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o som ao redor
O bairro Praia é um dos poucos bairros da cidadezinha de Rio Piracicaba. É um dos mais próximos do centro e é onde habitam algumas dezenas de famílias pertencentes à massa da classe média mineira. O nome “Praia” se deu em virtude da relação das pessoas com o rio em algum momento do passado da cidade, onde, nessa região chamada “Praia”, pessoas costumavam se banhar e pescar no rio. Provavelmente meus pais tenham experienciado esse tipo de relação com essas águas, no entanto, eu nasci e cresci já em um outro momento: no meio da crescente modernização na cidade. A Vale já havia se instalado aqui, sendo assim, sempre vi o Rio Piracicaba desse jeito que é hoje: marrom. Esse rio contorna hoje as ruas do bairro Praia, onde passei minha adolescência e atualmente passo a quarentena. Ironicamente, durante as chuvas, a “Praia” se inunda e água barrosa do Rio Piracicaba acaba entrando nas casas próximas à margem do rio. Nós, os meus vizinhos e minha família, somos alguns destes moradores que vivem nessa localidade. Por falar nessa vizinhança, pude ouvir, entre conversas informais, ou até mesmo por meio das falas que a gente sem querer escuta através dos muros baixos, que eles têm medo. Medo não só das cheias do rio, mas do risco eminente de serem atingidos caso a barragem da Vale venha a romper. Fica por aí também. Não existem reflexões muito profundas sobre a relação da Vale com o rio, ou mesmo a respeito das relações pessoais e coletivas estabelecidas com ele. Essa abstenção quase que estratégica de reflexões mais profundas a esse respeito coexiste com fé em Deus dessas pessoas, e, principalmente, com a fé que se tem nos laços de solidariedade entre eles. Essa solidariedade, entre tantas outras coisas, funciona em último caso, na ajuda coletiva da retirada de móveis das casas durante as imprevisíveis cheias do rio, bem como na vigília da rua quando todas as casas precisam manter suas portas abertas para que a pressão da água do rio não cause mais estragos.
Há essa união interessante entre as pessoas daqui: longe de romantizações de nova era, existe um rito de troca dos produtos orgânicos produzidos no quintal de cada casa. Eu geralmente os vejo trocando frutos, hortaliças, ovos e até alguns pratos culinários quando é feita uma “comida diferente” em casa. Faz parte da mística de construção de confiança e de uma afinidade limitada pela individualidade que os muros se encarregam de expressar.
Aqui em casa a gente vê parte da interação diária de no mínimo três famílias. Na maioria das vezes, acabo vendo o que acontece nos quintais ou na lavanderia deles. Provavelmente eles me veem – os vendo- também. No que diz respeito aos vizinhos do lado direito, basicamente vivemos juntos. (risos) É, uma família de três pessoas, como aqui em casa: o pai, a mãe e a filha. Todos os dias eu me desperto ao som das duas mulheres lavando a louça no tanque, cozinhando e conversando. Não muito diferente do que se espera, a esposa cozinha para o marido, que almoça e janta todos os dias com a família. O homem levanta bem cedo todos os dias para se dedicar ao cultivo e a extração de eucalipto transgênico. Muitas vezes, durante as madrugadas de insônia, fui audiência involuntária de sua rotina matinal que começa exatamente às 04h da manhã. Talvez por isso, quando me sentei hoje pela manhã na área de serviço, escutei a esposa afoita com o atraso do almoço. “Minha filha, temos que adiantar... Homem não pode esperar não” Imediatamente, a filha, que esfregava uma panela no tanque retruca “Ué, só por que é homem?”. Confesso que respirei esperançosa com o questionamento da menina. Bom, a mãe continuou divagando sobre a impaciência dos homens em contraposição à calma das mulheres. É uma pena, eu acho. A menina seguiu calada.
Eu me pergunto se elas percebem o cheiro de maconha aqui em casa, até porque o muro é tão baixo... Já devem ter me visto fumando um baseado, ou talvez nem saibam o que é. Fato é que elas não deixaram de notar o pé de maconha que eu plantei aqui há uns anos atrás. Perguntaram à minha mãe que planta era aquela no quintal. Foi depois disso que eu precisei matar o pé... Salvei algumas folhas pra salada, pro suco verde, e, se serve de consolo – bom, pelo menos me serviu de consolo – ele era hermafrodita, o que quer dizer, de modo geral, que o objetivo de colher as flores jamais seria concretizado com aquele pé.
Do outro lado, residem duas famílias que dividem um só muro com a gente aqui em casa. Há uma casa na frente e outra atrás: na casa da frente vive uma idosa com sua filha adotiva, que é portadora de necessidades especiais. Eu realmente não sei qual o diagnóstico, mas talvez seja algo próximo de um autismo. Ela tem 26 anos, como eu. Nós interagimos em alguns momentos do dia, quando ela começa a imitar os sons dos animais. Geralmente ela imita o cantar de um galo, o mugido dos bovinos e o uivar dos lobos. Eu só percebi “o galo” durante a quarentena, quando uma das vizinhas disse que se comunicava assim com moça. Até aquele momento ela só imitava o galo. Fui tentando alguns outros animais e assim, desenvolvemos uma comunicação nós três, imitando os animais pelos quais ela se interessava e repetia seu som. Muitas vezes, caímos na gargalhada. Talvez esse tipo de fragmento em um relato seja um pouco incomum, mas durante os momentos de interação com essa vizinha, pensei na relevância do que para Malinowski se tratava do “estar junto”. Não temos então uma interação baseada em uma comunicação dialógica, no entanto, bom... A gente interage.
A casa de trás, que mencionei a pouco, é o lar onde moram dois idosos. O pedreiro aposentado e a dona de casa recebem seu neto diariamente durante a quarentena. O pai e a mãe deixam o filho de cinco anos, sob os cuidados dos avós para que assim possam trabalhar durante o dia. Do outro lado do muro, o garoto acaba divertindo a gente aqui casa com a sua agitação que foge ao controle dos avós. “A gente precisa mandar benzer esse menino, não é possível!” Disse o avô após ter ouvido do neto “Ô vô, filho da puta!!!” Confesso ter achado a cena bastante cômica, especialmente por saber da confissão evangélica daquele senhor que, como ultima alternativa para as malcriações do neto, cogitava a possibilidade de benzê-lo. A chegada e a saída do garoto da casa dos avós são sempre marcadas por uma sucessão de choros, gritos e tentativas de convencimento por parte dos pais. Esse tipo de intimidade compartilhada diariamente, especialmente entre eles e meu pai – que está sempre na cozinha – criou certa afinidade entre eles. O garoto um dia perguntou ao meu pai se ele tinha amigos. Para surpresa dele, meu pai disse “claro, você é meu amigo.” Eu o vi sorrindo vaidoso enquanto concluía “bom, se você é meu amigo, você tem que deixar eu ver suas galinhas.” Para infelicidade do menino, e talvez para alivio do meu pai, a quarentena pôde ser usada como principal motivo que inviabilizava esse tipo de visita.
Normalmente a rua está vazia, afinal todos cumprem, dentro de suas possibilidades, as restrições da quarentena. Há, no entanto, um evento semanal que rompe com a quarentena de maioria da vizinhança, inclusive dos meus pais. Me refiro à passagem do vendedor de “produtos da roça”, que reúne algumas pessoas durante um breve momento de aglomeração em torno de seus queijos, quitandas e doces caseiros. Não são muitas pessoas, mas se não visualizasse essa cena há alguns anos e apenas pudesse escutar toda euforia dos vizinhos, com certeza eu diria que muito mais gente participa da cena. Eu raramente estou presente nesses momentos - especialmente agora -, mas sempre como o queijo mineiro fresco que meus pais compram desse senhor. É rotina da vizinhança a chegada desse queijo nas sextas feiras, assim como o cantar dos galos (os de verdade) nos galinheiros pelas manhãs, os latidos dos cães durante a tarde e o barulho dos gatos se acasalando durante a noite. Também fazia parte dessa rotina, as tardes onde alguns vizinhos se reuniam na calçada junto a figura do pedreiro aposentado, que se sentava em um pedaço de tronco de madeira trazido pela ultima enchente. Curiosamente soube pelo meu pai, que o evento não foi interrompido em virtude da quarentena, mas sim, porque um dos vizinhos havia feito uma piada relacionada àquele senhor estar “sentado no toco”. Nunca mais ele se permitiu sentar naquele toco.
Talvez haja muitos fragmentos pendentes nesse relato, mas já é tarde, os gatos se acasalam na rua e eu preciso saber terminar um texto.
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caminhada
As botas baratas caminhavam sobre o assoalho de madeira do casarão histórico. O som das botas ruía em rococó enquanto a donzela sofria pela inconformidade com o soar de abandono daquelas notas. Ela se atirou àquelas botas que cruelmente caminhavam em marcha em direção ao pote de ouro ao fim do arco-íris. Sozinhas. Uma profunda breguice, na minha opinião. Talvez alguns contornos do amor sejam de fato extremamente cafonas - ri o general com os braços cruzados entre goles generosos do whiskey barato. As botas sujas de barro, barulhentas em rococó, encontraram alguma direção. Talvez já mirassem esse caminho que as levasse para tão distante da donzela que passou a viver em inconformidade. Abandono é coisa pra gente forte, afinal. - diz o general. Não, meu caro. Abandono é bicho bravo que envenena muita gente! Nem sempre fortalece. Há de se respeitar o tempo... Mas que pena, o tempo pertence aos velhos. O tempo pertence a quem aceitou o efêmero. Em sépia, a última lembrança: de fora da cama, a câmera se distancia e enquadra as duas personagens no lençol velho que cobria o que agora era vergonha - como os expulsos do Éden. Que vergonha tamanha nudez. Elas pensaram que seriam abandonadas naquela noite. E foram.
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Liv ullmann - Vargtimmen (Hour of the Wolf) 1968
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(re)tomada
Por enquanto estamos há quanto tempo de quarentena? Um mês? Eu realmente já não sei. Minha cidade – um município de Minas Gerais, onde um grupo ínfimo de pessoas, entre bilhões de terráqueos vive e mantém alguma relação afetiva, seja pela memória dos familiares ainda residentes na cidadezinha, ou, claro, por habitá-la – fechou as fronteiras com as cidades vizinhas. As saídas estão bloqueadas, igrejas, lojas e bares também estão fechados.
Aliás, não, a Universal está aberta. Inclusive, amanhã é dia de culto.
A ponte, que conecta parte da região central da cidade, para alívio de alguns poucos membros da hierarquia política e econômica, se mantém fechada também e sem previsão de reparo ou abertura – há risco de que ela caia. Existe agora, para os moradores, a Rio Piracicaba Ocidental e a Rio Piracicaba Oriental. Que irônia.
Há um limite de clientes que se organizam para fazer compras no mercado, que durante o tempo de espera na fila, compartilham suas impressões sobre a atual pandemia, expressando os incômodos com a mudança na dinâmica da vida que há uma semana tem mudado completamente. São, em sua maioria, comerciantes, empregados do comércio local, aposentados e o proletariado das firmas e da Vale do Rio Doce. Alguns sem máscaras de proteção, outros, os que fazem uso dela, vez e outra, se atrapalham com o incômodo artefato de proteção contra o virus. Até aí nenhuma novidade. Dado o contexto, uma vez que os hábitos das ciências sociais não me deixariam iniciar qualquer escrita sem ao menos citá-lo brevemente, pretendo tomar nota do meu entorno e da experiência subjetiva do isolamento social - é, pelo menos, o que pensei hoje. Devo me lembrar que não se trata de um artigo, então, em negociação com racionalidade: meu momento.
Eu não faço parte dos grupos que citei como maioria dos clientes na fila do supermercado. Estive lá, eu, uma iniciante na vida acadêmica, com meu corpo, de quase-mulher, que também é de cientista social. Estou na casa dos meus pais, onde não pretendia estacionar meu caminhão por muito tempo. Antes da pandemia, o movimento pendular entre Belo Horizonte e Rio Piracicaba limitavam a convivência e a rotina com meus pais. Ao mesmo tempo, tem sido etapa do processo de liminaridade onde me encontro, aliás, onde me coloquei, por livre e espontâneo mergulho há alguns meses atrás.
Justo.
Há quase duas semanas convivo com meus pais, são 12h por dia, contando que nas outras 12h eu talvez esteja no meu quarto dormindo ou fazendo qualquer outra coisa. Qualquer outra coisa fumando um baseado. Qualquer outra coisa ligada à atividade intelectual - fumando um baseado. Curioso é que alguns fumam um baseado para relaxar. Eu tenho fumado para produzir durante a quarentena. A cada cigarro de palha aceso durante o dia, um gesto de reprovação do meu pai. Ele franze suas sobrancelhas grossas. Me olha por baixo das sobrancelhas franzidas, balbuciando, na maioria das vezes, palavras que expressam sua contrariedade. Eu contei uma vez:
5, 4, 3, 2, 1.
“Já vai acender um cigarro, né minha filha?”. Com a voz grossa, assim como suas sobrancelhas pretas. Às vezes sorrio e lhe respondo com humor, em outras, finjo ignorar. Não sei até que ponto o pai tem conseguido lidar com esse tipo de enfrentamento. Independente de um relato casual de um detalhe da rotina, acredito que o pai seria uma pessoa mais feliz se não fosse o patriarcado. Nós também.
Minha mãe é sorridente. Damos gargalhadas durante o dia. Muitas dessas gargalhadas mexem com o pai. Seu bigode cinza cobre parte dos seus lábios. Esse bigode sempre foi marca do meu pai: nunca o vi sem ele, apenas acompanhei sua mudança de cor ao longo do tempo. Mesmo mudando de cor, esse bigode sempre expressou sua seriedade voluntária. O bigode cobre o lábio superior do meu pai, que já é fino. De qualquer forma, embora ele raramente sorria, também já o vi sorrindo. Faz tempo. Com as sobrancelhas grossas franzidas, o olhar de reprovação por baixo delas e o bigode cinza, o pai reprova quando eu e minha mãe damos gargalhadas altas. Reprova nosso mal jeito na cozinha. Na verdade, eu sei que ele torce e espera ansiosamente que algo caia da nossa mão, ou que a gente se atrapalhe em algum movimento. O pai precisa disso pra se sentir bem.
Desde criança ouvia minha mãe falar do quando meu pai a “podava”. Eu me afastei de alguns de seus danos emocionais. Interditei a ponte, como a que liga as duas partes do centro de Rio Piracicaba. Vejo que criei defesas que me poupam do susto com seus rompantes e possíveis ameaças de abandono. Eu temi muito esses rompantes. Temi e não consigo acrescentar muita coisa a essa descrição - a linguagem ainda não da conta. Por hora: senti medo a vida toda. Por esse medo eu me escondi de tanta coisa.
É curioso, mas talvez eu, aos pouquinhos, em meio ao confinamento, eu esteja saindo da gaiola.
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adágio
Há uma rebordose intensa nas primeiras horas do despertar. Se eu contasse que tive um “sonho perturbador” creio que cada um imaginaria seus próprios demônios... ou o que a cultura entende por perturbador. Mas já adianto, não havia sangue, não havia cenas fortes, ou mesmo a morte como a gente entende. Foi a mesma repetição de elementos em sonhos relacionados àquela pessoa: cara, como a gente sente no corpo inteiro! Me pergunto se esse “sem nome” que vibra agora no meu corpo é a saudade de você ou da realidade da perda de controle do seu corpo: a realidade de que não há possibilidade do controle do desejo que não é meu. Engraçado que a ideia do seu desejo talvez seja só minha - projetada em ti, só pra me torturar. Eu queria que você soubesse que talvez não faça mesmo sentido em nos falarmos. Talvez um dia a gente se encontre, já mais velhas e hipocondríacas e essa seja também a última despedida entre tantas outras já ensaiadas. Acredito que a maturidade dos cabelos grisalhos e dos ossos mais fracos consiga de fato encerrar todas essas arestas que ainda tento reparar depois dessa separação. Há tanta consciência da minha decisão: veja bem, eu não voltaria atrás. Eu jamais seria feliz ao seu lado. Meu corpo já não dava mais conta de alimentar nossos egos frágeis. Desintoxico-me hoje desse jogo apaixonado. Esse vicio me castiga em meus sonhos, me fazendo enxergar que eu sinto saudade.
Eu não admito essa saudade.
Eu estou bem e já me dedico à construção de novos afetos mais simples. Minha insegurança te deu de comer e te deu de vestir. Te cobria do frio que sentias... aquele frio que sentias desde que perdera o calor e o afeto da sua mãe. Sei disso porque fiz o mesmo. Talvez não sejamos tão diferentes assim. Eis minha confissão: eu queria que, pelo seu corpo, mais ninguém pudesse passar. Que mais ninguém te desse de vestir. Queria que a sua pele guardasse convicta apenas a minha memória.
Que bom que essa sensação passa durante o dia
e logo a razão me cobre de afazeres para não pensar nessa falta infantil.
Ao mesmo tempo, juro que te quero bem.
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