Text
Aos pés de Samantha

.
… e antes que possa
ocultar de si
as formas etéreas
que se estendem sob
planícies e vales e mistérios
de seu corpo,
antes que possa
fugir dos rasgos brilhantes
no céu negro,
das tormentas que irrompem
numa linguagem ainda confusa,
antes que consiga evitar
o indelével registro
do assombro
que pode, deve
ser não apenas parte,
mas o todo de si mesma,
sua imensa noite,
a cidade inundada
pelo rio que nela murmura,
e que a devora
com silêncio e tumulto...
antes que Samantha
possa não se haver
com a dor de um sonho
que não se quer gravado
nas maltratadas paredes
de sua memória,
mas que já está tatuado
na pele,
nas retinas,
nos labirintos escuros e úmidos
de seu coração...
antes do derradeiro suspiro
de sua torpe inocência,
do que se comprazia
em ser triste ou alegre,
Samantha olha,
finalmente olha para baixo,
mira os próprios pés enraizados
na terra molhada,
e entende que lá está o sonho,
ainda persiste o que nela sonha
mesmo depois de desperta,
e agora sussurra
esta outra realidade,
este subterrâneo que revolve
sob seus pés,
e o que ela sente,
o que ela compreende
ou tenta em vão compreender
é que sua vida,
que antes era sua,
e que sua história,
que antes era sua,
já não mais lhe pertencem,
e percorrem os campos
de um eterno outono,
e beijam as estrelas
rabiscadas no céu,
e singram os mares
como uma coisa sem nome,
o mundo recriado
no rastro de sua ausência.
Nua em solo sagrado,
Samantha sorri,
absorta com o fato
de que já não é ela quem sorri.
.
C. Bittencourt
0 notes
Text
Aos olhos de Samantha

.
… e antes que
possa se agarrar
aos vestígios do dia,
deste dia cindido
de sua vida cindida,
antes que possa
traduzir em palavras
o horror,
todo o horror
que submergira
seu coração nas águas
escuras do mundo desfeito,
Samantha sente sob a pele
o silêncio,
este silêncio definitivo
que dela se apropriou,
e pressente as trevas tomarem
o espaço distorcido
de seu corpo estirado
no bloco de gelo de sua cama,
convertendo em infinito
o que antes era
tão delicado e diminuto:
pois jazem,
pelos cantos indistintos
e presumíveis
de sua alma assombrada,
a vastidão das lembranças
esquecidas,
a eternidade do tempo
perdido e estilhaçado.
Estas sombras,
estes amplos salões
do irremediável,
do que se olvida
sem deixar de ferir,
talvez seja isso
um pesadelo,
o secreto pesadelo
de existir sem conferir
a si mesma existência
- o que não arrefece
o abjeto sentimento
de não mais sentir;
ao contrário,
intensifica a sensação
de estar apartada
de sua vida,
desta casa,
deste mundo.
Sem forças,
mas aceitando que isso
não pode servir
de justificativa
para não fazê-lo,
Samantha abre os olhos;
ela já não sabe
se está desperta,
não sabe sequer
se está viva,
mas sabe-se
testemunha,
a única testemunha
do que deveria ser impossível,
mas que lá está.
Sob a terra devastada,
longe do tumulto
e das ruínas de suas ausências,
tão distante do que nela
não quer desejar,
Samantha vislumbra
a ínfima parte de si
que vive,
que sonha,
que ama,
e que persiste
em ser Samantha.
.
C. Bittencourt
0 notes
Text
o sonho do astronauta

.
O astronauta sabe,
no fundo ele sabe,
ele já está
muito além
do mundo da lua.
De vez em quando
ele avista um ponto fugidio,
um rastro ou a sugestão
de uma diminuta presença.
Talvez
outros astronautas
perdidos entre as estrelas,
como ele?
Talvez.
.
Isto é seu,
sua mãe disse,
tanto tempo atrás:
isto é seu,
e apontou não o objeto em si,
mas o claro símbolo
que o permeava.
Alguns dias depois,
ela partiu.
Era uma vez,
era uma vez
o som de trovões
congelados na escuridão.
.
Quando viveu na Terra,
o astronauta já esteve
na Espanha,
em 1982:
o fim do mundo
no Sarriá abarrotado,
os italianos
encantados
com a certeza de que
Deus
era seu conterrâneo.
Para os brasileiros,
o apocalipse foi aquilo:
não a derrota da seleção,
mas o fim da ilusão
de que o belo sempre triunfa.
Para outros,
o apocalipse viria
algum tempo depois,
em 2001.
O século XXI
ganhando seus primeiros
e lúgubres contornos
nos ossos partidos
das torres desfeitas.
Para o astronauta,
talvez 2023
tenha sido seu próprio apocalipse.
Ou qualquer outro ano
do qual não queira se lembrar.
São tantos.
.
Agora, de volta ao tempo
que é seu tempo,
a este tempo
sem chão ou tramas,
o astronauta corre entre as estrelas,
ele que ainda acredita,
ou tenta acreditar
em novas histórias,
sonhos,
futuros,
outras estações.
A vida,
ela deve estar lá,
em algum lugar.
Ele ouve
o que deve ser
o murmúrio do tempo:
o abismo do espaço sem referências,
a noite imensa lá fora
e tão íntima no peito,
ele mesmo o abismo.
Para cada mundo em ruínas,
um fim.
Para cada fim,
um mundo renascido das cinzas.
Isto é seu...
Esta vida.
O astronauta mira as presenças remotas.
Talvez...
.
C. Bittencourt
1 note
·
View note
Text
Faça de conta...

.
Todos os dias,
muito cedo,
ele abria os olhos
e descobria novamente
o mundo.
Todos os dias,
ele abria a porta de casa
e partia mundo afora,
cheio de coragem,
e tão confiante.
Quando havia
manhãs azuis
e casas quentinhas
coloridas pelo sol,
envoltas pelo rumor
suave da primavera.
Isso foi há muito,
muito tempo.
.
Agora
(como se fosse possível
precisar um agora
em meio ao tumulto),
agora
é sempre tarde demais,
e não há mundo algum
para descobrir.
Agora,
a vida é simulada
entre os vãos
de números frios,
cronômetros,
porcentagens,
engrenagens,
as balas e as palavras perdidas
do dia a dia.
.
Ele está cansado.
Perdido.
Inquieto.
Um buquê tóxico
de ansiedades narcotizadas.
Basta,
ele pensa.
E é assim
que ele desiste de fazer
parte do inferno.
Faça de conta:
é o que ele diz
a si mesmo.
O horizonte,
tão belo,
um céu novamente
tingido de azul.
Faça de conta...
A primavera e as pétalas
de dias melhores
estão de volta,
e de volta,
o amor:
ao longe,
anunciando seu retorno.
E o futuro…
os amanhãs
que ele ainda pode sonhar,
que ele ainda guarda em segredo,
os amanhãs estão lá,
em algum lugar,
amalgamados no azul do céu.
.
Ele abre os olhos,
ou faz de conta que os abre.
Ele resolve partir,
e dessa vez,
dessa vez é para valer!
Ele parte,
ou faz de conta que parte.
Ainda há tempo,
ele acredita,
ou faz de conta acreditar.
Amanhã,
amanhã será um outro dia...
.
C. Bittencourt
0 notes
Text
exílio

.
Você enxerga o mundo
reescrito a cada passo seu:
as casas, as pessoas,
as palavras, os silêncios,
tudo mudou
ao sabor das histórias
que ainda ecoam
em bares vazios.
Os velhos dias
desapareceram e deram lugar
a outros tempos,
aqui onde crianças
com olhos de outono
descobrem novos meios
de odiar.
Você se lembrava,
não se lembra mais,
dos dias pretéritos
em que amou
sem medo de amar,
e das estradas
que levavam ao fins,
e também aos recomeços.
Você enxerga o mundo
colonizado por novos reinos,
todos indiferentes
à sua presença
- e é quando entende
que não foi apenas
aquela outra vida
que se desfez,
você também desapareceu
sem que ninguém notasse:
um sonho esquecido
ao despertar.
Você gostaria de dizer
que tudo vai ficar bem,
mas aqui,
nas terras áridas,
não há mais ninguém
com quem falar.
.
C. Bittencourt
0 notes
Text
Ao velho homem

.
Tantos anos depois,
quando a inocência
já havia se tornado pó,
quando todas as respostas
já haviam se perdido,
a mensagem escrita
em tempos esquecidos
ou mesmo míticos,
a mensagem enfim
chegou a seu destino;
encontrava-se,
no entanto,
desfigurada,
as letras como que
embaralhadas e apagadas
pela sucessão de chuvas
e ventos
a que fora exposta,
seu significado
destituído de si mesmo,
disperso em vales
e abismos de inexatas
suposições.
Ainda assim,
o velho homem
que a recebeu,
aquele que guardava no peito
todas as estações,
o velho homem
leu a mensagem
como se fosse possível
decifrar dos escombros
um veio de ouro.
Ele não se importou,
não se importou de forma alguma
em passar adiante
a antiga mensagem,
talvez porque
ela fosse apenas
para seus fatigados olhos.
O velho homem
que guardava no peito
todas as estações
decidiu que era hora
de escrever, ele mesmo,
uma outra,
nova mensagem,
talvez um epílogo
para a mensagem
a ele enviada,
talvez um prólogo
para outras mensagens
que porventura fossem,
em amanhãs distantes,
redigidas.
E assim ele o fez
com suas últimas forças,
e pediu que levassem
sua mensagem
para bem longe,
a outros tempos,
que entregassem
sua mensagem
ao velho homem
que guardasse,
como ele,
todas as estações no peito.
.
C. Bittencourt
0 notes
Text
427 graus à sombra

.
Quando nossos dias
enfim se esvaziaram,
quando nossos velhos amores
enfim se apagaram,
compreendemos
o quanto estávamos
quebrados,
o quanto estávamos
feridos
- já não restavam palavras,
já não havia sorrisos,
e tudo era ruína.
Quando a intrincada cidade se tornou
neblina e esquecimento,
e as crianças
deixaram de brincar nos parques,
e as ruas,
antes tão exatas e previsíveis,
deixaram de nos levar
aos nossos antigos sonhos,
há tanto tempo sonhados,
compreendemos que era hora,
já havia passado da hora
de partir...
Embarcamos no trem,
aquele que nos levaria para longe,
ao mundinho mais distante,
ao frio e ao silêncio que ecoariam
em nossos corações enregelados.
Precisamos partir
porque estamos partidos,
diziam os últimos poetinhas
de bar,
e mesmo os bares agora
jaziam vazios...
E assim dissemos adeus
aos ventos e a ninguém,
e partimos para longe,
naquela que seria
nossa derradeira jornada,
partimos para Plutão,
e lá encontraríamos a cortante rima
para o frio
que sentíamos de antemão.
Mas não,
não chegamos a Plutão,
nosso trem tomou
o caminho contrário,
por algum motivo ou enigma
que não compreendemos
nos dirigimos ao outro extremo,
e quando percebemos,
fazia um calor dos diabos,
estávamos no mais quente
dos planetas,
em Mercúrio chegamos.
E ao invés de deitar
em nossos túmulos glaciais,
ao invés de cerrar para sempre
as pálpebras de gelo,
deslizamos nossos corpos
em combustão
entre lençóis abrasadores
e sussurros ardentes.
Ainda não morremos,
ainda estamos em chamas!,
bradou um dos poetinhas.
E por isso,
contra todas as expectativas,
voltamos a brincar
com as crianças,
e a dançar em festas inventadas
sob o céu de cálidas manhãs,
e a deixar tocar bem alto
nos bares as alegres canções
que falam de nós,
dessa gente
que voltou a viver,
e dos dias subitamente lotados,
e de velhos e novos amores
que se acenderam
nos corações,
nas ruas,
nas incandescentes cidades de Mercúrio...
.
C. Bittencourt
0 notes
Text
O primeiro instante de Adão

.
Ele chega a este mundo
após o que parecem eras,
interminável prólogo
no seio da escuridão sem nome,
que ainda não havia recebido um nome,
as trevas em que definia a existência
como um longo diálogo com o silêncio,
o seu próprio e também o silêncio
que o acolhia e nutria,
e agora se vê expulso
daquele manto protetor,
e percebe,
com a chegada da luz abrasadora,
do burburinho intrusivo,
das violentas pressões
no que só pode ser compreendida
como uma massa informe de dor e suplício,
percebe o quanto estava equivocado,
e o quanto precisaria se esforçar
para retornar à escuridão
e aos sonhos apenas sonhados
no interior da caverna,
aquele paraíso perdido e inviolável
pelo que, em momentos vindouros,
entenderá como a marcha do tempo,
essa força árida e a ele hostil,
e por isso mesmo tentaria recuperar,
ao custo de sua sanidade,
ou o que quer que seja
este novo invólucro
que o preenche e também o impele,
e que um dia chamará de sua mente,
tentaria reaver aquele aquoso espaço
sem começo e fim,
fonte de todas as nostalgias
e saudades que seriam conformadas
pelas imprevistas experiências
reservadas tão somente a ele,
e que a ele imporiam uma história,
aparentemente única,
e que seria, também ela,
conformada por forças
que escapariam a seu controle,
e que depois ele definiria,
por necessidade de mera simplificação,
como seu destino,
mas a seu tempo,
porque tudo haverá de se moldar
às formas e tonalidades esculpidas
e tingidas pelo tempo,
ele descobrirá que não será seu destino
ou fará parte de sua história
retornar à escuridão,
que não será seu fim
recriar para si o simulacro
da noite que o precedeu,
e que ao diálogo dos silêncios
ele terá de sobrepor
a labiríntica sinfonia dos dias.
.
C. Bittencourt
0 notes
Text
Epílogo

.
Antes que tudo acabe,
percorra as ruas da cidade,
tente encontrar
perdida nas calçadas
aquela última flor,
e que não seja de vidro,
e que não seja fria,
e que exale o perfume
da saudade e dos sonhos.
.
Antes que tudo acabe,
torne a visitar
a noite em que conversou
com vaga-lumes
imaginando serem estrelas.
É isso a felicidade?
Habitar um céu de astros
que voam próximos
a seus olhos,
cujas trajetórias de luz
revelam não o peso do amanhã,
mas o leve instante do agora.
Foi isso a felicidade,
e durou tão pouco.
.
Conte as mil e uma histórias
que fluem em suas artérias.
Desenterre do peito
aqueles velhos sorrisos ocluídos.
Ouça seus sonhos,
suas esperanças,
suas dores.
Ame. Viva.
Antes que tudo acabe.
.
C. Bittencourt
0 notes
Text
A última marcha do último dia

.
Seu nome era Leto.
Leto era um agente secreto
da PULSEM - Pulsão Secreta de Morte.
A PULSEM era uma organização
cheia de gente malvada,
que pretendia destruir o mundo.
Era uma gente assim,
meio impulsiva
e totalmente estúpida.
Leto, como agente secreto da PULSEM,
sequer sabia que operava como agente secreto.
Era tudo secreto demais,
especialmente para ele,
que não entendia lá muitas coisas
do mundo em que vivia.
Leto se tornou,
depois de muitas patacoadas,
depois de falar e fazer muita besteira,
depois de ser tomado
como alguém que seria realmente capaz
de resolver todas as coisas na base do soco,
vejam só, Leto se tornou presidente
de um grande país.
Após a vitória nas eleições,
colocaram uma caixa
com um botão vermelho
nas mãos de Leto.
Mas o que é isso?, ele quis saber.
Agora o senhor é o tal,
senhor presidente!
É só apertar o botão e o mundo vai pelos ares!
Mas só faça isso em último caso,
senhor presidente!
Nos porões da PULSEM,
não foram poucos os agentes secretos
que comemoraram a surpreendente façanha.
Com brindes secretos,
numa festa mais que secreta,
esperariam pela inevitável dedada presidencial.
Agora, sim!
Agora o mundo veria o que era bom para tosse!
Destruição! Destruição total pelas mãos do imbecil!
Sim, mas… até mesmo a gente?, alguém perguntou, timidamente.
Todos se detiveram, as taças de champanhe
suspensas em gestos congelados.
Sentiram-se mais imbecis que o imbecil eleito.
Essa não, outro alguém sussurrou.
Leto guardou a caixa com o botão do juízo final
em seu guarda-roupa.
Se as coisas ficassem complicadas,
se o mundo se tornasse complexo demais
para a pequena esponja
que fazia as vezes de seu cérebro
(já o era, mas Leto não sabia disso),
então ele faria uso da bendita caixinha.
Faça um discurso,
senhor presidente!
Faça um discurso
para amedrontar os homens,
afugentar as mulheres
e traumatizar as criancinhas!
Seus assessores e aliados
queriam um discurso
para inaugurar o mandato,
para marcar território,
para dizer ao mundo que Aqui mando eu.
Na capital do país que,
de forma imperceptível,
mas inquestionavelmente,
se tornava uma inusitada
e imensa república de bananas,
Leto preparou seu discurso.
No palanque armado
em frente ao Monumento Fálico dos Presidentes,
Leto proferiria suas palavras com fúria,
certo de que seu trovão
não deixaria de ser ouvido.
Vamos falar do nosso amor à pátria
assim como nós a idealizamos!
Vamos falar do nosso ódio
aos que não se encaixam
com nosso modo de ser!
Vamos humilhar os diferentes,
os incapazes,
os que vieram de longe,
os que pensam demais,
os que sentem demais!
Vamos esmagar os que não se conformam,
os que não se adaptam à nossa ordem,
os que não se deixam ser explorados,
os que não se submetem!
Se vamos ser grandes,
precisamos que nossos inimigos
se apequenem!
Assim, Leto deu início ao discurso,
e fazia um belo dia,
e a multidão se calou para escutar seu novo ídolo sob o inebriante céu azul:
Cidadãos! É chegada a hora!
Uma bala mercurial
inaugurou um pequeno e fundo buraco em sua testa,
e Leto foi ao chão após dizer
É chegada a hora.
A dois quilômetros dali,
o malvado e destemido agente secreto
Héracles, da PULSEM,
guardou sua pequena e moderníssima
arma de longo alcance
no bolso interno do casaco,
então entrou num utilitário
que estava à sua espera.
Tudo certo, disse Héracles ao motorista.
Estamos seguros... não é?
O motorista, que não era tão malvado,
que não era tão destemido,
que era apenas indiferente, deu de ombros.
Na casa de Leto,
Erinys, sua filhinha de cinco anos de idade,
abriu uma porta do guarda-roupa dos pais
e descobriu a bonita,
linda caixinha azulada
com um convidativo botão vermelho em seu centro.
Toca música?,
perguntou à caixinha misteriosa,
e com um de seus dedos gordinhos
pressionou o botãozinho.
Deu-se início à Marcha Fúnebre,
de Chopin.
.
C. Bittencourt
0 notes
Text
O que assombra o fantasma?

.
Os corredores da escola
estão vazios.
As salas onde outrora
se davam as aulas estão desertas.
As cadeiras e as mesas,
antes orgulhosos veleiros,
agora jazem enredadas
por tênues cordões miasmáticos,
corrompidas embarcações encalhadas
num oceano de teias de aranha.
Até mesmo as cores
deste mundo embotado se dispersaram,
desnudando o prédio necrosado
do restante de sua vida,
deixando apenas
uma pálida mortalha
de tijolos carcomidos
e paredes feridas
pela marcha dos dias.
Ainda assim,
em meio a este filme mudo
em preto e branco,
flutuando no exíguo espaço
entre a memória
e a dolorosa devastação do presente,
eu ainda me lembro.
Era uma outra vida,
era um outro mundo.
Crianças riam.
Ririam se pudessem enxergar,
de seu tempo de inocências,
o nefando mausoléu do futuro?
Ririam se soubessem
que uma delas se tornaria
um fantasma trajando
silêncios e névoas,
e que essa sombra
dos tempos perdidos
visitaria as pegadas e as ruínas
por elas deixadas
no tumulto de sua passagem?
Eu ainda me lembro
- mas também isso se perderá.
Para meu horror,
as lembranças se tornarão,
elas mesmas,
débil estrutura lacerada,
uma carcaça assombrada
por indistintas presenças,
quase ausências.
Pois já não sei o nome da escola.
Já não me recordo dos rostos
dos meus amigos de então.
já não sei nada da criança
que um dia chorou,
que um dia sorriu,
que um dia eu fui.
.
C. Bittencourt
0 notes
Text
orla do adeus

.
Desprende-se,
entre tantos iguais,
sabe-se lá por qual motivo,
por micrométricas razões
claramente inevitáveis,
talvez em busca do sentimento
de estar só,
de ser finalmente único,
distante do emaranhado
que havia sido a marca
de uma existência coadunada,
de inautênticos pensamentos
logo ali subterrâneos,
os mesmos sistemas
de desejos espraiados
em todos os espelhos.
Desprende-se,
finalmente!,
como quem busca não a morte,
mas a paz do derradeiro instante
que antecede a todo e qualquer fim,
e é então levado pelo vento
rumo a um destino
de incertas e fluidas paisagens,
tão leve,
tão vasto,
filigrana e também mundo:
desaparece e se entrelaça
a outros sonhos
o finíssimo,
quase invisível
fio de cabelo.
.
C. Bittencourt
0 notes
Text
em algum outro lugar

.
Adeus...
Aos sonhos que se dispersam
quando abrimos os olhos
e submergimos
em regras e razões.
Adeus aos amores que partem
quando menos esperamos.
Às manhãs que não voltam,
não voltarão.
Adeus a nós mesmos,
que já perdemos tanto:
não somos,
nunca mais seremos os mesmos.
.
Olá...
Aos sonhos que se fixam
em nossas memórias,
a despeito de todo
o ruído do mundo.
Olá aos amores que chegam
quando já havíamos
decretado o fim do amor.
Às manhãs que brilham,
que ainda brilharão.
Olá a nós mesmos,
que ainda estamos aqui,
tão diferentes de outrora.
.
Estamos aqui,
mas também
em algum outro lugar,
ainda desconhecido,
no qual nos deixamos ficar
porque já não temos medo.
Em silêncio,
guardamos um segredo
como quem embala uma criança:
perder é também
a possibilidade de encontrar.
.
C. Bittencourt
0 notes
Text
a muralha

.
Era preciso alcançar a mulher.
Não que isso, a princípio,
fosse difícil:
haviam acabado de pisar a calçada,
saindo do mesmo carro,
cada qual por uma porta do veículo.
Era preciso dizer a ela,
não sabia exatamente o quê,
não sabia certamente o como,
mas era preciso dizer a ela,
e antes disso, claro,
seria preciso alcançá-la.
Ela já seguia rua abaixo,
dando-lhe as costas
sem sequer ter se despedido,
aumentando a distância entre ambos
em meio à tarde
e ao tumulto do dia por morrer.
Talvez por receio
mesmo de alcançá-la
e a ela dizer
o que era preciso ser dito,
ou talvez pelo ressentimento
daquele afastamento
silencioso e decidido,
ele optou por dar a volta
no quarteirão em que se achavam,
dando a si um pouco mais de tempo,
até que se vissem
de frente um para o outro.
Mas tão logo virou a esquina
para enfim encontrá-la,
deparou-se com uma muralha,
uma gigantesca barreira escura
que impedia o caminho
e que imprimia nas casas próximas
uma sombra lúgubre e espessa.
Tentou uma vez escalar a muralha,
mas era íngreme demais,
não havia onde se segurar,
onde firmar os pés.
Tentou outra vez,
e outras tantas vezes mais,
até que a tarde se tornou noite,
até que seu cansaço o imobilizou
e seu coração se tornou vazio.
No dia seguinte, desperto,
viu na rua
a mesma mulher do sonho,
a qual conhecia há alguns anos.
Alcançou-a,
cumprimentaram-se,
e imediatamente seguiram rumos
distintos.
.
C. Bittencourt
0 notes
Text
sob a pele

Arte por Jacek Yerka: Dream, 2011
.
Jaz esquecido o piano
nas sombras do salão vazio,
muda testemunha
de tantos encontros
e desencontros marcados.
Desfazem-se em ruínas
as mesas e cadeiras
no bar antes de fechar,
tragadas pelo legado diário
de gestos rudes.
Esta é a hora:
a hora em que o mundo
em erosão se recolhe,
cansado da própria insensatez.
Esta é a hora
em que cerramos os olhos
e, às cegas,
atravessamos a noite
que se estende para dentro
de nós mesmos.
Entre o singular de agora
e os plurais de amanhã,
divisamos outros mundos,
nossas enigmáticas
cidades de sonho.
O destino sob novos
e intrincados padrões
de forma e sentido:
histórias não contadas,
vidas secretas que guardamos
sob a pele,
sempre em busca
da palavra que perdemos,
do olhar que se extraviou,
o instante tão raro
do amor.
Na hora mais solitária,
quando voltamos a respirar,
quando voltamos a viver,
nos tornamos promessa.
.
C. Bittencourt
0 notes
Text
Rua dos Tempos

.
Há um lugar:
um lugar que existe
quando não estamos
olhando para ele.
O sonho de uma vida inteira
encapsulada entre instantes.
Fica bem aqui nesta cidade,
numa rua de casas antigas,
tingidas pela passagem do tempo.
.
Na casa de número 7, ao lado
da Igreja dos Dias Perdidos,
vive uma pequena família:
papai,
mamãe,
filhinho mais novo,
filhinho mais velho.
Todas as manhãs,
eles se sentam à mesa
e tomam o café em silêncio,
os olhares inquietos,
cheios de chuva.
Todas as tardes,
eles assistem a tristes filmes
na TV,
e se perguntam por que
as histórias terminam do mesmo jeito.
Todas as noites,
eles olham para as estrelas
no céu através da janela da sala,
e se lamentam:
elas brilham
menos a cada dia.
.
Na casa de número 25, próxima
à Praça das Luas Minguantes,
vive a mesma família da residência 7,
mas vinte anos mais velhos.
Papai, agora exibindo revoltos cabelos alvos,
constrói um foguete de papelão no quintal;
mamãe, agora sorrindo o sorriso
que fora guardado por toda sua juventude,
reza para as esparsas estrelas
que ainda restam no céu
– para ela há esperança, apesar de tudo;
o filhinho mais novo
sonha em ser mais velho,
porque a maturidade deve ajudar a resolver
alguns quebra-cabeças;
o filhinho mais velho
sonha em ser mais novo,
porque não crescer deve ajudar a não resolver
alguns quebra-cabeças.
.
Na casa de número 41, defronte
ao Cartório dos Registros Esquecidos,
vive o que sobrou da família das casas 7 e 25.
Dez anos adiante,
mas ainda compartilhando
o mesmo quarteirão
de um tempo sobreposto,
aglutinado sobre si mesmo,
mamãe olha para o céu desolado
e enxerga as distantes estrelas
de sua história.
O filhinho mais velho,
cansado de sua infância coagulada
sobre a pele pálida,
corre contra o tempo,
corre contra os dias e as noites mal dormidas,
corre porque tudo o que lhe resta é correr.
Em seu foguete de papelão,
papai partiu há tempos
para as terras exteriores e inalcançáveis.
O filhinho mais novo também partiu
para suas aventuras,
rumo aos continentes e oceanos
de mundos impossíveis.
.
Na casa de número 56,
vive apenas um.
Não é o mais velho,
porque mais novo já não há.
Não é mais filhinho,
porque papai e mamãe já se foram.
Sozinho, ele cria sua rotina
e seu labor.
Durante as manhãs,
visita a família da casa número 7.
Não adentra a casa, no entanto:
em segredo enxerga
as pessoas através das janelas,
sua presença oculta pelas árvores
e sombras da rua.
Há silêncio, sim,
mas ainda estão juntos.
De vez em quando,
vislumbram de longe as casas próximas,
sem desconfiar
que tanto será perdido,
que laços serão desfeitos e abandonados.
Durante as tardes,
visita a família da casa número 25,
visita a família da casa número 41.
Quer dizer a eles
que os ama,
e que estão nesta rua secreta
na qual refazem seus passos.
Mas como antes,
ele não faz menção de se anunciar.
Deixa-os seguirem o inevitável
de suas vidas,
de suas dores,
porque isso também é aprendizado.
.
Retorna a sua casa,
a de número 56, que fica perto
do Parque das Memórias.
Outras casas,
aquelas dos dias que virão,
as que vaticinam a si mesmas,
fluidas e mutáveis,
prefere não visitá-las.
Mas espera
que haja vida,
e que suas portas
estejam abertas,
e que suas janelas
anunciem novas manhãs.
.
C. Bittencourt
0 notes
Text
Ela

.
A menina chegou como se fosse uma aparição, e a ela toda a vila confluiu. Parecia cansada, mas os olhos chamejavam, cheios de energia, dois pequenos sóis no rosto de porcelana. É um espírito, disseram os mais velhos, e apesar do escárnio aparente dos mais jovens, todos desconfiaram de que isso era a mais pura verdade. Um espírito, um anjo.
De onde vem, perguntaram.
A menina nada respondeu.
Para onde vai, perguntaram.
A menina continuou calada.
O que você quer, perguntaram.
A menina finalmente se moveu, foi até as sombras de um imenso carvalho, a maior árvore da vila. Homens e mulheres, velhos e crianças, todos a seguiram em silêncio, mesmerizados. Ela se sentou sobre um montinho de terra, então disse, muito séria, com sua vozinha infantil:
.
Façam suas orações,
meus filhos.
Deixem de lado
o ódio,
a presunção,
a insensatez.
Não se deixem levar
pelos ruídos das máquinas
e pelas maquinações das sombras.
Ouçam com atenção
a sinfonia dos sonhos,
a música das estrelas
que brilham sob suas peles:
porque elas também
vivem em vocês.
Avancem contra a correnteza
e contra todas as certezas movediças
dos que se declaram seus salvadores.
Ergam as mãos para os céus
e sintam seus pés na terra,
meus filhos.
Façam suas orações
- e despertem.
.
A menina desapareceu com a última palavra proferida.
Ela, que era Deus, ou um dos deuses iluminados de um universo que preferia e insistia na escuridão, sentiu-se tão frágil, tão pequena. Despertem, dissera aos habitantes da vila, ao mundo, mas seus próprios olhos já se cerravam para eclipsar a visão e anestesiar a dor. A despeito de seus esforços, mísseis e promessas de mortes transfixadas pelo horror cortavam o céu rubro do crepúsculo como navalhas.
Era tarde demais para seus filhos.
.
C. Bittencourt
1 note
·
View note