.
Enfim, A Volta do Parafuso é uma narrativa que tem seu primor, mas vai desvanecendo ao longo e termina em um final morno, porém serviu para me fazer questionar o modo de ler contos assim, como o terror é extremamente difícil de ser trabalhado na literatura e que é preciso saber dosar a racionalidade para que se alcance o efeito esperado. Da mesma forma, fico pensando a respeito dos leitores atuais, de toda uma geração que dificilmente irá "chocar-se" com as narrativas, que de tão bombardeada com o efeito visual do cinema e da Internet, não consigam mais desenvolver em suas mentes a abstração das imagens, às vezes tão detalhas, que os livros nos trazem, perdendo assim a chance de se encantar (ou aterrorizar) com essa magia chamada literatura.
Próximo livro Admirável Mundo Novo, Aldous Huxley.
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Fahrenheit 451, Ray Bradbury
"Não precisamos que nos deixem em paz. Precisamos realmente ser incomodados de vez em quando."
Primeiro livro de 2018!
Já faz um tempo que a obra de Ray Bradbury estava na minha lista de livro, porém foi apenas nesse fim de ano (e com uma promoção da Amazon) que decidi explorar essa distopia.
O livro começa de maneira lenta, sendo divido em "3 atos", o primeiro é dedicado a explorar o vazio interior que existe na personagem principal, Guy Montag, que após um encontro inusitado com sua vizinha, começa a observar o mundo a sua volta, em especial, o mundo em sua própria casa. Na minha opinião, esse arco da narrativa foi o mais intrigante, pois o modo como os questionamentos vão surgindo e as questões em si dialogaram bastante comigo e a minha realidade (não que eu queime livros ou seja bombeiro), revelando o quanto algumas relações de nosso tempo atual são artificiais, sem conteúdo e fugazes. A ideia de uma realidade virtual, hoje tão comum a milhões de pessoas, é assombrosa e em F451, apesar da simplicidade na estética futurista, gerou um desconforto imenso em mim. (Uma dose de Black Mirror colaborou um pouco).
O segundo arco serve para aprofundar as questões que surgem na primeira parte, levando Montag a tomar uma decisão crucial em relação ao modo com a sociedade e principalmente as pessoas a sua volta, como sua esposa, estão condicionadas a um looping: as conversas levianas, a "família eletrônica" e em último caso, como válvula de escape, o perigo e a adrenalina que a velocidade, no estereótipo dos supercarros na obra. Esta segunda parte é onde reside a maior parte da ação do livro e as representações mais evidentes desse futuro amargo que Ray Bradbury nos apresenta. Também aqui é onde fica claro que o protagonista sempre teve em si o germe do questionado, mas como a maioria de nós deixou com o comodismo e a aceitação do modelo social entorpecesse sua vida, levando-o a deixar esse sentimento de lado. O terceiro e último ato funciona como um tipo de revelação e demonstra as consequências das escolhas feitas por Guy Montag. É muito interessante notar que a solução apresentada para solucionar o problema dos livros e do conhecimento em si é a noção mais clássica o possível: a memória. Esse plot twist que surge na obra é talvez o ponto mais alto, pois em todo o momento cria-se alguma expectativa, como no caso do professor Faber, em conseguir resgatar em alguma medida a publicação dos livros, porém Ray Bradbury nos joga ao passado, na memorização, como ferramenta de recuperar a sociedade dentro de um futuro mais além, talvez no pós-guerra.
O livro termina com uma icônica alusão ao livro de Eclesiastes, memorizado pelo protagonista, onde são citados alguns trechos do capítulo 3, enfatizando que há tempo para todas as coisas. De modo geral, o livro me agradou muito, gerando uma reflexão sobre o modo como nos relacionamos e sobre a forma como a arte, em especial a literatura, preenche a vida e o intelecto humano, confirmando algo que eu sempre acreditei e digo aos meus amigos e alunos: ler é preciso, pois esse é o primeiro passo.
Leitura mais que recomendada.
A próxima leitura será A Volta do Parafuso, Henry James.
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