Tumgik
ayumutextos · 5 months
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Silêncio
Sinto meus pés, não sinto o chão. Olho para baixo e não há nada. Não há desespero; deveria mas não há. Algo de bom me preenche e me faz perceber que a falta de chão não me faz mal algum, não me oferece riscos - não vou cair, sei que não.
Sinto meu corpo flutuar. Não tocar o chão me dá uma liberdade sem precedentes. Alço vôo dentro de meus próprios sentimentos; viagem que droga alguma poderia proporcionar.
Olho ao meu redor, um clarão que se estende por toda a parte, preenche meus olhos de um branco puro e infinito mas em momento algum me sinto cegar.
O momento me mostra que não há nada ao meu redor, mas não me sinto sozinho. A minha volta não vejo ninguém; nem ao menos uma alma viva.
Tento ouvir algo. Escuto apenas meu próprio coração. Se algum mais bate por aqui, estão ambos em uníssono - não há uma só batida descompassada, não me é possível distinguir se há mais algum além do meu - mas há em mim uma certeza de que existe algo mais aqui.
Respiro fundo em meio a esse clarão quase totalmente silencioso. Não há nada a minha volta, mas sinto um perfume suave. Algo que me cria uma imagem na mente e agora eu sei.
Ao fechar os olhos posso vislumbrar: longos cabelos caindo por sobre os ombros, a cabeça levemente inclinada e um par de olhos de brilhos angelicais a me encarar. Lábios perfeitos formando um sorriso leve e sutil, entornados por traços tão suaves descrevendo um rosto que nem o mais talentoso artista poderia ter pintado.
Agora eu sei. Batendo aqui, um coração em total sintonia com o meu. Nada pude ver a minha volta, porque quem eu procurava vive dentro de mim, o tempo todo. Somos uma só alma. Não há nada a nossa volta, porque nada mais importa, além de nós dois, além de nós “um”.
Agora eu percebo, estive sonhando. Sinto acordar levemente. Antes de abrir totalmente os olhos, desejo profundamente que não fosse apenas um sonho. Antes de abrir os olhos, respiro profundamente e em divinal satisfação, sinto o mesmo perfume. Certo de que a realidade traria consigo meu sonho, resolvo abrir os olhos.
E tal qual um anjo, vejo sua silhueta a me observar - os mesmos olhos, o mesmo sorriso sutil. Ponho-me em pé e sinto que há chão. Vou até você e posso tocá-la; é real - seus olhos agora tão próximos aos meus que já não posso ver se seus lábios sorriem, então os meus os tocam.
E todo o mundo desaparece a nossa volta, pois realmente nada mais importa.
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ayumutextos · 5 months
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A ponte no jardim
Assim como em todas as manhãs ao longo de sua vida, desde quando conseguia se lembrar, encerrou por fim suas orações. Havia passado aquela hora recitando o mantra que há muito conhecia. No alto de seus quase noventa anos, sua aparência frágil nem de longe transparecia a força que ela realmente possuía.
E mais uma vez, a senhora colocou-se de pé diante de seu oratório e seguiu para iniciar as demais tarefas do dia. Preparou o seu chá e separou algumas torradas, atum e uma maçã para seu desjejum.
Sentou-se na mesa posicionada em frente à janela de forma a contemplar seu jardim enquanto comia. Até alguns anos atrás, costumava sentar-se de frente para seu marido e ambos contemplavam juntos a paisagem através daquela janela. Seu esposo fora um trabalhador incansável, ainda ativo quando veio a falecer, vítima de um coração enfraquecido pelo tempo há alguns anos, e então, ela que desde jovem dedicara-se exclusivamente a seu amado, estava sozinha naquela casa. Sentar-se de frente para a janela permitia a ela ter certa paz de espírito.
O jardim foi um projeto que o casal sonhou, planejou e concretizou com total dedicação, um verdadeiro espelho do amor dos dois - um filho - como eles costumavam dizer. Ali também haviam sido jogadas as cinzas de seu amor, um desejo de ambos.
E sabendo que ele sempre estaria ali, não se sentia tão só.
Haviam chegado ao Brasil em 1973, passageiros do Nippon Maru, último navio a trazer exclusivamente imigrantes em massa para o país, dispostos a construir uma vida nova. Foram muitos anos felizes onde o casal conquistou sua casa, e deixaram-na como queriam - o jardim era um pedaço do Japão no quintal: a ponte de madeira, a fonte, as carpas; era tudo perfeito.
O casal não teve filhos. A senhora pensava frequentemente em como seria bom a essa altura de sua vida, tem uma doce voz infantil a chamando de “batchan”.  
Depois de terminar sua refeição, colocou-se a caminhar pelo jardim e parou no ponto central da ponte, contemplando o movimento dos peixes. Seus olhos então subiam das águas para a cerejeira mais à frente e, como fazia todas as manhãs, nesse momento conversava em seu coração com seu amor de sempre. 
Mais uma vez sentia seu amado presente, e de alguma forma sentia que jamais estaria só.
Passava a maior parte da manhã ali, no seu pedacinho de Japão. 
Assim como em todos os outros dias, preparou seu almoço e depois de se alimentar, parou na varanda diante do jardim, recostou-se na velha cadeira de balanço e adormeceu. O coração ainda apertava às vezes: uma parte dela tinha a certeza de que seu amor estava ali - a outra era pura saudade.
Despertou calmamente. Abriu os olhos e as cores pareciam mais vivas. O ar, diferente - mais leve, mais puro. Os ouvidos percebiam os sons de forma cristalina. Seu corpo lhe dava a sensação de ter novamente seus dezoito anos.
Contemplou seu jardim que parecia ainda mais belo, celestial. Tomada de uma vitalidade que contrastava com sua paz interior, levantou-se e caminhou até a ponte. No ponto mais alto, fechou os olhos e respirou profundamente, tentando compreender aquele momento tão único, seus sentidos a faziam sentir-se no paraíso, seu coração lhe deu a certeza.
Abriu os olhos lentamente, levemente cegada pelo sol, mas a imagem difusa à sua frente, tomou forma em segundos. O jovem de olhar apaixonado, no auge de sua juventude, com seu terno imponente, o cabelo alinhado sem um único fio fora do lugar - ele a contemplava com um sorriso sereno. O mesmo homem que desembarcara décadas atrás com ela no porto de Santos. Atrás dele, apenas luz.
Ele estendeu suas mãos e ela de pronto, lhe entregou as suas - tão jovens quanto as dele e delicadas como não eram já há tanto tempo.
Olhos nos olhos, um brilho ainda maior do que aquele que cercava o ambiente, conversavam sem dizer uma palavra. Os lábios se tocaram suave e apaixonadamente e então se abraçaram. Deram as mãos e atravessaram a ponte.
A claridade suave tomou conta de tudo. 
E um silêncio leve dominou o velho jardim, vazio.
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ayumutextos · 5 months
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Ausência dos sentidos
Mais uma vez o pobre homem estava lá: parado, observando cada detalhe. Quando ela chegava, era como se o tempo praticamente parasse.
Ele não conseguia respirar, sentia seu corpo completamente ausente da realidade. Ao redor dela, tudo parecia macro: podia vislumbrar o movimento de cada fio de seus cabelos que desciam por suas costas com a beleza magistral de um rio de águas calmas cortando um vale de estonteante beleza, em curvas desenhadas cautelosamente. O brilho daqueles olhos ofuscavam-lhe a existência de um mundo ao redor deles, nunca havia visto luz tamanha; nem mesmo no sol que brilhava nas praias onde crescera - anos de memórias de lindas imagens de um horizonte litorâneo não eram comparáveis a uma fração de segundo sequer da beleza que emanava daqueles olhos.
Nada mais importava. O tempo parado. A sensação de ausência de qualquer outra sensação que não fosse a mais pura e total entrega. Mas ainda havia mais.
Um leve movimento com a cabeça, causando um movimento suave de seus cabelos, o olhar que finalmente encontrara o dele e, enfim, o sorriso que faltava - ainda mais brilho emanado, as curvas suaves de seus lábios que pareciam ter tomado séculos do criador até que estes atingissem a perfeição.
Os lábios perfeitos se movem, sua voz sopra vida dentro daquele que tanto a esperava.
E a ausência de todos os sentidos, faz todo o sentido.
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ayumutextos · 5 months
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Orgulho, uma venda em seus olhos
E ela continua cega.
Envolta em uma névoa plantada em torno dos próprios olhos, insiste em afundar-se em lembranças que ela mesma criou afim de se proteger do mundo. Abriu mão da felicidade e de uma vida de novas oportunidades apenas para se sentir forte. A ilusão criada traz para si uma sensação de poder que ela não sente com a possibilidade de submissão na felicidade.
E então mais um dia foi perdido em uma discussão que não leva a nada. Ele tenta pelos meios que tem, despertá-la para a realidade. Quantas das lembranças que ela tem são reais? O desespero é ainda maior enquanto nota que o passado que ela se recorda é uma história de terror muito diferente daquela que ele viveu. Ele tenta mostrar a ela a luz da realidade. Ele lembra dos fatos, das datas, de tudo; mas mesmo assim a realidade que ela criou a faz sentir-se forte.
O orgulho, como ele é poderoso. Ou pelo menos, como ele faz com que uma pessoa se sinta forte, não é mesmo? Mas, até quando? Ele te segura pelo queixo, erguendo sua cabeça por cima do outro e inflando seu peito; nada além de uma marionete cega, guiada por um sentimento deturpado e uma falsa sensação de segurança — uma certeza vã, baseada em nada.
Ao não olhar para o chão sólido da realidade se coloca em risco de cair. O orgulho que segura a cabeça erguida tira a firmeza dos pés e hora ou outra, tudo desaba. A esperança é que esta névoa não a cegue tempo o suficiente para que reste apenas uma vida inteira a lamentar. Que não olhe para trás em dado momento e veja como isso influenciou a própria vida e a de pessoas próximas — que talvez deixarão de estar próximas com o passar do tempo.
O orgulho só faz cegar da realidade à sua volta e principalmente, da responsabilidade sobre os acontecimentos em sua vida.
Mais importante que “ter razão” o tempo todo, é permitir-se ser feliz.
Correr o risco de vivenciar os altos e baixos da vida é apenas uma parte do trajeto.
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ayumutextos · 5 months
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Delírio solitário
Foi assim, de pronto.
A gente se esbarrou no momento em que ela pisou lá, e o que meus olhos viram fizeram tudo aqui dentro responder. Eu nem achava que as coisas poderiam ser assim de novo. A gente passa o tempo todo duvidando que vai ser - mas acontece - e você fica sem defesa. 
A gente se vê todo dia; todo dia que vale à pena. Porque nos outros, se ela não dá o ar da graça, não tem dia. Parece que o Sol esqueceu de levantar, os pássaros de cantar - um grande hiato.
A esperança é de que hoje seja mais um dia onde os olhos vejam o que o coração quer ver; onde a voz esperada entoe suas notas. 
E que um dia, aquilo que é apenas delírio solitário possa ser verdade compartilhada.
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ayumutextos · 5 months
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De olhos fechados
Olhar ao redor, sentir-se em uma estagnação sem fim; sentimento comum. Quantas e quantas pessoas vivem seus dias assim: acordar, se deslocar até uma clausura apenas para garantir seu sustento e após muitas horas se deslocar de volta ao seu canto, apenas para repousar o corpo cansado por poucas horas.
Pouco descansa o corpo, a mente descansa tampouco…
Um mundo de lamentações e preocupações, onde os sonhos são simplesmente jogados para trás - ou para a frente - e ficam disponíveis para acontecer “quando der”. Triste realidade esta da pessoa que subsiste para existir; atrelada a uma série de metas mecanizadas até o momento em que se sente mais um relógio analógico do que uma pessoa. Cada batida de um coração sem luz, apenas te levando à próxima batida, e à seguinte a esta. Cada piscar de olhos, um pensamento voltado para as obrigações impostas pela escolha de não sonhar de verdade.
Sim, devemos sonhar de verdade…
Sonhos não são - ou não deveriam ser - vislumbres sobre o que se queria ter, fazer, sentir, tornar; servindo apenas ao propósito de lamentar o que te sobrou viver - exatamente por não sonhar de verdade.
Sonhos são sonhos; apenas sonhos. Estão apenas na sua mente. Mas movem - ou deveriam mover - o seu coração. 
Deveríamos nos permitir construir bases sólidas com pensamentos flutuantes. Permitir que o sonho seja um projeto mesmo que esse projeto tenha que ser construído tijolo a tijolo em um longo espaço de tempo.
Lamentamos tanto o fato de não ter tempo, mas temos tanto tempo para lamentar…
Sentimos tanto o fato de não termos condições de mudar o jogo da vida, que deixamos todas as nossas jogadas passarem diante de nossos olhos.
Feche os olhos, inspire fundo, sonhe.
Abra os olhos.
Aquilo que pode ver de olhos fechados, pode fazer de olhos abertos.
Agora…
… FAÇA!
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ayumutextos · 5 months
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Bons ventos sopram nos vales de Morfeu
Seus olhos encaravam os dele profundamente. Seus rostos estavam unidos, os dedos de ambas as mãos, entrelaçados e seus corpos procuravam manter cada milímetro em contato. Apenas um reflexo de duas almas unidas plenamente.
Os olhos enfim se fecham, os lábios se tocam, primeiramente suaves mas aos poucos ganhando uma força que nada na terra poderia separar. Os dedos entrelaçados agora se soltam, permitindo que os braços de ambos envolvessem seus corpos. Tornou-se então, impossível separar um do outro.
A sensação mista de calafrios e calor. Um verdadeiro encontro com deus, no âmago do sentimento humano.
As luzes se tornam mais brandas. Lençóis, sussurros, entrega.
A jovem levantou-se de súbito. O corpo suado, o cheiro dele parecia tomar conta do ambiente. Arriscou-se então a afiar os olhos à meia luz e viu que estava só.
Ainda estava ofegante e sentia o calor do corpo dele no seu. Seu coração ainda parecia prestes a explodir. Os calafrios, o calor; tudo igual - menos ele, que não estava ali - e não estaria pelos próximos meses, enquanto a guerra não o liberasse de seus deveres.
A foto na mesa de cabeceira mostrava o casal do sonho em um momento feliz; os sorrisos quase não cabendo na pequena moldura. Ela sente seu corpo se inundar de calor e se entrega novamente ao sono, tranquila, sem resistência e sentindo então o calor que seu sonho trouxera.
Afinal de contas, quilômetros são incapazes de separar corações.
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ayumutextos · 5 months
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O mundo nas pontas dos pés
Os giros de seu corpo sustentado nas pontas dos pés com graciosidade, não deixavam em momento algum transparecer que carregava o peso do mundo em seus ombros.
As pessoas sentadas no nível abaixo contemplavam o espetáculo da jovem bailarina, os movimentos perfeitamente coordenados, os cabelos, a maquiagem - cada detalhe pensado à perfeição. Somente seus olhos separavam o mundo em que se via do mundo em que vivia. Somente seu coração sabia.
Permitia-se desviar o olhar às vezes para os expectadores que, de olhos fixos em cada movimento seu, não conseguiam ver através de seus olhos. A pobre bailarina chorava por dentro, muitas vezes, quando sua mente perdia o controle sobre o seu coração.
Enquanto flutuava, a bailarina principal daquele corpo deixava-se, às vezes, cair-se entregue a pensar nos momentos que a levaram até ali. A delicadeza dos movimentos não transpareciam as marcas de tantas batalhas travadas ao longo de sua jovem existência.
Ao passo que os movimentos suaves de suas mãos delicadas cortavam o ar, contempladas pelo olhar atento de seus expectadores, as sapatilhas escondiam os pés castigados por incansáveis sessões de treinamento, constantes e tortuosos. Movida por sua paixão, ela continuava.
Seu corpo dançava no suave compasso da música que o guiava, enquanto seu coração, batia no forte ritmo da torrente de sentimentos que o povoavam.
Seus olhos uniam as duas realidades: a beleza de fora e a força de dentro. Seu coração continuava a guiar seu corpo com força, sua mente continuava a dar a serenidade necessária.
Mais alguns giros e ela se curvava graciosamente na direção da plateia. Os olhos inocentes só viam a beleza, apenas uma fração do todo, mas para a bailarina era o que importava. 
Enquanto se curvava agradecendo aos que acabavam de contemplar seu espetáculo, permitiu-se fechar os olhos por um momento. O coração agora calmo. Ela sabia que toda luta era válida por aquilo que amamos fazer. E para a bailarina, era o que importava.
E as cortinas finalmente se fecham.
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ayumutextos · 5 months
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Sobre estrelas e cheiro de café
Hoje foi um dia cinza. Até o Sol se escondeu no meio da tarde, permitindo que o céu derramasse algumas lágrimas.
E os dias cinzas turvam nossa visão; os olhos marejados e o coração apertado impedem a gente de pensar um pouco lá atrás.
Muitas cores houveram antes do dia cinza. A voz aconchegante que te recebe com alegria e que se despede sempre com um “vai com Deus”. A ternura expressa com o cheiro de café no ar, com a comida que tem aquele sabor todo especial. O olhar maternal, o brilho de ser mãe em dobro.
O dia é cinza, triste. Choramos pois estas sensações estarão presentes apenas em nossas lembranças, o coração se aperta mas logo a sensação daquele pedacinho da vó da gente que ficou lá dentro te traz conforto.
Hoje o céu chora, mas pensando bem, provavelmente de alegria.
Agora o brilho cintilante daqueles olhinhos é brilho de estrela te zelando lá de cima, enquanto o soprar do vento da noite, traz o tom confortante que só voz de vó tem, e aquele cheirinho gostoso de café.
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ayumutextos · 5 months
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O homem nos olhos dela
Um dia me peguei pensando no menino que cresceu lá pelos anos oitenta e noventa. Que viu um mundo totalmente diferente: no lugar de futebol digital, o de botão; os bilhetes de mão em mão ao invés das mensagens no celular, sair de bicicleta para reunir os amigos antes de lotar a sala de alguém, ao invés de simplesmente se conectar pela internet e resumir o contato a um fone.
Aí você vai crescendo e essas coisas deixam de ser importantes perto dos dramas da adolescência, que depois você descobre ser a fase mais idiota da sua vida - isso se tudo der certo e você aprender alguma coisa.
E você continua crescendo, envelhecendo. Acordar, fazer a mesma coisa todo o santo dia até o dia acabar. Chegar em casa exausto e dormir - apenas para recomeçar tudo outra vez. A gente acaba enchendo a vida com tanta coisa que ela fica vazia no final das contas.
A vida parece ser um ciclo interminável de tarefas sem sentido. Você até deixa de pensar, ou mesmo se preocupar com quem você é e o que faz com o mundo à sua volta.
Mas um dia as coisas mudam.
Um pedaço de papel e uma palavra simples: positivo.
Alguns meses se passam, e você se pega segurando em seus braços uma “pessoinha” bem pequena. Os olhos delas se fixam nos seus que se tomam por um brilho até então desconhecido. Os pequenos lábios dela desenham um sorriso sutil e tudo muda para sempre.
Você questiona o homem que você é, o papel que você tem no mundo, o que fez, faz e pode fazer por seus familiares e amigos e todas as pessoas que, de alguma forma, dependam de você. Seus pés ficam mais firmes no chão ao mesmo tempo que seu coração te faz voar alto.
Tudo tem sentido para você agora. O que não tem, você muda - porque está sempre tentando ser o homem refletido nos olhos dela. Você quer ser aquele homem a cada segundo da sua vida, esperando merecer aquele sorriso sutil, que com o passar dos anos se tornam beijos, abraços apertados, sorrisos abertos e a palavra mágica, que a sua verdadeira “fada-madrinha” entoa com a voz mais linda que você irá ouvir na sua vida: 
“Papai!”
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ayumutextos · 5 months
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Mente viciada
Acordei no meio da noite, trêmulo e suando frio.
Não conseguia parar de pensar no prazer que mais uma dose me proporcionaria.
Me servi do copo d’agua sobre o criado-mudo e puxei o cobertor até a linha dos olhos, para tentar me proporcionar alguma sensação de segurança.
Decidi então fechar os olhos, tinha que dar um jeito de dormir - precisava esquecer tudo aquilo - mas parecia impossível.
Ainda me lembro do primeiro contato: foi minha mãe quem me trouxe para esse mundo do vício. Foi impossível resistir às cores, formas e ideias que povoavam minha mente.
A cada uso, uma viagem diferente - e eu estava entregue ao vício.
Tantos anos se passaram. Sempre tentei me convencer que poderia parar quando quisesse. Acho que todo viciado se repete isso o tempo todo; mas a realidade é bem diferente. 
Vivo minha vida de dose em dose. Consumindo o máximo que posso, sempre que posso. 
Antes era só em casa, na cama, antes de dormir.
Hoje, faço uso em todo intervalo que tenho no trabalho. No trajeto de ida e de volta para casa também.
Tomei uma longa dose hoje antes de dormir. Mas sobrou um restinho dessa minha última compra, e minha cabeça quer me obrigar a consumí-lo.
O sono não vem, a sensação é de desespero.
Trêmulo e suando frio. A respiração ofegante.
Eu preciso.
Eu quero.
Eu resisto.
Eu desisto.
Enfim me entrego. Acendo a luz do abajur e pego em minhas mãos aquilo que vai me aliviar por hora.
Sinto seu cheiro. Inconfundível. Sinto-me começando a viagem.
Meu corpo agora calmo.
A mente agora preparada, tranquila.
Coloco meus óculos, fixo os olhos nas páginas.
Não ia conseguir dormir sem ler esse último capítulo.
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ayumutextos · 5 months
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Assassino da Deep Web
Belle e Linna trabalhavam incansavelmente nas últimas semanas. A sala ao redor delas era povoada por mapas, organogramas, fotos, fatos. A busca implacável pelo assassino era o combustível que as movia, quase sem dormir, quase sem comer. 
A imprensa o chamava de “Assassino da Deep WEB”. Um serial killer que começara a atuar há exatos vinte e três sábados atrás. Em comum, todas as vítimas tinham o fato de terem acessado a deep web recentemente. Algumas em busca de algo ilegal, outras apenas por curiosidade. Parecia haver uma lógica que apenas o algoz conhecia.
A primeira vítima, um programador de trinta anos, foi morto em sua casa, sentado em frente ao seu computador. A morte foi definida como ocorrida à uma hora daquele dia. Um cartão preto trazia apenas uma inscrição em verde, imitando um velho monitor de fósforo: “#Culpado”.
As semanas se passaram. A cada semana uma nova vítima. A segunda foi morta às duas da manhã, a terceira, às três. As investigadoras presumiam que, a lógica doentia do assassino levaria a um total de vinte e  quatro vítimas.
O sábado estava chegando, precisavam se apressar. Mais uma pessoa morreria e, provavelmente, depois disso não teriam pistas do assassino.
Dias se passaram, cada minuto aproveitado para estudar cada ponto. Encontraram um padrão, as vítimas estavam espalhadas ao redor da cidade em uma forma circular, doze pontos mais externos e onze mais internos; as voltas de um ponteiro de relógio - a próxima vítima estaria na região em que se encontravam - precisavam pegá-lo de alguma maneira.
Menos de quarenta e oito horas restavam, precisavam então utilizar os últimos recursos e aventurarem-se na rede obscura. Passaram horas navegando por portais para o caos,  conteúdos que fariam até aqueles de estômago mais forte sentirem-se desconfortáveis, mas nenhuma pista sobre os assassinatos.
Enfim, vinte e quatro horas até o próximo crime. 
O criminoso se cansou. Logo na primeira das vinte e quatro horas, uma mensagem chegou: pistas sobre o próximo assassinato. Nas horas que se seguiram, mais mensagens chegaram - hora por e-mail, hora em mensagens de texto ou voz nos celulares de ambas. Até pelo interfone do prédio ele conseguiu contacta-las; era uma gênio - seria muito difícil chegar até ele.
A noite caiu, a meia-noite aproximando-se cada vez mais. No laboratório, apenas as duas - não conseguiam e não podiam trabalhar. Sabiam que precisavam pegá-lo e dificilmente teriam outra chance. A dia inteiro em contato com o assassino revelaram um homem metódico, frio e calculista - sua cabeça com certeza não era normal. O comportamento do homem, ao menos, mostrava que ele jamais fugiria da lógica. Aquela seria sua última vítima, seu último ataque. Sairia daquele sábado com uma lista de crimes perfeitamente alinhados e sem punição - ele se definia como um artista, um engenheiro criando um código perfeito.
Pararam então as duas no laboratório. Juntaram tudo que tinham e somaram àquilo as pistas de hoje. A triangulação no mapa preso na parede mostravam que elas estavam próximas ao local onde o crime ocorreria; a informação recebida na hora que antecedia o ataque mostrou o local exato.
Elas estavam nele.
O desespero tomou conta de seus olhos. Neste momento o áudio de todos os equipamentos foi tomado por uma gargalhada demoníaca. Elas estavam sozinhas ali, aquele era o local - uma delas morreria naquela noite.
Do décimo sexto andar do prédio, pegaram o interfone para chamar a segurança, mas a voz do outro lado era aquela que as assombrara por todo o dia. Tentaram então os telefones e nada. Os celulares - nenhum sinal. Os computadores travaram completamente, mostrando apenas um contador rumo à hora-chave, e assim fizeram todos os equipamentos que possuíam alguma espécie de monitor.
As máquinas ligavam e desligavam; as luzes piscavam. A sala de impressão passou a ter vida própria, cuspindo papel para todos os lados - nada que fosse elétrico ou eletrônico estava à salvo dele. As portas que dependiam de biometria e os elevadores, não respondiam.
As janelas eram lacradas e à prova de som. Estavam muito alto, jogaram cadeiras contra os vidros sem sucesso em quebrá-los.
Estavam ilhadas e à mercê dele. As luzes baixaram. Os equipamentos de ar-condicionado baixaram a temperatura do ambiente tanto quanto possível.
Poucos minutos para a meia-noite.
Um barulho é ouvido, alguém entrou. O som de passos firmes era nítido, mas a ausência de luz não permitia que elas vissem quase nada. Elas conversam muito baixo entre si de tempos em tempos, ao menos para saber que ainda estavam vivas.
Até que os monitores marcam meia-noite e Linna para de responder.
Silêncio completo.
Belle se sente completamente sozinha.
Algumas luzes voltam, o suficiente para que ela vislumbrasse o corpo da amiga já sem vida.
Desespero e dor a inundaram, mas não pode deixar de sentir a sensação de alívio por ter sobrevivido àquele louco.
Acabou. O dia acabou. 
O assassino não mataria mais, já tinha sua vítima da meia-noite. Só o que ela queria era sair dali.
Mas sua atenção voltou-se para os monitores que ainda marcavam meia-noite. Poucos segundos se passaram desde que as luzes se acenderam.
A mensagem dos monitores mudam:
“Fim do horário de verão”
E antes que o relógio marcasse o primeiro minuto do dia seguinte, ele retorna para as vinte e três horas do sábado.
Elas não haviam atentado para isso: seria meia-noite por duas vezes naquele dia. Os monitores passaram a mostrar uma contagem regressiva de uma hora novamente.
Uma risada demoníaca tomou conta do ambiente.
As luzes se apagaram novamente.
Belle sente o frio da morte se aproximar.
Sabia que viveria por apenas mais uma hora.
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ayumutextos · 5 months
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Lábios. Laços.
A pequena Márcia dormia tranquilamente em sua cama de princesa. Havia esperado pela chegada do pai enquanto aguentou ficar acordada, mas tarde da noite, o sono vencera. Levava a vida que uma criança deveria levar: a escola durante o dia, sua casa à noite. O tempo de brincar e conversar com seu herói.
Alcino costumava chegar o mais rápido que podia em casa. Saía do trabalho correndo para chegar em casa o quanto antes - tudo o que importava para ele estava ali. Normalmente, conseguia chegar a tempo de buscar sua pequena na escola, levá-la para casa de forma a aproveitarem o resto do dia juntos. Ajudava-a na lição de casa enquanto preparava o jantar e depois disso brincavam e conversavam até a hora de dormir. Márcia gostava de ouvir histórias e Alcino nunca deixou de contar. Eram “os melhores amigos do mundo para sempre”, como costumavam dizer.
Seis anos atrás, a vida dele mudara momentos depois que Márcia nasceu; complicações tiraram dele a esposa. Estava sozinho com uma recém-nascida. Prometeu a si mesmo que daria a vida por ela e assim o fez desde então. Já Márcia, compreendia bem o que era uma mãe apesar de nunca ter tido a chance de conhecer a sua. Seu pai não deixava de falar dela um dia sequer. Ela sabia que sua mãe estava presente de alguma forma. E era feliz em ter um pai tão dedicado.
Alcino estava sempre bem em casa. Márcia estranhava quando ouvia algum comentário diferente disso entre os vizinhos. Não entendia o porque de alguns deles conterem palavras como “coitado” ou “pobrezinho”. Às vezes ouvia dona Nancy, a vizinha falando algo do tipo. Era ela quem cuidava de Márcia quando Alcino não conseguia chegar a tempo. Antes era muito raro isso mas hoje em dia, praticamente todo dia ela dormia sem ver seu pai. Acordava levemente por uma fração de segundos quando sentia um toque no rosto - o beijo que seu pai jamais deixava de dar - uma torrente de tranquilidade tomava conta de si enquanto um leve sorriso tomava conta de seu rosto; e então voltava a dormir. O beijo de seu pai remetia a uma sensação que não se lembrava concretamente, mas a qual sempre se apegava - ele havia lhe dito que, depois que ela nasceu, em seu último esforço, sua mãe a olhara e, com um sorriso e os olhos brilhantes lhe dera um suave beijo no rosto - o primeiro toque de sua vida e o último de sua mãe.
A pequena pensava em seu pai ao longo do dia. Há semanas ele não estava lá para ajudá-la na lição e acompanhar suas brincadeiras; várias noites sem ouvir uma história antes de dormir - mas o beijo de boa noite ela nunca deixou de ganhar.
Fora de casa, as últimas semanas tinham sido duras. Alcino conseguia levar a pequena à escola, conseguia preparar seu lanche e deixa-la com a professora antes de seguir para o trabalho. E quando virava a esquina e não podia mais ser visto por ninguém na escola às suas costas, a figura do homem mudava. Os ombros caíam, a cabeça baixava, as pernas fraquejavam. Permitiu-se sentar por um momento. Abriu a carteira quase vazia na esperança de que a realidade mostrada ali tivesse mudado. Tentou lembrar-se da última vez que fizera uma refeição decente - só tinha o suficiente para a pequena há um bom tempo e era o que importava. Secou as lágrimas que marejavam seus olhos e rumou, não para o escritório de semanas atrás como fazia desde sempre, mas para o porto, esperando ser escolhido dentre tantos candidatos para descarregar algum navio, receber alguns trocados por isso e manter a ilusão de que estava tudo bem, ao menos para a menininha que aguardava por seu beijo de boa noite.
Escolhido então para descarregar alguns sacos de açúcar, tirou o paletó que escondia a roupa surrada que usava na nova jornada. Colocou-o de lado assim como uma única batata cozida que seria com o que passaria o dia. A rotina destes trabalhadores eventuais do porto não era fácil: acordar cedo, tomar um lugar dentre tantos homens disputando um dia de trabalho árduo em troca de poucos reais. O dia só acabava quando estivesse tudo concluído e isso muitas vezes durava até quase o final da noite. Tomava o rumo de casa, subia as escadas com as últimas forças e parava diante da porta. Não podia permitir que aquele homem destruído entrasse em sua casa - enchia o peito de ar e erguia os ombros, vestia o paletó limpo e limpava seu rosto com um lenço. O homem que adentrava a porta tinha um sorriso de realização no rosto. Colocava as sacolas do mercado sobre a mesa, com o resultado de um dia sofrido de trabalho. Já era alguma coisa, mas longe do realmente necessário - amanhã voltaria ao porto.
Prestes a desabar, pôs-se a fazer a única coisa que importava em todos os dias;  abriu calmamente a porta do quarto, contemplou o anjo que lá repousava, reclinou-se e beijou seu rosto delicadamente - encarou-a tempo o suficiente para ver um sorriso iluminar seu rosto e mais uma vez, sentiu sua vida fazer sentido. O momento que seus lábios tocavam a pele de sua pequena, sentia que ganhava forças para fazer tudo de novo - tudo por ela.
Da mesma forma que sentia que a pequena Márcia era o farol que iluminava seu caminho, a noite, em seu quarto, com a luz apagada e a cabeça no travesseiro eram uma espécie de porto seguro. Fechava os olhos e sentia o coração apertar. Pensava em sua amada e em sua pequena. Como seria se ela estivesse ali com eles? Pedia forças para não ceder, seu corpo já parecia ter o dobro da idade que realmente possuía; tinha medo de não ser o homem que precisava para sua pequena, temia não estar mais lá cedo demais - ela estaria sozinha. Nesse momento, em silêncio permitia-se desabar. Chorava o quanto sentia precisar pois no dia seguinte não haveria tempo para isso.
Antes de dormir, lembrava-se dos últimos momentos com sua amada: o nascimento da pequena, a troca de olhares. Milhões de coisas ditas em silêncio numa fração de segundos. Lembrou do beijo em sua esposa enquanto esta beijava o bebê recém chegado. Seus braços envolvendo as duas. O momento em que seu amor partiu - o mesmo momento em que seu outro amor chegara. Dormiu abraçado a uma velha foto do casal, a saudade parecia capaz de arrancar seu coração do peito ao passo que o sentimento pela pequena o acalantava - uma enxurrada de sentimentos.
Márcia acordou sem seu beijo de bom dia. Os primeiros raios de sol iluminavam sua janela mas a casa estava tomada por um silêncio incomum. Levantou-se e tomou rumo pela casa até o quarto de Alcino. Empurrou lentamente a porta e pode vê-lo dormindo pela fresta aberta. Seus olhos contemplaram um homem exausto abraçado a uma fotografia que ela conhecia bem. O rosto que repousava no travesseiro tinha traços sofridos muito diferentes do que estava acostumada a ver.
Ela sabia perfeitamente o que precisava fazer. Aproximou-se lentamente e, pondo-se nas pontas dos pés, inclinou-se sobre ele, beijando suavemente seu rosto. Ele despertou. Assustado e preocupado. Tomou cuidado para que a pequena não percebesse. Sentaram-se na cama a contemplar a foto juntos. Beijou a cabeça da pequena e a trouxe para junto de seu peito. Decidiram tirar o dia de folga, tomaram café da manhã juntos e passearam a pé pela cidade. Terminaram o dia brincando e em seguida uma história. 
Quando Márcia finalmente adormeceu, ganhou seu beijo de boa noite. Dessa vez, despertou tempo suficiente para retribuir com outro beijo e um abraço forte antes de voltar a dormir. Alcino rumou para seu quarto, deitou a cabeça no travesseiro. 
Amanhã tudo recomeçava, do jeito de sempre. Mas era por ela, e por ela qualquer coisa valeria à pena.
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ayumutextos · 5 months
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O garoto de papel
Assim como em todos os dias ao longo dos últimos anos, o relógio na parede teimava em lembrar o controle que tinha sobre a vida de Marcelo. No alto de seus trinta anos, já nem lembrava da última vez na qual não precisara se submeter ao controle de seu algoz. Ele pensava em quantos dias mais até o próximo final-de-semana, mas seu lampejo de esperança era apagado subitamente pela lembrança de que, seu algoz mais uma vez assumiria o controle; o relógio que fluía o tempo lentamente durante estes dias, fazia questão de correr de forma que as horas simplesmente se desfaziam diante dele - o domingo passava em um piscar de olhos, e o ciclo se reiniciava.
Diante da tela do computador, ele pensava em como chegara ali. Voltou ano a ano no tempo enquanto seus olhos corriam pelos gráficos na tela à sua frente - primeiro um ano, uma década. De repente, viu-se menino sentado no tapete da sala, rodeado por papeis e lápis de cor, inúmeros desenhos ilustravam o que povoava sua imaginação - a preocupação única de estar perto das pessoas que amava e de se entregar àquilo que o fazia feliz. Contemplou o brilho nos olhos do garoto e se perguntou em que momento de sua vida seus olhos o haviam perdido.
Avançando no tempo, viu o garoto um pouco mais velho sentado em uma sala de aula, os olhos já não brilhavam tanto, mas havia esperança neles. Podia ouvir seus pensamentos: o garoto se questionava sobre o porque estava ali, mas lembrava-se das palavras de sua mãe, que dizia que aqueles anos seriam para prepará-lo para seu futuro, uma faculdade onde poderia estudar apenas aquilo que o faria feliz, realizado. O garoto baixou os olhos para o caderno - alguns textos perdidos das últimas páginas, junto a alguns desenhos - nenhum deles tinham nada a ver com a escola - ele desvia sua atenção deles.
Mais alguns anos e o jovem estava sentado, novamente em uma sala de aula, desta vez em uma universidade. Ele olhava atento para o professor que falava de algum assunto entre tantos que ele aprendia ali. Seus pensamentos viajavam longe. Olhou para o fundo de seu bloco de anotações, mais alguns textos perdidos e, junto a eles, mais alguns desenhos. Lembrou-se de sua mãe que falava sobre o momento em que estudaria apenas aquilo que desejasse - e que, na verdade, nada mais era do que estudar para seguir uma carreira específica, de acordo com aquilo que se esperava dele - e ele deveria aprender que gostava de tudo aquilo. Ele gostava mesmo era de fazer seus rabiscos no fundo do caderno, mas nunca ouviu falar em nenhum rabiscador profissional.
E enfim ele se viu ali. Vivendo mecanicamente, prisioneiro do tempo, controlado pelo relógio na parede. Olhou para o gráfico na tela do computador e imaginou uma linha decrescente mostrando a ele a alegria que foi se esvaindo com o passar dos anos.
Esticou o braço até sua mochila que estava próxima à cadeira em que se sentava e apanhou uma pasta extremamente castigada pelo tempo. Parecia tê-lo acompanhado por toda a vida - e realmente tinha. Dentro dela, uma série de rascunhos: textos, quadrinhos, desenhos - tantas histórias. Permitiu-se ir de encontro com o garoto mais uma vez, viajando por cada momento naqueles papéis em suas mãos. Não ouvia mais o mundo ao seu redor, parecia não estar mais ali - o relógio não importava mais.
O garoto tomou então as rédeas de sua mente, a ironia do momento em que sentiu tomar a decisão mais madura de sua vida. Marcelo desligou então o computador à sua frente. Encarou a tela apenas tempo o suficiente para ver o seu reflexo em meio à escuridão que a preenchia. O homem que o olhava de volta tinha um brilho nos olhos, aquele brilho nos olhos que há muito perdera. Tomou para si uma folha de seu velho bloco, onde escreveu uma carta de resignação. Com um sorriso no canto da boca, olhou para o relógio e se despediu.
Aquele algoz não afetaria mais o garoto que, com sua pasta em baixo do braço, foi reescrever sua história.
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ayumutextos · 5 months
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O dia da caça
Melhor fugir!
Corro desesperadamente, meu coração parece poder explodir a qualquer momento. O beco é escuro e apesar dos meus olhos serem feitos para a noite, o breu me causa pânico. Era eu quem devia está-los caçando. 
Me sinto cansado, meu corpo vai diminuindo o ritmo e eu fico cada vez mais lento, mais fraco. Era eu o dono da noite, e agora fujo desesperado. O caçador virou a caça enfim…
Estou fugindo há horas, arrumo enfim um canto onde parece que posso me esconder. Tento então me limpar um pouco e percebo que estou coberto do meu sangue. Me sinto cada vez mais fraco, mas permaneço atento. E é aí que ouço meus perseguidores se aproximando.
Fujo, corro, salto. Busco os locais mais altos mas de nada adianta.
Crio enfim coragem de olhar para trás e vejo. São dezenas de ratos, negros como a noite, os olhos demoníacos e sedentos. Eles transpõem obstáculos e seguem vorazes em minha direção.
Sigo em frente. Preciso continuar.
Não! 
Estou cercado. O que eu faço? Agora eles vêm de todos os lados! Sinto o pânico tomar conta de mim. O frio consome meu corpo - um medo que eu nunca senti antes.
Salto até uma escada de emergência próxima a mim, e acabo apoiado apenas em minhas patas dianteiras. Luto para subir completamente, mas há mais deles lá. Sinto os dentes cravarem em minhas patas, até que a dor vence minhas últimas forças.
E então eu desabo, sem condições físicas de cair em pé como seria natural, choco-me de costas em meio ao beco escuro, um mar de roedores domina o mundo ao meu redor. 
Eles avançam sem chance de defesa. O desespero suprime qualquer pensamento. Nunca pensei que eu, o gato, dono da noite, sucumbiria à criatura que tanto cacei - hoje era o dia da caça pegar o caçador. Não há mais nada a fazer; de nada adiantará lutar.
A dor lacerante de seus dentes e garras a cortar minha carne me faz enfim ver o mundo se apagar.
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ayumutextos · 5 months
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O homem do saco
Menino, sai da rua!
Já tô indo mãe!
Olha aqui moleque, vem logo para dentro de casa, senão o homem-do-saco vai pegar você!
M-mas… mãe…
“Mas” nada! Venha logo que eu quero fechar essa casa! Seu pai logo chega.
Nossa!
Parece que foi ontem…
Eu acordo me lembrando de minha velha mamãe me falando do homem-do-saco quando eu era pequeno; lá pelos anos oitenta era o que toda mãe falava, né?
E quando saíamos na rua eu acabava vendo aqueles caras - sujos, com roupas rasgadas e um saco, que hoje eu sei que era onde carregavam tudo o que tinham, pois não tinham onde morar - hoje eu sei, mas na época, aquilo tudo era assustador.
Eu só queria ter entendido melhor o que minha mãe queria dizer.
Ser pego pelo homem do saco era “a” lenda urbana da minha infância, mas também uma metáfora incrível - mas a gente não percebia, não é mesmo?
Na infância, era um motivador a voltar para dentro de casa, parar de brincar, ficar à toa e fazer o dever de casa. No final das contas, o medo da mamãe não era do homem-do-saco me levar; era de eu ser levado a ser um homem-do-saco um dia, se eu não estudasse.
 Na adolescência, ela já não usava a metáfora. Ela tentou me fazer entender que, se eu não buscasse fazer algo da minha vida, meu futuro poderia ser a rua como morada e a vida dentro de um saco. Mas adolescentes são burros demais às vezes; rebeldes demais para entender mesmo quando a mãe deixa de usar as metáforas e fala diretamente.
Adolescentes sabem tudo do mundo, né?
E como eu sabia tudo, eu não precisei estudar, né?
E já que minha mãe se matava de trabalhar, eu não precisava, né?
Eu era o dono do mundo. Bebia para comemorar, passava todas as noites fora de casa.
Forcei demais as emoções de mamãe.
Ela partiu jovem.
Fui vendo que não sabia tudo do mundo…
Percebi que devia ter estudado…
Procurei trabalho e não consegui. Nada sabia fazer…
Passei a beber para esquecer minha desgraça…
Passava as noites da rua, porque já não tinha casa…
Mamãe tentou me ajudar, fui eu quem não quis.
Fui pego pelo homem-do-saco que me tornei.
Enfim…
Não era apenas uma lenda….
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ayumutextos · 5 months
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O homem sob a árvore
Nada de muito diferente no dia de hoje. A rotina monótona é como uma prisão. Saio do escritório todos os dias neste mesmo horário: o céu é sempre igual, o movimento nas ruas é o mesmo. No ponto de ônibus sempre o velho “73” que partirá às dezoito horas espera seus passageiros - o motorista com aquela cara de quem já deixou de sentir qualquer sabor pela vida - não sou diferente; olho em volta, respiro profundamente e deixo meus ombros desabarem em conformismo. 
As mesmas pessoas, os mesmos sons, o mesmo caos - tudo parece normal - até mesmo o velho homem sentado sob a proteção de uma árvore e o mesmo de todos os dias - inócuo demais para ser notado por alguém. Aliás, no final das contas as pessoas estão tão presas ao próprio ego que todos à sua volta são insignificantes, invisíveis.
Entro no velho setenta e três e tomo rumo para casa.
Repito o ritual vazio nos dias que se seguem, assim como tenho feito todos estes anos. Farto da monotonia, começo a olhar à minha volta - como eu suspeitava, nada nunca mudava - até o homem embaixo da árvore era o mesmo.
Algumas semanas se passaram e eu continuei a olhar os detalhes. Minha certeza quanto a ninguém perceber ninguém só se confirmou. Até as pessoas que fazem parte da nossa rotina passam despercebidas - qualquer passageiro do velho setenta e três, só notaria o motorista caso algum acidente acontecesse - e isso me faz pensar que eu mesmo pego o velho ônibus há mais de dois anos, no mesmo horário, todos os dias com o mesmo motorista e nem ao menos sei seu nome. Pois é, parece que eu não ando desviando meus olhos do meu umbigo, não é mesmo? 
E então eu presto atenção no cansado motorista: parece que ele também não tem muito interesse em desviar sua atenção de si mesmo; fato confirmado por mim após finalmente ver que se chamava Genésio e cumprimentá-lo com um caloroso “boa noite, senhor Genesio” e receber como resposta um simples resmungo sem que ele ao menos virasse os olhos para ver que o cumprimentava - arrumei um lugar no velho ônibus e me coloquei a observar a janela antes de partir.
E ele estava lá. Mais um dia. Embaixo da mesma árvore. Atentei aos detalhes e percebi que aquela era sua casa. Muito além disso, percebi que o homem cumprimentava quantos passassem por ele sem se cansar - mesmo não recebendo resposta alguma de volta exceto por olhares desviados e expressões de reprovação (como se o coitado estivesse fazendo algo de errado apenas por existir). Alheio a toda aquela situação, o velho homem fazia anotações em um bloco de papel e conversava com o cão que lhe fazia companhia.
Não pude deixar de pensar naquilo tudo. Ali, embaixo daquela árvore, no meio de todo o caos, o homem parecia viver em um mundo à parte - sem se isolar dos outros como todos à sua volta faziam apesar de sentirem-se vivendo em um mesmo mundo - triste ilusão.
O dia seguinte no escritorio parecia não querer acabar nunca. O pensamento no velho homem sentado embaixo daquela árvore me consumiam. Tentei conversar com alguns de meus colegas mas ninguém o havia notado lá - bem, quase ninguém - alguns poucos me disseram que era apenas um louco e que bastava fingir que ele não estava lá. Mas isso era algo que eu não conseguia fazer.
O dia acabou. Ao invés de rumar para o velho setenta e três, fui até a cafeteria próxima e me servi de um Latte - precisava pensar um pouco na vida, longe de casa e fora do trabalho. De lá vi o velho setenta e três partir; só teria uma nova condução para casa dentro de algumas horas. Pedi dois cafés para viagem e parti em direção à praça; o velho estava lá. Ao me aproximar, recebi o mesmo “boa noite” que ele dava para todos, mas a diferença neste caso foi que eu parei, olhei diretamente para ele e retribuí. Aumentou então o sorriso no rosto daquele senhor, uma expressão de satisfação surgiu em seus olhos. Estendi a mão com o café e ele agradeceu ao toma-lo em suas mãos.
Comecei então a conversar com o homem que agora eu sabia chamar-se Nicolau. O mais engraçado em tudo isso, é que nitidamente não éramos mais invisíveis pois todos que passavam nos encaravam com estranheza. Rimos disso algumas vezes, especialmente quando uma senhora me disse “finalmente”, achando que eu era um agente público prestes a retirar aquele “incômodo” da praça. 
Descobri surpreso que Nicolau era, de todas as pessoas que transitavam naquela zona comercial, a mais consciente de todas. Ele tinha uma visão de mundo que as pessoas focadas em seus próprios umbigos jamais teriam. Aprendi muito com ele naquelas horas.
Quando meu ônibus finalmente chegou, me despedi com um forte aperto de mão de meu novo amigo; ambos nos desejamos um ótimo final de semana. Paro após alguns passos e me volto para ele novamente, perguntando se haveria algo que eu poderia fazer para ajudar.
Eu gostaria muito de um radio.
Ah, claro Nicolau. Um pouco de música é sempre bom.
Não, eu quero ouvir as notícias.
Sorri, um movimento com a cabeça em sinal positivo e mais uma vez um olhar satisfeito tomou meu novo amigo.
Tomei meu lugar no velho ônibus, contemplando o céu noturno através da janela.
Pensando na loucura que é essa nossa vida, que faz os loucos parecerem os sãos e os sãos parecerem os loucos.
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