Tumgik
Text
Tu morrestes pela mesma arte que te fazia sentir vivo
Tumblr media
A arte é a incoerência
O dia amanheceu colorido e morninho hoje, Iara, daquele jeitinho perfeito que tu tanto amavas. E quando acordo cedo o suficiente, religiosamente repito o teu ritual matinal. Abro as cortinas, dou um sorriso para o céu e digo “Bom dia”. Arrastando os pés pelo chão, ainda dentro das meias que não formam par algum, vou até a cozinha e coloco a água para ferver. Lá fico, por uns cinco minutos, observando as bolhinhas formarem no fundo da panela, até que todas somem gradativamente quando apago a chama do fogão. Com o sachê de chá na xícara, preencho-a com a água e, esquentando cuidadosamente as mãos na superfície de porcelana, carrego ela comigo até a sacada.
É bom sentar ali, sentir a brisa leve e fresca, enquanto o céu muda de tom de azul lentamente. Os passarinhos vão acordando também e fazem-me lembrar de como tentavas conversar com eles assobiando. Lindo e melancólico como percebemos os costumes das pessoas quando elas já não estão mais aqui; e como eles, e elas também, fazem falta, deixando um espacinho no tempo, uma sensação de vazio.
Teu vasinho com pés de alecrim continua lá, na sacada do apartamento, recebendo sol e chuva e, por vezes, um oizinho meu também. É como se eu tentasse mantê-lo vivo para te manter aqui, fresco como o cheirinho da sálvia quando esfregamos as folhas entre os dedos. Até a Margô, por vezes, dorme lá do lado das plantinhas, enroladinha como uma rosquinha, daquele jeito que tu a adoravas fotografar. Ela dorme no teu travesseiro toda noite, como que guardando o lugar quentinho para tu descansares quando voltares. O ronronar dela acalma-me bastante e ajuda-me a dormir quando sinto-me sozinha.
Eu sei que insisti muitas vezes que não era necessário oferecer-me um teto, que eu conseguiria sobreviver pagando meu aluguel mesmo sendo difícil demais viver do salário de atendente numa loja de discos e vendendo minhas fitas cassete caseiras. Mas algo arrastou-me para o teu apartamento depois daquele dia ensolarado e longo velando alguém que eu jamais imaginei que enterraria. Foi como se minhas pernas me tivessem arrastado para o teu apartamento desde o cemitério e, quando eu vi, estava procurando pelas chaves nos bolsos da minha jaqueta enquanto Margô miava um bolero daqueles bem tristes do outro lado da porta. Acho que ela já sabia. E acredito que tu também, pois o potinho de comida e o de água estavam cheios, como se, antes de sair, já tivesses previsto que demorarias a voltar. E jamais voltaste.
O mundo parece não ter dado pela tua falta, Iara. Apenas eu e Margô, imagino eu. Mesmo que tenhas morrido em rede nacional, talvez em telas de televisão fora do país, ninguém aparenta ter percebido que não estás mais aqui. Que não tomas mais chá pela manhã, não acaricias tua gata ou vais ao mercado no retorno do trabalho. Não houve saudades se não as minhas, as do teu aquecedor de travesseiros e as dos pezinhos de alecrim que já não conversam mais contigo aos domingos.
E foi hoje, ouvindo as músicas que tu gravaste para mim num CD, para o qual fizeste o encarte à mão, com uma carta de aniversário dentro e um lembrete de que músicas são nossos sentimentos, inquietações e contradições colocados em ordem, em notas, em frequências, ondas e matemática. Foi hoje, colocando a marcha na primeira e acelerando para sair com o carro quando o sinal ficou verde, que eu compreendi o que quiseste dizer quando alegaste que a arte exterioriza a contradição dos homens.
Tu morreste pela mesma arte que te fazia sentir viva.
Quando formulei essa frase em minha mente, freei o carro sem sequer perceber. Foi como um segundo Big Bang, mas dentro de minha própria cabeça, com meus neurônios estarrecidos pelo que eu acabara de compreender. Foi como se todos os anos, os curtos e longos momentos, cada frase excessivamente poética e metafórica, cada música escolhida cuidadosamente para gravar num CD e me entregar como presente; tudo isso de repente fez sentido.
Como aquela vez em que, em meio a um polêmico diálogo sobre sexualidade numa rádio suburbana daquelas que tu encontravas sabe-se lá de que forma, eu desabafei que não tinha a menor ideia de qual era a minha. Eu não era uma garota muito aberta ou desinibida a ponto de ter experienciado tantas coisas assim, mesmo que eu fosse a mais velha de nós duas. Eu nunca teria imaginado a tua reação, mas hoje eu a entendo. Entendo porque, ao ouvir-me dizer que eu não sabia ao que eu era atraída, tu viraste o rosto em minha direção e, ao contrário da risada que eu esperava — o julgamento de que não sabendo o que eu era, eu pudesse não ser heterossexual —, teus olhos apenas fixaram-se nos meus e quando dei por mim tu já me tinhas agarrado pelo pescoço e me beijado. Caso estejas realmente me ouvindo em algum lugar, não, eu ainda não sei o que diabos sou.
A aura antagônica da tua existência esclareceu-se em minha memória, recordando-me daquela vez em que, num dia extremamente quente, véspera de Natal, eu te estava observando enquanto seguia livremente a música, naquela sala que tu sempre chamavas de “laboratório de corpo”, pois lá era o ambiente perfeito para experiências novas com cada célula que te compunha. A paisagem abafada lá fora, com árvores cobertas pelos últimos raios de sol, acompanhavam o calor dentro daquela sala; as janelas embaçadas, a tua respiração acelerada, cada vez mais profunda, levando braços, pernas, tronco e quadris em direções diversas, completamente livre e recriando para ti mesmo a definição de dançar. Um calor humano que eu podia sentir mesmo a metros de distância, sem toque, sem tato e sem suor.
Na saída, fomos surpreendidas por uma tempestade de verão, de gotinhas geladas, arrepiando dos pés à cabeça, mas mesmo assim, algo em ti parecia exalar um fervor que, hoje, eu nomearia de paixão. Não uma paixão entre homens ou mulheres, mas uma genuína paixão por, simplesmente, ser e estar.
Paixão esta que também traz a mim outra evidente contrariedade da tua pessoa. Este desejo por ser quem eras, mas ao mesmo tempo, uma revolta e desordem interna, de amor e ódio por ti mesma; de querer estar dentro e fora do teu próprio corpo, ora amando-te, ora querendo rasgar-te por dentro. Fugir daquilo que nunca poderias deixar, simultaneamente desejando abraçar-te e fundir-te ao que já eras.
Ontem estava eu chegando em casa, passando em frente àquela cafeteria que tu dizias parecer uma verdadeira casinha da vovó, com a aura aconchegante, hospitaleira e quentinha, quando senti um aroma quase cruel de canela carregar-me pelo nariz. Foi o mesmíssimo perfume que tomou conta do teu apartamento no meu aniversário, quando, sabendo da minha loucura apaixonada por cravo e canela, fizeste o famosíssimo bolo sueco kanelbulle¹. Não negues que foi um jogo muito baixo arrastar-me pelo estômago para passar o resto do dia contigo e com Margô, comendo rolinhos de canela e tomando o teu adorado chá de camomila.
Tua mente, por vezes adulta e madura demais, outras vezes aparentemente recém-nascida, também me traz agora outra evidência da tua dualidade, da tua inconstância. A mesma adulta Iara Maria que organizou tudo aquilo, desde a receita, os ingredientes, os bolinhos, o chá fresco, a mesa e a decoração de aniversário com um toque pessoal — artístico e casual —, enquanto lavava a louça insistia em soprar espuma em mim toda vez que eu aproximava-me da pia.
Ah, antes que eu pareça muito analítica e tediosa, gostaria de vangloriar-me e contar-te que aprendi a acertar o ponto das panquecas de banana que tu ensinaste-me a fazer. Elas ficam absurdamente deliciosas com mel e um espumoso cappuccino gelado, daqueles que tu sempre fazias nos finais de tarde, aos sábados.
Foi na mesma semana desse meu aniversário que, pela primeira vez, presenciei o lado cruel do mundo contra a pessoa com o coração mais astronômico que conheci. Eis aí outra incongruência da tua natureza dual. Vínhamos caminhando pela Avenida Ipiranga quando um grupo de jovens nos empurrou, assim de repente, caçoando das roupas masculinas e corte de cabelo que eu usava. Eu, particularmente, esperava que tu desses de ombros, ignorando a imbecilidade daquelas pessoas, mas fui surpreendida por uma Iara que eu ainda não conhecia. Foi tão rápido que tudo que eu, efetivamente, vi foi o teu punho quebrar o nariz, logo escorrendo sangue, do garoto que me empurrou. Fiquei tão perdida que nem me lembro do que exatamente tu disseste ao grupo, puxando-me pelo braço na sequência e seguindo caminho, de expressão séria, observando a própria mão lesionada, para a qual eu também olhei. Quando retornei o olhar ao teu rosto, avistei um sorriso, que logo virou-se para mim, elevando a mão e mostrando-me o resultado doloroso da pele roxa e machucada sobre os metacarpos. Era como um troféu..
A tua fascinação pelas paisagens mais contrárias e incompatíveis parece óbvia agora. Nossas pequenas e paupérrimas viagens para lugares que nada tinham em comum. Hora montanhas, no inverno, cobertas por uma geada paupérrima e rodeadas por um horizonte verdinho e macio; mas que para os teus olhos era tão lindo quanto nossa passagem pela BR-242, num calor sob o qual minhas próprias células devem ter derretido, um infinito de vegetação mediana, com as elevações da Chapada Diamantina ao redor, sem qualquer sinal de companhia além de nós mesmos. Fomos também a muitos museus quase desconhecidos, daqueles que um em cada um bilhão de turistas visita; famosas casas assombradas; jardins botânicos, zoológicos, parques de diversões. Teus programas e passeios pareciam incoerentes, e de fato o eram, mas esta era a coerência deles.
Não posso esquecer-me da tua paixão por fotografias, gastando filmes e mais filmes em todas as viagens. Porém, fugias o máximo possível de estar na frente da câmera, alegando que não achavas-te fotogênica.
A forma como eras apaixonada por cinema, teatro e apresentações diversas sobre o palco — que não era apenas uma paixão, era a tua casa, o teu lar —, mas ao mesmo tempo inquieta, hiperativa demais para manter-se parada ou sentada por tanto tempo. Apesar de pregar insistentemente que aquele que sobe ao palco também deve aprender a sentar na plateia de outros artistas, apreciá-los, o teu bumbum parecia ter um formigueiro. O dançarino no palco saltava e tu erguias o corpo, como se quem estivesse saltando fosses tu. Idem para qualquer outro movimento, que era de algum modo mimetizado de forma diminuta, discreta, no teu pequeno espaço de espectador. E foi esta inquietude na alma que te matou.
Eu conheci-te como uma das mais ativas manifestantes entre os alunos da escola de artes. Uma rebelde que, na verdade, era mais pacífica e amável que qualquer outra pessoa no mundo. Tu apenas querias o pleno direito da liberdade, da contradição e da incoerência das quais qualquer artista necessita. No mundo de Iara Maria isso significava, simplesmente, viver.
Teus protestos eram dos mais profundos, tão além do tempo que, por vezes, eu mesmo não compreendia. Houve aquele em que tu dormiste num colchão em plena praia, semi-nua, quando um evento de exposição de diferentes modalidades da dança que aconteceria ali mesmo, sobre a areia, foi cancelado pelas autoridades, alegando possível uso de drogas ilícitas, conteúdo impróprio — que nunca foi explicado por ninguém o que seria impróprio em dançar —, entre outras justificativas absurdas, mas que ninguém além de um grupo de seis dançarinos, incluindo-te, questionou ou protestou contra. Lembro-me que dormi no hotel em frente, praticamente de pé, com a toalha e a coberta em mãos, esperando que tu voltasses depois de dormir a noite toda com a maré nos pés.
Mas nem tudo foram revoltas. Lembras-te de quando eu disse que o teu presente de aniversário estava na minha mochila? Num dos muitos momentos de distração que eu tinha, tu tiraste-a do meu ombro e saíste correndo em plena estação de metrô, me fazendo correr de dentro do vagão, quase sendo prensado pela porta quando o aviso sonoro começou a soar. Corremos como crianças entre vagões e plataformas, cortando pessoas, desviando de grupos inteiros de amigos e até saltando os degraus das escadas rolantes. Por fim, o presente só foi aberto na tua casa, com a Margô apoderando-se da caixa vazia enquanto eu acendia as velas — já usadas em aniversários anteriores porque eu sou uma péssima organizadora de festas e esqueci-me de comprá-las.
Eu recordo-me de quando um grupo de valentões achou que éramos um casal. Era de noite e estávamos indo para casa, eu te busquei no teatro depois dos ensaios e tu estavas tão cansada que, por vezes, caías com a cabeça no meu ombro, mas logo acordavas com o chacoalho do trem, então voltando a piscar os olhos, fechando-os devagarzinho. Duas estações antes da nossa, o tal grupo apareceu, estavam parados na plataforma e, ao nos verem numa das tuas sonecas de cinco segundos, bateram com um taco no vidro da janela bem ao teu lado, fazendo-te saltar de susto. Minha reação foi segurar-te com os braços, abraçando, como se eu pudesse proteger-te do mundo. Felizmente, o vidro não estilhaçou, mas a marca da batida, os trincados na janela bem do teu lado, fizeram-te ficar atônita o resto da viagem até sairmos do vagão. Sem saber o que fazer ou falar, vendo que muita coisa te borbulhava nos pensamentos, minha única reação foi aproximar a minha mão da tua, que estava pendendo do banco, bem no espaço entre nossas pernas. Estiquei um de meus dedos e, quando encostei, percebi que ainda tinhas as mãos frias, como se elas continuassem assustadas e temerosas. Ao sentires que eu a tocava, lentamente tu levaste teus dedos sobre os meus e apertaste-me a mão com uma força que eu nunca te vi usar.
Naquela noite, chegando na tua casa, eu perguntei se tu querias tomar um banho, mas recebi um aceno em negação e, então, tu disseste-me para tomar primeiro. Eu já estava imersa na água quente quando vi-te entrar no banheiro. Sentaste-te ao lado da banheira, oposta a mim, colocaste uma das mãos na água e, soltando um peso do teu peito, nitidamente, esvaziaste tudo o que carregavam os teus pulmões. Teus olhos se fixaram nos meus e assim ficaste por alguns minutos. Silêncio. Agradeço por, mesmo nos momentos mais pesados e desesperançosos, tu ainda teres alguma faísca de palhaça e teres começado uma guerra de água, batendo com a palma na superfície e fazendo espirrar no meu rosto, ao que eu revidei jogando água com os meus pés na sua cara.
Diga-me, Iara, o que aconteceu na outra tarde? Eu lembro-me de ter passado pelo teatro na hora do almoço e disseram-me que tu sequer foste para lá naquele dia. Não tinha nenhuma notícia do teu paradeiro desde a noite anterior, quando eu despedi-me e fui para a minha casa. Por vezes, arrependo-me de ter ido, pois algo dentro de mim insistia que eu deveria ficar lá. Algo na despedida parecia já saber que era a última vez.
Saindo do teatro sem saber onde eu poderia procurar, ouvi em algum bar um rádio falando sobre uma manifestação ferrenha que estava acontecendo naquele momento em frente ao Museu de Arte Moderna. Talvez intuição, talvez desespero, mas tudo que consegui fazer foi correr.
Chegando o mais perto que pude devido aos bloqueios policiais, percebi que não era uma manifestação qualquer. Havia muita fumaça se espalhando e os gritos já não eram de protesto, eram de pânico. E eu também estava em pânico quando escutei as vozes se multiplicarem, repetindo que alguém tinha sido morto pela polícia em frente ao Museu. Eu não sabia quem era, não sabia sequer se tu estavas ali, mas senti a pressão despencar, o corpo amolecer e a respiração descompassar mais ainda. De repente, eu era aquela força da tua mão no trem, eu era algo muito mais intenso e inconsequente do que eu acreditava que podia ser. Eu pulei bloqueios como uma criança pula corda no parque; furei a multidão, atravessei por entre tantas pessoas que eu já nem sabia mais em que direção eu estava, para que lado o epicentro de tudo aquilo ficava, mas eu não sabia parar.
Quando a multidão acabou, quando eu voltei a respirar, a ver mais do que apenas corpos aglomerados, a fumaça perturbava os meus olhos, minha garganta ardia e meu nariz sangrava simplesmente por inalar os gases das bombas. Havia uma estátua, uma imagem daquelas gregas, quebrada no pé da escadaria do museu, bem na minha frente. A estátua nunca esteve viva, mas naquele momento estava definitivamente morta.
Havia um corpo, uma imagem daquelas que eu tinha todo dia, fosse no trem, no teatro, num parque, viagem ou no teu apartamento, quebrado e escorrendo pela escadaria, bem na minha frente. O corpo sempre esteve vivo, mas, naquele momento, naquele momento ele perpetuava. O corpo não estava munido de armas, de facas, bombas, pedras ou paus. O corpo trajava apenas roupas como qualquer outro e tinha, nas mãos, um punhado de flores. Flores estas que estavam mais vivas que o próprio corpo.
Eu não consegui parar de chorar desde aquele semáforo, Iara. Eu entendo agora o que significou cada um dos teus atos, cada uma das tuas palavras e cada uma daquelas flores. Mesmo que ninguém se recorde da jovem morta pela polícia durante um protesto contra o fechamento do museu, eu vou recordar-me dela. Vou recordar-me dela sorrindo, dela dançando, dela me explicando quem era Monet e quem era Manet, dela conversando com os pés de alecrim, dela me contando que o nome da gata era uma homenagem a Margot Fonteyn e dela assobiando tentando conversar com os passarinhos de manhã. Vou lembrar-me de como ela me fez questionar minha sexualidade milhões de vezes, mas nunca me fez sentir mal ou errada com isso. Vou lembrar-me da força que ela tinha e que eu senti naquela noite num aperto de mão.
Eu plantei alguns pezinhos de alecrim aqui e também escrevi — ou será que eu pichei uma lápide, logo eu, Lia, essa garotinha rebelde — a famosa frase do Jimi Hendrix que uma vez tu me disseste: “Quando o poder do amor for maior que o amor pelo poder, o mundo conhecerá a paz”. A tua arte era essa, Iara, amar demais — fosse a arte, a vida, as pessoas, as plantas, os bichos ou apenas assistir o sol nascer.
Ah, e a Margô te mandou um miau e uma lambida na cara.
8 notes · View notes
Text
Melancolia dissimulada após a explosão
Tumblr media
Do silêncio grave e oco das bombas surgem estilhaços. Confusos e caóticos, sem direção, apenas arremessados pela explosão. Como num aquecimento lento e gradativo, as vozes vão ganhando amplitude, espaço. Ainda que tomem conta do vazio escuro onde vagam, são todas melancólicas demais para reerguer o que foi destruído.
Rolam pelo chão pós-big-bang, ferindo-se nos destroços e ruínas enquanto dramatizam seu padecer vagaroso, atritando-se com os cacos que restam do que antes constituiu o universo.
Chamam sua atuação de hipocrisia, chorando dores enquanto rastejam sobre o que as machuca. Sua angústia é dissimulada Quando não estiverem mais prestando atenção em seu teatro tristonho, elas estarão crescendo, vozes altas, encorpadas, ecoando no infinito da escuridão, extraindo de suas dores a intensidade do que desejam dizer.
Dos escombros erguem inovações arquitetônicas ainda maiores que o raio de destruição. Do marco zero surgem monumentos mais altos que as bombas que no passado as silenciaram.
3 notes · View notes
Text
Debaixo da Derme Permeia o Primaveril
Tumblr media
—  florescente
Flores não são repentinas, são vagarosas, serenas, cuidam detalhadamente do que há por dentro antes de abrirem-se ao mundo; Sua beleza provém especialmente deste terno e lento processo, calmo e silencioso, que cresce pouco a pouco dentro delas e quando apresenta-se aos arredores encanta, tamanhos carinho e tempo designados a algo tão miúdo, tão delicado, tão efêmero; Uma sublimidade que demora, que demanda, mas que perdura infimamente; Florescentes somos todos por dentro, cada um uma flor diferente; nascemos e morremos milhares e milhões de vezes, como uma primavera subcutânea, escondida, de perfume singular; poucos são os olhos que nos admiram internamente,
pois poucos são os raios de sol
que deixamos entrar.
1 note · View note
Text
Remédios sem bula, melodias de quase silêncio e memórias que jamais tive
Tumblr media
I ato ⸺ segunda pessoa
É como passar as digitais gastas sobre os lábios vermelhos e borrar pelas maçãs do rosto o batom de cobertura seca.
A imagem parece um rasgo em meio ao rosto, um derretimento de si que sobe e não desce. Um choro que resseca e não molha. É silêncio.
As memórias que jamais tive e que insisto em lembrar. Meu subconsciente foi tão cauterizado e recosturado pela tua presença que sequer do teu rosto ele recorda. É um borrão no lugar de uma face.
Um quadro que acabou caindo na banheira enquanto tentava destruir o que restava da tua falsa presença. A moldura poderia ser reutilizada, mas o rosto já era uma tinta escorrida e abstrata. Foi como esquecer a borracha e apagar com os dedos o grafite do lápis.
Não apaga. Mas não se sabe mais o que havia lá. Como borrar o batom e esconder as digitais dos dedos, para depois pressioná-los na pia branca do banheiro.
Nas melodias de quase silêncio que escuto quando tento, de dentro das memórias que jamais tive, lembrar da tua voz. Ela também mergulhou nas água espumosas da banheira, como os sons graves e incompreensíveis que ouvimos do fundo do mar.
O quase silêncio duradouro de muitas das memórias que já nem tenho, nas quais talvez apenas a minha voz ecoasse, falando sozinho com um rosto borrado de tinta o qual sequer reconheço.
Foram tantos monólogos fantasiados de conversas e tantas noites solitárias mal trajadas da tua companhia.
Pelo pouco que ouvi já nem me recordo da tua voz. Sensação horrível de sentir-se vazio por dentro, mas, no fundo, ver-se vazio por fora, rodeado de ninguéns e alguéns que diferença nenhuma fazem.
O som cru e inexistente do batom sendo arrastado pela pele macia, grosseiro e rude, grudento, manchando por fora e por dentro.
Vomitei tantos remédios sem bula que dia após dia eu apenas engolia.
Remédios os quais acabaram por intoxicar e me comer o fígado de dentro para fora. No fundo eu certamente sabia que nenhum bem faziam, eram paliativos venenosos.
Iludiam meus olhos e meus ouvidos, ludibriaram meu julgamento e raciocínio, para por fim me consumir a sanidade ao estar sozinho. Ser sozinho. Ainda que rodeado de bactérias.
Talvez o tom rubro fosse sanguíneo ao ser espalhado e riscado por todo o rosto. Uma cor amarga, viva, mas porosa como cada comprimido engolido. Sórdido.
II ato ⸺ primeira pessoa
Ao contrário de dor, hoje carrego a mim mesmo apenas. As memórias que jamais tive de ti já viraram borrões e derreteram como os relógios de Dalí.
As melodias de quase silêncio da tua voz já riscaram os vinis e hoje soam apenas como ruídos; passageiros, esquecidos.
Os remédios sem bula da tua pseudo presença tornaram-se um multivitamínico para o meu ego e minha presença infinita dentro de mim mesmo.
Não me recordo de teu rosto, não me lembro da tua voz, e foram nas noites em que eu mesmo me fiz companhia, enquanto tu meramente respirava, que aprendi que conviver comigo é melhor que minha voz solitária falando por cima da tua comida fria. Muito mais preferível que ela então ecoe em frente ao espelho, solitária, mas em minha companhia integral e suficiente.
Sou cheio de borrões, garranchos apagados com dedos e batons tirados dos lábios sem qualquer beijo. Sou um disco inteiro de vozes borbulhantes, graves e agudas, sussurrantes e gritantes, todas insistentes, leoninas, egocêntricas. Sou eu mesmo um comprimido daqueles que mal se engole, sem bula e sem dosagem, apenas tomado até cansar; viciante, tóxico, entorpecente, próximo de um alucinógeno.
Sou contraindicado em caso de suspeita de egoísmo e hipocrisia.
Posso acabar causando náuseas e até antipatia.
Complexo, mas completo, sujeito à minha própria presença vinte e quatro horas por dia.
Foi por conta de todos estes que aprendi a abraçar a mim por inteiro, problemas e perfeições. Todos estes teus remédios sem bula. Não tinham princípio ativo, eram apenas comprimidos vazios, apenas excipientes,
de quase silêncio e memórias que jamais tive.
Não me ofereça mais deles, receio que eu nunca mais os engula.
2 notes · View notes
Text
Mitomaníaco Mitológico Moldou Pseudólogos
Tumblr media
No alto do Olimpo forjava com cuidado a verdade, material temperado tomava forma, criava vida. Foi surpreendido pela voz saudosa e potente de Zeus, destinado a abandonar temporariamente o posto de gerar tão honesta existência.
Sua ausência foi suficiente para originar uma antivirtude, modelada pela astúcia daquele que sempre está ali, presente a todo momento, à espera, aguardando que possa tornar-se o mestre, apoderar-se do material e moldá-lo à sua maneira. Malicioso Dolo tomou as ferramentas em mãos e deu corpo aos seus próprios desejos, contrários aos do artesão, seu mentor.
Ergueu e esculpiu de suas mãos a farsa. Deu volume, vigor e voz verdadeiros à mentira. Personificou o pseudo. Cria da discórdia, incabado, foi levado ao fogo junto de Aleteia, recebeu a propriedade latente, quente e intensa do fogo, absordou dele a vida.
Do calor da fornalha saíram a verdade e a mentira, lado a lado, carne recém-surgida. Aleteia nasceu completa, integral, caminhou sobre seus pés de veritas. Pseudólogos, forjado nas sombras, escondido, na ausência do verdadeiro artesão, caiu logo ao deixar o calor vivaz do fogo. Faltavam-lhe partes, os pés não foram moldados, tortos, mancava. Eram verdadeiras as curtas pernas da mitológica mentira, versão mal feita da genuína.
2 notes · View notes
Text
Meu egoísmo com pouco açúcar
Tumblr media
Não é como se fizesse sentido, nunca fez. Não é como se fosse intencional, acho que minha própria companhia me incomoda, mas a dificuldade em ver isso faz com que eu acredite que o incômodo é externo.
O primórdio sempre tem essa aura açucarada, sabe? Doce em todas as dimensões. Romântico. Minha presença é agradável, amiga. Quando não estou faço falta, semeio saudades, aquela espécie de vício na minha companhia. Como o próprio açúcar que vicia mais que cocaína, a minha ausência é irremediável, causa abstinência. Há uma busca pela overdose do doce da minha imagem ali presente. Não há espaço para os meus defeitos, tudo se torna encanto. Do ralado no joelho ao rosto inchado de sono. Não existe nada de negativo que possa me atingir do teu ponto de vista, intocável e perfeito, tudo que a mim remete é envolto em alguma espécie de fascínio. A necessidade por mais açúcar, por mais de mim, é obsessiva, inquieta, insaciável. O vício apenas aumenta, cresce em si mesmo e não parece ver o quão insalubre e abusivo isso pode ser.
O mundo é controverso, eu não sou diferente. Incoerente, incorreto.
É nesse momento que a abstinência mostra-se reveladora. Em algum momento, depois de tanta devoção a mim, sufocado por essa monomania, mostro o amargor que negava-se a engolir. Percebes que não sou tão fascinante assim, que meus defeitos engolem minhas qualidades como se nada fossem, que meu eu real é mais amargo que a solidão da minha ausência. Insiste em negar que eu seja assim, um monstro de sabor desagradável, presença aborrecedora, amofina. Tormento moral e mental para quem me fizer companhia, minha voz contorce a paciência alheia, eu mesmo me faço insuportável para então pedir que vá embora. Reconheço minha petulância, meu egoísmo, meu desprezo pela presença dos outros e suas tentativas em adocicar, mas se eu mesmo não me suporto, que dirá outro quando perceber que eu sou o que ficou no filtro de papel, não o que desceu do coador. Sou caótico, acetoso, do tipo que pinica o olfato e coça a garganta, instiga a ânsia por vomitar. Canso da companhia alheia como a companhia de mim cansa e como eu, de mim mesmo, ei de constantemente me estafar.
Sou doce no início, agradável, dengoso, vício. Encerro-me desgostoso, pungente, nocivo. Finalizo o último gole forçando a minha pr��pria garganta a engolir meu sabor enjoativo.
2 notes · View notes
Text
Quem você vê quando olha pra você?
Tumblr media
— Eu não sei quem eu sou.
— Como alguém sabe que não sabe quem é? — disse enquanto observava a lua pela janela do quarto escuro — O que realmente quer dizer isso?
— Quer dizer que não parece existir uma personalidade, um raciocínio ou alguma coerência em mim. É como se em cada dia eu fosse uma Luna diferente, nunca a mesma — desabafou, terminando a frase com uma expiração pesada. Estava deitada no chão, tendo apenas o rosto iluminado pela luz que atravessava os vidros da janela, da qual a amiga continuava próxima.
— E qual o problema nisso? Mudamos de humor várias vezes em uma mesma hora, imagine em um dia inteiro.
— Não estou falando de mudar de humor, estou falando de mudar por completo, Aurora. Hoje eu digo que gosto de amarelo e minha comida favorita é sorvete de morango, que sou organizada, gosto de manter tudo limpo, sou introvertida e muito tímida com desconhecidos. Amanhã eu vou gostar de roxo, odiar sorvete de morango, meu armário vai ser caótico e sujo e terei absolutamente nenhuma vergonha na cara com qualquer pessoa que seja — Aumentou o volume da voz ao longo da fala, mostrando a intensidade de seus pensamentos. — Não é mera mudança de humor, é realmente uma pessoa diferente.
— Então vai ver você tem várias personalidades, não é tão absurdo assim — sugeriu Aurora, apontando para Luna a latinha de refrigerante que estava acabando.
— Não, obrigada — recusou — Ter várias personalidades é muito… Assustador, estranho, eu não sei. Parece caótico demais, nunca vai existir um objetivo comum, um hobby, um ponto de intersecção entre o que cada uma dessas personalidades deseja. É como se cada dia eu corresse numa direção diferente e, por fim, nunca saísse do lugar de verdade, porque o que uma vai pra frente a outra volta pra trás.
— Elas não se conversam? — Terminou o último gole da bebida — Digo, as personalidades, elas não dialogam? Não existe nenhum consenso?
— Talvez elas conversem, mas falam todas juntas na minha cabeça — respondeu, deitando-se de lado, agora podendo observar o espelho quebrado em seu quarto —, parece que no dia em que quebrei o espelho, eu o observei estilhaçado por tanto tempo que me quebrou por dentro também. Em cada caco eu me vejo refletida de uma forma diferente, em cada reflexo eu sou outra versão, de outro ângulo, em outra forma. — Passeou os olhos pelos pedaços de vidro quebrado que, depois de caírem no chão, foram colados de volta, numa tentativa de remontar o espelho — Sinto como se, assim como o espelho não é mais o mesmo ainda que eu junte os pedaços, eu também não sou, mesmo que junte todas essas Lunas que vejo nele. — Respirou fundo, deixando o silêncio dizer por ela a batalha de pensamentos que tinha. — Depois de colar todos eles eu só me lembro de ter saído do quarto e…
— Ido para a cozinha. Eu estava lá comendo cereais quando você chegou.
— É, isso mesmo. Lembro de ver você com a tigela cheia de bolinhas coloridas boiando no leite. Espera… Por que não tenho nenhuma memória de você antes daquilo?
— O que quer dizer, Soo?
— Não me lembro da sua companhia antes daquele dia na cozinha… — resmungou — Dali em diante você parece sempre muito vívida nas minhas memórias. Lendo do meu lado no ônibus; ouvindo suas músicas esquisitas no celular dentro do trem quando voltamos do colégio; as idas às festas; aquele dia que fomos ao parque de diversões e você saiu em pânico da montanha-russa; quando fizemos uma sessão de filmes em casa, nos entupimos de sorvete, chocolate, refrigerante e pipoca. — Quando percebeu, estava já sentada no chão, falando animadamente de todas as memórias mais fortes que tinha com a amiga, mas quando parou de falar, o sorriso em seu rosto murchou. — Quem é você, Aurora?
— Eu sou eu, oras.
— E onde você esteve antes daquele dia? Por que não me lembro de você antes dali? — Luna não tinha memórias de antes do fatídico dia em que quebrou o espelho de seu quarto. Encantada com a forma que os cacos estavam organizados no chão, olhou para eles fixamente por um longo tempo, talvez tempo suficiente para que não soubesse mais para quem estava olhando, visto que todos os cacos a refletiam de formas diferentes. Ao invés de jogar os estilhaços fora, colou-os de volta juntos, formando um espelho de cacos, refletindo a si aos pedaços, fragmentada.
— Eu sempre estive aqui, Luna, desde o início — Aproximou-se da amiga sentada no chão.
— Como assim desde o início? Que início?
— Desde o seu início. Digo, o nosso início.
— Nosso?
— Sim, Luna, o nosso — afirmou, aproximando-se ainda mais, agora sentada ao lado da amiga, ambas de frente para o espelho quebrado, apontando para este.
— Aurora? — Olhou para a frente, observando de forma intensa o reflexo no caco de vidro no centro, o pedaço maior dentre todos os que ela colou. Levantou-se, indo até a escrivaninha em seu quarto e logo voltando ao espelho com uma caneta preta de ponta grossa em mãos.
Rabiscou todos os pedaços, um por um, com a caneta, cobrindo completamente o reflexo, deixando visível apenas aquele que antes observava. Sentou-se novamente onde estava antes, retomando o olhar fixo no espelho. — Então… Você é meu verdadeiro eu?
— Quem você vê quando olha ‘pra você?
— Eu vejo você — replicou, logo virando o rosto para o lado onde estava Aurora, porém havia mais ninguém ali. Retornou a observar o reflexo, onde encontrou outra vez a imagem da amiga, sua verdadeira personalidade refletida.
2 notes · View notes
Text
Amo-me a mim mesmo
Tumblr media
Amo-te, esse amor puro.
Amo-te com cada ventrículo e cada átrio, em cada pulso do miocárdio. Amo-te em cada troca gasosa alveolar, em cada ida e vinda sanguínea pelas minhas veias e artérias. Amo-te em cada oxidação da glicose, em cada lenta e gradual morte da minha matéria.
Amo-te em cada volta completa do globo, em cada órbita finalizada da Terra. Amo-te em cada aparição de Vênus no céu do crepúsculo, em cada brilho intenso de D’alva na alvorada do dia. Amo-te em cada longo dia venusiano, em cada longo ano de Plutão e em cada anel do distante Saturno.
Amo-te em cada verão de calor e tempestade, em cada dia mais longo que a noite, em cada precipitação de fim de tarde. Amo-te em cada folha caída do outono, em cada ventania fria que torna as sombras gélidas e as frestas de sol quentinhas. Amo-te em cada montanha de folhas vermelhas e amarelas, em cada galho desnudo. Amo-te em cada manhã de orvalho branco — geada — , em cada floco de neve, em cada pico de montanha esbranquiçado, em cada queimadura de frio. Amo-te em cada renascer da natureza primaveril, em cada desabrochar, em cada novo tom da paleta de cores das flores, em cada canto do viveiro aberto da floresta.
Amo-te em cada novo sabor de chocolate, em cada novo aroma de café, em cada nova massa de pão ou de bolo, em cada resquício de farinha nas roupas, em cada resto de ganache na maçã do rosto, em cada bigode de leite ou de molho de tomate.
Amo-te em cada passo de dança, em cada valsa, em cada sauté. Amo-te em cada grand écart, em cada mortal, em cada pirueta e em cada flutuar como pena. Amo-te em cada ballet, em cada lambada, em cada bolero. Amo-te em cada calo nos pés, em cada hálux valgo, em cada hematoma e torção.
Amo-te em cada falsete, em cada dó médio, em cada nota, em cada melodia. Amo-te em cada alusão aos assobios dos passarinhos, em cada tom de calmaria.
Amo-te em cada palpitar no peito, em cada aperto dos pulmões, em cada lágrima. Amo-te em cada soluço choroso, em cada exaustão mental, em cada esgotamento psicológico. Amo-te em cada dor, em cada algia, em cada sentimento atropelado, em cada palavra engolida, seja por vergonha ou medo.
Amo-te em cada suor derramado, em cada tremor ansioso, em cada desejo por simplesmente desistir.
Acima de tudo, amo-te em ti mesmo. Amo-te por amar-te, amo-te por amarmos-nos.
Amo-te este amor puro, indubitável, impassível de mentira ou fingimento.
Amo-te este amor sem precedentes, sem dimensões, sem limitantes. Amor sem barreiras e desprovido de fragilidades, consistente, flexível. Amo-te por amar-te tanto e fazer questão de repetir-nos todo este amor frente ao espelho. Amo-te, pois somos o mesmo.
Amo-te, esse amor puro, esse amor próprio.
Amo-me a mim mesmo.
4 notes · View notes
Text
Dia 39: Pé Sobre Tela
Tumblr media
Nunca fui do tipo que “senta como mocinha”, mesmo não tendo as maiores pernas do mundo — deveras longe disso, na realidade —, não é muito minha praia sentar com os joelhos colados o tempo todo.
E foi justamente por isso que, usando o computador num canto da sala, estava eu completamente jogada na cadeira. Quando digo completamente é porque é exatamente essa a imagem que quero que os leitores vejam: apesar de ter os antebraços apoiados na mesa, uma das pernas estava esticada por debaixo dela, enquanto a outra —  pausa dramática para que eu possa rir antes de continuar —, a outra estava com a panturrilha apoiada no canto dessa mesma mesa —  a qual possibilita facilmente isso por ser pequena em todas as dimensões.
O detalhe relevante que ainda falta para a projeção perfeita do cenário é: como disse, é um canto da sala, ou seja, a tal perna sobre a mesa estava a meros dez centímetros da parede, enquanto a outra parede estava atrás das costas da cadeira. Dito isso, acrescente na parede mais próxima da mesma perna um quadro — consideravelmente grande, de tamanho que ocupou a largura toda do banco de trás do carro quando o compraram, mas deixarei outra crônica para contar este episódio. Não apenas grande, o quadro é pesado. Talvez seja a tinta óleo, não sei, mas isso pouco importa agora.
A motivação desesperadora desta crônica é que, como boa pessoa esparramada, completamente largada que sou, comecei a apoiar o pé da tal perna (que antes que seja tarde acrescendo ser a esquerda) iniciou uma trajetória de subida pela parede. Sim, sem perceber eu coloquei o pé na parede ao lado e comecei a levantá-lo, esticando a perna —  talvez seja alguma memória quarentenal dos meus músculos nas aulas de ballet. Não demorou muito, meu pé chegou até a moldura do quadro e, sabe-se lá o motivo, meu pé continuava subindo com considerável força.
Até eu quase engolir o ar e respirar a saliva, aquele instante de taquicardia quando a música do filme de suspense fica mais e mais grave, mais e mais intensa, mas ninguém aparece na tela para chegar logo no clímax. Meu pé — ou talvez eu — conseguiu empurrá-lo para cima pela moldura, tirando-o de um dos parafusos-prego-os-quer-que-seja que seguram o dito cujo na parede — felizmente são dois, um em cada extremidade horizontal.
Já viu alguém equilibrar um lado de um “óleo sobre tela” com o pé? Eu acabei de ver, não foi legal participar tão intensamente da cena.
Segurei em pânico o quadro com as duas mãos, olhando ao redor se alguém tinha visto a, quase literalmente, arte que eu acabava de conseguir meramente usando um pé. Prodígio, claramente. Num momento de raciocínio rápido, quase suando, levantei mais o quadro com as mãos e tentei achar o encaixe dele com a parede.
Mantendo as mãos muito, extremamente, milimetricamente próximas da moldura, soltei o quadro para verificar se estava mesmo preso novamente.
A paz então voltou a reinar na terra do riacho sob a ponte com a casinha no fundo escondida entre as árvores — e a marca de dedo roxa, num evidente estilo Monet, deixada por mim no fatídico dia em que o quadro dividiu o banco de trás do carro comigo e, chegando em casa, neguei com todas as forças ter tocado na tela, mesmo que minha mão estivesse parecendo o cacho de uvas e o quadro possuísse mais digitais minhas do que meus documentos.
2 notes · View notes
Text
República Federativa do Depravo Cognitivo
Tumblr media
Léxico flexionado pela locução, Logo levado a elucidar troças, Literatura frágil, anêmica, Lânguido palavreado prosaico.
Paupérrimos livretos de crônicas, Fogueiras de papéis sem vida. Biblioteca supérflua de mundaneidades, Afogada em senso comum, rendida.
Escola-Palácio-do-Planalto Adestra e doutrina sua pedagogia. Ego néscio em constante sobressalto, Eleva vossa excelência à mitologia.
Apoteose de engodo enjoativo E mediocridade veemente. Intelecto torna-se superlativo Do que quer que presidência represente.
Ladainha gozada shakesperiana Louvando o avesso do laico. Liturgia pandêmica de ignorância, Lucidez torna-se privilégio no Lúgubre adeus da tolerância.
2 notes · View notes
Text
Ciência cega, cientistas mudos, patrocinadores surdos
Tumblr media
Quimera meramente química, soterrada na alegoria da eugenia profana, vomitada por egoísmo, atropelada pela ganância.
Ciência que nada ensina, prepotência humana, subestima a idiossincrasia, a sincronia prévia, a soberania orgânica.
Cogumelo catastrófico contamina, corrói a carne crua, crema os corpos, carbonização quântica catatoniza.
Fusão dos prótons, forja genética. Para fome endêmica: alimentação bélica, comida escassa, morte por miséria.
Aglomeracção de farmácias, enfermos de falácias, a doença das contas bancárias. Capital imenso psiquiátrico, papel moeda vermelho-sangue, coronário.
4 notes · View notes
Text
A FLOR QUE TU ME DEIXOU: UM ODE AO EFÊMERO
Tumblr media
“Bom dia, Tory” cumprimentou-me com um sorriso, já na sacada do apartamento, sentada em uma das cadeiras de jardim com um romance britânico aberto em mãos. “Já estou na metade” acrescentou, mantendo os olhos fixos nas linhas escritas de O Morro dos Ventos Uivantes.
Eu já tinha me acostumado com a sua aparição repentina na minha pequena varanda, surgindo como um raio de sol no horizonte, assim, de surpresa, ainda que esperada em algum lugar do meu consciente.
Eu a conheci de forma curiosa, bastante singular. Estava visitando um museu injustiçado nas periferias de Roma. Nos subúrbios da cidade se esconde a encantadora Villa Farnesina, um palácio construído no início do século XVI e que é lar de várias obras de Rafael Sanzio.
Eu observava atentamente uma de suas pinturas quando ela surgiu em meu campo de visão.
“Há flores na imagem” sorriu. Os cabelos eram castanhos, mas refletiam um tom de dourado quando ela se movia. O vestido era azul, como o céu primaveril que aguardava lá fora. Seus traços delicados davam um ar de suavidade à expressão de quem tentava esforçadamente entender o que a obra na parede representava e qual mensagem tentou Rafael passar ao pintá-la.
Eu a perdi de vista em algum dos salões do palácio, mas reencontrei-a pela cor intensa das vestes, bastante destacada entre o verde do jardim. Lá havia uma pequena cafeteria para os visitantes.
Não sabia seu nome, mas não me contive em abordá-la em sua solitude pensativa, porém serena, com uma feição contente enquanto aguardava um capuccino. Tinha em mãos algo que reconheci a metros de distância: Alice no País das Maravilhas.
“Ótima leitura” disse em tom ameno, buscando não assustá-la, pois estava concentrada no que lia. Ergueu a cabeça, encontrou os olhos amendoados com os meus, já me sorrindo desde o início, como se soubesse quem eu era. Talvez fossem os sapatos vermelhos que agora estavam parados ao lado de sua cadeira. Eram reconhecíveis caso ela tivesse os notado durante a visita ao museu.
Convidei-me a sentar em frente a ela e senti que ela concordava, pois manteve a expressão alegre entre as maçãs do rosto bastante rosadas. Usava um delineado que acentuava ainda mais os olhos puxados, tornando-a mais encantadora do que já era.
Não apenas uma, mas duas xícaras chegaram nas mãos do garçom.
Foi naquela tarde que descobri o seu nome: Jessica. Não me deu sobrenomes ou nacionalidade, na verdade preferiu muito mais ouvir-me tagarelar sobre minha paixão pelo universo de Alice.
Assim iniciou-se uma série de surpresas, algumas que me fizeram questionar minha própria mente e sanidade. Ela despediu-se de mim perguntando qual era minha flor favorita.
Na manhã seguinte, vi em minha sacada um lindo vaso azul-da-prússia com uma orquídea chocolate nele plantada. Sentada sobre o gradeado da sacada, balançando os pés para o lado de dentro, estava Jessica em sua mais estasiante beleza e simpatia. Sorriu-me.
Fiquei alegre em vê-la, mas ainda era muito confuso. Como ela sabia onde eu morava? Como entrou? O que fazia ali com um vaso de flores?
“Eu sou a Primavera” ela disse com total naturalidade.
Soltei uma risada desacreditada até perceber que ela mantinha a mesma reação, como se realmente fosse normal o que acabara de me contar. Foi então que me atentei ao detalhe. A estação a qual ela referia-se iniciara no dia anterior, o mesmo dia em que a encontrei.
Como quem finge acreditar num esquizofrênico e continua a conversa de forma indiferente ao absurdo, inqueri-a sobre porque estava aqui, na Itália, visitando museus, se ela era a própria estação da natureza, das flores, da vida.
Respondeu com convicção que neste ano desejava aproveitar seu tempo por aqui para viajar e conhecer melhor a arte dos humanos, suas expressões, seus sentimentos, sua existência efêmera como a da natureza que ela mesma era.
Em suma, buscava por compreender os próprios ciclos admirando os ciclos alheios, observando o cotidiano de quem pode amanhã já não estar mais aqui.
Jessica falava de forma intensa, emotiva, o que fazia tudo parecer tremendamente real. E se ela fosse de fato a própria Primavera?
Compreendi aos poucos, com o correr dos dias em sua companhia contagiante, que ela realmente surgia em minha varanda toda manhã quando o sol nascia, trazendo-me uma nova espécie de planta, apresentando que parte de si aquele ser vivo representava.
As orquídeas, segundo ela, eram seus gestos elegantes, longos, delicados. Explicou-me as compridas hastes daquela flor esticando os próprios braços. Pétalas macias como suas mãos. O tom de branco expressava seus momentos serenos, leves, seu sentimento de pertencimento e equilíbrio com o universo.
Indaguei sobre o que ela fazia em seu tempo livre, quando o verão e o inverno aconteciam (pois em meu outono italiano Jessica visitava o hemisfério oposto). Contou-me que era nesse período que mais trabalhava e nada havia de livre neste tempo. Aproveitava sim a própria Primavera para conhecer e descobrir o mundo.
Era deste conhecimento que nasciam novas espécies durante o verão ou inverno. Ela então criava algo novo usando de sua expressividade, como um artista quando esculpe uma nova obra. Ofereci-me a ajudá-la nesse período de busca por novas inspirações.
Deparei-me comigo mesma, ainda que admiradora da arte em suas diversas formas, observando tudo com mais detalhe, com mais dedicação, muito mais curiosa do que antes.
Jessica tinha uma paixão incomum por café. Puramente pelo próprio café, pois sempre pedia a bebida de diversas formas: com leite, sem leite, gelada, quente, cremosa, com chocolate, com avelã, com amêndoas, com canela.
Criou o hábito de ler o jornal da manhã, argumentando que ali havia diversas fontes para estudo da comunicação humana, da forma como lidamos com o mundo interno e externo a nós como indivíduos.
A cada um ou dois dias ela surgia com um novo livro em mãos. Devorava a literatura clássica de forma voraz, o que me convenceu a levá-la para um ambiente hostil e ao mesmo tempo paradisíaco: a mais antiga livraria de Roma.
Eu descrevo a imagem que tive de Jessica ali como: a criança na loja de doces. Não fosse por algumas broncas e olhares reprovadores meus ela talvez tivesse carregado consigo mais de dez livros. Para onde ela os levaria eu não tenho ideia, assim como não sei para onde levou os quatro que adquiriu naquela tarde.
Conhecemos diversos restaurantes e cafeterias e bistrôs ao longo das semanas. Jessica tinha o costume de fazer anotações em seus livros, como que uma agenda ou diário improvisado, talvez pensamentos e inspirações repentinas. Por vezes até desenhava flores neles.
Minha varanda passou a ser pequena para tantas plantinhas, o que me fez pedir conselhos a ela sobre quais aceitariam viver dentro de casa, sem o sol direto. Minha decoração se tornou muito mais viva (e quem sabe alegre) quando dei espaço para que folhagens e flores morassem ali dentro comigo.
Já era início de Junho quando preparei maçãs carameladas e alguns pães de canela. Naturalmente, não pude servi-los à Jessica sem acompanhamento de uma xícara de café e mais diálogos intermináveis sobre o novo livro que estava lendo (naquele dia era As Mil e Uma Noites) e algumas obras artísticas que conheceu nos últimos dias: fomos a uma apresentação da orquestra sinfônica da cidade, que deixou Jessica em êxtase e lágrimas ao mesmo tempo.
“O violoncelo é muito melancólico” insistia entre soluços, secando o rosto com as mãos. Felizmente, pareceu menos arrasada emocionalmente do que no dia em que assistimos uma performance de dança contemporânea. Tinha os olhos arregalados, o coração batendo já na garganta, mas permanecia estática, como que pausada no tempo, compenetrada de forma inacreditável.
Visitamos museus de todos os tipos: arte moderna, história natural, antiguidade, medieval, artes visuais, renascimento. Ao mesmo tempo, vimos o museu a céu aberto que era a própria Roma, com milhares de histórias por trás de cada pedra e cada paralelepípedo.
Pensei que seria um dia deprimido quando li no jornal “Amanhã inicia-se o verão”, mas fui tirada de minha languidez quando a avistei novamente na sacada. O vestido azul novamente contrastava com seus cabelos quase dourados.
“Miosótis” falou, entregando-me o último vaso. Não compreendi naquele momento, mas depois descobri o nome popular daquelas pequenas flores azuis “Não-me-esqueças”. Como iria esquecer a minha estação do ano preferida?
Escolhemos passear de carro, o dia estava levemente quente, ventava frio e decidimos não decidir. Apenas fomos pelas estradas sem qualquer destino. Vimos diversas cidadelas e povoados que caberiam facilmente dentro do próprio Villa Farnesina onde nos conhecemos. Paramos em alguns para bisbilhotar pequenos cafés em busca de doces caseiros que nunca mais encontraríamos em outro lugar.
Seguimos pelas estradas admirando a paisagem e o descer lento do sol sobre nossas cabeças. Era belo, porém pesaroso, pois sabíamos o que viria quando o sol cruzasse o horizonte oeste outra vez.
Como despedida, paramos num local onde fui buscar por dois cafés enquanto Jessica aguardava sentada em uma cadeira em frente a minha com seu último livro sobre a mesa, O Apanhador no Campo de Centeio.
Quando retornei, uma xícara em cada mão, me deparei com duas cadeiras vazias. Chegando mais perto, notei que seu livro ainda repousava sobre a mesa e, sobre a cadeira, uma gerbera rosa como lembrança.
Jessica se foi com a Primavera que era e me deixou ali uma flor, além de memórias tantas que dariam uma imensa livraria.
4 notes · View notes
Text
As aventuras pseudofictícias de Jo Haseul
Tumblr media
Ao parar na estação, as portas do trem abriram-se, derramando toda a água contida lá dentro. Grandes ondas formaram-se na plataforma da estação, que estava no subsolo lunar. Peixinhos nadavam entre as placas que indicavam as saídas, os destinos e todas as linhas do metrô e do trem da cratera semidesértica, Nalooa.
Com o sinal sonoro, as portas automáticas fecharam-se. Dentro do vagão a água ainda batia nos joelhos de Jo Haseul. Seu vestido de noiva pingava, grudado em seu corpo. A falta de um buquê e os óculos de grau redondos no rosto transmitiam a ideia de que talvez ela não fosse de fato casar. O coque feito de tranças foi desmanchado no puxar violento de um grampo que parecia segurar tudo, inclusive a gravidade de seus fios escuros.
Já em movimento, o veículo saiu da escuridão e surgiu sobre trilhos na superfície da Lua. Pela janela, cinturões de meteoros orbitavam no horizonte, e uma poeira arenosa pairava no ar, resultado da passagem veloz dos vagões.
Arrastando a barra do vestido sobre a água, caminhou em direção à caixa de música de onde ainda vinham notas metálicas. Abaixou-se em frente ao objeto e abriu-o, revelando a engenhoca que produzia o som e o motivo pelo qual estava ali: a única e bela pedra-da-lua lunar. Uma cintilante preciosidade que fora retirada do solo do próprio satélite, diferente de todas as pedras-da-lua que os terráqueos conhecem. Envolveu-a com a mão direita, percebendo a textura lisa, quase aveludada de sua superfície.
Foi retirada de seu momento de epifania pelos rugidos. Ao lado do trem, sobre a areia, um grupo de leões corria, acompanhando o vagão em que Haseul estava. Aqueles felinos dourados sabiam dos poderes concedidos pela pedra que a Jo agora possuía e fariam qualquer coisa para tomá-la de Haseul.
Ressurgiu em sua mão o grampo que retirou do coque. Posicionou a pedra logo acima de onde a trança estava amarrada, enrolando novamente o coque, agora escondendo a preciosa pedra que guardava em seu brilho iridescente o segredo do nascimento do universo.
— Estação terminal, Nalooa. Este trem ficará fora de serviço, por favor, desembarque nesta estação.
Jo Haseul, como de costume, já estava com o rosto a poucos centímetros do vidro das portas, aguardando apenas a abertura destas para, mais uma vez, descer do trem e seguir o seu caminho — desconhecido por Hyunjin — de todos os dias. Ao ouvir o som das portas abrindo, a Kim fechou o caderno de forma abrupta, num movimento de juntar as palmas, levando mais um capítulo de suas escrituras para a escuridão das páginas fechadas.
Puxou a mochila de galáxias, colocou-a nos ombros e saiu do trem, observando sua protagonista favorita caminhar já muitos metros a frente, indo em direção às escadas rolantes.
Em seus capítulos emocionantes, Haseul podia ser tudo e mais um pouco. Nada de normal acontecia depois de sua entrada no trem. Sempre havia uma nova aventura para agitar todas as células e liberar toda a adrenalina do corpo, mesmo que não passassem de cenas imaginárias que só existiam na mente e no caderno de Hyunjin.
Como de costume, o ar estava tremendamente seco, fazendo com que a Kim coçasse o nariz constantemente — não que chovesse muito na cratera de bioma semidesértico naquele lado da Lua, mas nenhum nariz se acostuma em respirar areia.
[...]
Sentiu o raio de sol cortar o quarto e atingir suas pálpebras devidamente fechadas para quem ainda dormia um soninho aconchegante e quentinho. Puxou a almofada e a acomodou sobre o rosto, tentando esconder-se da luz que encontrou a fresta mais inoportuna que restava entre as folhas da persiana feita com páginas de jornal.
Aceitou o destino cruel e começou a espreguiçar debaixo das cobertas felpudas, logo atirando no chão a almofada e suspirando profundo, expondo a decepção em ter de levantar. Derramou-se pelo sofá, até acabar sentada. Calçou os chinelos de pano e arrastou os pés até o banheiro. Abriu a torneira e encheu sua banheira cor-de-rosa; já despida, adentrou a água morna que a acordou aos poucos.
De banho tomado e dentes escovado, vestiu o casaco amarelo de sempre e a saia xadrez com as longas meias azul-netuno, e foi até a cozinha. Percebeu na porta da geladeira um bilhete de Heejin dizendo que havia comida pronta e que ela não voltaria naquele dia, dormiria na casa de uma outra amiga.
Mastigava os cereais de planeta com leite, seguindo com de costume a forma metódica de comê-los: primeiro o Sol, então Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano, Netuno e, como toque especial da famosa marca de cereais de farelo de estrela, o pequeno Plutão. Nenhuma outra produzia este planeta para consumo e Plutão era especial e proporcionava muitos minerais para Hyunjin no desjejum. Com a tigela lavada, seguiu até a porta do apartamento-em-nuvem, calçou seus sapatos sobre as meias, pegou guarda-chuva-de-meteoros e a mochila e iniciou seu trajeto diário até a universidade no centro de Nalooa.
Já na plataforma, aguardando o próximo trem, retirou o caderno da mochila e manteve-o contra o peito, abraçando o objeto. Sacou do bolso do interno do casaco seu aparelho de músicas, colocou os fones e deu seu religioso play. A música daquele dia era Like a Cat, do grupo AOA. Quando o transporte posicionou-se e abriu as portas, entrou e sentou-se no banco de costume.
Adorava pegá-lo já na primeira estação para descer apenas na terminal, assim como era ritualístico entrar no último vagão, para poder apreciar todas as pessoas, lugares e possibilidades deixadas para trás junto dos metros e quilômetros de trilhos percorridos todas os infinitos dias no lado iluminado da Lua.
A luz do Sol alcançava parte do piso do compartimento, atingindo os sapatos de Hyunjin. Era bom sentir os pés aquecidos em meio ao silêncio matinal da viagem, que era preenchido apenas pelo som ritmado das rodas atritando contra a ferrovia.
Ergueu a cabeça, jogando-a para trás, pois ninguém sentava-se atrás dela pela manhã, observando então o teto, as lâmpadas, os mapas das linhas e conexões entre metrô e trem. Formavam um colorido bonito, emaranhado, como serpentes rastejando umas sobre as outras em diversas direções.
Poucas estações após o início de sua viagem, Hyunjin aproximava-se do grande momento de toda manhã (exceto pelas dos finais de semana): a entrada de Jo Haseul pela porta. Jamais sequer cumprimentou a garota, nunca ouviu sua voz ou perguntou sua cor favorita. Mas a pasta que, em alguns dias da semana, Haseul carregava, trazia seu nome numa etiqueta decorada.
Assim que o veículo freou, abrindo as portas automáticas, fingiu olhar para a frente, mas observava o movimento da desconhecida-conhecida pelo canto dos olhos. Agradecia profundamente pelos quase 180º de campo de visão humano.
Haseul posicionou-se de pé próxima da porta e ao lado de Hyunjin, que estava sentada no banco da ponta. Um som de guizos atraiu a atenção da Kim, que logo olhou para a direita, de onde o barulho vinha. A origem era um chaveiro com um maneki neko, seguido por um fio vermelho trançado onde estavam pendurados dois guizos.
Voltou os olhos novamente para o caderno que carregava e finalmente o abriu sobre o colo. Com a lapiseira em punho, começou mais uma história.
O ambiente rochoso e as chamas ao redor davam um ar de pesadelo, tornando ainda mais angustiantes os segundos e minutos. O suor escorria pela lateral do rosto de Haseul, que deu uma última olhada para trás. A grande caravela pairava entre as nuvens azuladas, aguardando o retorno da capitã com o tesouro roubado pelo tripulante traidor.
A katana retirada da bainha fazia os guizos em seu cabo tilintarem. Haseul empunhava espada com as duas mãos, a bainha centralizada exatamente entre seus olhos. Moveu os antebraços, desenhando um grande C no ar e içando uma mochila caída no chão do trem com a kissaki¹.
Com o corte sutil da extremidade da lâmina, o tecido da bolsa foi cedendo, rasgando onde estava a espada, deixando ali uma grande abertura. Voltando o objeto já cortado no chão, Haseul emitiu um “pss pss pss” com a boca. Não demorou muito, saíram da mochila dois grandes gatos brancos, usando coleiras vermelhas com um guizo em cada. Sentaram-se um de cada lado da jovem, como guardas peludos e aparentemente fofinhos.
Fofinhos até começarem a mostrar os dentes e bufarem. Os olhos verdes pareciam saltar com suas cores vivas. A pupilas em riscas verticais tornavam os felinos ainda mais assustadores enquanto exibiam as presas. Tinham a visão fixada no grande corpo humano com cabeça de coelho que pairava em frente aos três.
O homem-coelho logo curvou levemente o tronco, projetando o crânio, com numa posição de preparação para um luta. Abriu uma das mãos e revelou uma enorme moeda dourada.
Foi com o mais sutil movimento da espada que Haseul fez com os guizos emitissem um tipo de ordem sonora aos felinos, que avançaram sobre o inimigo. Pendurados em suas orelhas, fizeram com que ele começasse a andar em círculos, tentando arrancá-los de si. Num ato desesperado, levou ambas as mãos abertas até os dois gatos, deixando a moeda cair.
Com o inimigo ainda distraído, deu alguns passos, escondendo a moeda debaixo do pé direito. Guardou a espada de volta na bainha, movendo novamente os guizos. Comandado pelo som, um dos gatos soltou da orelha do homem, pulando em outro lugar muito curioso: o rabinho de coelho que ele tinha na altura do cóccix. Haseul tentou, mas não conteve a risada. O bolinha de pelo abanava desesperada, reagindo à dor causada pelas unhas do gato.
Fez um sinal sonoro para que os dois felinos voltassem para suas posições em guarda. Livre dos arranhões e mordidas, o homem-coelho saiu saltitando em pânico, fugindo das duas ferinhas peludas.
Antes que o som do próprio trem a alertasse, os guizos do chaveiro fizeram Hyunjin voltar à realidade, tirando os olhos do caderno e vendo que Haseul já se posicionava ainda mais próxima da saída.
— Estação terminal, Nalooa. Este trem ficará fora de serviço, por favor, desembarque nesta estação.
Como reagiria Haseul se soubesse que uma completa estranha usava-a como personagem em histórias absurdas e surreais? Desviou deste pensamento e seguiu seu próprio caminho mais uma vez.
[...]
Quando percebeu, já estava indo em direção ao tapete do lado do sofá, pega pela gravidade lunar. Rolou daquilo que chamava de cama e acordou no susto, emaranhada com o cobertor.
Levantou ofegante, a sensação de acordar caindo era pior do que a de cair sonhando. Ligou a televisão em frente ao sofá onde dormia para que a repetição constante do horário pelo jornalista da manhã a fizesse correr contra o atraso para a aula.
Sem tempo para degustar cada planeta de seu cereal, pegou um coco-lua, uma espécie endêmica daquela cratera, com aparência externa de Lua e interior com sabor de coco como os da Terra.
Vestiu o mesmo de todos os dias e disparou em direção à estação, esquecendo a voz da âncora Chuu sozinha na sala, avisando os telespectadores de que naquele dia os peixes-dourados estariam passando pelo céu de diversos biomas, típico daquela época do ano em que migravam do lado escuro da Lua para o iluminado.
Colocou os fones e pressionou o botão, dando início a mais uma música. Naquela manhã contra o tempo era necessário algo mais animado, por isso escolheu CLAP, do grupo Seventeen.
Com a chegada do trem na plataforma, entrou e sentou-se no lugar de costume. Tinha o caderno sobre as pernas. Observando um curioso arco-íris formado pela luz do Sol que atravessava uma massa de água deixada para trás por um cometa de gelo, sentiu os as pálpebras pesarem, logo pegando no sono.
— Estação terminal, Nalooa. Este trem ficará fora de serviço, por favor, desembarque nesta estação.
Pela segunda vez naquele dia acordou no susto. Foi desperta pelo movimento de freio do trem — literalmente acordada pela lei da inércia.
Voltando à realidade, percebeu que alguém estava sentado ao seu lado. Ainda confusa, reparou no perfil de Haseul, enquanto a Jo observava concentrada as próprias mãos que estavam sobre o colo.
Assim que as portas se abriram, a mais velha levantou-se e aguardou que alguns passageiros mais velhos saíssem para finalmente deixar para trás o vagão e a expressão perturbada de Hyunjin.
[...]
Saindo do aparelho de músicas, indo para os fones de ouvido e então para os neurotransmissores de Hyunjin, Traveler, do grupo F(x) com o rapper ZICO. Um viajante como ela, passeando por muitos mundos, universos, cenários, todos os dias dentro de seu velho caderno de capa florida. Presente de sua avó, ainda tinha curiosidade em entender porque a idosa lhe entregou o objeto com tanta cautela e um aviso: “Cuidado com tudo o que anotar nele, Hyunjin, muito cuidado”.
Desde criança, ouviu histórias incríveis da avó e dos pais, e todas viraram desenhos, rabiscos, colagens. Hoje, com o caderno, viravam todas estas coisas e mais, especialmente histórias escritas. O caderno, por mais desgastado e velho que estivesse, era uma forma de guardar as memórias da falecida avó consigo. Mesmo que tentasse deixá-lo em casa e parar de escrever coisas tão esquisitas, havia algo entre aquelas folhas que a puxavam para aquela capa vermelha.
Sua protagonista favorita, Jo Haseul, estava na plataforma a duas estações dali, esperando. Questionava-se frequentemente o que a mais velha fazia quando não era a cobaia de sua imaginação. Onde ela morava, o que ela fazia depois de sair da estação em Nalooa, qual sua cor favorita, em qual cratera ela morava, que tipo de música gostava de ouvir.
Quem era Jo Haseul afinal?
Com os olhos atentos, segurava o caderno com uma das mãos e observava o universo lá fora pela janela do vagão. Uma família de elefantes caminhava na beirada da cratera, já chegando no bioma mais úmido, fugindo da secura do semidesértico. Os cactos estavam floridos e deixavam a linha do horizonte menos vazia.
Todos viajantes, nômades. Seu sonho era formar-se na universidade e poder, finalmente, realizar o sonho de trabalhar nos anéis de Saturno, varrendo dele o pó cósmico, dando retoques de cor e tudo mais que uma artista-cósmica tem como deveres da profissão.
Jo Haseul estava, como de costume, parada próxima da porta automática. A mais nova estava sentada perto e logo abaixou o olhar até o caderno. Um novo dia merece uma nova história. Sentiu o próprio estômago roncar, logo sendo levada a pensar em comida.
No espaço achocolatado com respingos de leite, a astronauta Haseul viajava dentro de seu uniforme verde estampado com folhagens tropicais. Era um modelo curioso para passear pelo espaço, mas foi o que a jovem escolheu na loja de viajantes intergalácticos.
Estava com muita fome e sabia a única coisa que poderia resolver o problema: a lanchonete mais famosa de todo o universo, Logo Ali na Esquina do Espaço-Tempo.
Precisava urgentemente de um suco de limão venusiano, daqueles bem azedos, mas docinhos no final, com o combo de sanduíches mais delicioso que ela já comeu — muitos e muitos anos atrás, quando seu pai ainda trabalhava como entregador do pomar onde a lanchonete comprava suas frutas.
Avistou a lanchonete e foi até lá flutuando pela vontade do próprio cosmos. Chegando no local, a atendente Chuu a recebeu e questionou o que ela desejava.
— Um suco de limão venusiano… O maior que tamanho que tiver — concluiu, partindo para a próxima parte do pedido — Não encontro o combo de sanduíches no cardápio, vocês não fazem mais?
— Fazemos, mas agora eles são pagos diretamente naquela máquina — Apontou.
— Ah, certo.
Depois de fazer a compra do suco e recebê-lo, foi com seu grande copo até a Vending Machine no outro lado do estabelecimento. Chegando lá, observou os sabores de sanduíche disponíveis: caramelo; vegetais e outras coisas; mirtilo e uva; queijo coalhado; espinafre com escarola com couve com rúcula; abóbora e várias abobrinhas.
Levou a mão até o bolso do uniforme verde e procurou pelas moedas de uso universal que carregava. Cada lanche custava MUU$5,00 e Haseul tinha…
— Só dá pra um sanduíche! Ai, sério? — bufou, resmungando para si mesma não ter trazido mais moedas.
Não fazia ideia de como decidir qual dos sabores escolher, afinal ela pretendia pegar o combo de quatro e agora só poderia escolher um único sabor entre todos aqueles. Era impossível comer apenas um. Não era um caso de só voltar aqui depois e comer mais. Aquela lanchonete só aparecia uma vez ao ano-venusiano² por semana-em-netuno³.
Observou a máquina por horas e horas, sem decidir o que comprar.
A lapiseira talvez tivesse derrapado no caderno, mas era a força de Hyunjin que estava rabiscando a folha. Um momento de fúria a atingiu, fazendo com que desgostasse completamente do texto daquele dia antes mesmo de terminá-lo. Fechou o caderno, ainda irritada. Levantou-se de forma brusca e grudou na porta, esperando ansiosa por sair dali.
— Estação terminal, Nalooa. Este trem ficará fora de serviço, por favor, desembarque nesta estação.
A porta sequer terminou de abrir quando o primeiro pé da Kim pisou na plataforma de desembarque. Bufando, ainda raivosa, passou ao lado de uma lixeira e arremessou seu caderno para dentro. Sentia um desapontamento e uma frustração profundos, o desânimo se misturava com cólera.
Já estava parada em um dos degraus da escada rolante, olhando para lugar nenhum, quando sentiu um toque em suas costas.
— Ei! Acho que isto é seu, deve ter deixado cair — disse a voz que acompanhou o cutucão em seu ombro.
Não teve outra reação senão pegar o caderno que a jovem lhe entregou. A voz de Jo Haseul era tão tranquila que parecia parar o tempo, estivessem elas em qualquer planeta, estrela ou satélite. Observou com a boca entreaberta a mais velha sorrir, lhe dar uma piscada e seguir subindo as escadas, mesmo que estas subissem sozinhas. Ficou tão inebriada por aquele contato inesperado que quase não percebeu quando deveria sair da escada.
Já no alto, reparou algo curioso: Haseul não estava com os sapatinhos pretos que costumava usar, mas com estranhas botas de astronauta. Estranhas botas de astronauta verdes.
¹ Kissaki é o nome original (em japonês) da ponta da katana. ² Um ano em Vênus equivale a 225 dias na Terra. ³ Um dia em Netuno equivale a 16 horas terrestres, portanto, uma semana em Netuno totalizam 4,7 dias terrestres.
3 notes · View notes
Text
SE A VASSOURA EXISTE, GRAÇAS ÀS BRUXAS QUE ELA EXISTE
Tumblr media
Da saída de som do celular, as vozes de Rodrigo Vizeu e algum convidado daquele episódio do podcast Café da Manhã “uma parceira da Folha com o Spotify”, parafraseando o jornalista supracitado, caminhavam em ondas pelo ar abafado daquela manhã até meus ouvidos.
O problema era que estes mesmos ouvidos, assim como todo o organismo ao qual eles se conectam, estavam do outro lado do portão da casa que não aquele em que encontrava-se o celular.
Isso poderia ser facilmente resolvido, bastava abrir o portão.
Com qual chave? O molho que havia sido deixado comigo estava com a chave daquele mesmo portão no miolo, mas no lado de dentro.
Ora, mas se eu abri para sair e a chave estava dentro o portão não estava trancado. Exatamente, mas esse mesmo inanimado composto de metais pintado de tinta branca não tinha puxador, alavanca ou qualquer semelhante para desatravancar por fora. A única poderosa forma de fazer o trinco abrir era dar uma meia volta a mais na chave, fazendo o inanimado muro metálico desimpedir a passagem.
Esta saudosa chave estava no miolo, por dentro, e eu tinha cometido a burrice de fechar o portão enquanto varria a calçada.
Trancada para fora, ouvindo a voz do Vizeu cortando a garagem até a rua, pensando o quão perto e ao mesmo tempo longe estava a chave que me salvaria daquele sol de verão brasileiro em plenas onze horas da manhã. Os poucos neurônios que me restavam sob os raios solares pensaram em usar a vassoura. O portão era fechado no centro, uma chapa de metal que escondia a visão dos joelhos até a cabeça, aproximadamente. Os extremos de cima e de baixo eram vazados entre as hastes gradeadas.
Passei a vassoura por um vão e com o cabo tentei empurrar o puxador do trinco da fechadura. Tentei. Tentei. Sem sucesso.
Tentando não parecer uma completa maluca presa para o lado de fora, ao avistar alguém ao longe na rua disfarçava voltando a varrer a calçada mais limpa da cidade de São Paulo naquele momento. Uma vizinha muito idosa saía para caminhar e, avistando-me sem a vassoura, questionou se estava perdida. Expliquei que estava apenas limpando a calçada e continuei uma ótima atuação de quem recolhe folhas de árvore da valeta.
Estando novamente solitária na rua retomei minha atividade insistente munida de vassoura e calor, muito calor. Pensei em tentar puxar o chaveiro com a ponta do cabo, pois ele tinha uma espécie de gancho na extremidade, daqueles para pendurar a própria vassoura. Não preciso dizer que fracassei.
Já chegando num limite psicológico e de temperatura, além de ouvir o fatídico “E o que mais você precisa saber hoje” que anunciava o trecho final do podcast, percebi que minha batalha já durava cerca de vinte minutos. Vinte minutos de pura redenção.
Um último fôlego, a gota de suor que clama por uma chance. Atravessei a vassoura pelo portão novamente e, num malabarismo de mãos passando o gradeado, de cócoras em plena calçada, ergui o cabo de madeira em direção à fechadura e sem qualquer esforço direcionado, assim, quase que sem intenção, por acaso, destino e astrologia trabalhando juntos, ouvi o familiar som do portão abrindo, de repente percebendo que ele abria-se para fora e, como quem reencontra o dinheiro que escondeu na gaveta de meias, avistei os vasos de planta, a mangueira e o celular que agora reproduzia a vinheta que encerrava o podcast.
No exato momento em que eu voltava para a vida cotidiana e estagnada de uma garagem recém-lavada, Vizeu fazia o caminho contrário, despedindo-se de seus ouvintes na minha calorosa manhã.
2 notes · View notes
Text
FANTASIOSA PERFEIÇÃO DA ROSEIRA SEM ROSAS
Tumblr media
Violáceos reluziam seus fios de cabelo, seda branca ressaltava seus lábios e a pele levemente queimada de sol. Observava tácito o bruxulear do fogo de tons purpúreos, fonte de luz solitária em meio à escuridão da noite. Cerrou os olhos, atentando-se aos sons crepitantes das brasas; Amenizava aos poucos a veemência com que os pulmões o forçavam a respirar; Afastou as pálpebras, contemplando uma vez mais as chamas, então virando-se de costas para estas.
Encaminhou-se para o outro extremo do cômodo onde esperava-lhe uma banheira de porcelana preenchida por água e pétalas brancas. Parqueou ao lado da louça, vagarosamente levando um dos braços, e então a mão, até a flor que se encontrava sobre a toalha de algodão. Ergueu com cuidado a rosa branca e observou suas minúcias e a textura; a corola continuava completamente preenchida. Deleitava-se com o semblante da rosa alumiada pelas labaredas lilases.
— Tua beleza e esplendor amplificam-se demasiadamente nesta luz púrpura, porém sabemos que não és assim, minha rosa fantasiada — com a mão que tinha livre roçou cuidadosamente as pétalas — Sabemos nós que tu não és. Tu és pálida, frágil, fragmentada. Mortal — desviou o olhar para a água que jazia tranquila e quieta dentro da banheira, avistando o próprio reflexo — Assim com eu, ainda que príncipe, ainda que belo, ainda que aparentemente perfeito aos olhos e bocas alheios, sou igualmente vulnerável, falho e refém da vida e da morte.
Movendo no ar braço, mão e rosa, soltou a flor em direção ao líquido, assistindo-a cair e boiar sobre a tensão da superfície.
Ao lado da toalha havia uma tigela de material branco cujo o interior era ocupado por amoras. Mergulhou os dedos entre os frutos, apanhando-os com as mãos e levando-os à boca. Enquanto mastigava, observou os dedos agora tingidos num tom róseo. Percorreu com a lateral e a palma da mesma mão os lábios, que também marcharam-se com o pigmento das frutas. Observou a mão novamente, logo erguendo o olhar até outro ponto do recinto.
Seus olhos cruzaram o salão até a melancólica escultura em gesso. Deu o primeiro passo em sua direção e até ela caminhou silenciosamente, mantendo a mão erguida na altura do tórax. Prostrou-se em frente à imagem humana inanimada, analisando seus minudências. Toda a anatomia humana gravada de forma impressionante por mãos vivas, carnais, errantes. Assim como a rosa e assim como ele, a escultura aparentava perfeição.
Virou a palma ainda coberta pela tintura dos frutos, ao mesmo tempo que estendia o braço em direção à maçã do rosto da figura, repousando as pontas tingidas dos dedos logo abaixo dos olhos desta. Deslizou a mão pela face sem vida, descendo com cuidado. Deu um passo para trás para apreciar com cautela sua obra de imperfeição.
Agora havia algo de anómalo, de incômodo, exposto. As rachaduras poderiam esconder-se na escuridão, mas as lágrimas violetas que rasgavam o lado destro do rosto branco, estas não poderiam sumir com tamanha facilidade.
— Fantasiam-me como impecável, exímio — levantou os olhos até o topo da figura, distinguindo sobre o gesso o metal reluzir — Sinto-me como um homem sob uma coroa, não um homem digno de colocá-la sobre si. Uma coroa com um príncipe, nunca um príncipe coroado — retornou o foco de seus olhos ao rosto da escultura — Idealizam-me como algo que nunca serei, mesmo ao tornar-me rei. Tenho tantos acúleos quando a roseira de onde arrancou-se esta flor visivelmente incólume. Nunca olham a roseira desde a raiz, o caule. A imaginam florida, esquecendo-se que em algum momento tudo poderá ruir — rodou sobre os tornozelos, avistando a rosa ainda flutuando — E não há nada de errado na imperfeição.
2 notes · View notes
Text
NA PENUMBRA DA QUIETUDE PERMEIA A PIOR DAS CÓLERAS
Tumblr media
Tantos olhos e tantos pulmões neste recinto, mas pareço apenas enxergas as tuas pupilas dilatadas e ouvir a tua respiração pesada e ofegante. Encolhes o próprio corpo, já diminuto, sobre a cadeira, como se desejasse sumir e esvair-te desta sala escura e de energia mórbida, forrada de soluços, vozes trêmulas e olhares perdidos, misturando-se quando observam a lâmpada solitária que desce do teto e paira sobre o centro do círculo formado por tantos corpos inquietos, amargos, alguns até mesmo malcheirosos pelo suor e o carma ancorado em suas costas.
Algo na tua dor me atraía os sentidos, mas o desejo de abrir alguma das janelas já quebradas me fazia debater comigo mesmo entre sair e continuar sentado, observando cada elevação atribulada do teu tórax. Os lábios mexiam-se sutilmente, apesar de nitidamente amedrontados, machucados e doloridos.
Fechei meus olhos por um instante, tentando encontrar um resquício de sanidade em vão, buscando pela certeza de que eu não estava alucinando. Estava sóbrio, estava vivo, e tu eras inteiramente real.
Apenas tu.
Quando os abri já não havia outros olhos ou outros pulmões sugando o pouco ar que ventilava o cubo concreto de paredes sujas. Todos os outros rostos manchados e úmidos partiram naquele curto instante em que decidi adentrar em minha escuridão de consciência. Restamos apenas nós.
Eu, um corpo aparentemente calmo, inebriado e em anestesia. Quieto, parado, sem traços ou sinais de qualquer perturbação, talvez até sem sinal de vida. E tu, o que exalavas a própria fragilidade, a pele aparentemente vulnerável e fria. O único de uma grande roda de homens pensantes que em algum momento percebeu.
Distinguiste no meu silêncio o grito que dilatava-me os alvéolos. Sem qualquer palavra ou som, sem qualquer movimento ou tremor meu, tu viras por dentro da carne, passeaste por minhas artérias envolto em tudo aquilo que me mantinha sereno. Dopado.
Precisas de tanto amparo quanto eu, mas fostes o único a estender-me a mão.
A única salvação.
2 notes · View notes
Text
NO CARROSSEL DO DESESPERO VOMITEI DE TONTURA
Tumblr media
— Criança sozinha não pode, senhor — disse apontando para o garoto que entrou por último no carrossel.
— O guri tem doze anos. Ele pode decidir judicialmente com quem quer morar, mas não pode ir num brinquedo de parque sozinho? — estufou as narinas, arregalou os olhos e ergueu as mãos e antebraços junto dos ombros, questionando a lógica (inexistente) das regras do parque em que levou o irmão caçula. — Isso só gira com um monte de unicórnios, não é um tobogã com tubarões no final.
O olhar do funcionário que cuidava do brinquedo era a definição visual de quem está cansado da vida e não vai insistir na discussão. Deixou o pirralho ir sozinho mesmo, o máximo que poderia acontecer era perder o vigésimo quarto emprego em um ano e meio e ter de procurar outro.
Nada de novo sob o sol.
E que sol! O verão no Paraná não costumava ser tão escaldante, evidências do aquecimento global faziam as crianças chorarem por sorvete. A testa de Marcelo poderia fritar um ovo de tão suada enquanto ele, roboticamente, apertava botões de liga e desliga e abria e fechava um portãozinho de um metro de altura.
Do lado de fora do gradil, muito perto dos controles do carrossel, Renato esperava o irmão, lambuzando-se na terceira casquinha enquanto aguardava o baixinho na quinta volta seguida no carrossel. Ainda bem que quem estava comendo era o irmão mais velho, senão o carrossel já estaria forrado por vômito de chocolate e algodão-doce.
— Quer um pouco? — ofereceu o quarto sorvete do dia, agora um picolé, ao perceber que o funcionário derretia mais que o doce no palito.
— Não, eu sobrevivi a isso a semana toda, não vai ser hoje que vai dar errado — jogou as costas no mesmo gradil onde o outro apoiava os cotovelos —  Ele não cansa disso? Eu já estou tonto de vê-lo girar tantas vezes seguidas.
— E provavelmente ele ainda vai querer girar mais algumas, várias, muitas voltas —  riu entre as lambidas no picolé — Eu vou comprar uma água, quer alguma coisa?
— Não, eu tenho uma garrafa comigo aqui —  ergueu o frasco plástico que tinha em mãos, a água visivelmente já tinha evaporado, condensado e outras mil coisas ali dentro daquela garrafa debaixo do sol.
— Ok, eu volto já para tentar tirar ele daí.
Renato foi procurar a própria bica de água em alguma nascente amazônica. Quase uma hora depois de ter ido “comprar água”, ele retornou para resgatar o irmãozinho das rotações infinitas do carrossel. Não sabia ainda que o resgate teria que ser dele mesmo quando a mãe descobrisse que…
— Como assim ele saiu?! Eu não estava aqui, porque deixou ele descer? — Renato chacoalhava a garrafa no ar, gesticulando, jogando água para todo lado, visto que tinha a tampinha numa mão e o frasco em outra.
— Quem argumentou que ele tem idade até para decisões judiciais foi você — disse em tom seco enquanto apertava o botão verde mais uma vez.
Uma respiração profunda tocou o cangote de Marcelo, que estava de costas para a grade.
— Eu ‘tô muito ferrado, minha mãe vai tirar a pele da minha bunda com a sandália — a fala sussurrada e o tom de voz trêmulo de Renato fez o funcionário virar-se para ele, seus olhares se cruzaram — Eu vou ficar sem meu Pokémon Go por meses. —  Renato literalmente derreteu, mas não de calor e sim em lágrimas, soluçando um choro dramático com a testa apoiada no ombro de Marcelo.
O mais velho apertou o botão vermelho do controle, a expressão que tinha no rosto era séria. Movendo apenas o braço e a mão, levantou o trinco e abriu o portão de acesso ao brinquedo. Ergueu o membro superior direito e apontou para fora do gradil, sem dizer uma única palavra. As crianças desceram e correram para fora. Marcelo tirou de algum lugar uma placa que dizia “em manutenção”.
— Não posso admitir que alguém seja impedido de jogar o melhor jogo já criado pelo homem — colocou seu boné do Ash e tirou a camisa do uniforme do parque, mostrando a camiseta arco-íris que vestia por baixo — Vamos achar o seu irmão ou eu não me chamo Marcelo Maciel.
— Renato, prazer —  estendeu o braço.
Apertadas as mãos, com um compromisso feito entre as partes, foram em busca do pequeno-mas-juridicamente-apto-a-decidir-com-quem-morar, Rodrigo.
Passaram pela montanha-russa (pequena, diga-se de passagem) e, em meio ao frenesi da fila, foram arrastados com as outras pessoas. Quando entreolharam-se já estavam sentados no carrinho e com as travas cobrindo parte do tronco. Marcelo sentiu o pulmão travar assim que começaram a se mover sobre os trilhos.
Receberam ao final uma cópia da foto de suas caras adoráveis durante a descida — Marcelo faria questão de queimar aquele pedaço de papel quando chegasse em casa.
Seguiram então até o carrinho de bate-bate, onde descobriram ser duas pessoas extremamente competitivas e sem foco.
Renato começou batendo em todos os carrinhos possíveis na tentativa de ver se o seu motorista não habilitado era o pequeno Rodrigo.
Péssimo exemplo para todos os menores de idade, criou, sem necessidade, uma briga de trânsito. Sentiu o choque na traseira que fez seu bumbum desgrudar do banco e voltar para ele numa dor infeliz no cóccix. Quem ousava arranhar seu para-choque traseiro?
— Por que você bate em todos para ver quem é? Não lembra nem a roupa que seu irmão está usando, idiota? — gritou Marcelo do outro lado da área do brinquedo.
— Quem você chamou de idiota, Marcelo? — tinha os olhos em riscos, semicerrados, convidando Maciel para a briga de trânsito mais infantil do parquinho.
Perderam meia hora ali, jogando seus carrinhos um contra o outro, espantando as crianças —  e saíram apenas porque foram expulsos pelo controlador do brinquedo.
O Túnel do Amor não era muito convidativo, mas eles tinham de procurar Rodrigo. Entraram no barquinho em forma de cisne e seguiram. Saíram do outro lado do túnel completamente encharcados após uma discussão sobre queimar ou não a foto da montanha-russa.
— Eu vou queimar isso no fogão da minha mãe, ninguém pode ter acesso à essa prova.
— Como assim queimar? ‘Tá doido, Marcelo? Dá isso para mim, ninguém vai achar ela no meu álbum.
Assim começou a troca de empurrões, braços esticados, tentativas de pegar a foto um do outro e PLOFT!
Percorreram mais alguns brinquedos pequenos e irrelevantes, tediosos. Restava apenas a temida roda-gigante.
— Eu não vou subir nessa cabine com você e ficar preso lá em cima tendo que olhar pra sua cara feia de fome — resmungou Renato, recebendo um revirar de olhos do Marcelo como resposta.
Foi puxado pelo antebraço para dentro do cubículo, como ele chamava, e obrigado a sentar em um dos banquinhos lá dentro.
— Se parasse de reclamar não pareceria tão ruim.
Alguns minutos de silêncio e dois estômagos manifestaram-se irados. A fome era pior naquele calor de uma hora da tarde e naquela cabine abafada que ainda estava na primeira metade da volta.
— Eu tenho medo de montanha-russa — desabafou numa voz baixa, olhando pelos vidros da cabine, evitando contato visual enquanto admitia seu pânico particular desconhecido pelo mundo.
— Por que não me disse? Eu teria entrado na fila sozinho.
— Sei lá, parece um medo muito idiota.
— Mais idiota do que eu? — sorriu quadrado, tirando uma risada tímida de Marcelo.
Muitos e muitos brinquedos depois, já secos pelo poder magnífico do calor solar em secar roupas, retornaram ao carrossel, exaustos e frustrados. Talvez Rodrigo tivesse entrado na toca do coelho e ido visitar a Rainha de Copas.
O celular de Marcelo e de Renato tocaram, uma notificação do joguinho que ambos amavam tanto avisava que uma nova batalha começava naquele momento. O ginásio era o carrinho de pipoca doce, metros à frente do carrossel. Renato só não esperava que um dos jogadores na batalha fosse…
— Diguinho e seu companheiro Sudowoodo — arregalou os olhos — Meu irmão está no Ginásio Pokémon numa batalha? — Os dois mais velhos trocaram olhares confusos e viraram-se juntos para o carrinho de pipoca.
— É sério? — Jogou os ombros para baixo, pendendo os braços e bufando, desapontado. —  Procuramos no parque todo por esse pirralho e ele estava aqui jogando Pokémon… Subindo absurdamente de nível, Renato, olha isso!
A humilhação era grave, gravíssima. Seus níveis eram pequenos bebês chorando comparados ao nível de Rodrigo. Talvez ele, além de juridicamente-apto-a-decidir-com-quem-morar, fosse também apto a destruí-los por completo no joguinho.
Observavam o guri a alguns metros, concentrado no celular, sentado no banco ao lado do pipoqueiro. Renato e Marcelo formavam agora uma definição visual do fracasso. Sujos, imundos, suados como camelos e fedendo a água-clorada-do-túnel-do-amor. Marcelo cutucou o mais novo com o cotovelo.
— Ei, que tal um sorvete de casquinha, um picolé, um refrigerante trincando de gelado, um cachorro-quente, uma pipoca e talvez umas batatas? — ergueu as sobrancelhas rapidamente algumas vezes.
— Merecemos isso duas vezes depois de tudo que corremos. Eu comeria o próprio Charizard que o Rodrigo está derrotando naquele ginásio.
3 notes · View notes